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Processo n.º 938/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Nos presentes autos, em que figuram como recorrente o A., S.A. e
como recorrido B., o ora recorrente instaurou no Tribunal de Pequena Instância
Cível de Lisboa acção com processo especial para cumprimento de obrigações
pecuniárias e, “em complemento do já referido na petição inicial”, veio juntar
aos autos um requerimento com o seguinte teor:
“[...] vem ainda deixar expresso que a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, na parte
e na medida em que altera a redacção do artigo 110º, n.º 1, alínea a), do Código
de Processo Civil, é inconstitucional, e consequentemente, a referida alínea a)
do n.º 1 do dito artigo 110º, com a mencionada redacção, é inconstitucional –
logo inaplicável pelos Tribunais «ex-vi» o disposto no artigo 204º da
Constituição da República Portuguesa – na interpretação que permita a aplicação
do disposto no referido artigo 110º, n.º 1, alínea a), a contratos celebrados
anteriormente à publicação da referida Lei em que as partes tenham optado, nos
termos do artigo 100º, n.ºs 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, por um foro
convencional no que respeita à competência dos Tribunais em razão do território,
por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da
proporcionalidade, e da não retroactividade consignado nos artigos 18º, n.ºs 2 e
3, da Constituição da República Portuguesa e, também ainda, por violação dos
princípios da segurança jurídica e da confiança corolários ambos do Estado de
Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da República
Portuguesa, donde o Tribunal de Lisboa ser o competente para conhecer da
presente acção.”.
2. Por decisão do Juiz do Tribunal de Pequena Instância Cível de
Lisboa de 20 de Julho de 2006 (fls. 22 e seguintes), foi julgada “verificada a
excepção dilatória de incompetência relativa do Tribunal e, consequentemente,
determina[da] a remessa dos presentes autos para o Tribunal territorialmente
competente”.
O Tribunal fundamentou assim a decisão:
“[...]
Atenta a entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, de 26-04 [que, além do mais,
procedeu à alteração do Código de Processo Civil, introduzindo a regra da
competência do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao
cumprimento de obrigações], já vigente à data da apresentação da presente acção
(sendo por isso aplicável in casu, por força do disposto no artigo 6º do
referido diploma legal), importa ter em consideração o disposto no artigo 74º,
n.º 1, do Código de Processo Civil [na redacção dada pelo mencionado diploma],
nos termos do qual «A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a
indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução
do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu
[...]».
Nestes termos, subsumindo-se a presente acção à primeira parte do citado
preceito (dado que está em causa o cumprimento de obrigações, sendo o réu uma
pessoa singular), necessário se torna concluir que o tribunal competente para a
apreciação da mesma é o tribunal do domicílio do réu, sendo certo por outro lado
que por força do disposto no artigo 110º, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Civil [na citada redacção], tal incompetência é de conhecimento
oficioso.
Sustenta o A. que o supra mencionado preceito não é aplicável ao caso em apreço,
alegando por um lado que as partes estipularam validamente como foro
convencional o da Comarca de Lisboa (cfr. artigo 24º da PI) e, por outro, que a
citada Lei n.º 14/2006 é inconstitucional na medida em que permita a aplicação
do disposto no artigo 110º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil a
contratos celebrados antes da sua entrada em vigor (cfr. requerimento que faz
fls. 20 dos autos).
Afigura-se-nos, porém, salvo o devido respeito e melhor apreciação, que os
argumentos aduzidos pelo A. se mostra[m] improcedentes.
No que respeita à invocada estipulação convencional do foro [da Comarca de
Lisboa] para dirimir o presente litígio, importa ter em atenção desde logo que a
lei apenas permite às partes afastarem – mediante convenção expressa nesse
sentido – as regras da competência em razão do território em determinados casos,
estando expressamente excluídos desse âmbito os casos em que a incompetência é
do conhecimento oficioso do tribunal – cfr. artigos 100º, n.º 1, in fine, e 110º
do Código de Processo Civil. Assim sendo, e considerando ainda que […] a
incompetência em apreço é [agora] de conhecimento oficioso, imperioso se torna
concluir que tal estipulação de foro convencional, ainda que porventura fosse
válida à data da celebração do contrato, já não é, presentemente, válida, sendo
por isso insusceptível de afastar a regra – que assume agora natureza imperativa
– prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 74º do Código de Processo Civil,
sendo certo ainda que o legislador não fez qualquer ressalva relativamente à
aplicação de tal preceito aos casos em que as partes tivesse[m] previamente
estipulado um foro convencional, adoptando como único critério para a aplicação
da lei o momento da instauração da acção.
