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Processo n.º 933/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a
conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra a decisão sumária do relator, de 4 de Dezembro de
2006, que decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito,
não conhecer do objecto do recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte
teor:
“1. A, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), contra o acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 19 de Setembro de 2006, que negou provimento a recurso de revista do
acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de Fevereiro de 2006, que, por
seu turno, negara provimento a recurso de apelação da sentença do Tribunal
Judicial da Comarca de Ovar, de 15 de Junho de 2005, que julgara improcedente
acção de indemnização intentada contra B., SA, em que era peticionada a
condenação da ré no pagamento da quantia de 45 294 190$00 a título de
indemnização por danos emergentes e lucros cessantes pelo autor sofridos em
consequência de um acidente de viação.
Segundo o requerimento de interposição de recurso,
«Na conclusão 15 da alegação para o STJ apresentada pelo recorrente, por este
foi alegado que o sentido interpretativo que foi dado em 2.ª instância ao artigo
563.º do Código Civil “implica inconstitucionalidade porque viola o principio
da confiança (artigo 2.º da CRP) pela ausência de respeito e garantia de
efectivação dos direitos e liberdades fundamentais de realização de cultura
democrática e social” como “denegação da justiça na sua tutela real efectiva por
violação do artigo 20.º da CRP”;
assim foi invocada a inconstitucionalidade do artigo 563.º interpretado no
sentido restritivo que lhe deu o Tribunal de 2.ª instância (que o STJ veio a
confirmar), isto é: interpretado no sentido de que um estacionamento irregular
como o do veículo da ré (com as causas naturalísticas de perigo provadas no
facto 5.º e 1.º da pág. 9 do Acórdão do STJ) não pode ter o sentido de que tal
estacionamento irregular não tem relação nenhuma nem foi nem pode ser a causa
da lesão que o recorrente sofreu, nem o sentido de que nada tem a ver com os
riscos próprios de veículos como o do réu (cf. artigo 503.º, n.º 1, do Código
Civil).
Outras inconstitucionalidades foram invocadas pelo recorrente ao longo dos
vários recursos dos presentes autos: a) no requerimento de recurso (de ½ página)
do acórdão da Relação para o STJ apresentado em Março de 2006 pelo recorrente,
este suscitou que aos “normativos” “artigos 503.º, n.º 1, e 9.º do Código Civil”
e aos “artigos 134.º, n.º 2, e 59.º do Código da Estrada” aplicados pela 2.ª
instância foi dado um sentido desavindo com os artigos 266.º, n.º 2, e 13.º da
Constituição; b) na conclusão 10 e também na penúltima página da alegação de
recurso da 1.ª instância para a Relação, apresentada no Tribunal Judicial de
Ovar em Dezembro de 2006 [sic] pelo recorrente, este suscitou a
inconstitucionalidade do sentido ou conteúdo aplicado pela 1.ª instância ao
artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil por desconformidade com os artigos 2.º,
202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição; c) nas conclusões 21 e 25 da alegação de
recurso da 1.ª instância para a Relação, apresentada no Tribunal Judicial de
Ovar pelo recorrente em 20 de Novembro de 2000, este suscitou o sentido
inconstitucional dado na sentença recorrida ao artigo 342.º, n.º 2, e 8.º do
Código Civil por violação dos artigos 208.º, n.º 1, 2.º, 18.º, n.º 2, 266.º, n.º
2, e 205.º, n.º 2, da Constituição.»
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo
Tribunal de Justiça, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC) e, de facto, entende‑se que o
recurso em causa é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão
sumária de não conhecimento, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da
LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade,
a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas, ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC),
e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. Resultando do referido artigo 72.º, n.º 2, da LTC que só são
atendíveis as questões de inconstitucionalidade suscitadas perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, há apenas que considerar – para verificação
do cumprimento do referido ónus de suscitação – as peças processuais
endereçadas pelo recorrente a esse tribunal (no caso: as alegações do seu
recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça), e já não as peças
produzidas perante distinta instância judicial (no caso: as alegações dos
recursos de apelação endereçados ao Tribunal da Relação do Porto).
Ora, nas alegações do recurso de revista (fls. 440 a 447), o
recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
como deflui da leitura das respectivas conclusões (sendo certo que no teor
dessas alegações nada se aduz que pudesse ter relevância para o presente
efeito), que a seguir se reproduzem:
«1) Pelas 7h45 do dia 14 de Dezembro de 1994, Estrada Nacional 223, lugar de
Murteira, Arada, Ovar, perto do Café …, encontrava‑se estacionado o veículo
particular pesado de mercadorias com tractor/reboque matrícula 1111111 na metade
direita da faixa de rodagem no sentido nascente‑poente (…).
