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Processo n.º 780/05
2.ª Secção
Relator : Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheiro Mário Torres)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18 de Maio de 2005, que negou
provimento a recurso de apelação deduzido contra a sentença do 2.º Juízo do
Tribunal do Trabalho de Lisboa, de 4 de Dezembro de 2004, a qual julgara
improcedente acção por ele intentada contra Banco B. (Portugal), SA, em que
peticionava o pagamento de diferenças de reforma, por, no cálculo desta, não
terem sido considerados os valores correspondentes a um “complemento de
vencimento” e, depois, a um complemento a título de “isenção de horário de
trabalho”.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, o recorrente pretende
a apreciação da inconstitucionalidade, por violação do artigo 63.º, n.º 4, da
Constituição da República Portuguesa (CRP), das normas constantes das cláusulas
136.ª a 144.ª do Acordo Colectivo de Trabalho do Sector Bancário, interpretadas
no sentido de que “para efeitos de atribuição da pensão de reforma, apenas são
levados em consideração os valores correspondentes à retribuição base e
diuturnidades, olvidando assim os restantes valores recebidos a título de
retribuição”.
2.No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho que determinou a
elaboração de alegações, consignou que as partes deviam “pronunciar‑se,
querendo, sobre a questão de eventual não conhecimento do objecto do recurso com
base no entendimento – sufragado no Acórdão do Plenário deste Tribunal n.º
224/2005 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), do qual divergi – de que
as cláusulas de convenções colectivas de trabalho não constituem «normas» para
efeito de integrarem objecto de recursos de inconstitucionalidade”.
3.O recorrente apresentou alegações – a que juntou dois pareceres jurídicos –,
no termo das quais formulou, quanto à questão prévia referida, as seguintes
conclusões:
“1. Não se diga que esta matéria (estas cláusulas do ACT) não têm dignidade de
normas para o Tribunal Constitucional vir a conhecer da sua natureza jurídica e
da inconstitucionalidade destas normas por violação do artigo 63.º da CRP, como
alguma corrente jurisprudencial hoje firmada nesse mais alto Tribunal tem
afirmado.
2. Todavia, discorda‑se desta corrente quando não conhece dos recursos
interpostos com esse fundamento sem atender na realidade à verdadeira natureza
desta problemática.
3. Ora, não nos restam quaisquer dúvidas que
4. As normas referentes a segurança social constantes do ACT são normas de
carácter híbrido, público‑privado, por serem, concomitantemente, normas de
regulação de relações laborais cuja vigência se funda, apenas, em omissão de
desenvolvimento de preceito constitucional por parte do legislador.
5. E normas de concretização de um direito subjectivo público, radicado na
Constituição, caracterizado como direito fundamental, exigível perante o Estado
ou, neste caso, perante quem o substitui na vinculação à prestação.
6. Aliás, de conteúdo concretizável através não só da Lei de Bases da Segurança
Social mas também da Constituição mediante normas directamente aplicáveis por
definição do conteúdo mínimo do direito.
7. Essa prestação quer‑se como substitutiva dos rendimentos do trabalho, e que
se caracteriza por ser um direito indisponível, por se reportar ao conceito, de
direito laboral, de remuneração.
8. Assim, no que toca à vertente pública deste regime especial, temos, antes de
mais, que o campo da segurança social existe por imperativos de ordem pública,
algo que o Estado, na Constituição, assume como imprescindível para a sociedade
e que, por si, pretende assegurar.
9. A relação jurídica, de índole pública, em que se insere este direito
subjectivo dos trabalhadores, tem como contraparte, de acordo com o bloco legal,
o Estado, que está vinculado, como já demonstrámos, à prestação concretizadora
do direito.
10. Como consequência, temos que o direito à segurança social, previsto ao
nível constitucional e de lei de bases, é um direito que está fora do comércio
jurídico, não podendo ser alvo de regulação privada.
11. O que também implica que as normas que definem o conteúdo do direito são
normas imperativas, inderrogáveis, e cujo standard mínimo que estabelecem não
pode ser preterido.
12. Tal facto deduz‑se também da consagração de vários regimes de segurança
social, não no que respeita às prestações essenciais que são objecto da presente
acção, mas no que respeita a prestações complementares, afirmando o artigo 13.º
da Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto (artigo 16.º da Lei n.º 32/2002, de 20 de
Dezembro), que «o princípio da complementaridade consiste na articulação de
várias formas de protecção social, públicas, cooperativas e sociais, com o
objectivo de melhorar a cobertura das situações abrangidas e promover a
partilha contratualizada das responsabilidades, nos diferentes patamares de
protecção social», concretizando‑se no artigo 93.º que «o sistema público de
segurança social poderá desenvolver um regime de prestações complementares das
atribuídas nos outros regimes contributivos de segurança social, de prestações
definidas e subscrição voluntária, em regime de capitalização e em condições a
definir por lei».
13. Estes regimes, a que alude a lei, são complementares do regime obrigatório,
que, por ser isso mesmo (obrigatório), não permite que existam particulares
afastados da sua concretização que, como tal, não beneficiem do direito à
segurança social.