Por outro lado, ao contrário do que sustenta o A., afigura-se-nos que a
aplicação da actual redacção dos artigos 74º, n.º 1 e 110º, n.º 1, alínea a), do
Código de Processo Civil, à presente acção [subjacente à qual está um contrato
celebrado antes da sua entrada em vigor, no qual havia sido incluída a
estipulação de um foro convencional] não consubstancia qualquer violação dos
invocados princípios constitucionais, uma vez que sendo tal redacção apenas
aplicável aos processos instaurados após a entrada em vigor da mencionada lei,
não poderá em bom rigor falar-se em aplicação retroactiva da lei, na medida em
que à data da instauração da acção o A. estava já ciente do carácter imperativo
da [nova] regra e, consequentemente, da ineficácia da estipulação contratual em
contrário. A este respeito, acrescente-se ainda que – ao contrário do que parece
resultar da posição expressa pelo A. no requerimento por si apresentado a fls.
20 – da eventual validade (pelo menos em abstracto) da estipulação do foro
aquando da celebração do contrato não resulta para as partes um qualquer direito
ou uma qualquer legítima expectativa de que tal cláusula permaneça válida
indefinidamente no tempo, uma vez que os interesses particulares (inerentes à
celebração do contrato em apreço) estarão sempre subordinados aos interesses
públicos inerentes às regras da administração da justiça e – no caso concreto –
à protecção dos consumidores.
De resto, mesmo antes da entrada em vigor da citada Lei n.º 14/2006, de 26/04, a
invocada cláusula de estipulação de foro convencional estava já sujeita – atenta
a sua natureza de cláusula contratual geral – ao regime previsto no Decreto-Lei
n.º 446/85, de 25/10, maxime ao disposto nos seus artigos 5º, 8º e 19º, alínea
g), do citado regime, de cuja aplicação sempre poderia resultar – em concreto –
a invalidade de tal estipulação.
Nestes termos, e por ser aplicável ao caso em apreço, como supra se referiu, o
disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 74º, na sua actual redacção,
necessário se torna concluir que o tribunal competente para a apreciação da
presente acção é o tribunal do domicílio do réu – in casu, o Tribunal Judicial
da comarca de Matosinhos –, sendo certo ainda que por força do disposto no
artigo 110º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil [na citada redacção],
tal incompetência é de conhecimento oficioso.
Destarte, e nos termos dos artigos 74º, n.º 1, primeira parte, 108º, 10.º, 110º,
n.º 1, alínea a), 111º, n.º 3, 493º, n.º 2, e 494º, alínea a), e 495º, todos do
Código de Processo Civil [na redacção resultante da Lei n.º 14/2006, de 26/04],
por este Tribunal ser territorialmente incompetente – o que expressamente se
declara –, julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência relativa do
Tribunal e, consequentemente, determina-se a remessa dos presentes autos para o
Tribunal territorialmente competente.
[...].”.
3. Desta decisão veio o A., S.A. interpor o presente recurso, através
do seguinte requerimento (fls. 27 e seguintes):
“[...]
a) O recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei
85/89, de 7 de Setembro;
b) Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da alínea a) do n.º 1 do
artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela
Lei 14/2006, de [2]6 de Abril, na parte e na medida em que permite a
interpretação do dito preceito no sentido de o considerar aplicável a contratos
celebrados anteriormente à publicação da referida Lei 14/2006;
c) Efectivamente tal norma, aplicada no sentido referido, viola os princípios da
adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e também da não
retroactividade, consignados no artigo 18º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da
República Portuguesa e, também, por violação dos princípios da segurança
jurídica e da confiança corolários ambos do Estado de Direito Democrático
consignado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa;
d) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos no requerimento
neles apresentado a fls. ..., aos 22 de Maio de 2006;
[…].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 30.
4. Notificado para alegar, o recorrente afirmou, nomeadamente, o
seguinte:
“[...]
Dispunha e dispõe o artigo 100º do Código de Processo Civil, que as regras da
competência em razão do território podem ser afastadas por convenção expressa,
salvo nos casos a que se refere o artigo 110º do referido normativo legal.
À data em que foi celebrado o contrato a que referência é feita nos autos, o
artigo 110º do Código de Processo Civil não permitia ao Tribunal conhecer
oficiosamente da incompetência territorial quando as partes tivessem acordado um
foro convencional em caso de obrigações emergentes de contrato como aquele a que
os autos se reportam.
[...]
A escolha de foro convencional entre as partes [...] é válida mau grado a
publicação da citada Lei e a alteração nela introduzida na alínea a) do n.º 1 do
artigo 110º do Código de Processo Civil, donde os Tribunais não poderem conhecer
oficiosamente da pretensa não validade de tal cláusula face ao que passou a
dispor, após a respectiva entrada em vigor, o artigo 74º, n.º 1, do Código de
Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela citada Lei 14/2006, de 26
de Abril.
[...]
[...] era direito das partes contratantes no contrato dos autos, maxime do ora
recorrente, o poderem escolher, poderem acordar, um foro convencional, em razão
do território, para dirimir os conflitos emergentes do dito contrato, isto é do
contrato dos autos.
Logo tal direito só pode ser restringido de harmonia com o quadro que ressalta
do disposto no citado artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa.
[...]
As partes elegeram validamente um foro convencional no contrato dos autos, nos
termos do enquadramento jurídico vigente à data da celebração do mesmo.
Logo a violação desse direito – que às partes assistia e assistiu até à data da
publicação da lei 14/2006, de 26 de Abril – de escolher um foro convencional em
razão do território para dirimir as questões emergentes de tal contrato, e o não
reconhecimento da eficácia e validade desse direito pela alteração da redacção
dada, a partir de 1 de Maio de 2006, à alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do
Código de Processo Civil, ou seja a aplicação, portanto, deste preceito, com a
referida nova redacção, a situações, factos, actos ou contratos verificados,
ocorridos ou celebrados anteriormente viola os princípios da não
retroactividade, da segurança jurídica e de confiança, corolários também do
princípio de um Estado de Direito Democrático.
[...]
(i) A interpretação e aplicação, como feita no despacho recorrido, da alínea a)
do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi
dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e,
consequentemente, a não consideração, como válida e eficaz da escolha do foro
convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do
mesmo e o disposto no artigo 100º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo
Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime
na alínea a) do respectivo n.º 1, é inconstitucional por violação dos princípios
da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade
consignados no artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa,
e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da
confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático
consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
(ii) Deve, assim, como se requer, ser julgada inconstitucional a interpretação e
aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo
Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, a
contrato validamente celebrado antes da entrada em vigor da referida Lei
14/2006, desta forma se fazendo justiça.”.
Decorrido o prazo, a recorrida não alegou (cota de fls. 64)
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. O presente recurso tem por objecto a norma constante da alínea a)
do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi
dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido de ser
aplicável a contratos, celebrados antes da entrada em vigor desta Lei, dos quais
conste cláusula estipulando qual o tribunal territorialmente competente para a
resolução de eventuais litígios dele emergentes, por alegada “violação dos
princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não
retroactividade consignados no artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da
República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança
jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito
Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa”.
A alínea a) do n.º 1 do artigo 110º do Código de Processo
Civil, na referida redacção, estatui, no segmento que agora importa considerar:
“Artigo 110º
Conhecimento oficioso da incompetência relativa
1. A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo
tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos
seguintes:
a) Nas causas a que se referem [...], a primeira parte do n.º 1 [...] do artigo
74º;
[...].”.
Por seu turno, a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º do
Código de Processo Civil passou a ter, também por força da alteração introduzida
pela Lei n.º 14/2006, a seguinte redacção:
“Artigo 74º
Competência para o cumprimento da obrigação
1. A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo
não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por
falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o
credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida,
quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor
na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área
metropolitana.
[...].”.
Tendo em conta o disposto no artigo 100º, n.º 1, do mesmo
Código, às partes é permitido “afastar, por convenção expressa, a aplicação das
regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o
artigo 110º”.