2) O lado esquerdo deste veículo estacionado encontrava‑se pelo menos a 1 metro
da linha longitudinal contínua separadora das 2 metades da faixa de rodagem
(…).
3) A tal hora, local e estrada, o autor conduzia o seu ciclomotor matrícula
22222222 pela metade direita da faixa de rodagem também no sentido
nascente‑poente (…).
4) À frente do ciclomotor do autor seguia outro de matrícula 33333 guiado por C.
(…).
5) Este ciclomotor 33333 parou para deixar passar os veículos que vinham em
sentido contrário (…).
6) O veículo estacionado matrícula 1111111 é propriedade de D. e a
responsabilidade civil emergente de acidente havia sido transferida para a ré
seguradora (…).
7) Havia nevoeiro (…); e daí alto grau de humidade.
8) É facto notório (artigo 514.º, n.º 1, do CPC) que era hora de corrida para
empregos, do amanhecer, de visibilidade quase inexistente.
[9]) A obrigatória pré‑sinalização do estacionamento da viatura segurada com
triângulo não está provada.
[10]) Que havia sinais luminosos intermitentes de perigo («os
piscas») no veículo estacionado também não está provado; omissão por violação
dos artigos 5.º e 59.º, n.º 1, do Código da Estrada.
[11]) Com o devido respeito, o acórdão recorrido fez erro de julgamento ao
considerar (…) que o apelante na sua alegação para a 2.ª instância arguiu
contradição entre a matéria de facto dada como provada da alínea D) dos factos
assentes e a matéria dada como provada na resposta ao quesito 10.º, porque na
verdade o que o apelante alegou inclusive na conclusão 5.ª foi a contradição da
interpretação dada pela sentença de 1.ª instância à resposta ao quesito 10.º; a
matéria de facto dada como provada tal como consta naqueles dois elementos
processuais (resposta ao quesito 10.º e alínea D) da especificação) não foi
impugnada pelo apelante.
[12]) O estacionamento como o descrito nestas nossas conclusões 1.ª a 9.ª, ao
contrário de págs. 10/11 e 11/12 do acórdão recorrido, em nossa humilde opinião,
praticou‑se em circunstâncias de perigo, de ilicitude (artigo 49.º, n.º 1,
alínea h), do Código da Estrada), de exposição ou abandono da viatura (artigo
138.º do Código Penal).
[13]) O estacionamento irregular, de perigo, de ilicitude, de infracção
criminal, de omissões de dever de sinalizar em dia húmido, hora de muito
trânsito e de visibilidade quase inexistente (cf. nossas conclusões aqui 1.ª a
9.ª) – que é matéria sindicada pela 1.ª e 2.ª instâncias –, em nosso critério,
foi a condição sem a qual o acidente não teria ocorrido pelas as forças da
natureza e o dano deste resultante não se teria verificado (artigo 563.º do
Código Civil).
[14]) Em nosso entendimento, a aplicação e interpretação desta norma 563.º a
tais circunstâncias naturalísticas do acidente e do dano, em abstracto ou em
geral, é matéria de direito sindicável por este Supremo Tribunal.
[15]) O acórdão recorrido (…) discriminou o facto provado na alínea D) dos
factos assentes – “Ao deparar com o veículo EE, o 3‑VFR parou para deixar
passar os veículos que circulavam em sentido contrário” – mas decidiu como se
tal facto não existisse como elemento probatório no processo, decidiu ao
contrário, lateralmente, ou pelo menos sem lhe dar a devida força probatória que
o artigo 563.º do Código Civil e o artigo 515.º do CPC impõem, importando assim
o vício do artigo 712.º, n.º 2, alínea b), do CPC, que impõe um acórdão decisivo
diverso e insusceptível de ser destruído por quaisquer outras provas.
[16]) Cremos que ao não aplicar e interpretar estas normas a tais
circunstâncias, com o devido respeito, o tribunal recorrido fez erro de
julgamento, violou o artigo 672.º do CPC, caso julgado formal: não reencaminhou
o acórdão recorrido para o desenvolvimento lógico da matéria de facto dada como
provada na alínea D) dos factos assentes; o que importa nulidade do artigo 201.º
do CPC, que poderia ter sido declarada oficiosamente porque influiu só por si na
decisão da causa.