14. Para além de serem a situação por excelência em que a lei permite a
contratualização incidente sobre o direito à segurança social, mas apenas para
além do regime imperativo que decorre da lei, sendo que, no caso dos regimes
complementares, já não estamos no âmbito do direito fundamental à segurança
social.
15. Pois, a aplicação dos regimes complementares pressupõe a satisfação do
direito fundamental.
16. No mesmo sentido, se pronunciou o Prof. Doutor Jorge Miranda no seu
brilhante parecer que ora se junta aos autos, como doc. n.º 1 e que nas suas
conclusões (pág. 57) afirma:
«Em contraste com a Constituição e com a lei, vem subsistindo
até agora um regime convencional de segurança social para os trabalhadores
bancários em que são as instituições de crédito, e não o Estado, a garantir‑lhes
protecção social.»
17. E continuando‑se a citar:
«Esse regime tem levado ainda a que, em vez de esses trabalhadores virem a
receber pensões de reforma baseadas nas concretas retribuições auferidas
(incluindo complementos salariais), acabem por ter direito a pensões baseadas em
tabelas de vencimentos abstractas, não raro com montantes muitíssimo
inferiores.»
18. E, ainda:
«As cláusulas do Acordo Colectivo de Trabalho Vertical para o Sector Bancário
infringem, por consequência, o princípio da universalidade, por subtraírem as
pessoas de determinada categoria profissional à plena efectivação do direito à
segurança social; infringem o princípio da igualdade, por introduzirem
diferenciações arbitrárias entre eles e os demais trabalhadores e diferenciações
entre trabalhadores bancários integrados e não integrados nos quadros das
respectivas instituições; e infringem o princípio da unidade e do carácter
público do sistema.
De resto, a efectivação do direito à segurança social não é
objecto constitucionalmente possível de contratação colectiva.»
19. Concluindo: «A apreciação de inconstitucionalidade das cláusulas do Acordo
Colectivo pode ser feita através do tribunais de trabalho, com os adequados
processos previstos na lei, e – para quem assim o entenda – também através do
Tribunal Constitucional.»
20. A única questão que aqui se põe é a de saber se as parcelas auferidas pelo
autor, a título de isenção de horário de trabalho e de complemento de
vencimento, devem ser incluídos na pensão de reforma do autor.
21. O acórdão ora em crise ofende preceitos constitucionais e de direito
internacional, pelo que deverá ser revogado, com as legais consequências.
22. Atente‑se, pois, na inconstitucionalidade das normas do ACTV relativas à
segurança social e, posteriormente, na violação do princípio da igualdade,
constante do artigo 13.º da Constituição, 23.º, n.º 2, da Convenção
Internacional dos Direitos do Homem e Convenção da OIT n.º 11, de 1958, e artigo
63.º da CRP.
(…)”
O recorrido contra‑alegou, concluindo, também quanto à referida questão prévia:
“1. As cláusulas do ACT do sector bancário relativas à segurança social não
podem considerar‑se como normas, na acepção da alínea b) do n.º 1 do artigo
280.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, pelo que o Tribunal Constitucional, na esteira da jurisprudência
firmada em plenário, não pode conhecer do objecto do presente recurso.
Mas, para a hipótese de assim não se entender, então,
(…)”
Após mudança de Relator, por vencimento, cumpre decidir.
II. Fundamentos
4.Há que começar pela questão prévia sobre o conhecimento do recurso.
O objecto do recurso é a apreciação da constitucionalidade das cláusulas 137.ª e
138.ª do Acordo Colectivo de Trabalho para o Sector Bancário, na redacção
constante do Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 31/1999, interpretadas no
sentido de que o cálculo da pensão de reforma por invalidez se baseia nos níveis
salariais constantes dos Anexos V e VI, acrescido das diuturnidades, não levando
em consideração os complementos remuneratórios que o recorrente auferiu a título
de isenção de horário de trabalho, cartão de crédito, senhas de gasolina e
prémios.
Ora, como este Tribunal tem sublinhado, na averiguação e determinação do que
seja norma, para efeitos de apreciação da sua constitucionalidade pelo Tribunal
Constitucional, deve utilizar-se “um conceito funcional adequado ao sistema de
fiscalização da constitucionalidade [...] e consonante com a sua justificação e
sentido (acórdão n.º 26/85, publicado no Diário da República [DR], II Série, de
26 de Abril de 1985). É que “o conceito de norma presente nos art.ºs 277.º,
280.º, 281.º, 208.º da CRP – especificamente respeitantes à fiscalização da
constitucionalidade – é fundamentalmente um conceito de controlo ao qual está
subjacente uma componente de protecção jurídica típica do Estado de direito
democrático-constitucional” (assim, já Gomes Canotilho, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 822). Trata-se, pois, de um conceito
funcional – e não de um conceito material, ou de outro tipo – de norma, por ser
um conceito adequado à justificação do sistema de fiscalização da
constitucionalidade. Nomeadamente, importa que se trate de preceitos que provêm
de entidades investidas em poderes de autoridade, ou de poderes públicos, e não
apenas do exercício da autonomia privada – seja embora uma “autonomia
colectiva”, exercida através de organizações representativas dos sujeitos aos
quais as cláusulas de uma convenção se vão aplicar. Para a determinação do que
deve entender‑se por norma não pode, aliás, considerar-se decisiva a
circunstância de outros preceitos, mesmo aprovados no exercício de autonomia
privada, poderem igualmente ter como resultado a violação de disposições
constitucionais, nem o facto de o conteúdo de certas convenções poder ser
estendido a outros sujeitos, que não integrem as organizações que os
subscreveram (pois que em tal caso se imporá justamente uma diferente
qualificação das disposições aplicáveis).
5.Concretizando esta directriz, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado em
vários acórdãos sobre a questão de saber se acordos e convenções colectivas de
trabalho estão ou não sujeitas ao controlo de constitucionalidade.
Assim, nomeadamente nos acórdãos n.ºs 172/93, 209/93, 214/94, 368/97 (publicados
no DR, II Série, de 18 de Junho de 1993, 1 de Junho do mesmo ano, 19 de Julho de
1994, e 12 de Julho de 1997, respectivamente) e, mais recentemente, nos acórdãos
n.ºs 637/98 e 697/98 (inéditos). Concluiu, assim, este Tribunal (embora sem
unanimidade), por exemplo, no acórdão n.º 172/93, que:
“[...] como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de
entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes
públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de
constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280º, n.º 1, alínea b), da Constituição.”
Depois deste acórdão, a posição negadora da competência do Tribunal
Constitucional para apreciar a constitucionalidade de cláusulas de acordos
colectivas de trabalho tem vindo a ser reiterada em vários arestos – por último,
numa posição reiterada pelo plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º
224/2005 –, fundamentando-se em que tais acordos não contêm actos normativos
juridicamente vinculativos independentemente do exercício da autonomia dos
intervenientes, que, por consubstanciarem o exercício de poderes públicos, ou
serem objecto de um reconhecimento como tal, devam estar sujeitos à fiscalização
concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos
do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.
6.É esta a orientação que se entende dever seguir.
Na verdade, o presente recurso visa justamente a apreciação da
constitucionalidade de uma norma constante de uma cláusula de um instrumento de
regulamentação colectiva de trabalho, que se deve considerar excluída do
controlo de constitucionalidade, a realizar por este Tribunal, por se tratar de
preceito resultante de actuação em autonomia privada (colectiva), conducente a
acordos concluídos pelos trabalhadores (ou seus representantes) e empregador – e
não de actos emanados de um poder público, ou objecto de um reconhecimento
público, cujo conteúdo se imponha vinculativamente por essa sua qualidade (como
seria eventualmente o caso se fosse aplicável apenas por força de um regulamento
de extensão).
E esta orientação não é também contrariada pelo argumento, invocado pelo
recorrente, de que as convenções em causa concretizariam um direito subjectivo
público, seriam complementares ou decorreriam mesmo de normas do regime de
segurança social previsto na Lei de Bases de Segurança Social. Com efeito, mesmo
a ser assim quanto ao conteúdo (e não só à existência) das cláusulas em questão,
tal complementaridade, ou mesmo a previsão da sua aprovação por um diploma
legal, não altera a natureza das convenções colectivas de trabalho, de normas
não produzidas heteronomamente, isto é, cuja fonte é, antes, o exercício de
autonomia privada (embora autonomia colectiva) dos próprios sujeitos aos quais
se vão aplicar, e não directamente o imperium estadual. E é esta consideração a
que, no entendimento que se faz da jurisprudência que nesse sentido se firmou no
Tribunal Constitucional, foi decisiva para concluir que tais cláusulas não estão
sujeitas ao controlo próprio de normas, pelo Tribunal Constitucional.
Pelo que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso – cuja procedência,
aliás, em face também da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional,
pode considerar-se duvidosa, mesmo que dele pudesse tomar-se conhecimento (cf.,
com efeito, o acórdão n.º 675/2005, igualmente disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt, em que este Tribunal decidiu, num caso em que
estava em causa dimensão interpretativa substancialmente idêntica à ora
pretendida apreciar, não julgar inconstitucional a cláusula 137.ª do Acordo
Colectivo de Trabalho para o Sector Bancário, publicado no Boletim de Trabalho e
Emprego, n.º 42, 1.ª Série, de 15 de Novembro de 1994).
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do presente recurso.
Custas pelo recorrente, com 12 (doze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres (vencido, pelas razões constantes da declaração de
voto aposta ao Acórdão n.º 224/2005).
Maria Fernanda Palma (vencida nos mesmos termos da declaração de voto aposta ao
Acórdão n.º 224/2005).
Rui Manuel Moura Ramos. Com declaração idêntica à que apuz ao Acórdão n.º 44/07,
desta 2ª Secção)