6. A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente no
presente recurso foi apreciada pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º
691/06, de19 de Dezembro (proferido no processo n.º 937/06 e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), onde pode ler-se o seguinte:
“[…]
6. Começa o recorrente, na sua alegação, por dar conta de uma orientação que vem
sendo seguida por alguma jurisprudência no sentido de considerar que, tal como o
próprio defendeu nos presentes autos e diferentemente do que se decidiu no
despacho ora recorrido, as alterações introduzidas, em sede de processo civil,
pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não se aplicam às questões emergentes de
contratos celebrados antes da sua entrada em vigor em que as partes tenham
escolhido foro convencional. Acontece, porém, como o próprio recorrente
reconhece, que está fora do âmbito do presente recurso a questão de saber se
essa é ou não a melhor (de acordo com os cânones hermenêuticos) interpretação
dos preceitos em causa. Com efeito, não cabe ao Tribunal Constitucional dirimir
conflitos de interpretação de normas infraconstitucionais, nem determinar qual a
melhor interpretação de tais normas, mas, apenas, como é sabido, decidir se a
interpretação por que optou a decisão recorrida é ou não compatível com a
Constituição e, designadamente, com os preceitos e princípios indicados pelo
recorrente. Com esta advertência, vejamos então.
6.1. Da alegada violação dos princípios da adequação, da exigibilidade, da
proporcionalidade e da não retroactividade consignados no artigo 18º, n.ºs 2 e
3, da Constituição da República Portuguesa.
Alega o recorrente, em primeiro lugar, que a norma que vem questionada viola o
disposto nos artigos 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição. É, contudo, manifesto
que, nesta parte, não lhe assiste qualquer razão. E, desde logo, pela razão
evidente de que aquele preceito constitucional se refere às leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias, o que, manifestamente, não é o caso da norma
que vem questionada. Com efeito, não se vislumbra qual o direito, liberdade e
garantia que possa estar a ser restringido pela norma cuja constitucionalidade
vem questionada, sendo certo que não pode ser, ao contrário do que o recorrente
refere na sua alegação, o «direito das partes contraentes […] a poderem
escolher, poderem acordar, um foro convencional, em razão do território, para
dirimir conflitos emergentes do dito contrato, isto é do contrato dos autos».
Como é óbvio, o direito de as partes convencionarem o foro territorialmente
competente para a resolução dos litígios eventualmente resultantes dos contratos
que celebrem não é um direito constitucionalmente garantido, não constituindo
direito, liberdade e garantia, no sentido do artigo 18º da Constituição, pelo
que, no caso, este preceito não é, pura e simplesmente, aplicável.
Aliás, ainda que se pretendesse fundar a alegada inconstitucionalidade numa
eventual violação da exigência de proporcionalidade, como limitação geral ao
exercício do poder público, decorrente do princípio do Estado de Direito
Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição – o que o recorrente,
todavia, não faz –, sempre se dirá que tal pretensão também não procederia,
pois, além de não estar em causa nenhum direito constitucionalmente garantido,
também se não vislumbra que a medida legislativa seja manifestamente inadequada,
corresponda a opção manifestamente errada do legislador ou tenha carácter
manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em
relação às vantagens que apresenta.
6.2. Da alegada violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança,
decorrentes do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo
2º da Constituição.
Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada, na parte em que seja
aplicável a contratos celebrados antes da entrada em vigor da referida Lei n.º
14/2006, é inconstitucional, por se traduzir numa situação de retroactividade
violadora dos princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrentes do
princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da
Constituição. Vejamos.
6.2.1. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o princípio
da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo
expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais
favorável ao arguido) – n.ºs 1 e 4 do artigo 29º –, para as leis restritivas de
direitos, liberdades e garantias – n.º 3 do artigo 18º –, e para o pagamento de
impostos – artigo 103º, n.º 3 –, podendo, consequentemente, dizer-se que a
Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis
retroactivas.
O Tribunal vem, porém, igualmente afirmando, na sequência de entendimento que
vem já da Comissão Constitucional, que o princípio do Estado de direito
democrático (consagrado no artigo 2º da Constituição) postula «uma ideia de
protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na
actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito
das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela
qual «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária
ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a
comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de
direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica»
(cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão n.º 303/90, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 17º v., pág. 65). Mas, sendo assim, o Tribunal tem,
contudo, tido sempre o cuidado de esclarecer que o que se acaba de dizer não
conduz a que seja absolutamente vedada ao legislador a emissão de normas com
eficácia retroactiva. Como se ponderou, por exemplo, no acórdão n.º 304/2001
(disponível na página Internet do Tribunal em www.tribunalconstitucional.pt),
citando Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição da República
Portuguesa, p. 309), «entender o contrário representaria, ao fim e ao resto,
coarctar a ‘liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade’ do legislador,
características que são ‘típicas’, ‘ainda que limitadas’, da função
legislativa».