[17]) A não aplicação destas normas ao facto provado da sobredita alínea D) e
a interpretação que lhes foi dada de omissão (na interpretação e na não
aplicação) implica inconstitucionalidade porque viola o princípio da confiança
(artigo 2.º do CRP) pela ausência de respeito e garantia de efectivação dos
direitos e liberdades fundamentais, de realização de cultura democrática e
social, constitui denegação da justiça na sua tutela real efectiva, por violação
do artigo 20.º da CRP.
[18]) Ao contrário de pág. 10 do acórdão recorrido, em nosso critério, pode‑se
concluir, através do descrito nas nossas conclusões 1.ª a 9.ª, a
responsabilidade civil culposa do condutor do veículo irregularmente
estacionado.
[19]) Mas para a responsabilidade pelo risco, a culpa e a
ilicitude do condutor Carlos Alberto pelo artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil
não são exigíveis; – e competia à ré provar, e não provou nem sequer alegou,
que a proprietária do veículo estacionado não tinha a direcção efectiva do
veículo irregularmente estacionado e que este não estava a ser usado no
interesse dela proprietária – e, assim, ao contrário de pág. 11 do acórdão
recorrido, em nossa humilde opinião, os elementos para se condenar a ré na
responsabilidade pelo risco estão retratados no processo.
[20]) Para não nos alongarmos quanto à responsabilidade pelo risco damos aqui
por reproduzidas as conclusões 12.ª e 14.ª da nossa Alegação da apelação nas
quais citámos o que foi dito pelo Prof. Antunes Varela na Revista de Legislação
e de Jurisprudência.
[21]) O tribunal recorrido não teve em conta a omissão do dever do condutor do
veículo estacionado de forma irregular em colocar a pré‑sinalização com o
triângulo ou os sinais intermitentes luminosos dos artigos 5.º e 59.º do Código
da Estrada, omissão que dá lugar à obrigação de a ré reparar os danos (artigo
486.º do Código Civil).»
Como é patente, o recorrente não suscitou qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, não sendo idóneo
para o efeito a alusão na conclusão 17.ª a disposições constitucionais, dado que
aí a pretensa violação dessas disposições é imputada directamente às decisões
judiciais de valoração da prova, em si mesmas consideradas, e não a qualquer
interpretação normativa, identificada com o mínimo de precisão. E à mesma
conclusão se chega se se atender à referência, constante do requerimento de
interposição do recurso de revista (fls. 435), a que o acórdão então impugnado
teria violado «os artigos 503.º, n.º 1, e 9.º do Código Civil, e 134.º, n.º 2,
88.º, n.º 2, e 59.º do Código da Estrada, [e] também por atribuir a estes
normativos um sentido desavindo com os artigos 266.º, n.º 2, e 13.º da
Constituição da República Portuguesa», pois não só não se identifica
minimamente o sentido destas interpretações como não se substanciam as razões
pelas quais se reputariam violados os princípios directores da actividade
administrativa ou o princípio da igualdade.
Faltando o requisito da prévia suscitação, perante o tribunal
recorrido, das questões de inconstitucionalidade que o recorrente pretendia ver
apreciada, o presente recurso é inadmissível, o que determina o não conhecimento
do seu objecto.
3. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do presente recurso.”
1.2. A reclamação do recorrente apresenta a
seguinte fundamentação:
“Considerando que a solução da absolvição em casos como o da ré
merece as maiores reservas sobretudo num domínio relacional que envolva o
exercício de direitos, liberdades e garantias; que o Supremo não ponderou a
circunstância de estarem presentes no caso concreto direitos fundamentais,
iludindo a questão de saber se é admissível presumir e alargar de forma tão
magnânima os poderes de «não há causalidade adequada» quando esteja em causa uma
relação jurídica que envolva direitos, liberdades e garantias dos particulares,
que magnanimidade do tribunal não podia ser maior acabando por aceitar, em tese
e no caso, que a administração use quase ilimitadamente os poderes de «não há
causalidade adequada» em que o fundamento é em regra o artigo 563.º do Código
Civil;
Considerando que, independentemente do acidente em questão, «todos os de viação
têm uma dinâmica, têm de ser interpretados à luz de uma dinâmica, que se uma
tal dinâmica ficou provada nos autos, destes nada há que a remova, que se outra
prova não existe nos autos, é esta prova dinâmica que reveste o organigrama do
acidente, que não há acidente sem dinâmica»;
Considerando que ao artigo 72.º, n.º 2, da LTC que apenas expressa como
requisito de recurso que o recorrente haja «suscitado inconstitucionalidade de
modo processualmente adequado» e que não há outra norma que o tipifique, que o
código penal tipifica mas que a lei adjectiva do TC arbitra, que pouco serve a
CRP ser exuberante e generosa quando dá aquilo que a lei adjectiva
constitucional nega, que esta existe e que aquela existe, que a CRP é mais
frágil e que a adjectiva é fortíssima, que esta sobrepõe‑se àquela, como o
empório se sobrepõe a seu fragmento, qual incurável e letal virose no jurídico
sistema português injectada pelo legislador das normas adjectivas da LTC;
Desejando reforçar o carácter democrático e a eficácia do funcionamento das
Instituições, a fim de lhes permitir melhor desempenhar, num quadro
institucional único, as tarefas que lhe são confiadas, –
Vem reclamar para conferência nos termos que se seguem:
1. Refere a decisão reclamada que o recorrente na «conclusão 17.ª» não suscitou
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal
recorrido.
