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Processo n.º 134/05
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam o Tribunal Constitucional
No Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas foi, em 13 de Julho de 2004,
proferida sentença em acção de regulação do exercício do poder paternal
instaurada pelo Ministério Público, na qual – na parte que interessa agora
considerar –, depois de dar por assente que a menor A., nascida em 12 de
Fevereiro de 2002, tinha sido entregue pela mãe, em 28 de Maio do mesmo ano, ao
casal constituído por B. e C. 'para que seja adoptada plenamente pelos mesmos,
integrando-se na sua família', e que estes desde então têm tratado da menor, de
tal forma que a Segurança Social requerera em Março de 2004, naquele Tribunal, a
confiança judicial da menor com vista à sua adopção pelo referido casal, decidiu
o seguinte:
Nestes termos, o Tribunal decide regular o exercício do poder paternal
relativamente à menor A.:
1) A menor A. fica confiada à guarda e cuidados do pai [D.], que exercerá o
poder paternal;
2) A menor beneficiará de acompanhamento efectivo e periódico de natureza
psicológica/pedopsiquiatra, com a frequência indicada pelos médicos/técnicos
designados, encarregando-se a equipa de Tomar do IRS de providenciar,
urgentemente pelo início e desenrolar do acompanhamento;
3) Num primeiro período de 6 meses a contar da data da decisão, a progenitora
[E.] poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos Domingos, quinzenalmente, no
período entre as 10H00 e as 19H00;
4) Decorridos seis meses, a mãe poderá visitar a filha e tê-la consigo, aos
fins-de-semana, quinzenalmente, desde as 10H00 de Sábado às 19H00 de Domingo;
5) No dia de aniversário da menor esta tomará uma refeição principal com cada um
dos progenitores;
6) Relativamente ao Natal, a menor passará a noite de 24 para 25 na companhia de
um progenitor e o dia 25 com o outro, o mesmo sucedendo com a noite e dia de Ano
Novo, alternadamente;
7) A título de alimentos para a menor, a mãe contribuirá com a quantia de € 100
(cem euros) mensais, a entregar à mãe [pai?] por intermédio de cheque,
transferência bancária, ou vale postal, até ao dia 8 de cada mês;
8) O pai da menor receberá os abonos de família e todos os demais subsídios a
que a menor tenha direito;
9) Em Janeiro de cada ano, o montante referido em 7) será actualizado em função
do índice de aumento de preços no consumidor publicado pelo Instituto Nacional
de Estatística.
Notificados da decisão, os aludidos B. e C. dela pretenderam recorrer para a
Relação de Coimbra, através de requerimento apresentado em 16 de Julho de 2004.
A pretensão foi negada ainda no Tribunal de Torres Novas por despacho do
seguinte teor:
Os recorrentes B. e mulher não são titulares da relação material controvertida
que versa sobre o exercício do poder paternal relativo à menor A..
Por conseguinte, não têm legitimidade para impugnarem a decisão que regulou o
exercício do poder paternal.
Por tal motivo, indefiro o recurso interposto pelos mesmos - art. 680º e 687º
n.º 3 do CPC.
Custas no incidente pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em duas
UC’s.
Notifique.
Inconformados, os interessados reclamaram para o Presidente da Relação de
Coimbra, nos seguintes termos:
O recurso de apelação interposto sufraga-se nos artigos 680º n.º 2 do Código de
Processo Civil e 4º al. i) da Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro ex vi do art.
147º-A da Organização Tutelar de Menores.
Resulta das disposições legais referidas o “direito de participação” de quem tem
a guarda de facto do menor e a legitimidade para recorrer das “pessoas directa e
efectivamente prejudicadas pela decisão (...) ainda que não sejam partes na
causa”.
Assim, não pode deixar de entender-se que o “direito de participação” inclui o
direito de recurso de quem tem a guarda de facto da menor, num processo de
regulação do poder paternal que decide retirar-lhes a criança e entregá-la ao
pai biológico, que a mesma nem conhece.
Aliás, a legitimidade para recorrer é garantida expressamente pelos arts. 123°
n.º 2, 104° n.º 1 e 105° n.º 2 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo “a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem”.
Ora, a sentença a quo de que se pretende apelar considerou provados os seguintes
factos:
- “28 — A menor vive actualmente com B. e C....”
- “30 —...a entrega da criança, o que aconteceu em 28 de Maio de 2002...”
- “35 — Em Março de 2004 a Segurança Social requereu neste Tribunal a confiança
judicial da menor, com vista a futura adopção, ao casal composto por B. e C.”.
E, expressamente refere:
- “A menor encontra-se, de facto, à guarda de terceiras pessoas». (pág. 11)
- “Em termos económicos é o referido casal que oferece melhores condições à
menor, não se questionando também que o mesmo possua um enorme afecto por esta,
tratando-a como se sua filha fosse” (pág. 16).
- “Atenta a circunstância de a mesma ter estado desde os 3 meses a viver com o
casal a quem foi entregue”. (pág. 17)
- “... relativamente à pendência do processo de confiança judicial com vista a
futura adopção (...) os presentes autos demonstraram também, indirectamente, a
inexistência dos pressupostos de adoptabilidade ...“
Dúvidas não restam, pois, que os recorrentes vêm exercendo a guarda de facto
sobre a menor, entendida como a relação que se estabelece entre a criança e a
pessoa que com ela vem assumindo, continuadamente (e exclusivamente) as funções
essenciais (e as demais) próprias de quem tem responsabilidades parentais (art.
5º al. b) da Lei 147/99 de 1 de Setembro), desde que a menor tinha 3 meses de
idade, e que, a sentença em causa, os prejudica directa e efectivamente.
Porém, o Meritíssimo Juiz a quo “indeferiu” o recurso interposto pelos
recorrentes, alegando a sua ilegitimidade, com base nos arts. 680º e 687° n.º 3
do Código de Processo Civil e condenou-os em custas no valor de 2 UC’s.
É pois patente que o recurso não foi admitido uma vez que, certamente por lapso,
o Tribunal a quo não atendeu ao disposto no art. 147°-A da Organização Tutelar
de Menores, que manda aplicar os princípios previstos na Lei de Protecção de
Crianças e Jovens em Perigo, entre os quais se encontra o da participação de
quem tiver a guarda de facto do menor, que inclui o direito de recurso.
Este normativo legal sobrepõe-se ao estatuído no Código de Processo Civil, pois
lex specialis derrogat lex generalis.
Aliás, a não admissão do recurso com fundamento nos art. 680° e 687° n.º 3 do
Código de Processo Civil é uma interpretação que implica a inconstitucionalidade
destas normas, por violação dos artigos 20°, 13° e 69° da Constituição da
República Portuguesa, concernentes ao direito de acesso aos Tribunais e ao
princípio da igualdade e ao dever de protecção da criança.
Na realidade, está em causa impedir o direito de intervenção processual de quem
tem a guarda de facto do menor, negando de forma injustificada a possibilidade
de actuação ou expressão dos interesses que se pretenderam prosseguir com a
introdução do art. 147°-A da Organização Tutelar de Menores, pela Lei n.º 133/99
de 28 de Agosto.
Acresce que o art. 687° n.º 3 do Código de Processo Civil prevê o indeferimento
do requerimento de interposição do recurso, mas não define as situações
elencadas, não sendo fundamento bastante para motivar o indeferimento.
E, o art. 680º do Código de Processo Civil, que estabelece a regra geral sobre
“quem pode recorrer”, alarga a legitimidade para o recurso a terceiros que sejam
directa e efectivamente prejudicados pela decisão, através do n.º 2. Note-se
que, a título de exemplo, Lebre de Freitas indica “podem figurar-se os casos de
terceiros destinatários de uma decisão judicial que ordene a entrega de
documentos em seu poder” (Código de Processo Civil anotado, vol. 3, pág. 22).
Logo, terceiros com legitimidade para recorrer hão-de ser também os
destinatários de uma decisão judicial que ordena a entrega de uma menor sobre
quem têm a guarda de facto.
Então, a decisão sub judice é contra legem, tanto por violar o n.º 2 do art.
680° do Código de Processo Civil, quanto por ignorar o art. 147°-A da
Organização Tutelar de Menores.
Resulta portanto que os recorrentes têm legitimidade para interpor o recurso de
apelação.
Em face do exposto, forçoso é concluir que o recurso interposto terá de ser
admitido.
Concluindo:
Tendo o Meritíssimo Juiz a quo proferido despacho que indeferiu o requerimento
de interposição do recurso de apelação interposto da sentença proferida nos
autos, com fundamento em ilegitimidade dos recorrentes, é manifesto que ocorre
aqui lapso por não atender às normas dos arts. 680º nº 2 do Código de Processo
Civil e 4º al. i) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo aplicável
ex vi do art. 147° A da Organização Tutelar de Menores e erro de interpretação e
aplicação dos arts. 680° n.º 1 e 687° n.º 3 do Código de Processo Civil.
Digne-se Vossa Excelência admitir a presente reclamação e não a ter por
impertinente ou dilatória e, em consequência, julgá-la procedente e ordenar o
recebimento do recurso interposto.
Todavia, a reclamação foi indeferida por despacho do Presidente da Relação de
Coimbra, com o seguinte teor:
No 2°. Juízo da Comarca de Torres Novas, a Digna Procuradora-Adjunta intentou
acção de Regulação do Exercício do Poder Paternal da menor A. contra seus pais
D. e E..
Proferida a sentença que regulou o referido poder paternal, surgiram B. e mulher
C. pretendendo interpor recurso daquela sentença, recurso que não foi recebido
com o fundamento de aqueles cidadãos não serem titulares da relação
controvertida e, portanto, não terem legitimidade para o efeito.
Daí a presente reclamação dos mesmos cidadãos, pretendendo obter o recebimento
do recurso, alegando que a menor se encontra, de facto, à sua guarda, como se vê
da sentença, o que lhes confere legitimidade para o recurso nos termos da Lei de
Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicável por força do art. 147-A da
OTM. De qualquer forma, consideram-se directa e efectivamente prejudicados pela
decisão, pelo que, mesmo não sendo partes na causa entendem ter legitimidade
para recorrer ao abrigo do disposto no art. 680º, nº. 2, do C. P. Civil.
O despacho foi sustentado.
Cumpre decidir:
Começando pelo segundo argumento invocado pelos reclamantes, há desde já que
salientar que a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode
prejudicar “directa e efectivamente” terceiros, pois os únicos interesses
atendíveis na causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante.
Logo, não tem manifestamente aplicação o invocado artigo 680, n°. 2.
Como é claramente improcedente a invocação do disposto no art. 147-A, da OTM.
É certo que a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo reconhece às
pessoas que têm à sua guarda os menores o direito de certa intervenção nos
respectivos processos.
Só que, o art. 147-A ao dispor que “são aplicáveis aos processos tutelares
cíveis os princípios orientadores das intervenções previstas na lei de protecção
de crianças e jovens em perigo, com as devidas adaptações”, não está a regular a
intervenção das partes ou terceiros no processo, mas a intervenção do próprio
Tribunal.
Na verdade, o preceito não está a fazer mais do que a mandar aplicar, com as
necessárias adaptações, no âmbito da OTM, os “princípios orientadores de
intervenção” do Tribunal consagrados no artigo 4°. da Lei de Protecção, como se
vê claramente da própria epígrafe deste preceito, e não mais do que isso, cuja
alínea i) o Tribunal cumpriu ao ouvir os reclamantes na audiência.
Claudica, assim, a pretensão dos reclamantes de obter o recebimento do recurso.
Se eles entenderem que a menor está em perigo, poderão acautelar os seus
interesses, seus, naturalmente, da menor, e não dos próprios reclamantes,
através de algum dos procedimentos previstos naquela Lei, enquanto ela estiver à
sua guarda.
Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que
regulou o poder paternal.
Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela, constitucional
do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela
decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou,
antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão
em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.
Nestes termos, indefiro a reclamação.
Custas pelos reclamantes, em que se inclui o custo das certidões de fl.s 12 e
seguinte (já contada) e de fls. 46 e seguintes (a contar).
Sempre inconformados, os reclamantes pretenderam recorrer deste despacho para o
Tribunal Constitucional, apresentando nos autos o seguinte requerimento:
B. e sua mulher C., tendo sido notificados da decisão de 5 de Setembro de 2004,
que lhes nega a legitimidade para impugnar a sentença proferida no processo n.º
1.149/03.3TBTNV-B, 2° Juízo, do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas,
dela pretendem recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70 n.º
1 al b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Com este recurso visa-se a apreciação da inconstitucionalidade dos arts. 680° e
687° do Código de Processo Civil, tal como interpretados e aplicados na decisão
em causa.
Em cumprimento do disposto no art. 75° al. b) n.º 2 da Lei do Tribunal
Constitucional, consignam que se consideram violados os arts, 13º, 20º e 69° da
Constituição da República Portuguesa, concernentes ao princípio da igualdade, ao
direito de acesso aos Tribunais e ao dever de protecção da criança, conforme
suscitado na Reclamação dirigida ao Venerando Presidente do Tribunal da Relação
de Coimbra.
Não pode deixar de referir-se desde já, a propósito do afirmado na decisão sub
judice “nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional do direito
ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela decisão em
qualquer interesse seu legítimo e atendível e nem sequer tentou, antes dessa
decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão em que
tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes”, que os reclamantes tiveram
intervenção nos autos.
Nomeadamente, no início do processo, juntaram procuração passada a advogado e,
posteriormente, em 20.01.2004 foi junto substabelecimento pela mandatária.
Em 26.02.2004, foi a advogada notificada da data designada para a audiência de
discussão e julgamento. E, tendo estado presente em 07.05.2004, foi impedida
pelo Mmo. Juiz de ia instância de intervir.
Finalmente, cm 13.07.2004, foram os requerentes notificados da sentença.
Digne-se pois V. Exa. considerar interposto o recurso e ordenar os ulteriores
termos do processo.
Também esta pretensão não foi atendida. Com efeito, o Presidente da Relação de
Coimbra, autor do despacho recorrido, decidiu:
B. e mulher C. pretendem, ao abrigo do art. 70, n°. 1, al. b), da Lei 28/82,
recorrer para o Tribunal Constitucional da minha decisão de 15 de Setembro,
pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade dos art.º 680º e 687º do
Código de Processo Civil nos termos em que foram aplicados naquela decisão.
Ora, nessa mesma decisão escrevi:
'Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional
do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela
decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou,
antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão
em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.'
Procurando rebater esta afirmação, dizem estes que no início do processo
juntaram procuração a advogado e, depois, substabelecimento, tendo a advogada
sido notificada para o julgamento e da sentença; tendo estado presente nesse
julgamento, foi impedida de nele intervir pelo Senhor Juiz.
Ora, a junção da procuração e notificações são absolutamente inócuas. Não
conferem nem retiram direitos.
Relevante é o facto de os reclamantes terem sido impedidos de intervir no
julgamento, sem que a isso tivessem reagido. Dessa forma, tornou-se definitiva,
porque transitou, a decisão que lhes negou legitimidade para intervir no
processo.
Assim sendo, por falta de legitimidade já declarada definitivamente e por
manifesta improcedência, em obediência ao disposto no art. 76, n°. 2, da citada
Lei 28/82, não recebo o recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs.
Reclamaram então os mesmos interessados para o Tribunal Constitucional, que, por
acórdão de 19 de Janeiro de 2005 decidiu:
Em causa está, pois, saber se o recurso que os recorrentes pretendem interpor
para o Tribunal Constitucional deve ou não ser recebido. Não foi recebido no
Tribunal recorrido, recorde-se, por ter sido recusada aos recorrentes
legitimidade para este efeito, para além de se haver julgado manifestamente
improcedente o recurso interposto.
O recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º
da LTC, como o presente, exige, entre outros, a verificação dos requisitos que
constam do artigo 72º da mesma LTC; pode recorrer quem tenha essa faculdade face
à lei processual no domínio da qual foi proferida a decisão recorrida. Na
verdade, aos recorrentes foi negada a faculdade de impugnarem, perante um
tribunal superior, a sentença que decidiu a matéria em causa, visto que lhes não
foi reconhecida, face a uma determinada interpretação dos artigos 680º e 687º n.
3 do Código de Processo Civil, legitimidade processual bastante. Isto é, o
Tribunal comum entendeu que uma determinada norma, constante dos artigos 680º e
687º n. 3 do Código de Processo Civil, proíbe aos recorrentes a faculdade de
recorrer da sentença proferida. Acontece que os recorrentes acusam de
inconstitucional precisamente essa norma. Então, se forem impedidos de impugnar
perante o Tribunal Constitucional a decisão que, aplicando a norma que acusam de
inconstitucional, lhes retira a faculdade de intervir no processo, fechar-se-ia
um círculo que de forma absoluta os impediria não só de intervir no processo –
impugnando a decisão jurisdicional tomada –, como ainda de contestar a
conformidade constitucional da norma por força da qual lhes é recusada aquela
possibilidade. O que, como é bom de ver, é inadmissível.
Na verdade, destinando-se o recurso de inconstitucionalidade previsto na alínea
b) do n. 1 do artigo 70º da LTC a sindicar decisões que “apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, deve ter-se por
assente que – observados os restantes requisitos deste tipo de recurso – pode
usar este mecanismo todo aquele que é vencido quanto à questão de
inconstitucionalidade na decisão recorrida, incluindo o interessado a quem foi,
por via daquela decisão, negado o direito de intervir na lide.
No domínio da legitimidade para recorrer exige-se ainda que o recurso só possa
ser interposto por quem haja suscitado a questão da inconstitucionalidade, de
modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida. Pretende-se, através deste requisito, que a questão haja sido
oportunamente colocada ao tribunal recorrido por forma a que este a deva
conhecer e, ainda, que a suscitação da questão tenha sido feita pela parte ou
interveniente processual que se apresenta a recorrer. Os reclamantes visam
questionar a norma, retirada dos artigos 680º e 687º n. 3 do Código de Processo
Civil, segundo a qual aquele que exerce a guarda de facto sobre uma criança não
tem legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do poder
paternal do menor.
Esta questão foi suscitada pelos recorrentes na reclamação que apresentaram ao
Presidente da Relação de Coimbra, quando invocaram que uma tal interpretação
normativa determinava a violação dos artigos 13º, 20º e 69º da Constituição, e
foi conhecida e decidida no despacho de que pretendem recorrer.
Há ainda que reconhecer que a norma questionada foi efectivamente aplicada, como
sua ratio decidendi, na decisão recorrida.
Estão assim verificados os requisitos formais que condicionam a admissibilidade
do recurso.
Resta dizer que, ao contrário do que se afirma no despacho reclamado, não poderá
adiantar-se um julgamento de manifesta improcedência da suscitada questão de
inconstitucionalidade, pelo menos, como diz o Ministério Público, “numa análise
puramente liminar e perfunctória”, como é aquela que, neste momento processual,
deve ocorrer.
Assim, decide-se deferir a reclamação, determinando o recebimento do recurso
interposto pelos reclamantes.
O recurso foi então admitido, com subida imediata e efeito suspensivo, por
despacho do Presidente da Relação de Coimbra.
No Tribunal Constitucional todos os interessados apresentaram alegações.
Os recorrentes concluíram a sua alegação dizendo:
1. O presente recurso é interposto do douto Despacho do Exmo. Senhor
Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de
Setembro de 2004, que decidiu a reclamação apresentada pelos ora recorrentes, ao
abrigo dos arts. 680º e 687º do Código de Processo civil, negando-lhes
legitimidade para recorrer.
2. Desta decisão não cabe recurso ordinário, conforme disposto no
art. 689º n.º 2 do Código de Processo Civil, cumprindo-se assim o pressuposto do
art. 70º n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 28/82, que torna admissível o recurso para este
Venerando Tribunal Constitucional.
3. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do art. 70º n.º 1 da
mesma Lei.
4. As normas cuja constitucionalidade se pretende que o Venerando
Tribunal Constitucional aprecie são as dos arts. 680º e 687º n.º 3 do Código de
Processo Civil, na interpretação restritiva que lhes foi dada pela decisão
recorrida, mantendo o sentido atribuído pela reclamada decisão da 1ª instância.
5. Esta interpretação restritiva nega legitimidade para recorrer da
sentença que regula o exercício do poder paternal a quem detém a guarda de facto
da menor, desde que esta tinha 3 meses de idade, e com quem a menor estabeleceu
relação de filiação, como é o caso dos recorrentes.
6. As normas ou princípios constitucionais considerados violados
foram o princípio da igualdade, o direito de acesso à Justiça e a uma tutela
judicial efectiva e o dever de protecção da infância, consagrados nos art. 13º
20º e 69º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
7. A peça processual em que os recorrentes oportunamente suscitaram a
questão da inconstitucionalidade foi a da já referida reclamação, apresentada ao
abrigo do art. 688º do Código de Processo Civil.
8. A questão processual suscitada está na sede da legitimidade,
existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada
inconstitucional, como se sustenta.
9. O n.º 2 do art. 680º do Código de Processo Civil, interpretado em
conformidade com os preceitos constitucionais, confere legitimidade a quem
detenha a guarda de facto da menor, para recorrer de decisões que regulem o
exercício do poder paternal sobre a mesma.
10. O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva dos arts.
680º e 687º do Código de Processo Civil, denegando legitimidade para recorrer a
quem não é parte no processo.
11. O art. 20º da Constituição da República Portuguesa assegura 'a
todos o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos'. Daí que seja inconstitucional a interpretação
restritiva que nega o direito de recurso aos recorrentes, quanto a uma decisão
que directa e gravemente os afecta, impossibilitando-os de assegurar os direitos
da menor de quem têm a guarda de facto a um desenvolvimento físico, moral e
psíquico harmonioso, num ambiente familiar afectivo, educativo e responsável sem
descontinuidades graves, e a acautelar o interesse da menor quanto à manutenção
do convívio familiar (filial) que estabeleceu com os recorrentes.
12. Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que tal
interpretação restritiva é inconstitucional, por violação do art. 69º da
Constituição da República Portuguesa, uma vez que, tendo os recorrentes a guarda
de facto da menor, e exercendo na prática todos os poderes-deveres
característicos do poder paternal, deve ser-lhes reconhecida a faculdade de
recorrerem contenciosamente de todas e quaisquer decisões judiciais que afectem
a menor, com vista ao seu desenvolvimento integral e à protecção contra o
abandono.
13. A interpretação em crise viola também o princípio da igualdade
previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que sem
qualquer motivo ponderável, nega o direito de recurso a quem de facto exerce o
poder paternal e detém a guarda de facto da menor.
14. Aos recorrentes que detêm a guarda de facto da menor e a
representam, há-de ser reconhecido o direito de recurso de uma sentença que faz
prevalecer os direitos dos progenitores sobre os direitos da criança, em
violação da Convenção dos Direitos da Criança que vigora no Direito Português
desde a sua ratificação em 21 de Outubro de 1990.
15. Com base no exposto, os recorrentes recorreram da decisão do
Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas que atribuiu o poder paternal ao
progenitor/requerido.
16. O Tribunal pronunciou-se e depois o Exmo. Senhor Presidente do
Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão da 1ª Instância, no sentido
da ilegitimidade dos Recorrentes, com base no argumento de estes não serem
partes no processo, defendendo a tese de que os arts. 680º e 687º do Código de
Processo Civil circunscrevem a quem seja parte no processo a legitimidade para
recorrer.
17. Tal interpretação restritiva é violadora dos arts. 13º, 20º e 69º
da Constituição da República Portuguesa, conforme supra desenvolvido.
18. O recurso não é manifestamente infundado, uma vez que se pretendem
assegurar os direitos da menor que está à guarda de factos dos recorrentes,
impedindo que lhe sejam causados danos graves e irreversíveis.
19. Em face do exposto, deve ser declarado por este Venerando Tribunal
Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal a quo a estas normas,
torna-as inconstitucionais, só deixando de o ser se interpretadas com o sentido
de os recorrentes, na situação jurídica de detentores da guarda de facto da
menor, com confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e
Segurança Social de Santarém e estando pendente o processo de confiança judicial
da menor aos recorrentes, instaurado por aquele órgão da Segurança Social, têm
legitimidade para recorrer da decisão que atribui o exercício do poder paternal
a terceiro.
Termos em que,
devem as normas constantes dos artigos 680º e 687º n.º 3 do Código de Processo
Civil (Decreto Lei n.º l80/96. de 25 de Setembro) interpretadas no sentido de
denegar legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma
criança, no âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de
terem manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, ser julgadas
inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas dos artigos 20º n.º
1, 13º e 69º da Constituição da República Portuguesa. E, consequentemente,
ordenar-se a reformulação da decisão a quo, em conformidade com o juízo de
inconstitucionalidade.
Por seu lado, a recorrida E. concluiu:
A) Vêm os recorrentes peticionar que o Venerando Tribunal Constitucional se
pronuncie pela inconstitucionalidade da interpretação restritiva dos artigos
680° e 687°, n.º 3 do Código de Processo Civil feita no sentido em que denegam
legitimidade para recorrer a quem exerce a guarda de facto sobre uma criança, no
âmbito de um processo de regulação do poder paternal, apesar de terem
manifestado interesse em intervir espontaneamente na causa, viola assim os
artigos 13°,20° e 69° da Constituição da República Portuguesa.
B) Com o devido respeito, entendemos não assistir razão à pretensão dos
recorrentes.
C) Nos termos do artigo 680°, n.º 1 do CPC o direito de recorrer é atribuído
apenas e em princípio a quem for parte principal na causa, e a título
excepcional é reconhecido também às pessoas directa e efectivamente prejudicadas
pela decisão, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes
acessórias.
D) Ora, conforme foi expendido pelo Exmo. Presidente do Tribunal da Relação de
Coimbra, os aqui Recorrentes não são parte na causa, não foram afectados pela
decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentaram
antes dessa decisão qualquer intervenção nos autos ou suscitaram qualquer
questão em que tivessem sido vencidos,
E) Efectivamente os aqui recorrentes não foram parte na causa,
F) Acresce que, o n.°2 do artigo 680° do CPC apenas prevê a hipótese de poderem
recorrer da decisão as pessoas que não sejam parte na causa mas que foram
directa e efectivamente prejudicadas pela decisão,
G) O referido prejuízo para poder classificar-se de directo e imediato, tem de
resultar da própria decisão e de ser actual e positivo, no sentido de impor
responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses
juridicamente tutelados, isto é tem de ser real e jurídico.
H) Em nosso entendimento os recorrentes não poderão considerar-se prejudicados
pela decisão,
I) Na douta sentença foram dados como provados factos que interessam para a
decisão do presente recurso, designadamente:
- que em Março de 2004 a Segurança Social requereu no Tribunal a confiança
judicial da menor com vista a futura adopção ao casal composto B. e C.,
- e que tal processo se encontra suspenso a aguardar a decisão a proferir nos
autos de regulação do poder paternal,
J) Acresce que, consta também da douta sentença, que ambos os progenitores
desejam assumir o exercício do poder paternal,
L) E que a factualidade provada não permite concluir pela existência de qualquer
causa justificativa de inibição ou limitação ao exercício do poder paternal
relativamente aos progenitores,
M) Efectivamente, só excepcionalmente e perante situações sérias devidamente
comprovadas é que o Tribunal não deve entregar a menor aos pais mas a terceira
pessoa.
N) Tendo em conta a factualidade assente na douta sentença e que conduziu a que
a menor ficasse confiada à guarda do pai, e com o devido respeito, não
vislumbramos que possa considerar-se que os aqui recorrentes têm legitimidade
para interpor recurso no âmbito de um processo de regulação de poder paternal,
por alegadamente exercerem a guarda de facto sobre uma criança,
P) Entendem os recorrentes que os referidos normativos, na interpretação feita,
são inconstitucionais, dado serem detentores da guarda de facto da menor com
confiança administrativa pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança
Social de Santarém, estando pendente o processo de confiança judicial da menor
aos recorrentes,
O) Acontece que, tendo sido proferida decisão nos autos de regulação do poder
paternal e proferido despacho a ordenar a entrega da menor ao pai,
P) Não detêm os recorrentes nenhum especial poder de guarda sobre a menor, nem
se vislumbra que o mesmo lhes possa ser reconhecido,
Q) Ora, os recorrentes não podem considerar-se como directa ou efectivamente
prejudicados pela sentença que regulou o poder paternal, desde logo porque não
são titulares, por não lhes ter sido conferido, qualquer direito efectivo no que
concerne ao exercício do poder paternal relativamente à menor,
R) Por todo o exposto deve manter-se na íntegra o douto despacho recorrido,
S) O qual não violou qualquer normativo legal.
Com o que, e mui douto suprimento de Vossas Excelências se fará
JUSTIÇA!
O recorrido D. diz, a concluir:
A - Não está ferida de inconstitucionalidade a decisão que interpreta os art°s
680° n.º 2 e 687° n° 3 do C.P.C. no sentido e interpretação dadas de negar
legitimidade para recorrer da sentença que regulou o exercício do poder paternal
a quem detêm consigo a menor, e vem exercendo funções próprias dos pais contra a
vontade destes e à margem de qualquer decisão administrativa ou judicial que
lhes a haja confiado.
B- Tal sentença, acautelando o superior interesse da menor, não prejudica
qualquer interesse jurídico legalmente protegido dos recorrentes, nem viola os
art°s 20º, n.º 1, 13° e 69º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que,
Deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Finalmente, o representante do Ministério Público neste Tribunal apresentou
alegação em que conclui:
1º - É inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais,
conjugado com o princípio da protecção da infância, afirmado pelo artigo 69º da
Constituição, a interpretação normativa do nº 2 do artigo 680º do Código de
Processo Civil, que denega legitimidade para recorrer aos detentores da “guarda
de facto” de certa menor, exercida a solicitação e com o expresso consentimento
da mãe biológica, relativamente à decisão que, no âmbito da acção de regulação
do poder paternal entre os progenitores biológicos, decidiu – sem que fosse
admitida qualquer intervenção dos primeiros – atribuir o poder paternal ao pai
biológico, implicando o decidido a abrupta e radical separação do núcleo
familiar em que, praticamente desde o nascimento, a menor se integrara.
2º - Na verdade, tal interpretação – num caso em que foi determinada a suspensão
da instância, por prejudicialidade, do processo da confiança judicial, com vista
à adopção pelos detentores da referida “guarda de facto” da menor – priva em
absoluto estes de qualquer oportunidade para expressarem no processo a sua
valoração de qual seja a melhor forma de alcançar o interesse da criança e, por
essa via, influenciar a decisão que – tendo como matriz essencial o superior
interesse da criança – irá regular o destino desta, determinando em que núcleo
familiar se terá de integrar.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
2. Importa decidir.
2.1. Deve começar-se por precisar o âmbito do presente recurso.
No requerimento de interposição do recurso sustentam os recorrentes que visam
obter a apreciação da conformidade constitucional dos artigos 680° e 687° n.º 3
do Código de Processo Civil enquanto negam legitimidade para recorrer, no âmbito
de um processo de regulação do exercício do poder paternal, a quem tem a guarda
de facto de uma criança, norma que seria violadora dos princípios da igualdade,
do direito de acesso aos Tribunais e do dever de protecção da criança,
constantes dos artigos 13°, 20° e 69° da Constituição da República.
A competência do Tribunal Constitucional cifra-se na verificação da conformidade
constitucional das normas efectivamente aplicadas nas decisões dos outros
tribunais, não lhe cabendo averiguar se tais decisões interpretaram
correctamente as normas impugnadas.
Em causa está o despacho do Presidente da Relação de Coimbra que, indeferindo a
reclamação formulada pelos recorrentes contra o despacho de não admissão de
recurso que pretendiam interpor da sentença do tribunal de Torres Novas,
confirmou esse despacho, essencialmente com a seguinte fundamentação:
'[...] a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar
“directa e efectivamente” terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na
causa são os do menor. Tudo o mais é irrelevante. Logo, não tem manifestamente
aplicação o invocado artigo 680 n.º 2. (...)
Se eles [recorrentes] entenderem que a menor está em perigo, poderão acautelar
os seus interesses, seus, naturalmente, da menor e não dos próprios reclamantes,
através de algum dos procedimentos previstos naquela Lei, enquanto ela estiver à
sua guarda.
Agora o que não têm claramente é legitimidade para impugnar a sentença que
regulou o poder paternal.
Resta referir que nem sequer é equacionável a questão da tutela constitucional
do direito ao recurso por quem não é parte no processo, não foi afectado pela
decisão em qualquer interesse seu legítimo e atendível, e nem sequer tentou,
antes dessa decisão, qualquer intervenção nos autos ou suscitou qualquer questão
em que tivesse sido vencido, como é o caso dos reclamantes.'
O despacho indeferiu, assim, a reclamação formulada pelos recorrentes e manteve
a decisão tomada pelo tribunal de Torres Novas de não os admitir a recorrer da
sentença que culminou o processo de regulação de poder paternal.
É, no entanto, manifesto que a Relação indeferiu a pretensão dos recorrentes com
base no n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil, no entendimento de que
a decisão que regula o exercício do poder paternal nunca pode prejudicar directa
e efectivamente terceiros, pois os únicos interesses atendíveis na causa são os
da menor.
Haverá, por isso, que reduzir o âmbito do recurso à norma contida no n.º 2 do
artigo 680º do Código de Processo Civil, preceito que, subordinado à epígrafe
'Quem pode recorrer', tem a seguinte redacção:
1. Os recursos, exceptuada a oposição de terceiro, só podem ser
interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2. Mas as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem
recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes
acessórias.
2.2. O questionado despacho do Presidente da Relação de Coimbra, que
confirmou o despacho de não admissão de recurso proferido no tribunal de Torres
Novas, foi proferido no âmbito de uma acção de regulação do exercício do poder
paternal.
Tais processos, fundamentalmente regulados pela OTM no âmbito dos processos
tutelares cíveis (Título II da Lei respectiva) são, desde a versão originária da
mesma, expressamente qualificados como processos de jurisdição voluntária
(artigo 150º). Isto implica, desde logo, que se apliquem as regras constantes
dos artigos 1409º e seguintes do Código de Processo Civil, regras que ampliam o
poder de cognição do tribunal em matéria de facto e no domínio da prova (artigo
1409º, n.º 2), atribuem ao juiz o poder de julgar segundo critérios de
conveniência e oportunidade (artigo 1410º) e permitem alterar as medidas
decretadas quando as circunstâncias o justifiquem, sem que a força de caso
julgado própria das decisões judiciais o impeça (artigo 1411º n.º 1, sempre do
Código de Processo Civil).
Essas regras, diferentes em aspectos fundamentais das que vigoram para a
jurisdição contenciosa, explicam-se por visarem disciplinar processos em que a
lei confere ao tribunal o poder de prosseguir da maneira mais adequada
(discricionariamente, neste sentido) um determinado interesse, como se de uma
actividade materialmente administrativa (e só orgânica ou formalmente
jurisdicional) se tratasse.
Como explicam A. Varela, J. M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª
ed., Coimbra, 1985):
Entre os processos especiais previstos na legislação vigente, contam-se os
processos de jurisdição voluntária (artigos 1409º e seguintes).
Nos processos de jurisdição contenciosa, que constituem a regra, há um conflito
de interesses entre as partes (credor e devedor; proprietário e possuidor;
locador e locatário; etc.) que ao tribunal incumbe dirimir, de acordo com os
critérios estabelecidos no direito substantivo. Nos processos de jurisdição
voluntária há um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual
podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos
mais convenientes.
[...] Nos processos de jurisdição voluntária (...), a função exercida pelo juiz
não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de
negócios – negócios que a lei coloca sob a fiscalização do Estado através do
poder judicial.'
O tribunal é, assim, colocado perante a necessidade de adoptar as medidas mais
adequadas à prossecução do interesse que lhe cabe acautelar; neste sentido, não
se espera que adopte a posição exigida no comum dos processos, valorando de
igual forma os interesses de que as partes são portadoras.
Na verdade, por muito que exista controvérsia no âmbito da jurisdição
voluntária, acima do interesse de cada um dos envolvidos nessa controvérsia está
aquele que justifica a inclusão do processo no âmbito da jurisdição voluntária.
Como diz Castro Mendes (Direito Processual Civil, AAFDL, 1980. p.79),
II. A jurisdição voluntária resulta do facto de um ou mais interesses
particulares se poderem encontrar em situações anómalas que, sem serem de
litígio, justificam que a prossecução dos mesmos interesses seja condicionada
pela intervenção de uma entidade, ela em si desinteressada. Para fazer as vezes
de tal entidade, recorre a ordem jurídica aos tribunais
Assim, a distinção entre jurisdição contenciosa e voluntária assenta neste
ponto: a jurisdição contenciosa tem por fim a justa composição de litígios; a
graciosa tem por fim a regulamentação de situações anómalas de interesses mas
que não são litígios.
III. Antigamente, era muito comum a distinção entre os dois tipos de jurisdição
ser feita da seguinte forma: a contenciosa desenrolar-se-ia entre pessoas que
não estão de acordo, “inter nolentes” ou “inter invitos”; a graciosa, entre
pessoas que estão de acordo, “inter volentes”. Assim, o art. 1 § 1º, do mais
antigo Código de Processo Civil, de 1876, define: “O processo é contencioso
quando mantém os direitos que são contestados; gracioso, quando regula os actos
jurídicos sem contestação de parte”
Ora, não é a verificação ou não verificação de controvérsia (conflito de
opiniões), nem sequer a sua possibilidade ou impossibilidade, que caracteriza os
dois tipos de jurisdição e processo. Pode não haver controvérsia em processo
contencioso, se o réu não contestar ou até confessar logo o pedido; pode nem a
poder haver, em certos casos excepcionais (artigo 3º, n.º 2 e, por exemplo, art.
394º); pelo contrário, pode haver controvérsia em processo gracioso. Assim, por
exemplo, se o marido quiser pedir ao tribunal suprimento do consentimento da
mulher para vender um bem imóvel (arts. 1682º-A, nº 1 e 1684º, nº 3 do Código
Civil), intenta um processo de jurisdição voluntária (arts. l425º e segs.) que a
mulher pode contestar (art. 1425º, nºs. 1 e 2); e a possibilidade de contestação
verifica-se em muitos outros processos deste tipo.
Nas providências relativas aos filhos, pode haver falta de acordo ou
controvérsia; o juiz resolve “de harmonia com os interesses do menor” (art: 180º
da Organização Tutelar de Menores) e só dele.
A distinção resulta, não da existência ou não existência de controvérsia, mas da
existência ou não existência de litígio. Os processos de jurisdição voluntária —
e isso os caracteriza — não têm por objecto uma situação anómala de interesses,
diferente de um litígio.
No caso da regulação do exercício do poder paternal, é, naturalmente, o
interesse do menor afectado que deve ser prosseguido pelo tribunal; o interesse
de qualquer outra pessoa afectada (seja de qualquer dos pais, seja de outra
pessoa relacionada com a controvérsia) é sempre colocado em segundo plano.
Só que o interesse prosseguido com o processo de regulação do poder paternal não
pode, naturalmente, ser utilizado para definir quem tem legitimidade processual,
seja para intervir num processo tutelar cível como este, seja para recorrer da
decisão que nele venha a ser proferida, quer tenha, quer não tenha, sido parte
em primeira instância.
2.3. Observada a questão pelo prisma deste interesse de natureza
processual, importará – então – saber se é conforme à Constituição a regra
extraída do n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil, segundo a qual
aquele que exerce a guarda de facto de uma criança não tem legitimidade para
recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do poder paternal do
menor.
Ora, no julgamento desta questão, é inevitável fazer apelo ao parâmetro
constitucional que garante a tutela jurisdicional efectiva, constante do n.º 1
do artigo 20º da Constituição, o qual assegura 'a todos' o acesso ao direito e
aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
O Tribunal Constitucional tem interpretado esta garantia no sentido da proibição
de regimes adjectivos que em absoluto retirem a uma das partes o seu direito de
defesa. Conforme se diz no Acórdão 440/94, in DR, II Série, de 1 de Setembro de
1994:
Ora, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. [Constituição da
República Portuguesa Anotada], pp. 163 e 164, no âmbito normativo daquele
preceito constitucional deve integrar-se ainda 'a proibição da 'indefesa' que
consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os
órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista de
limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não
observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta
a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí
resultando prejuízos efectivos para os seus interesses'.
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional, caracterizando o acórdão nº 86/88, Diário da
República, II série, de 22 de Agosto de 1988, o direito de acesso aos tribunais
como sendo 'entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que
se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de
imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto
funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes
poder `deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas,
controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de
umas e outras' (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil,
cit., p. 364)'.
O despacho recorrido interpretou o n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo
Civil no sentido de que, não sendo o interesse dos recorrentes que está em causa
no processo de regulação do poder paternal, mas o da menor que lhes foi entregue
pela mãe, não se pode considerar que sejam 'directa e efectivamente'
prejudicados pela decisão de regulação do poder paternal entre os pais
biológicos.
Ora, não obstante a particular feição que a causa em concreto tomou, a decisão
proferida tem como objectivo a entrega da menor ao pai, retirando-a aos
recorrentes, sem que, aliás, se lhes tenha conferido qualquer direito de
convívio com a menor, ainda que condicional e hipotético. Ora, impedir, nesta
hipótese, o direito de intervenção processual dos recorrentes que pretendem ter
essa intervenção, significaria negar de forma absoluta a possibilidade de estes
expressarem o seu interesse, defendendo-o no processo em igualdade de
circunstâncias dos outros intervenientes processuais. Acresce que, como salienta
o Ministério Público nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, foi
suspensa a instância no processo de confiança judicial da menor, iniciado com
vista à adopção da criança pelos ora recorrentes, por se considerar que o
processo de regulação do poder paternal era prejudicial.
Ficaria, portanto, violado de forma inaceitável, do ponto de vista
constitucional, o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, consagrado
no n.º 1 do artigo 20º da Constituição, se, nestas circunstâncias, lhes não for
permitido intervir no processo para impugnar a decisão que ordenou a entrega da
menor ao pai, retirando-a aos recorrentes.
Tanto é o suficiente para poder já concluir pela inconstitucionalidade da norma
impugnada.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20º da
Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 680º do Código de Processo
Civil, segundo a qual aquele que tem a guarda de facto de uma criança não tem
legitimidade para recorrer no âmbito de um processo de regulação do exercício do
poder paternal do menor.
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a
reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Rui Moura Ramos
Artur Maurício