Tem, pois, o Tribunal sempre dito (cfr. Acórdão n.º 304/2001, já citado) que, em
cada caso, haverá que «proceder a um justo balanceamento entre a protecção das
expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito
democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele
democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que
reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções
jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e
razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam ‘tocadas’ relações ou situações
que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal
tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação
pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já
antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável,
arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos
e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e
fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição
daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de
certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um
Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da
confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de
direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente
arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que
todos têm de respeitar» [Negrito aditado]. No caso em apreço, porém, tal não se
verifica.
6.2.2. Em primeiro lugar, porque qualquer expectativa que as partes possam ter
no momento da celebração de um contrato relativamente à intangibilidade de uma
cláusula de escolha do foro territorialmente competente para julgar eventuais
litígios emergentes do mesmo é sempre, no mínimo e por natureza, limitada. E
isto porque uma tal cláusula sempre estará condicionada pela eventualidade de
uma reorganização judiciária, a que o legislador decida proceder, e que, no
limite, pode mesmo fazer desaparecer o tribunal que as partes convencionaram
como territorialmente competente.
Por outro lado, há que ter em conta que a cláusula de convenção de foro é uma
cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a ver com a
patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência
territorial dos tribunais. Competência esta que também possui normas que estão
subtraídas, de todo, à possibilidade de convenção. Ora, o facto é que, sempre se
entendeu que, em matéria processual, as expectativas das partes ou não merecem,
de todo, a tutela da confiança ou só em termos mitigados dela podem beneficiar.
Além disso, no caso concreto, a acção foi proposta já após a entrada em vigor da
nova lei, sendo certo que a competência dos tribunais se fixa de acordo com a
lei em vigor à data da respectiva propositura.
Não pode, assim, designadamente pelas razões que se acabam de expor, afirmar-se
que no momento da celebração do contrato o ora recorrente gozasse de uma forte
expectativa jurídica, legitimamente fundada, de que, mesmo no domínio do regime
jurídico vigente antes da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, qualquer litígio
resultante do mesmo viria a ser julgado pelo tribunal convencionado. Com efeito,
embora pudesse existir a expectativa de que um eventual litígio decorrente do
contrato celebrado viesse a ser julgado pelo foro convencionado, essa
expectativa sempre seria «enfraquecida» ou «menos consistente» (para
utilizarmos, uma vez mais, as palavras do Acórdão n.º 304/01, já citado), pela
possibilidade, razoável, de uma interpretação do quadro normativo anterior à
entrada em vigor da citada Lei n.º 14/2006, que conduzisse já, por outra via, à
invalidade da referida cláusula.
Acresce, finalmente, que, no caso concreto, no que se refere às acções
destinadas à cobrança de dívidas resultantes da celebração de contratos de
crédito ao consumo, a solução normativa editada pelo legislador, mesmo na
interpretação que agora vem questionada – no sentido da aplicação, a contratos
já existentes, da regra da impossibilidade de alteração, por convenção das
partes, das normas sobre a competência territorial, por força do disposto na
nova alínea a) do n.º 1 do artigo 110º, que, passando a determinar o
conhecimento oficioso da incompetência em razão do território nas causas a que
se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74º, inviabiliza o funcionamento
da estipulação efectuada ao abrigo do artigo 100º, n.º 1, todos do Código de
Processo Civil –, também não é arbitrária, podendo justificar-se à luz do
objectivo constitucional de protecção dos interesses dos consumidores, enunciado
no artigo 60º da Constituição.
6.2.3. Assim sendo, pode, então, concluir-se que a aplicação da alínea a) do n.º
1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados antes da entrada
em vigor desta última Lei, ainda que se entenda que se trata de uma aplicação
retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma inadmissível,
intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas fundadas do recorrente,
não se verificando, por isso, o desrespeito dos mínimos de certeza e segurança
salvaguardados pelo artigo 2º da Constituição.
[…].”.
Esta conclusão, no sentido da não inconstitucionalidade da
norma questionada, foi também perfilhada no Acórdão n.º 41/07, de 23 de Janeiro
(proferido no processo n.º 923/06 e disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Subscrevendo-se o essencial dos fundamentos utilizados nos
acórdãos referidos, conclui-se também aqui pela improcedência da tese do
recorrente.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte e
cinco unidades de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Artur Maurício