O que, com o devido respeito, não é exacto uma vez que nesta conclusão 17.ª e
anteriores 15, 16, 14, 13, foi alegado quanto às normas aplicadas, incluindo a
do artigo 563.º do Código Civil, que a «... interpretação destas implica
inconstitucionalidade porque viola o princípio da confiança (artigo 2.º da
CRP)»; que tal interpretação de o artigo 563.º de não conter a abrangência ou
sentido de a causalidade adequada dever atribuir‑se a casos de estacionamento
de perigo e transgressionais e criminais como o segurado pela ré viola o artigo
20.º da CRP [cf. conclusão 17.ª conjugada com a 13.ª, na qual se diz «o
estacionamento irregular ... foi a condição sem a qual o acidente não teria
ocorrido …» (artigo 563.º do Código Civil)].
Aliás já na conclusão 10.ª da alegação de apelação do recorrente tinha sido
suscitada esta inconstitucionalidade: «… 1.ª instância atribuiu ao artigo 483.º,
n.º 1, o conteúdo de que o facto tão perigoso de o condutor do veículo segurado
pela ré ter estacionado em grave risco e alto perigo está excluído de ter sido a
causalidade do acidente, aplicando assim esta norma com uma interpretação
infraconstitucional por não ser conforme com os artigos 2.º, 202.º, n.º 2, e
203.º da Constituição». Não se escreveu aqui nesta conclusão 17.ª «artigo 563.º»
mas escreveu‑se «causalidade do acidente» em «interpretação
infraconstitucional».
2. Refere a decisão reclamada que «a pretensa violação» destas «disposições
constitucionais» «é imputada directamente às decisões judiciais em si mesmas
consideradas de valoração da prova» «e não a qualquer interpretação normativa,
identificada com o mínimo de precisão».
O que também sempre com o devido respeito, pelo que aqui acaba de ser referido
no «ponto 1» não é exacto; também porque
Nem o recorrente ignora nem o tribunal recorrido ignora que as conclusões 15,
17, 16, 14 e 13 da alegação, ao referirem o provado irregular estacionamento do
veículo segurado pela ré – nas circunstâncias de perigo e transgressionais e
criminais em que o fez – apresentadas ao Supremo Tribunal fazem entender a este
que, em tese, não considerar a causalidade adequada do artigo 563.º em acidentes
como o da contenda viola os princípio da confiança e do acesso ao direito. Isto
é, as pessoas ficam sem saber se hão‑de recorrer ou não aos tribunais em casos
como este (artigo 2.º da CRP); se não há causalidade adequada em casos como
este, as pessoas não têm acesso ao direito, não têm tutela real efectiva de
direitos, liberdades e garantias pessoais em casos como este. É ou não é? Há ou
não há desrespeito pelo quadro constitucional?
O Supremo, porque também não ignora estas conclusões, podia muito bem ter
conhecido (artigo 72.º, n.º 2, da LTC) sobre esta colisão concreta daquele
antinómico entendimento do artigo 563.º do Código Civil com o quadro
constitucional identificado pelo recorrente e decidir que retirar ao sentido
deste 563.º a abrangência de aquele tão irregular estacionamento ser
causalidade adequada para acidentes como o acima referido desrespeita o artigo
2.º (princípio da confiança) e o acesso ao direito (artigo 20.º) ambos da Lei
Fundamental. E no caso de o Supremo entender que não abrange, podia muito bem
dizê‑lo e fundamentar o decidido; mas nem fundamentou nem decidiu nem fez
qualquer alusão a tal alegada inconstitucionalidade naquelas conclusões: dura
lex sed lex (artigo 266.º, n.º 2, da CRP).
3. Ao contrário da decisão recorrida, cremos que acaba de ser esclarecido com o
mínimo de clareza o quadro constitucional visado pelo recorrente contrário a que
seja amputado àquela norma 563.º o sentido de que um estacionamento irregular é
causa adequada de acidente se outra causa não advier, como provada, na sua
dinâmica: o Supremo contemplou perfeitamente este alegado quadro constitucional,
este contraditório (Constituição‑Código Civil), para poder decidir sobre ele.
Mas não decidiu.
Por isso, considerando assim que nem o legislador daquele artigo 563.º nem o
intérprete podem pretender definir livremente os conceitos utilizados pela
Constituição, e que nem as instâncias nem o Supremo desfizeram o descrito
contraditório (Constituição‑Código Civil),
Esperamos que este alto Tribunal se não libere de o fazer com vista a que, a
favor de todos os cidadãos e também do recorrente, possa constar, em tese de
pronunciamento jurisdicional, se aquela norma 563.º contém ou não o autêntico
sentido de adequada causalidade para um irregular estacionamento como o dos
autos, a fim de que o Supremo e as instâncias produzam uma sentença aclimada a
tal autêntico e alto pronunciamento.”
1.3. Notificada da apresentação desta
reclamação, a seguradora recorrida apresentou a seguinte resposta:
“A reclamação será, por certo, desatendida;
Já que está definitivamente dado como assente que não foi o estacionamento do
pesado que deu causa ao acidente;
O qual se verificou por culpa exclusiva do próprio recorrente, que não foi capaz
de conduzir o seu ciclomotor com o devido cuidado, nomeadamente atendendo às
circunstâncias de estar nevoeiro e o piso naturalmente escorregadio, por forma
a que o pudesse imobilizar sem perigo de colisão com os demais veículos;
Não existe, nem foi praticada, pois, qualquer violação à Constituição,
nomeadamente a apontada pelo recorrente;
Considerando a matéria de facto provada, é para nós claro que o problema da
aplicação (ou) «interpretação» do artigo 563.º do Código Civil não tem aqui
qualquer razão de ser;
Tanto o estacionamento não teve nada a ver com o acidente que a condutora de um
outro ciclomotor que precedia o recorrente parou, sem qualquer perigo, na
retaguarda do pesado;
E foi nesta condutora e no seu ciclomotor que o autor, distraído, embateu com
violência;
Para quem nem sequer alegou a que distância concreta do eixo da via o pesado
estacionou;
Para quem nem sequer alegou qual a largura da faixa de rodagem;
Para quem nem sequer alegou que tipo de veículos, na altura,
circulavam em sentido contrário ao do ora recorrente;
Para quem nem sequer disponibilizou ao Tribunal as dimensões do
próprio veículo;
A posterior prolixidade e a «sanha recursória» (a que, por
certo, não é alheio o apoio judiciário) demonstradas são absolutamente de
pasmar!
Não foi violado qualquer princípio constitucional da confiança
e do acesso ao direito.
Em casos como este as pessoas efectivamente não devem recorrer aos Tribunais
pois o acidente só a elas próprias pode ser imputado;
Finalmente, dando aqui, com o devido respeito, por reproduzidos os doutíssimos
argumentos – fundamentos da decisão sumária de que emana a presente reclamação,
a recorrida (ora reclamada), com a devida vénia, entende que a reclamação deve
ser desatendida e, como tal, não deve este Venerando Tribunal conhecer do
recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A presente reclamação é manifestamente
improcedente, dado que o reclamante não contraria minimamente os fundamentos da
decisão sumária reclamada: jamais ter identificado, com o mínimo de precisão, o
sentido das interpretações dos artigos 8.º, 9.º, 342.º, n.º 2, 483.º, n.º 1,
503.º, n.º 1, e 563.º do Código Civil e 59.º e 134.º, n.º 2, do Código da
Estrada, que teriam sido acolhidas pelas decisões das instâncias e que ele
reputava inconstitucionais, e, determinantemente, na única peça produzida
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (as alegações do recurso de
revista endereçadas ao Supremo Tribunal de Justiça), não ter suscitado nenhuma
questão de inconstitucionalidade normativa, antes se insurgindo directamente
contra a decisão judicial de valoração da provas, em si mesma considerada, em
termos inseparáveis das particularidades do caso concreto, o que não constitui
objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Termos em que, sem necessidade de considerações
complementares, a reclamação tem de improceder.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a
presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2007.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos