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Processo n.º 1067/06
Plenário
Relator: Conselheiro. Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. No dia 14 de Dezembro de 2006, invocando urgência, o Presidente da
República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 1 do artigo
278° da Constituição e do n.º 1 do artigo 51º e do n.º 1 do artigo 57° da Lei nº
28/82 de 15 de Novembro, a apreciação, no prazo de quinze dias, da conformidade
constitucional da norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 19° e de todas
as constantes do artigo 20º do decreto da Assembleia da República registado com
o n.º 93/X, entrado na Presidência da República em 11 de Dezembro para ser
promulgado como lei. Alega:
I
1º
As normas relativamente às quais recaem as minhas dúvidas sobre a respectiva
conformidade constitucional constam de decreto aprovado pela Assembleia da
República e enviado para promulgação como Lei das Finanças Locais e reportam-se
aos efeitos decorrentes da faculdade nelas prevista de os municípios poderem vir
a ter uma participação variável nas receitas do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Singulares (IRS), imposto que é nacional e não local e incide sobre o
rendimento global do agregado familiar.
2º
Verifica-se, efectivamente, que nas disposições normativas constantes da alínea
c) do nº 1 do art° 19º e dos n°s 1 e 4 do art° 20° do decreto em apreciação:
a) Se reconhece aos municípios, em cada ano, o direito a uma participação
variável até 5%, no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva
circunscrição e relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior;
b) Se habilita cada município a prescindir de parte da mesma receita em favor
dos sujeitos passivos, autorizando-se os órgãos autárquicos competentes a
deliberar uma percentagem de participação da autarquia nas receitas do IRS em
valor inferior à taxa máxima definida no nº 1 do art. 20°, sendo nesse caso o
produto da diferença entre as taxas e a colecta líquida considerada como dedução
à colecta do referido imposto, em favor dos contribuintes.
3º
Do regime legal constante das disposições mencionadas no nº 2 deste pedido
resulta a possibilidade de os sujeitos passivos do IRS poderem ser tributados de
forma diferente, assentando essa diferença, não na respectiva capacidade
contributiva, mas no critério do seu domicílio fiscal.
Pelo que,
4°
Considero existirem fundadas dúvidas sobre se semelhante modelação da incidência
do IRS, não afrontará:
a) O princípio da capacidade contributiva que decorre da conjugação do n° 1 do
artigo 103º com o nº 1 do artigo 104° da Constituição da República Portuguesa
(CRP):
b) O princípio da igualdade na sua dimensão territorial, nos termos do n° 2 do
art° 13° da CRP;
c) O princípio do Estado unitário, consagrado no n° 1 do art° 6° da CRP.
II
5°
O princípio da capacidade contributiva é caracterizado consensualmente pela
doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional como um princípio
estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade
tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal”, por força da
conjugação dos artigos 103° e 104° da CRP.
6°
O princípio em referência enuncia o dever de todos pagarem imposto de acordo com
um critério uniforme, o qual radica na tributação de cada um segundo a sua
capacidade económica (Ac. n° 452/2003), daqui decorrendo que:
a) Ao ser determinado que cada sujeito passivo pague na medida das suas
possibilidades (“capacidade para pagar”), o princípio da capacidade contributiva
constitui um pressuposto de justiça fiscal no que tange à repartição dos
impostos pelas pessoas;
b) O critério do pagamento na medida das possibilidades supõe que os
contribuintes com maior capacidade económica venham a pagar um imposto mais
elevado e os contribuintes com menor capacidade económica, um imposto mais
baixo;
c) Embora o princípio da capacidade contributiva não consuma o princípio da
igualdade fiscal, ele constitui, todavia, umas das suas expressões ou
manifestações mais fortes, bem como a de um elemento conformador da ideia de
Estado de Direito Material;
d) O princípio da capacidade contributiva compreende duas dimensões, que são a
de pressuposto e a de limite da tributação: como pressuposto ou fonte da
tributação, o princípio da capacidade contributiva baseia-se na força económica
do contribuinte expressa na titularidade ou utilização da riqueza; já como
limite ou medida valor do imposto, veda que o legislador adopte elementos de
ordenação incidentes sobre os elementos constitutivos do imposto contrários às
exigências de justiça fiscal enunciadas pelo mesmo princípio.
7°
A capacidade contributiva, tal como foi definida, reclama não só a
personalização da tributação mas também que o legislador dirija o imposto às
três manifestações de riqueza relevantes que indiciem a capacidade económica do
contribuinte e que constituem a base tributável: trata-se da riqueza que angaria
(o rendimento); a riqueza que possui (o património) e a riqueza que dispende (o
consumo).
8º
Sem prejuízo de poder incidir sobre os impostos indirectos, verifica-se,
contudo, que a “intensidade” do princípio da capacidade tributária “(...) é bem
maior nos impostos sobre o rendimento, especialmente no imposto pessoal sobre o
rendimento” (cfr. Casalta Nabais, “Estado Fiscal, Cidadania Fiscal e Alguns dos
seus Problemas”, separata, Coimbra, 2002, p. 588), que é, precisamente, o caso
do IRS.
9º
No que em particular respeita à aplicação do princípio da capacidade
contributiva à tributação de rendimentos, deverá o legislador no respeito do
princípio da “tributação do rendimento líquido”, acautelar que, em sede de
despesas dedutíveis se evite “qualquer tipo de exclusões não intencionais, de
modo a que não surjam situações de discriminação negativa contrários ao
princípio da igualdade, devendo preocupações de equidade de ordem idêntica
presidir ao regime dos abatimentos” (cfr. Saldanha Sanches, cit., p. 197).
10º
Neste sentido, as deduções consistem na forma de tomar líquidos certos
rendimentos e os abatimentos o modo de levar em conta aspectos determinantes da
capacidade contributiva das diversas pessoas e agregados familiares ligados a
exigências existenciais, devendo estas operações assumir carácter objectivo e
não atender, sob pena de arbítrio, a critérios alheios à capacidade contributiva
das pessoas sujeitas à tributação.
Ora,
11º
No caso 'sub iuditio' confere-se a cada município, nos termos expostos no n° 2
deste pedido, a faculdade de deliberarem prescindir de uma parte da receita do
IRS que lhes cabe nos termos da lei, em benefício dos contribuintes com
domicílio fiscal na respectiva circunscrição, sendo o produto da diferença entre
as taxas e a colecta líquida tido como dedução à colecta do referido imposto, em
favor dos mesmos contribuintes.
12°
O regime normativo em apreciação, não parece mostrar-se conforme com o princípio
constitucional da capacidade contributiva, na medida em que a nova variante de
dedução à colecta, radicada no critério do domicílio fiscal, nada aparenta ter a
ver com os pressupostos estruturantes dos abatimentos à colecta.
Na verdade,
13º
A conjugação do disposto nos n°s 1 e 4 do art° 20º do diploma sindicado permite,
por exemplo, que:
a) Sujeitos passivos do IRS, detentores da mesma capacidade contributiva mas
fiscalmente domiciliados em municípios diferentes, possam ser tributados de
forma diferente, por via de uma dedução à colecta do IRS, como efeito de os
municípios onde residam prescindirem em seu favor, em percentagens diversas, de
uma parte das receitas desse imposto a que têm direito, podendo ter-se por
violado o critério da igualdade horizontal;
b) Sujeitos passivos com maior capacidade contributiva do que outros possam ser
sujeitos a uma menor tributação, por força das deduções à colecta, pela
circunstância de o município onde os primeiros se encontrem domiciliados
fiscalmente ter prescindido de um valor mais expressivo das receitas a que têm
direito, do que o município onde os segundos se encontrem domiciliados, podendo
registar-se uma eventual lesão do critério da igualdade vertical.
14º
O critério da admissibilidade, não admissibilidade ou admissibilidade parcial
das deduções consagradas pelo legislador, depende da respectiva harmonização com
exigências de igualdade horizontal e vertical entre diversos grupos de
contribuintes, pelo que o princípio constitucional da capacidade contributiva
parece não ter sido observado pelas normas sindicadas, nas suas duas dimensões
de pressuposto e de limite tributário, já que:
a) O critério do domicílio fiscal, como fundamento da variabilidade das deduções
à colecta do IRS, não se harmoniza com o critério fundamental da capacidade
económica de cada pessoa, como pressuposto da respectiva tributação;
b) Deduções à colecta variáveis de município para município, determinadas
discricionariamente pelos respectivos órgãos autárquicos em favor dos
contribuintes que neles se encontrem domiciliados fiscalmente são susceptíveis
de gerar, num imposto pessoal, unitário e nacional como o IRS, uma sub-oneração
fiscal para titulares de maiores rendimentos, bem como uma sobre-oneração para
titulares de menores rendimentos violando-se o princípio da capacidade
contributiva como limite da tributação.
15°
Não existe, ademais, um fundamento material razoável e evidente que possa
sustentar a opção em eleger um regime de dedução assente no critério territorial
do domicílio fiscal que figura na declaração de rendimentos (n°s 1 e 6 do art°
20° do diploma objecto de impugnação), nem vir a justificar, por hipótese, a
consagração nesse mesmo regime, no desiderato da promoção do aumento do número
de residentes em municípios carentes de fixação populacional ou do estímulo à
criação de riqueza em municípios com menos recursos financeiros, na medida em
que:
a) Embora seja frequente que o domicílio fiscal dos contribuintes do IRS
coincida com o local de residência, verifica-se, contudo, que este último não
coincide, em numerosos casos, com o local onde o rendimento é gerado (situação
comum com os municípios satélites das grandes metrópoles e com a proximidade
entre municípios das zonas do interior), pelo que ficará sem sustentação o
critério da fixação populacional ou o do estímulo à criação de riqueza;
b) O novo regime de deduções à colecta permite que se venha a alterar, com
objectivos manipulativos ligados à obtenção de vantagens tributárias, o
domicílio fiscal (que é o que figura na declaração de rendimentos),
acentuando-se uma ausência de conexão necessária entre o mesmo e a área
geográfica onde se geram os rendimentos do contribuinte.
16º
Considerando que o legislador “não pode modelar a lei de modo a que leve a
tratamento desigual dos contribuintes que pela sua situação de detentores de
rendimentos idênticos e pela ausência de elementos diferenciadores disponham da
mesma capacidade contributiva (...)“ (cfr. Saldanha Sanches, cit., p. 204),
estima-se que:
a) Sobre as normas constantes da alínea c) do n° 1 do art° 19° e dos n°s 1 e 4
do artigo 20°, recai a fundada suspeita de desconformidade com o princípio
constitucional da capacidade contributiva, que se retira da conjugação do n° 1
do art° 103° com os n°s 1 e 4 do art° 104° da CRP;
b) As normas previstas nos n°s 2,3,5,6 e 7 do mesmo artigo 20° podem enfermar,
igualmente, de inconstitucionalidade, na medida em que guardam uma relação
instrumental com as disposições normativas referidas na alínea anterior. Por
outro lado,
17º
No n° 6 deste requerimento sublinhou-se o facto de o princípio da capacidade
contributiva exprimir e concretizar o princípio da igualdade tributária, sem
todavia o esgotar, já que se podem registar outras dimensões autónomas de
projecção do mesmo princípio.
18°
O n° 2 do art° 13° da Constituição da República através de uma lista
exemplificativa de discriminações negativas, bem como de privilégios contrários
ao princípio constitucional da igualdade reza, especificamente, que: 'Ninguém
pode ser beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de (...) território de origem (...)'.
19º
Atento o carácter exemplificativo da disposição citada, considera-se que a
menção ao critério território de origem convoca, por identidade de razão, o
critério do território de residência ou o do território de domiciliação fiscal,
resultando da Lei fundamental que ninguém que aufira um rendimento igual ao de
outro contribuinte poderá ser beneficiado ou prejudicado na tributação desse
rendimento, em face do segundo, com base em critérios aleatórios, arbitrários e
materialmente não fundados, como o do território ou circunscrição municipal onde
se encontre fiscalmente domiciliado.
20º
Julgo, nos termos expostos, que as normas constantes da alínea c) do n° 1 do
art° 19º e dos n°s 1 e 4º do art° 20°, bem como por razões de conexão
instrumental necessária com as anteriores, as normas previstas nos n°s 2, 3, 5,
6, e 7 deste último artigo e respeitantes ao decreto que aprova a nova lei das
finanças locais, não se mostram conformes à incidência territorial do princípio
da igualdade, enunciada no n°2 do art° 13° da CRP. Finalmente,
21°
Importa tomar em consideração que princípio da capacidade contributiva reclama,
para os impostos nacionais um critério unitário de tributação, o qual determina
que a incidência e a repartição desses impostos se faça segundo a capacidade
económica dos contribuintes (Ac. 142/2004).
22°
O critério unitário que deveria, nos termos do n° 1 do art° 104° da CRP,
implicar a nível nacional a criação de um imposto sobre o rendimento pessoal
“(...) único e progressivo, tendo em conta as necessidades e rendimentos do
agregado familiar” parece ser contrariado pelas disposições sindicadas, as quais
permitem que razões de política local, estranhas aos referidos fins unitários
previstos na Constituição, possam impor a contribuintes com a mesma capacidade
económica, diferentes cargas tributárias. Pelo que,
23°
Os preceitos normativos sindicados parecem afrontar o princípio do Estado
unitário, acolhido no n° 1 do art° 6° da CRP, já que a natureza de imposto
universal, unitário e nacional com relevo imediato para todos os contribuintes,
que inere ao IRS nos termos do n° 1 do art° 104° da CRP, supõe que a incidência,
as garantias e a taxa sejam regidos por critérios uniformes previstos na lei,
não podendo estes elementos ser modelados discricionariamente pela vontade dos
poderes locais.
III
24°
Sendo esta a fundamentação das dúvidas de constitucionalidade que recaem sobre o
decreto da Assembleia da República registado sob o n° 93/X, venho requerer ao
Tribunal Constitucional que aprecie a conformidade constitucional das normas
constantes da alínea c) do n° 1 do art° 19° e do artigo 20° do mesmo decreto,
com fundamento em eventual violação:
a) Do princípio da capacidade contributiva, como critério estruturante do
sistema fiscal, o qual se encontra implicitamente consagrado na Constituição
como efeito da conjugação do n° 1 do art° 103° com o n° 1 do art° 104° da CRP;
b) Do princípio da igualdade, na sua projecção territorial, tal como decorre do
n° 2 do art° 13° da CRP;
e) Do princípio do Estado unitário, previsto no n° 1 do art° 6° da CRP.
25°
Dado que a urgência no esclarecimento da questão, atenta a incidência orçamental
do diploma, pressupõe a prolação de uma decisão do Tribunal Constitucional tão
breve quanto possível, determino, nos termos do nº 8 do artigo 278° da
Constituição, o encurtamento do prazo de pronúncia do Tribunal para quinze dias.
2. Na sua resposta, o Presidente da Assembleia da República ofereceu
o merecimento dos autos e juntou os Diários da Assembleia da República que
contêm os trabalhos preparatórios.
Foram apresentados pareceres jurídicos pelo Governo e pela Associação Nacional
de Municípios Portugueses.
3. Apura-se que o diploma em análise resultou de uma proposta do
Governo (proposta de lei n.º 92/X) que deu entrada na Assembleia da República em
5 de Setembro de 2006.
A proposta foi votada na generalidade, tendo sido aprovada com os votos do PS,
os votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, e abstenção do CDS-PP (DAR, I
Série, n.º 11, de 13/10/2006). Em votação na especialidade foi aprovada, com
votos do PS e do CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, uma
proposta do CDS-PP de emenda à alínea c) do nº 1 do artigo 19º da proposta de
lei (DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006). Foi também aprovada, com votos a
favor do PS e do CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV, uma
proposta do CDS-PP de alteração ao n.º 1 do artigo 20º da proposta de lei (DAR,
I Série, n.º 21, de 17/11/2006). Submetidos a votação conjunta os n.ºs 2 a 7 do
artigo 20º da proposta de lei, foram aprovados com votos a favor do PS e do
CDS-PP e votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV (DAR, I Série, n.º 21, de
17/11/2006).
Em votação final global, a proposta de lei n.º 92/X foi aprovada com votos a
favor do PS, votos contra do PSD, do PCP, do BE e do PEV e abstenção do CDS-PP
(DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006).
O diploma contém sessenta e cinco artigos, agrupados em sete títulos: Objecto e
princípios fundamentais, Receitas das autarquias locais, Repartição de recursos
públicos entre o Estado e as autarquias locais, Endividamento autárquico,
Contabilidade, prestação e auditoria externa das contas, Transferência de
atribuições e competências e, finalmente, Disposições finais e transitórias.
4. Os questionados artigos 19º e 20º do decreto estão integrados no
Título III (Repartição de recursos públicos entre o Estado e as autarquias
locais). No que interessa ao presente caso, têm a seguinte redacção:
Artigo 19.º
Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios
1 - A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios,
tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e
vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
a) ...... ;
b) ...... ;
c) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos
termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva
circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta líquida das
deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 - .....
3 - .....
4 - .....
Artigo 20.º
Participação variável no IRS
1 - Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação
variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva
circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente
anterior, calculada sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no
n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 - A participação referida no número anterior depende de deliberação
sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada
por via electrónica pela respectiva câmara municipal à Direcção-Geral dos
Impostos, até 31 de Dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os
rendimentos.
3 - A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a
recepção da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de
deliberação.
4 - Caso a percentagem deliberada pelo município seja inferior à
taxa máxima definida no n.º 1, o produto da diferença de taxas e a colecta
líquida é considerado como dedução à colecta do IRS, a favor do sujeito passivo,
relativo aos rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a
participação variável referida no n.º 1, desde que a respectiva liquidação tenha
sido feita com base em declaração apresentada dentro do prazo legal e com os
elementos nela constantes.
5 - A inexistência da dedução à colecta a que se refere o número
anterior não determina, em caso algum, um acréscimo ao montante da participação
variável apurada com base na percentagem deliberada pelo município.
6 - Para efeitos do disposto no presente artigo, considera-se
como domicílio fiscal o do sujeito passivo identificado em primeiro lugar na
respectiva declaração de rendimentos.
7 - O produto da participação variável no IRS é transferido para os
municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respectivo apuramento
pela Direcção-Geral dos Impostos.
5. Conforme se retira do pedido, o Presidente da República questiona
a possibilidade de os municípios passarem a ter uma participação variável nas
receitas do IRS – trata-se, diz, de um 'imposto que é nacional e não local' –, e
poderem prescindir de parte desta mesma receita a favor dos sujeitos passivos, o
que abriria a porta a uma diferença de tributação concreta dos cidadãos
unicamente decorrente do 'critério do seu domicílio fiscal'; tal resultado
ofenderia simultaneamente os princípios da capacidade contributiva, da
igualdade, e do Estado unitário – respectivamente consagrados nos n.ºs 1 dos
artigos 103º e 104°, no artigo 13º n.º 2, e no artigo 6º n.º 1º, todos da
Constituição.
5.1. Rigorosamente, porém, as normas incluídas no pedido de fiscalização
preventiva envolvem ainda outras questões.
Na verdade, se a norma do artigo 19º n.º 1 alínea c), e as normas que constam do
artigo 20º n.ºs 1 e 4 respeitam efectivamente à participação variável nas
receitas do IRS e à possibilidade de cada município prescindir de parte desta
mesma receita a favor dos sujeitos passivos com domicílio fiscal neles sedeado,
já as normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 20º se limitam a disciplinar o
procedimento adequado à expressão da vontade municipal; a do n.º 7 respeita ao
prazo dentro do qual é transferido para os municípios, pela administração
central, o produto da participação variável no IRS que lhes cabe; e as que
constam dos n.ºs 5 e 6 estabelecem regras quanto à liquidação do imposto e sobre
o limite do montante da participação variável deliberada pelo município.
O Requerente esclarece que incluiu as normas dos n.ºs 2, 3, 5, 6, e 7 deste
artigo 20º no conjunto normativo impugnado, por razões de mera 'conexão
instrumental necessária' com as outras normas impugnadas, e não expressou,
quanto a elas, qualquer individualizada acusação de inconstitucionalidade.
É, assim, de concluir que o objecto do pedido é o resultado normativo que o
Requerente crê estar constitucionalmente proibido, pelo que o Tribunal não irá
analisar individualmente cada uma das normas impugnadas, designadamente as que
se ligam numa mera 'conexão instrumental' com as normas que estabelecem
verdadeiramente o referido resultado.
5.2. As dúvidas sobre a conformidade constitucional desta solução
surgiram ainda no decorrer dos debates na Assembleia da República. Com efeito,
tanto na discussão na generalidade (DAR, I Série, n.º 10, de 12/10/2006), como
na discussão na especialidade da proposta (DAR, I Série, n.º 21, de 17/11/2006),
foi levantada a questão da inconstitucionalidade dos artigos 19º e 20º, com
contornos semelhantes aos referidos no pedido.
Recorde-se que o Governo motivara esta proposta de alteração legal (DAR, II
Série-A, n.º 1, de 16 de Setembro de 2006) invocando a necessidade de serem
adoptadas 'medidas de rigor e consolidação orçamental' em simultâneo com 'um
quadro financeiro para as autarquias locais dinâmico', baseado no
'aprofundamento da descentralização e da autonomia local', por considerar que 'o
processo de transferência de competências para os municípios e freguesias,
concretizando o princípio da descentralização, é um importante instrumento de
redução da despesa pública, com importantes implicações no plano financeiro
decorrentes da operacionalidade do princípio da subsidiariedade.” No caso em
apreço, pretende-se que a reforma do sistema de financiamento autárquico incida
sobre o modelo de repartição de recursos públicos entre o Estado e as autarquias
locais, tornando os municípios 'menos dependentes das receitas oriundas da
construção civil', e permitindo-se, inovadoramente, 'a participação directa dos
municípios na receita do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)
gerado no concelho'.
Segundo a proposta apresentada pelo Governo, tal participação municipal no IRS,
seria composta por uma parcela fixa de 2% e por uma parcela variável que podia
chegar aos 3%, cabendo aos municípios definir a percentagem da receita do IRS
'que pretendem fazer impender sobre os seus munícipes'. Existindo uma diferença
entre a percentagem definida e os 3% de tecto máximo desta parcela variável, tal
montante era considerado como uma 'dedução à colecta do contribuinte', mecanismo
que, no entender do Governo, era um 'instrumento essencial para a promoção da
autonomia financeira local, promovendo a concorrência fiscal intermunicipal,
aumentando o leque de receitas próprias dos municípios e responsabilizando os
eleitos locais pelas suas decisões financeiras”.
Por proposta do CDS-PP, aprovada nos termos já referidos, a repartição dos
recursos entre o Estado e os municípios acabou por ser fixada numa participação
variável de 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva
circunscrição territorial; caso a percentagem deliberada pelo município seja
inferior à taxa máxima, o produto da diferença de taxas e a colecta líquida é
considerado como dedução à colecta, a favor do sujeito passivo, relativo aos
rendimentos do ano imediatamente anterior àquele a que respeita a referida
participação variável.
É precisamente esta última solução – a que permite diferenciar a tributação
concreta do rendimento pessoal dos cidadãos por via de um critério relacionado
apenas com o seu domicílio – que o Presidente da República aponta como sendo
violadora dos já referidos princípios da capacidade contributiva, da igualdade,
e do Estado unitário, acolhidos nos n.ºs 1 dos artigos 103º e 104°, no artigo
13º n.º 2, e no artigo 6 n.º 1 da Constituição. Vejamos.
6. Nos termos do n.º 1 do artigo 104º da Constituição, o imposto
sobre o rendimento das pessoas singulares 'visa a diminuição das desigualdades e
será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do
agregado familiar'. O Tribunal tem retirado desta norma a exigência da
conformação do imposto como justo e orientado para o objectivo da diminuição das
desigualdades, o que logo afasta a ideia de rigorosa igualdade formal, quer na
selecção dos contribuintes, quer no montante do imposto devido. Com efeito, a
progressividade do imposto em função da capacidade económica dos contribuintes e
a ideia da repartição justa dos rendimentos e da riqueza, que se recolhe do
artigo 103º n.º 1 da Constituição, convocam preferentemente um objectivo de
igualdade material tanto no sacrifício que os cidadãos devem individualmente
suportar, como quanto ao resultado da consequente redistribuição da riqueza. O
invocado princípio da capacidade contributiva assenta no critério segundo o qual
a incidência e a repartição dos impostos deve ter em conta a capacidade
económica de cada um e não o que cada um eventualmente receba em bens ou
serviços públicos.
Todavia, o Tribunal já afirmou no Acórdão n.º 84/2003 (DR, II Série, de 29 de
Maio de 2003), 'não ser fácil retirar consequências jurídicas muito líquidas e
seguras do princípio da capacidade contributiva traduzidas num juízo de
inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo
legislador fiscal.'
O invocado princípio impõe o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo
critério, mas não dispensa o concurso de outros princípios constitucionais na
resolução do problema que agora é colocado Em consonância com esta doutrina, diz
o Acórdão n.º 142/04 (DR, II Série, de 19 de Abril de 2004):
'Por outro lado, é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser
compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o
princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas
exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário,
indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal.'
Na verdade, é o apelo a outros valores com assento constitucional que habilita o
legislador ordinário a ponderar o enquadramento desta matéria num leque de
soluções possíveis, cuja concreta escolha cabe na liberdade de conformação
legislativa permitida pelo exercício democrático do poder. Trata-se, afinal, da
concretização prática da actuação governativa, traduzida na eleição desta
matéria como instrumento de política financeira, sujeita, portanto, a graus
diversificados de avaliação e de conformação.
7. É justamente a harmonização do princípio da capacidade
contributiva com outros princípios com dignidade constitucional que o Tribunal
tem procurado estabelecer quando pondera a conformidade das opções do legislador
ordinário, em matéria de impostos, com o princípio da igualdade. Diz-se no
Acórdão n.º 806/93 (DR, II Série de 29JAN94):
'Mas, assim sendo, desta estreita conexão entre o sistema fiscal e o princípio
da igualdade não resulta inelutavelmente que toda e qualquer discriminação se
deverá sempre ter por atentatória do aludido princípio? A resposta a esta
questão, naturalmente, só pode ser negativa.
Desde logo porque em função da distinta capacidade económica dos contribuintes e
da diversa natureza dos rendimentos tributáveis, a progressividade do imposto
pode impor, em cumprimento do próprio princípio da igualdade, que se adopte um
tratamento discriminatório que compense ou minore os efeitos de situações
fácticas de desigualdade, tendo em vista alcançar uma efectiva igualdade real,
tal como a postula o ordenamento jurídico no seu todo (artigo 13º da
Constituição) e o concreto corpo normativo constitucional sobre matéria
tributária (artigos 106º e 107º da Constituição).
Mas, se o princípio da igualdade não proíbe que haja diferenças de tratamento na
lei, antes por vezes as imponha directa ou indirectamente, o que com segurança
se pode dizer é que tal princípio proíbe, isso sim, as discriminações
arbitrárias, irrazoáveis ou infundadas, sendo tidas como tais todas as que não
encontrem um apoio suficiente na distinta materialidade das diferentes situações
que se contemplam ou na compatibilização do aludido princípio da igualdade com
outros princípios constitucionalmente acolhidos.
Este tem sido o entendimento sucessivamente reafirmado pelo Tribunal
Constitucional (entre muitos outros, nos Acórdãos nº 44/84, nº 142/85, nº 80/86,
nº 336/86, publicados todos no Diário da República, respectivamente, II Série,
de 11 de Julho de 1984, II Série, de 7 de Setembro de 1985, I Série, de 9 de
Junho de 1986 e I Série, de 24 de Dezembro de 1986), na esteira da
jurisprudência da própria Comissão Constitucional (em especial, o Parecer nº
26/82, publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 20º vol., pág. 211 e
ss.). Sobre o tema em causa escreveu se, com efeito, no Acórdão nº 142/85:
“ (...) o princípio da igualdade, para além das especificações ou concretizações
que recebe no nº 2 do artigo 13º da Constituição, reconduz-se à ideia geral da
'proibição de distinções arbitrárias, isto é, desprovidas de justificação
racional (ou fundamento material bastante), atenta a especificidade da situação
ou dos efeitos da causa'. Esse princípio, na verdade, não tem um conteúdo
puramente formal (traduzido simplesmente no dever de igual aplicação da lei),
mas obriga (materialmente) a lei, segundo a consabida fórmula 'dar tratamento
igual ao que é igual e tratamento desigual ao que é desigual'.
Averiguar, porém, da existência de um particularismo suficientemente distinto
para justificar uma desigualdade de regime jurídico, e decidir das
circunstâncias e factores a ter como relevantes nessa averiguação, é tarefa que
primariamente cabe ao legislador, que detém o primado da concretização dos
princípios constitucionais e a correspondente liberdade de conformação. Por
isso, o princípio da igualdade se apresenta fundamentalmente aos operadores
jurídicos, em sede de controlo de constitucionalidade, como um princípio
negativo, nos termos indicados como proibição do arbítrio.'
Contudo, esta ideia de proibição do arbítrio não esgota o sentido dirigente do
princípio da igualdade, pois que dele também decorre que nem todas as
discriminações, mesmo que dotadas de um 'título habilitador' como se acabou de
referir, são, só por isso, admissíveis. Com efeito, se igualdade não corresponde
a uniformidade, antes postulando o tratamento igual do que é igual e o
tratamento distinto de situações em si mesmas diversas, ela constitui um limite
impostergável da própria medida de discriminação consentida, exigindo que haja
uma razoável relação de adequação e proporcionalidade entre os fins prosseguidos
pela norma e a concreta discriminação por ela introduzida.
Ora, como está bem de ver, a determinação do sentido da medida da discriminação,
sendo em si mesma uma operação de natureza jurídica, não pode, contudo,
prescindir, num domínio como o da actividade tributária, de fazer apelo à
realidade social na qual a norma há-de operar, como resulta, aliás, do postulado
da igualdade real a que atrás aludimos quando vimos os fundamentos
constitucionais do sistema fiscal português.
[...]
É por isso que não repugna a uma concepção constitucionalmente adequada da
igualdade (e especificamente da igualdade tributária) que a norma possa conter
um mínimo de desigualdade formal se tal se mostrar necessário, adequado e
proporcional à realização da igualdade substancial. Por isso, não se trata,
nesta sede, de procurar formular um juízo àcerca da observância no caso do
princípio da igualdade apenas confinado ao plano do direito (ou da lei, se se
preferir), mas também de carrear para a interpretação e fixação do sentido quer
do princípio constitucional que constitui o valor parâmetro invocado pelo
requerente, quer da norma sindicada, os próprios dados da realidade económica e
social como elementos integrativos da valoração jurídica atinente à concreta
aplicação pelos poderes públicos dos princípios do ordenamento jurídico
tendentes a modificar essa realidade. [...]
Eis, pois, porque a discriminação tributária alegada pelo requerente como
atentatória do princípio da igualdade há de ser vista e valorada não só nos
limites do sistema normativo, mas também à luz das necessidades sociais a que,
com a regra impugnada, se pretendeu acorrer e dos fins de justiça norteadores da
conduta do legislador.'
8. O Tribunal já afirmou o julgamento de não desconformidade
constitucional de normas tendentes a fazer participar as autarquias – de forma
diferenciada – no modelo de repartição de recursos tributários. Fê-lo, com
fundamento na autonomia administrativa e financeira das autarquias locais, tal
como resulta da organização democrática do Estado acolhida nos artigos 6º n.º 1
e 235º da Constituição, no Acórdão n.º 57/95 (DR, II Série de 12 de Abril 1995),
a propósito da atribuição aos municípios do poder para fixar a taxa da
contribuição autárquica e para lançar derramas sob a forma de adicional à
colecta do IRC:
' [...] O princípio da autonomia local é igualmente importante para afastar a
ideia de que a diferenciação de taxas, de município para município, envolve
infracção ao princípio da igualdade. A existência de autarquias locais, dotadas
de poder regulamentar próprio, nos termos do artigo 242º da Constituição,
implica uma pluralidade de sujeitos com competência para emanar normas jurídicas
de carácter regulamentar. Normas estas que estabelecem regimes jurídicos
diversos, adaptados aos condicionalismos locais, como não podia deixar de ser.
Ora, não se pode ver nessa pluralidade de normas jurídicas, provenientes de
sujeitos diversos, uma violação do princípio da igualdade, já que este tem um
carácter relativo, não só sob o ponto de vista temporal, como territorial. De
facto, o reconhecimento pela Constituição às autarquias locais de uma
competência normativa autónoma, de que resulta a vigência, no seu âmbito
territorial, de preceitos jurídicos diferentes, não contradiz o princípio da
igualdade, dado que a ideia de criação e aplicação do direito com base na
igualdade circunscreve-se ao âmbito territorial de validade da norma, não sendo
legítimas comparações entre soluções adoptadas por preceitos jurídicos de
eficácia territorial diversa. [...]'
E prossegue:
'[...] Nas palavras de A. Rodrigues Queiró (cfr. Parecer, p. 40), 'estamos
perante uma diferenciação justificada por factores constitucionalmente
relevantes e destituídos de qualquer margem de arbítrio. A 'lógica' da
descentralização e a ideia que a anima não são apenas a da liberdade ou a da
autonomia, é também a da diferença. Descentralizar é aceitar a diferenciação de
regimes e de decisões locais. O argumento de que a existência de taxas fiscais
divergentes nos vários municípios iria ofender o princípio da igualdade é, pois,
seguramente infundado'. Cfr., no mesmo sentido, A. Barbosa de Melo, Parecer, p.
11, 12.[...]'
9. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional tem, portanto,
perfilhado o entendimento de que não é desconforme à Constituição conferir à
autonomia local valor suficiente para permitir uma diferenciação nesta matéria,
o que, aliás, decorre da constatação de que qualquer autonomia – relevando para
a autonomia local o disposto no artigo 238º n.º 4 da Constituição – radica,
afinal, na diferenciação. Em suma, a diferente localização da residência do
sujeito passivo pode permitir, sem ofensa à Constituição, um diferente resultado
quanto ao montante do imposto. Necessário é, porém, que essa diferença não
assente em critérios puramente arbitrários, nem se mostre desrazoável e
desproporcionada.
10. As normas em causa inserem-se num quadro legislativo que, radicado
nos poderes tributários próprios das autarquias locais, visa, conforme se viu
já, o 'aprofundamento da descentralização e da autonomia local', por considerar
que 'o processo de transferência de competências para os municípios e
freguesias, concretizando o princípio da descentralização, é um importante
instrumento de redução da despesa pública, com importantes implicações no plano
financeiro decorrentes da operacionalidade do princípio da subsidiariedade”,
tornando os municípios 'menos dependentes das receitas oriundas da construção
civil', e fazendo-os participar na receita do IRS, promovendo a concorrência
fiscal intermunicipal, o aumento do leque de receitas próprias, e a
responsabilização dos eleitos locais pelas suas decisões financeiras.
Ora, há que reconhecê-lo, a diferenciação assim autorizada não está em desacordo
com estes objectivos, antes pretende justificar-se como um meio – que não é
desproporcionado, atentos os valores em causa –, para alcançar tal objectivo.
Haverá ainda que ter em conta que o controle político que a comunidade exerce
sobre as decisões financeiras dos eleitos locais se estabelece por via de
eleições e que, nessas eleições, os votantes são aqueles que têm com a autarquia
uma conexão baseada na domiciliação. Não é, portanto, arbitrário, ou
materialmente infundado, o critério que as normas em causa utilizam para
estabelecer uma determinada identidade tributária entre o eleitor e o eleito
local.
11. Recorde-se que, em Espanha, onde a diversidade de poderes
tributários (estatal, autonómico, local) provoca a não uniformidade da carga
fiscal, aceita-se que as desigualdades de natureza tributária decorrentes da
existência de diferentes poderes tributários se justificam tendo em conta a
própria diversidade territorial, desde que fundadas em motivos adequados e não
arbitrários. Na STC 233/1999 de 16 de Dezembro, FJ 26 – a propósito das
competências tributárias dos Ayuntamientos sobre o Impuesto sobre Bienes
Inmuebles – o Tribunal Constitucional espanhol aceitou especificamente as
diferenças de tributação como consequência das competências municipais em
matéria tributária, afirmando, a propósito da compatibilidade entre a autonomia
local e o princípio da igualdade, que não é exigível um tratamento jurídico
uniforme dos direitos e deveres dos cidadãos em todo o tipo de matérias e em
todo o território do Estado, o que, aliás, seria incompatível com a autonomia.
12. O apelo ao princípio da autonomia do poder local, consagrado nos
artigos 6º n.º 1 e, quanto a matéria tributária, 238º e 254º n.º 2 da
Constituição, permite não só explicar a razão pela qual as normas questionadas
não ofendem o princípio da igualdade, como permite constatar que o princípio do
Estado unitário é aqui, como parâmetro, imprestável para provocar a
desconformidade constitucional dessas mesmas normas.
Com efeito, a diferente tributação não tem incidência na unidade do Estado. A
Constituição esclarece (citado artigo 6º) que o Estado é unitário mas que
respeita a autonomia insular e os princípios da subsidiariedade, e da autonomia
das autarquias locais. A unidade do Estado exige uma soberania única e um único
sistema jurídico decorrente directa ou indirectamente da mesma Constituição: a
estrutura do Estado não se altera por força da consagração das autonomias, da
descentralização administrativa, ou da operatividade do princípio da
subsidiariedade. Ora, a atribuição, autorizada por lei, e com respeito pela
Constituição, de poderes tributários às autarquias, não ofende aquela unidade.
A invocação deste princípio surge, no pedido, ligada a uma exigência de
uniformidade do critério de taxação do imposto. Já se viu, porém, que a
Constituição não impede a diferenciação do sacrifício tributário em matéria de
imposto sobre o rendimento, com fundamento na autonomia municipal. Cumprirá
acrescentar que em lado algum a Constituição impõe a existência de imposto
'nacional' não modelável em qualquer dos seus elementos em razão da aludida
autonomia. Também se fica sem saber por que razão o IRS, na configuração
desejada pelas normas em apreço, perde o invocado carácter 'nacional'.
Em suma, a solução legislativa agora consagrada pelas normas em apreço não põe
em causa a unidade do Estado.
13. A invocação do princípio da autonomia do poder local impõe, ainda,
uma sucinta abordagem de um outro problema que, embora ausente do pedido, se
relaciona tão directamente com a conformidade constitucional das normas em
apreço, e com a história da jurisprudência constitucional, que o Tribunal não
pode, agora, ignorá-lo.
Trata-se de saber se a interferência dos órgãos autárquicos na concretização do
montante de IRS que os munícipes poderão ter que pagar, nos apertados limites
que a norma prevê, ofende o princípio da reserva de lei.
Na verdade, nos termos do n.º 2 do artigo 103º da Constituição, os impostos são
criados 'por lei' que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as
garantias dos contribuintes. O Tribunal tem entendido, com apelo ao disposto na
alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição, que a locução quer aqui dizer
lei formal, pelo que se coloca a questão de saber se é conforme à Constituição a
entrega a órgãos autárquicos daquela competência, ainda que ela decorra da lei e
se exerça dentro dos limites fixados na mesma lei.
O Tribunal foi chamado a tratar de questão semelhante a propósito das normas que
atribuíram às autarquias competências para fixar a taxa de contribuição
autárquica sobre prédios situados nas suas circunscrições, e, ainda, para lançar
derramas.
No já aqui citado Acórdão n.º 57/95 o Tribunal deu resposta positiva a qualquer
uma destas questões, fundamentado nos poderes que, integrados na autonomia
administrativa e financeira das autarquias, a Constituição então já concedia.
Depois disto, a quarta revisão constitucional (LC n.º 1/97 de 20 de Setembro)
aditou aos (actuais) artigos 238º e 254º respectivamente o n.º 4 e o n.º 2,
conferindo inovadoramente às autarquias poderes tributários, e a possibilidade
de disporem de receitas tributárias próprias. Das actas da Comissão Eventual
para a Revisão Constitucional (por exemplo, DAR, II Série-RC n.º 69 de 29 de
Novembro de 1996) resulta bem clara a preocupação, aliás perfeitamente
consensualizada, de conferir inequívocas competências tributárias às autarquias
– 'constitucionalizar a competência das autarquias locais relativamente a
matéria tributária no sentido de passarem a ter, verdadeiramente e sem dúvidas
quanto à sua constitucionalidade, alguns poderes sem pôr em causa o princípio da
criação de impostos que tem que ser sempre nacional' – deixando claro 'de uma
vez por todas, que não é inconstitucional que a legislação, seja ela o Código da
Contribuição Autárquica ou, de hoje a amanhã, o Código do IRC [...], seja uma
outra legislação da Assembleia da República, atribua poderes tributários em
situações perfeitamente definidas e enquadradas pela lei.' (DAR, II Série-RC n.º
116 de 9 de Julho de 1997).
É, assim, agora claro que a lei, com o sufrágio constitucional retirado dos
artigos 238º n.º 4 e 254º n.º 2 da Constituição, pode conferir aos órgãos
autárquicos a competência para – dentro de limites perfeitamente definidos e, no
caso em presença, muito estreitos –, interferir no montante do imposto sobre o
rendimento. Em suma, as normas em apreço não violam o princípio da reserva de
lei.
14. É, enfim, chegado o momento de concluir que as normas constantes da
alínea c) do n.º 1 do artigo 19° e do artigo 20º do diploma em análise não
violam os princípios da capacidade contributiva, da igualdade e do Estado
unitário – respectivamente consagrados nos n.ºs 1 dos artigos 103º e 104°, no
artigo 13º n.º 2, e no artigo 6 n.º 1º, todos da Constituição.
15. Em face do exposto, o Tribunal decide não se pronunciar pela
inconstitucionalidade das normas constantes da alínea c) do n.º 1 do artigo 19°
e do artigo 20º do decreto da Assembleia da República registado com o n.º 93/X.
Lisboa, 29 de Dezembro de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Maria João Antunes
Maria Fernanda Palma (com declaração de
voto)
Paulo Mota Pinto (com declaração de
voto)
Benjamim Rodrigues
(vencido de acordo com a declaração de voto junta)
Vítor Gomes
(Vencido, consoante declaração de voto que junto)
Mário José de Araújo
Torres (Vencido, nos termos da
declaração
de voto)
Artur Maurício
Declaração de voto
Votei favoravelmente a decisão do presente Acórdão, revendo‑me, em vários
aspectos, na sua fundamentação. Todavia, devo acentuar que a autonomia local,
mesmo após a Revisão Constitucional de 1997, não chega, por si só, para
justificar esta possível diferenciação da taxa de participação dos Municípios e
o sistema de devolução de parte do montante do imposto aos contribuintes que lhe
é associado.
A meu ver, deve concluir-se – de modo decisivo – pela conformidade
constitucional do presente regime legal por ele favorecer a redução de despesas
públicas, a partir de uma perspectiva de necessidade e controlo das mesmas pelos
munícipes. Na verdade, os Municípios devem devolver aos contribuintes as verbas
que, à partida, consideram desnecessárias, traduzidas numa percentagem do
montante do imposto que não poderá exceder 5%. Em última análise, prossegue-se
um desígnio de justiça fiscal, entendida em sentido global, que se sedia no
artigo 103º, nº 1, da Constituição.
Assim, a situação não deverá ser tratada como questão idêntica à versada no
Acórdão nº 57/95: em primeiro lugar, porque este aresto é anterior à Revisão
Constitucional de 1997, que atribuiu expressamente poder tributário às
autarquias locais (artigo 238º, nº 4); em segundo lugar, porque a norma então em
crise, que eu considerei inconstitucional em voto de vencida, se referia à
determinação não fundamentada da taxa de um imposto municipal; em terceiro
lugar, porque está agora em causa um mecanismo sui generis (não qualificável
como taxa ou mesmo como benefício fiscal), cuja razão de ser e finalidade última
é uma compensação dos contribuintes diversa de outras figuras já consagradas no
Direito ordinário.
Esta última constatação (o carácter inovador do regime sub
judicio) exige
uma análise em função de critérios de valor constitucional, à luz das
finalidades de
justiça distributiva do sistema fiscal. Diversamente do que sucedia quanto à
contribuição autárquica, está‑se agora perante uma figura que se insere numa
lógica de justificação e controlo da utilização das receitas dos impostos e que,
como referi, promove a redução de despesas públicas e a compensação dos cidadãos
em casos de desnecessidade, maior ou menor, de utilização das receitas do I.R.S.
pelos Municípios.
Maria Fernanda Palma
Declaração de voto
Votei a decisão pelo essencial da fundamentação constante dos pontos 9 e 10, 12
e 13 do Acórdão, isto é, por entender que os princípios da igualdade e da
capacidade contributiva têm de ser conciliados com a consagração constitucional
da autonomia local, com os “poderes tributários” que a Constituição também
admite no artigo 238.º, n.º 4, permitindo uma diferenciação do imposto sobre o
rendimento em termos limitados como a que as normas em causa prevêem, a qual
também não é susceptível de pôr em causa a unidade do Estado (ou o princípio do
“Estado unitário”). Para além da possibilidade de concessão de poderes
tributários, prevista na Constituição, implicar a possibilidade de
diferenciação, entendo que a concessão desses poderes, nos apertados termos em
que é prevista, aos municípios que recebem as receitas respectivas, e apenas
nesta medida, pode também ser justificada com o interesse, constitucionalmente
atendível, na aproximação da titularidade da decisão sobre as receitas da
titularidade da decisão sobre as despesas públicas municipais, com os
consequentes (possíveis e desejáveis) efeitos no plano da transparência e da
responsabilização dos eleitos municipais, e, até, da diferenciação consoante a
qualidade e quantidade de bens (designadamente, bens públicos) postos à
disposição dos munícipes.
A mais destes fundamentos, apontados no Acórdão, entendi que não resulta das
normas questionadas violação das exigências constitucionais relativas
especificamente ao imposto sobre o rendimento pessoal, previstas no artigo
104.º, n.º 1, da Constituição: o objectivo de “diminuição das desigualdades” não
é posto em causa, não só porque não se trata ali (pelo menos só) das
desigualdades de imposto a pagar, como porque essas diferenças podem ser
justificadas, designadamente, com o estabelecimento de uma relação mais próxima
entre eleitores e decisores sobre as despesas públicas municipais e com a
promoção de uma racional realização destas últimas; a exigência de que seja um
imposto “único” não diz respeito à diferença de imposto a pagar mas à incidência
de um só imposto, e não vários, sobre o rendimento pessoal; e, funcionando como
uma dedução proporcional à colecta, o “desagravamento” em causa é neutro em
relação à natureza progressiva do imposto.
Faço questão de notar, porém, que eram apenas os poderes dos municípios de
limitadamente (na parte relativa à sua participação nas receitas) interferir no
montante de imposto a pagar pelos seus munícipes, previstos nas normas
questionadas, cuja constitucionalidade competia ao Tribunal Constitucional
apreciar, e não quaisquer outras normas da nova Lei das Finanças Locais, na
perspectiva da comparação com o regime anterior (por exemplo, no que toca à
eventual redução quantitativa, na prática, das receitas de certos municípios),
muito menos estando em questão um juízo político‑legislativo sobre a bondade das
soluções adoptadas, mesmo nas normas questionadas.
Paulo Mota Pinto
Declaração de voto
1 – Votei vencido na questão de constitucionalidade que o acórdão apreciou,
acompanhando-o apenas na posição que tomou quanto à identificação do problema
colocado ao Tribunal Constitucional.
Na verdade, conquanto o pedido, feito pelo Presidente da República, mencione a
norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e todas as normas do artigo
20.º do decreto da Assembleia da República, registado com o n.º 93/X, resulta
claro que as suas dúvidas de constitucionalidade apenas versam sobre a criação
de uma dedução à colecta, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 20.º, a
favor dos sujeitos passivos de IRS com domicílio fiscal na circunscrição
territorial dos municípios que deliberem fixar em percentagem inferior à de 5% a
sua participação variável nas receitas desse imposto, reconhecida na alínea c)
dos artigos 19.º e 20.º, n.º 1, do mesmo decreto.
Em termos mais singelos, o Presidente da República tem dúvidas
sobre se, em sede de IRS, poderá haver uma dedução à colecta de que apenas
beneficiem os sujeitos passivos que tenham domicílio fiscal em municípios que
deliberem fixar em percentagem inferior à da máxima de 5%, estabelecida na lei,
a sua participação nas receitas provenientes deste imposto.
2 – Antes de mais, importa notar que é, estrutural e
funcionalmente, diferente a norma que reconhece aos municípios o direito a uma
participação variável até 5% nas receitas advindas do IRS, constante da alínea
c) do artigo 19.º e do n.º 1 do artigo 20.º do decreto acima identificado, e a
norma que cria uma dedução à colecta desse imposto, em favor, apenas, dos
sujeitos passivos que tenham domicílio fiscal na circunscrição territorial dos
municípios, em função dos termos em que estes deliberem comungar nas receitas
provenientes desse imposto, dentro da percentagem máxima estabelecida na lei
(artigo 20.º, n.º 4).
A primeira norma tem uma clara natureza financeira – trata-se,
pois, de uma norma que se insere na categoria daquelas que enunciam quais as
receitas que podem ser previstas pelos municípios para poderem pacificar as
necessidades cuja satisfação está a seu cargo.
E, porque as necessidades a satisfazer com essas e outras
receitas estão, no caso, numa relação essencialmente directa com o número de
munícipes compreende-se, no plano da adequação e da razoabilidade, que o
legislador tenha adoptado o critério de calcular a participação variável até 5%
do IRS dos municípios sobre a “colecta líquida das deduções previstas no n.º 1
do artigo 78.º do Código do IRS” dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na
respectiva circunscrição territorial [art.ºs 19.º n.º 1, alínea c) e 20.º, n.º
1, do referido decreto].
A segunda é, por sua vez, uma norma estritamente fiscal – diz
respeito à conformação legal do imposto que gera a receita, independentemente do
fim que lhe dê o Estado, apenas se sabendo que, por via de regra, não será para
entesouramento.
Nesta óptica, são completamente diversos os critérios que as
justificam e os momentos em que operam.
No caso da primeira, está em causa a questão de saber quanto dinheiro poderá
obter-se desta fonte e que destino se lhe há-de dar; na segunda, a questão
prende-se com saber como se arranja o dinheiro de que os municípios poderão em
parte dispor – como se obtém esse valor em sede de imposto de IRS.
Quer isto dizer que a norma que atribui aos municípios uma
participação variável no IRS dos contribuintes domiciliados na sua circunscrição
territorial concretiza uma repartição, entre o Estado e os municípios, dos
recursos públicos que se obtiveram por essa via de aquisição.
Ao invés, a norma que institui a dedução à colecta diz respeito
a um momento anterior a este, ou seja, ao momento em que se define, pela
concorrência de todos os seus diversos elementos normativos, a obrigação deste
tipo de imposto e, consequentemente, o montante dos recursos públicos dele
provindos, a repartir pelo Estado e pelos municípios.
No momento em que os municípios renunciam a uma percentagem da
participação máxima a que terão direito na arrecadação futura do imposto, eles
ainda não são titulares de qualquer direito de crédito sobre o Estado,
proveniente da arrecadação do imposto, mas apenas titulares de uma simples
expectativa jurídica. Sem embargo, essa atitude projecta, desde logo, efeitos
sobre o modo como acabará por ficar conformada legalmente a obrigação do
imposto, interferindo com a definição do seu regime jurídico.
No âmbito da primeira norma, cabe a ponderação sobre o destino
a dar ao dinheiro e, nomeadamente, sobre as opções relativas à identificação e
grau das necessidades dos munícipes a satisfazer. Nesta medida, poderá dizer-se
que, ao renunciarem a parte da percentagem máxima a que terão direito na
arrecadação do imposto, os municípios estarão a renunciar à satisfação de
algumas necessidades dos seus munícipes. Estarão, se mantiverem o nível de
obtenção de receitas de outra fonte legal, como o das taxas e receitas
patrimoniais, o que nada garante que possa acontecer. Daí que perca todo o
sentido um argumento de equilíbrio do nível da despesa pública, em sede das
autarquias locais, que seja estruturado sobre o recurso a tal mecanismo.
Os únicos objectivos a cuja prossecução tal instrumento
jurídico se mostra adequado são os de, em alguma medida – mas pouco expressiva,
salvo se interesseiramente sobrevalorizada – se poderem corresponsabilizar,
politicamente, as autarquias locais, em conjunto com o Governo, pelos graus de
tributação impostos aos seus munícipes em sede de IRS e de tornar possível o
exercício de alguma concorrência normativa entre os municípios sobre o modo como
poderão satisfazer as necessidades dos seus munícipes, deixando-lhes,
simultaneamente, livre alguma parte – pequena – do rendimento sujeito a
tributação em IRS.
De qualquer modo, pode adiantar-se, desde já, que estes
interesses não são interesses próprios e específicos de populações de concretas
circunscrições territoriais municipais, mas antes interesses gerais de todos os
contribuintes do país.
Falta, porém, saber se um tal efeito possível constitui razão
material bastante para, sob o ponto de vista constitucional, justificar a
diferença de tratamento fiscal entre os sujeitos passivos do imposto.
Adiante se voltará a tal questão.
3 – Dispõe o artigo 104.º, n.º 1 da Constituição que “o imposto
sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e
progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado
familiar”.
O imposto regulado no Código do Imposto sobre o Rendimento das
Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro,
com as inúmeras alterações sofridas posteriormente, é o tipo de imposto que visa
cumprir tal injunção constitucional.
Ao dispor que o imposto sobre o rendimento seja único, a
Constituição obriga a que sobre todas as diferentes categorias de rendimento
fiscalmente elegíveis não possa incidir outro imposto.
Tal equivale por dizer que o imposto sobre o rendimento deverá
ser um imposto global sobre todas as categorias de rendimento e, portanto, que
lhe é alheia qualquer ideia de localização territorial das fontes do
rendimento-produto ou do rendimento acréscimo, fiscalmente relevadas. Da sua
natureza de imposto único e global sobre os rendimentos decorre, deste modo,
inelutavelmente, que o mesmo seja um imposto nacional.
Mas sendo um imposto nacional, não pode ele deixar de ser
modelado pelo legislador parlamentar, pois é este quem, unicamente, exerce a
soberania fiscal sobre todo o território nacional [art. 165.º, n.º 1, alínea i)
da CRP] a que respeita a globalidade dos rendimentos tributados neste tipo de
imposto, independentemente de o local ou circunscrição territorial inferior em
que sejam obtidos ou gerados.
Por outro lado, tal imposto deve ser conformado pelo legislador
ordinário, de modo a visar a diminuição das desigualdades e ser um imposto
progressivo.
O cumprimento deste objectivo constitucional demanda, desde logo, uma
compreensão da igualdade dos contribuintes que não se baste por uma igualdade
perante a lei (igualdade formal), nem tão somente por uma igualdade na lei
(uniformidade do critério de tributação) (ambas inferíveis, no caso dos
impostos, dos artigos, 12.º, n.º 1, e 13.º da CRP), apontando, também, para a
prossecução de uma tendencial igualdade prática de repartição dos rendimentos
(artigos 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1, da CRP) (cf. neste sentido, além de outra,
a jurisprudência mencionada no pedido).
A progressividade do imposto representa, assim, um modo
necessário para realizar esse objectivo constitucional de diminuição das
desigualdades.
Contudo, a progressividade não se queda pela previsão de taxas progressivas,
existindo outros instrumentos que poderão influenciar a progressividade real da
tributação, não obstante operarem sobre a determinação da matéria colectável ou
sobre a colecta do imposto, na medida em que deixarem livres parcelas de
rendimento.
A dedução à colecta é um desses instrumentos, sendo claro que, se essa dedução à
colecta respeitar o critério da universalidade e da uniformidade dentro do
espaço territorial a que se reportam os rendimentos tributáveis o ritmo da
progressividade será o mesmo para todos os contribuintes desse espaço nacional.
Se, pelo contrário, como acontece no caso, essa dedução à
colecta apenas beneficiar certa categoria de contribuintes, elegidos em função
de uma área de território mais pequena onde residem e do facto de o respectivo
município renunciar a parte da participação variável até 5% no IRS a que tem
direito, então esses contribuintes beneficiarão de uma progressividade menos
intensa, na medida em que vêem relevada a sua capacidade contributiva em menor
grau do que a daqueles que não estão em tal situação.
Chame-se a essa dedução o que se entender – abatimento,
desagravamento, benefício fiscal (como se entende ser verdadeiramente – cfr.
art. 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais) ou outro qualquer instituto
jurídico-fiscal, do que não restam dúvidas é que o seu efeito jurídico-prático
corresponde a deixar livre na mão dos respectivos titulares de rendimentos
globalmente iguais, no espaço nacional, diferente fatia desse rendimento global
fiscalmente relevante.
E, assim sendo, embora não saia ofendido o princípio da
capacidade contributiva, enquanto pressuposto da tributação – acepção esta que
só terá préstimo para salvaguardar da tributação um mínimo para uma existência
humana condigna, ou seja, como marco do limite de tributação – não deixa de
atingir-se uma igual capacidade contributiva em diferente grau, com violação do
princípio da igualdade, na sua dimensão de uniformidade de critério de
tributação dentro do espaço nacional a que respeita o imposto.
Tal conclusão corresponde a um resultado inelutável, mesmo em
face da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o acórdão recupera.
4 – Sustenta, porém, o acórdão a que esta declaração de voto
diz respeito, que o princípio de igualdade na tributação pode, de acordo com a
jurisprudência nele citada (e muita outra), consentir restrições desde que
racional e materialmente fundadas para a salvaguarda de outros direitos ou
interesses legalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). E o acórdão
encontra essa razão material, essencialmente, no princípio da autonomia local.
Ora, não lobrigamos como é que, para a salvaguarda ou, sequer,
o desenvolvimento da axiologia que suporta o princípio da autonomia local, possa
contribuir a instituição de um tal abatimento ou benefício fiscal, denominado
“dedução à colecta”, actuante sobre um imposto nacional e incidente sobre os
rendimentos obtidos nesse espaço territorial.
A autonomia local constitui um modo de organização democrática
do Estado, expresso na existência de autarquias locais, dotadas de órgãos
representativos, constitucionalmente previsto e funcionalizado para “a
prossecução de interesses próprios das populações respectivas” da sua área
territorial (artigo 235º, nº 2, da CRP).
Tal autonomia demanda a atribuição da capacidade jurídica de
auto-eleição dos interesses locais a satisfazer e de auto-regulação de
instrumentos normativos necessários para tanto.
Nesta perspectiva, o reconhecimento constitucional às
autarquias locais de património e finanças próprias não representa mais do que
um postulado necessário da autonomia local.
Nesse espaço de autonomia cabe, como não pode deixar de ser, o
direito a terem como próprias as receitas provenientes da gestão do seu
património e as cobradas pela utilização dos seus serviços (artigo 238º, nº 1, e
254º, nº 2, da CRP).
E, porque os interesses por elas prosseguidos não se opõem,
substancialmente, aos do Estado, antes integram o seu todo solidário, dispõe a
Lei fundamental que “o regime das finanças locais (que será estabelecido por
lei) visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas
autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo
grau” (artigo 238º, nº 2, da CRP).
Não reconhece a Constituição poderes tributários originários às
autarquias locais, apenas, admitindo que a lei lhos atribua, em certos casos.
Mas, como é postulado pelo fundamento material do princípio da
autonomia local, não se vê que a Constituição admita que possam ser
reconhecidos, às autarquias, poderes tributários que ultrapassem os limites
materiais desse fundamento: a prossecução dos interesses próprios das populações
respectivas da sua circunscrição territorial.
Desta sorte, entendo que os poderes tributários reconhecidos às
autarquias, com a revisão constitucional de 1997, no artigo 238.º, n.º 4 da CRP,
se cingem aos tributos locais, aos tributos previstos na lei como constituindo
modos próprios e específicos de arrecadação de receitas locais, não abrangendo
os impostos nacionais.
O preceito constitucional teve essencialmente no seu horizonte
a resolução do tipo de dúvidas de constitucionalidade que foram levantadas pelos
vencidos no Acórdão n.º 57/95, relativamente à fixação da taxa da contribuição
autárquica dentro dos limites estabelecidos na lei e quanto à derrama.
Ora, se não existem dúvidas que as normas constantes dos
artigos 19.º, n.º 1, alínea c) e do artigo 20.º, n.º 1 do decreto da Assembleia
da República (que definem a participação variável dos municípios na receita do
IRS), em causa, estão numa linha de inteira e perfeita coerência com esses
princípios constitucionais, já não vemos em que medida é que a possibilidade de
reflectir a renúncia, por banda dos municípios, à obtenção de fundos
provenientes de IRS em deduções à colecta em favor dos sujeitos passivos desse
imposto, domiciliados na sua circunscrição territorial, como resulta do n.º 4 do
mesmo artigo 20.º, corresponda a uma forma de prosseguir interesses próprios das
populações das circunscrições territoriais desses municípios, de interesses que
sejam, materialmente, diferentes dos demais sujeitos passivos desse imposto,
domiciliados em circunscrições territoriais diferentes.
No primeiro caso, existe uma relação directa entre as
necessidades a satisfazer pelos municípios, que serão tantas mais quanto maior
for a população da respectiva área territorial, e as verbas necessárias para as
pacificar.
Já, no segundo caso, não se lobriga como é que uma renúncia do
município, tomada no âmbito da sua autonomia, justifique que a mesma se deva
converter, dentro de uma linha de respeito pelos fundamentos materiais da
autonomia local, em um benefício fiscal para os domiciliados na sua
circunscrição territorial para sair respeitada a prossecução de interesses
próprios das populações dessa área.
Dir-se-á, como se refere em pareceres juntos, que uma tal
dedução à colecta se justifica pelo princípio do benefício, dado equivaler a uma
compensação pelo benefício que os munícipes deixam de fruir do não gasto de
receita proveniente do IRS ou até que ele não é mais do que um modo de,
antecipadamente, o município repartir essa receita de cuja participação abdica.
Mas tais juízos, na minha opinião, não têm a mínima
consistência científica.
Basta notar que os beneficiários da dedução à colecta, independentemente de
poderem sofrer por outra via, como a do agravamento de outras fontes de receita,
como as taxas e os preços de serviços, a manutenção do nível da despesa pública
local, são apenas os domiciliados na circunscrição que tenham colecta onde se
possa abater o respectivo montante e que esse universo é totalmente diferente do
universo que constitui a população da respectiva circunscrição territorial para
prossecução de cujos interesses a autonomia local é constitucionalmente
reconhecida.
Por outro lado, a posição de ver nesse benefício uma repartição
antecipada de um crédito ignora não só a diversidade desse universo subjectivo
como a circunstância de não haver qualquer correspondência objectiva entre o
benefício que pessoalmente se obtém da comunidade (estatal ou municipal) através
do gasto das receitas provenientes dos impostos e o montante de imposto que se
paga.
Ninguém tem direito a benefícios na medida do que paga de
impostos.
Há muito tempo que o princípio do benefício deixou de ser
alegado como base e pressuposto de tributação!
5 – Há, ainda, quem fundamente constitucionalmente a
diferenciação estabelecida no referido n.º 4 do artigo 20.º do decreto em causa
num alegado conjugado de razões, a que o Tribunal não deixou de atender debaixo
do rótulo de exigências constitucionais de transparência e de redução da despesa
pública.
Consistem estas: no facto de os rendimentos tributáveis em IRS serem reflexo
importante da actuação dos órgãos municipais à actividade exercida pelas pessoas
e empresas que os geram; na circunstância de a renúncia à participação na
receita do IRS implicar uma renúncia à despesa pública e, por isso, ser razoável
que os ganhos assim obtidos sejam distribuídos pela generalidade dos munícipes
em função da capacidade contributiva destes, inserindo-se no exercício de uma
autonomia responsável; na necessidade de uma luta eficaz contra a “esquizofrenia
municipal”; no facto de a actual Lei das Finanças Locais já permitir
significativas diferenças de tributação no respeitante aos impostos cuja
titularidade cabe aos municípios e no paralelismo de problemas e dificuldades
com o que se passa com os impostos nas regiões autónomas.
A nosso ver, nenhum destes fundamentos, segundo um mero prisma
de controlo jurisdicional da evidência da adequação, merece aceitação.
Sendo o IRS um imposto único sobre o rendimento global, fiscalmente relevado
(rendimento-produto e rendimento-acréscimo considerados), é-lhe absolutamente
alheia qualquer ideia de concreta e específica conexão territorial com os
concretos municípios e os respectivos órgãos municipais que propiciem o
funcionamento da específica dedução à colecta, constante do artigo 20.º, n.º 4,
do referido decreto da Assembleia da República.
Quando muito, deixando de lado os rendimentos obtidos fora do
território nacional, o que poderá dizer-se é que esse rendimento, na sua
globalidade, é sempre produzido ou obtido em uma ou mais circunscrições
territoriais municipais, dado que o território nacional se acha todo ele
dividido em municípios.
Mas a inferir-se daí que os rendimentos tributáveis são, de
algum modo constitucionalmente relevante, potenciados pelos concretos municípios
que propiciam essa dedução e não por outros é dar um salto para o desconhecido.
Os rendimentos podem ser gerados ou obtidos em Faro e o
contribuinte estar domiciliado em Bragança.
Em boa verdade, não se vê como é que poderá estabelecer-se
qualquer relação de localização dos rendimentos provenientes de trabalho
dependente, de capitais, de alguns incrementos patrimoniais e de pensões, com a
actuação dos municípios que propiciem, pela sua renúncia à participação na
receita do IRS, a dedução à colecta em causa.
Por outro lado, não existe uma relação adequada, como exigem as
restrições ao princípio da igualdade, entre a redução na participação da receita
proveniente de IRS e uma eventual redução da despesa pública e a existência de
ganhos fiscais. O nível de despesa pública só pode ser visto na sua totalidade,
pelo que apenas existirão ganhos fiscais se as outras fontes de receita
municipal não sofrerem aumentos, e, estando o resultado dependente de um
pressuposto não tornado obrigatório, tudo pode ficar na mesma ou, até, pior.
Não havendo necessária dependência entre a responsabilização
pela actuação política a nível local e a responsabilização política a nível
nacional, e sendo o produto da participação variável no IRS destinado à
satisfação de necessidades locais, não se vê, por outro lado, que os eleitos
locais passem a ser mais facilmente responsabilizados pelos seus munícipes pelas
decisões da política nacional tributária relativa ao IRS, até, porque o universo
dos munícipes que gozarão do benefício da dedução poderá ser muito diverso do
universo dos eleitores locais.
De qualquer jeito, não obstante estarmos perante interesses
suportados na Constituição, eles são interesses do todo subjectivo nacional e
não próprios da população de uma específica circunscrição territorial municipal.
Só em razões de ética política será possível fundar uma tal
comunhão de responsabilidade política de nível nacional e local.
Acresce que não são, de modo algum, transponíveis para o caso
sub judicio os fundamentos que justificam as diferenças de tributação no
respeitante aos impostos cuja titularidade cabe aos municípios, decorrentes do
n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, e do poder municipal de
lançar derramas.
Basta atentar que, nesses casos, é possível descortinar uma
relação suficientemente directa e intensa entre a actuação dos municípios e dos
seus órgãos representativos e os factos tributários relevados no respectivo tipo
de imposto [valor patrimonial dos imóveis (Imposto Municipal sobre Imóveis –
IMI, outrora Contribuição Autárquica – CA, e Imposto Municipal sobre as
Transmissões Onerosas de Imóveis – IMT) ou os rendimentos empresariais de
empresas pessoais ou colectivas – Derrama]. É essa a razão, aliás, que justifica
que o titular activo do imposto e o destinatário da sua receita sejam as
autarquias.
Sendo ínsita à autonomia local uma ideia de diferenciação
implicada pela prossecução dos interesses próprios das populações das autarquias
que não pode deixar de conduzir, igualmente, a diferenciações de actuações
municipais propiciadoras da obtenção dos valores tributáveis em sede dos
impostos locais, tem, do mesmo passo, de admitir-se que exista uma tal
diferenciação na conformação e lançamento dos impostos e tributos locais.
Nessa medida, não são, assim, deslocáveis, para o domínio de um imposto único,
global e nacional sobre todo o rendimento fiscalmente relevante, os fundamentos
que, no Acórdão n.º 57/95, abonaram a decisão de conformidade constitucional das
normas aí questionadas, relativas à taxa da contribuição autárquica e do
lançamento de derramas.
No que respeita à “esquizofrenia municipal”, vista no facto de
os eleitos municipais não terem de responder politicamente pelo ónus político do
lançamento dos impostos, de cujo produto da arrecadação os municípios apenas em
parte participam, caberá dizer que, independentemente de ela se consubstanciar,
essencialmente, numa atitude ética perante um outro órgão político, a mesma
apenas é susceptível de ocorrer porque o sistema e a competência constitucionais
relativos aos impostos não se encontram estruturados em termos de obrigar a uma
comparticipação ou comunhão políticas no exercício da soberania fiscal e nem se
vê que, por força desta providência legislativa, aumente a transparência no
exercício de tal poder. De qualquer modo, estamos não perante um interesse
próprio de populações de uma concreta circunscrição municipal, mas perante um
interesse de âmbito nacional.
Finalmente, não existe qualquer paralelo entre os poderes
tributários conferidos pela Constituição às regiões autónomas e os conferidos às
autarquias locais.
Na verdade, segundo o disposto no artigo 227.º, n.º 1, alíneas
i) e j) da Constituição, as regiões têm os poderes de “exercer poder tributário
próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às
especificidades regionais, nos termos da lei quadro da Assembleia da República”
e de “dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões
autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma
participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um
princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional (…)”.
Relativamente às autarquias locais, o n.º 4 do artigo 238.º da
Constituição limita-se a prever que “as autarquias locais podem dispor de
poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”.
São patentemente diferentes os poderes tributários conferidos a
uma e outra destas categorias de pessoas colectivas territoriais.
Desde logo, importa acentuar que as regiões têm poderes
tributários próprios; que podem adaptar o sistema fiscal nacional e que podem
dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas.
Cabe, seguramente, nesta adaptação do sistema fiscal nacional a
adopção de medidas como a de estabelecer taxas de imposto ou benefícios fiscais
diferentes dos vigentes no sistema nacional.
Nada disto atribui a Lei fundamental às autarquias locais.
De qualquer jeito, a justificação da desigualdade na tributação nunca poderá ser
achada dentro de uma dialética entre a dedução à colecta de que gozam os
munícipes de certos municípios, derivada apenas da renúncia destes a uma parte
da participação nas receitas provenientes de IRS, e a autonomia local (valendo o
argumento igualmente para a autonomia regional), na sua expressão de
titularidade de poderes tributários, mas entre esse benefício concedido a certos
sujeitos passivos do imposto em função apenas do seu domicílio fiscal e a
especificidade material que o concreto domicílio seja objectivamente susceptível
de evidenciar.
Nesta linha, a diferença, mesmo relativamente às regiões, não
pode tanto ser procurada na sua competência constitucional para adaptar o
sistema fiscal nacional, mas na circunstância de, nessa adaptação, poderem
relevar as especificidades dessas regiões, como o seu nível de desenvolvimento
económico e social e o seu isolamento geográfico, enquanto realidades
objectivamente susceptíveis de atingir os factos tributários e os contribuintes.
As realidades a avaliar, sob o prisma da igualdade, são apenas
as situações que, relativamente ao mesmo bem jurídico (neste caso, dedução à
colecta), se verifiquem entre diferentes categorias de sujeitos passivos do
mesmo imposto e não entre contribuintes e quem detém o poder tributário que faz
a discriminação, seja este local ou regional, pois o princípio da igualdade
funciona como um limite à sua liberdade normativo-constitutiva.
Dir-se-á, ainda, que o poder de determinar a existência de uma
dedução à colecta, como a que estamos examinando, caberá nos poderes tributários
das autarquias locais, enquanto abrangida pela cláusula aberta “nos casos e
termos previstos na lei”, sendo essa lei, aqui, esta norma cuja
constitucionalidade se questiona.
Mas, uma tal interpretação do preceito constitucional implica o
reconhecimento da possibilidade de atribuição, por parte do legislador ordinário
(a AR), de poderes tributários para além do estrito âmbito competencial
demandado pelo princípio da autonomia local enquanto direito de prossecução dos
interesses próprios das populações das autarquias. Ou seja, equivale a
reconhecer às autarquias a possibilidade de interferirem na criação dos
pressupostos jurídicos tributários integrantes de um abatimento, desagravamento
ou benefício fiscal conformado pelo legislador nacional com um âmbito apenas
local, como é a dedução à colecta constante do n.º 4 do referido artigo 20.º.
Porém, nada na Constituição, mesmo após a revisão de 1997, como se pode colher
das próprias fontes assumidas pelo acórdão, inculca a ideia de que se pretendeu
instituir na nossa norma normarum um tal sistema de comunhão e responsabilidade
política conjunta pelas opções relativas ao funcionamento do sistema de impostos
nacionais.
Também não colhe, minimamente, o argumento de paralelismo com o
que se passa na vizinha Espanha. Na verdade, para ser pertinente seria
necessário que, tal como lá acontece, todo o território nacional estivesse
regionalizado e municipalizado e fosse igual a Constituição fiscal de ambos os
países. Ora, entre nós, apenas se verifica a segunda circunstância. Por outro
lado, anote-se que a apreciação do Tribunal Constitucional espanhol se refere a
um tipo de imposto semelhante ao nosso imposto municipal sobre imóveis (IMI),
nada tendo a ver com um imposto sobre o rendimento de âmbito nacional, valendo,
assim, para ele as considerações atinentes aos poderes tributários que
relativamente à CA, ora IMI, se reconhecem aos municípios.
Ao contrário da posição tomada no acórdão, não vemos que tenha
qualquer pertinência, para a apreciação do caso, a convocação do princípio da
legalidade tributária, embora se pense que quem votou vencido nos Acórdãos nºs
57/95 e 70/04 não poderia deixar de concluir, sem incorrer em incongruência,
pela inconstitucionalidade da norma constante do referido n.º 4 do artigo 20.º.
Na verdade, não está em causa qualquer questão atinente à
definição do elemento “taxa” de imposto, pois este está assumido com relevância
autónoma pela Constituição, não sendo legítimo um entendimento, perspectivado,
de tal conceito, enquanto traduzindo a grandeza real ou efectiva da tributação
sofrida, resultante da concorrência de diversos instrumentos jurídico-fiscais,
como sejam as taxas, as isenções, abatimentos ao rendimento, deduções à colecta
e outros.
Concluiria, assim, pela inconstitucionalidade da norma
constante do n.º 4 do artigo 20.º do decreto da Assembleia da República, mas
tão-sómente por violação conjugada dos princípios da capacidade contributiva,
que se extrai dos artigos 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 1; da igualdade, decorrente,
no caso dos impostos, dos artigos 12.º, n.º 1 e 13.º, e do princípio da
unicidade do imposto sobre o rendimento e da sua vinculação à prossecução da
diminuição das desigualdades, constantes do artigo 104.º, n.º 1, relativos à
tributação do rendimento, todos os preceitos da Constituição.
Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
Votei no sentido da inconstitucionalidade das normas da alínea
c) do n.º 1 do artigo 19.º e do n.º 4 do artigo 20.º do Decreto em análise, por
violação do artigo 13.º em conjugação com o n.º 1 do artigo 104.º da
Constituição, pelas seguintes razões essenciais:
Independentemente do nomen juris ou da técnica tributária, a
opção do município por uma percentagem inferior a 5% no IRS dos sujeitos
passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial
consubstancia, para esses contribuintes, a concessão de um desagravamento de
efeitos prático-jurídicos equivalentes a um benefício fiscal. Contribuintes em
situação em tudo o mais idêntica face ao regime geral do imposto nacional em
causa, portanto com a mesma capacidade contributiva, pagarão montantes
diferentes porque alguns beneficiam (ou beneficiam de modo diverso) de uma
dedução suplementar à colecta que acresce às deduções constantes do artigo 78.º
do CIRS só por residirem (recte, se considerarem fiscalmente domiciliados – cfr.
n.º 6 do artigo 20.º do Decreto em apreciação) no território de autarquias que
fazem opções políticas distintas quanto a prescindir de uma parte do
financiamento decorrente das receitas do IRS. Suportarão diferente carga fiscal,
com discriminação em razão do território de residência, num imposto que, segundo
a Constituição, “visa a diminuição das desigualdades e será único e
progressivo”. Afiguram-se-me evidentes quer a produção de um efeito
diferenciador ao arrepio deste objectivo e desta regra constitucional de
estruturação do imposto sobre o rendimento, quer a presença de uma causa
operativa semelhante a um factor suspeito (o território de origem, n.º 2 do
artigo 13.º da Constituição) na origem dessa entorse ao princípio da igualdade
fiscal. Efectivamente, do princípio da unicidade do IRS decorre não só o mandato
(no limite da praticabilidade) de tributação por um único imposto de todos os
rendimentos pessoais, mas também que esse imposto seja uniforme para todos os
residentes em território nacional em função da capacidade contributiva. Assim,
embora o princípio da igualdade fiscal não proíba diferenciações materialmente
fundadas, o mero domicílio fiscal não pode funcionar como critério que
justifique esta manifestação negativa do poder tributário local a favor dos
sujeitos passivos fiscalmente residentes na circunscrição. Aliás, o domicílio
fiscal nem sequer tem uma conexão necessária com a fonte do rendimento
tributável em IRS, bastando pensar nos residentes nos municípios da periferia
das grandes cidades e que nestas trabalham.
E, quanto a este parâmetro, não pode transpor-se, mediante um
raciocínio inverso, para o sentido da modelação local deste imposto estadual que
agora se aprecia, a justificação que no acórdão n.º 57/95 o Tribunal adoptou
para as espécies tributárias aí analisadas. A prestação de bens públicos pela
autarquia, de que o contribuinte beneficia ou fica em condições de beneficiar,
fornece uma justificação material para a imposição (o imposto acessório ou a
fixação da taxa superior ao mínimo legal) e, consequentemente para a
diferenciação entre contribuintes residentes em municípios distintos. Para o
desagravamento local de um imposto nacional (uma espécie de anti-derrama
aplicada ao IRS) é necessário não só encontrar fundamento em interesses públicos
extrafiscais constitucionalmente relevantes que sejam superiores aos da própria
tributação-regra que impedem e cumpra ao município prosseguir, mas também um
critério de atribuição materialmente fundado. Ora, no que essencialmente divirjo
do entendimento que fez vencimento não é na legitimidade de o legislador
prosseguir os objectivos enunciados no nº 10 do acórdão, mas na possibilidade de
utilizar para o efeito o mero facto da domiciliação fiscal, que é imprestável
por introduzir uma desigualdade entre contribuintes – que, no limite máximo pode
atingir montantes significativos – em função de uma variável que é o território
de residência, num imposto que a Constituição quer geral e uniforme, visando a
diminuição das desigualdades.
É exacto que a autonomia local, com a componente do poder
tributário (n.º 4 do
artigo 238.º, da Constituição), que constitui fundamento axial do acórdão,
permite uma diferenciação nesta matéria. Mas a autonomia não fornece, por si
mesma, critério que
legitime o conteúdo e o sentido da diferenciação. Pode ser base constitucional
para a
atribuição de poderes de configuração local de tributos estaduais (ou
regionais) – e,
portanto, operar quanto ao princípio da legalidade tributária –, mas não
habilita com
critério material de compressão do princípio da igualdade, na
sua vertente
constitucionalmente qualificada quanto à espécie tributária em que recai o
benefício em
crise.
Vítor Gomes
Declaração de voto
Votei vencido por entender que da conjugação
das normas constantes da alínea c) do artigo 19.º com os n.ºs 1 e 4 do artigo
20.º do Decreto da Assembleia da República n.º 93/X, que “aprova a Lei das
Finanças Locais, revogando a Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto”, resulta a violação:
(i) dos limites constitucionais dos poderes tributários das autarquias locais;
(ii) do princípio da capacidade contributiva, enquanto projecção do princípio
da igualdade tributária; (iii) dos princípios constitucionais da tributação do
rendimento pessoal; e (iv) do princípio da legalidade tributária; e que da norma
do n.º 2 do referido artigo 20.º pode resultar (v) violação das competências
constitucionais das assembleias municipais.
Antes de explicitar os fundamentos de cada um
desses juízos de inconstitucionalidade (infra, 3. a 7.), afigura‑se‑me
essencial analisar o sentido e alcance da medida legislativa objecto de
apreciação de constitucionalidade (infra, 1.) e – já que se invoca a autonomia
local como justificação do reconhecido entorse ao princípio da capacidade
contributiva – precisar qual o contorno constitucional dessa autonomia no
domínio fiscal (infra, 2.).
1. Análise do sentido e alcance da medida
legislativa em causa.
Há que distinguir claramente, nas normas
questionadas, uma dimensão financeira e uma dimensão fiscal: a dimensão
financeira respeita à atribuição aos municípios, no contexto da repartição de
recursos públicos entre o Estado e os municípios, de uma participação variável
de 5% no imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) dos sujeitos
passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada
sobre a respectiva colecta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo
78.º do Código do IRS; a dimensão fiscal reporta‑se à possibilidade de, como
decorrência directa de determinado município ter deliberado receber uma
percentagem da participação no IRS inferior à taxa máxima de 5%, “o produto da
diferença de taxas e a colecta líquida [ser] considerada como dedução à colecta
do IRS, a favor do sujeito passivo”.
Relativamente à apontada dimensão financeira
nenhuma questão de constitucionalidade vem colocada.
A violação de princípios constitucionais
suscita‑se apenas quanto à dimensão fiscal, na medida em que ela necessariamente
determina que cidadãos com o mesmo nível de rendimentos paguem menos imposto de
rendimento pessoal pela mera circunstância de estarem fiscalmente domiciliados
em município que haja deliberado “renunciar”, no todo ou em parte, à
participação no IRS.
Afiguram‑se‑me inconsistentes quer a
construção jurídica que vê nessa medida uma cessão dos créditos do município
sobre o Estado a favor dos seus munícipes seguida de uma compensação dos
créditos assim adquiridos pelos munícipes com os seus débitos de imposto face ao
Estado, por demasiado artificiosa, quer a qualificação da medida como um
benefício fiscal, por não subsumível ao conceito sedimentado desta figura
(“Consideram‑se benefícios fiscais as medidas de carácter excepcional
instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam
superiores aos da própria tributação que impedem” – artigo 2.º, n.º 1, do
Estatuto dos Benefícios Fiscais).
A medida em causa, em termos substantivos – a
“dedução à colecta” traduz tão‑só o mecanismo através do qual ela se executa –,
corresponde a uma redução da taxa do imposto de que beneficiam, geral e
automaticamente, todos os contribuintes fiscalmente domiciliados no município
que “renunciou”, no todo ou em parte, à participação no IRS. Trata‑se, assim, de
um medida equivalente (ou de efeito equivalente) à redução da taxa do imposto.
Nem se diga que toda e qualquer dedução à colecta tem esse efeito, já que é
diametralmente diferente a redução do montante do imposto a pagar a final por
força de uma dedução casuisticamente operada, variável de contribuinte para
contribuinte, sujeita tão‑só a limite máximo e dependente de declaração do
próprio, da presente situação, em que, por mero efeito de uma deliberação
municipal, todos os contribuintes com residência fiscal no município, podem
pagar menos 5% de IRS do que os residentes num município vizinho. A generalidade
(reportada à universalidade dos contribuintes com residência fiscal no
município) e a automaticidade da redução afastam esta medida das verdadeiras
deduções à colecta (incluindo os benefícios fiscais) e fazem‑na equivaler, em
termos práticos e substantivos, a uma redução da taxa do imposto.
Aliás, e significativamente, em diversos dos
pareceres solicitados pelo Governo e remetidos ao Tribunal (pareceres
solicitados já depois da apresentação do presente pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade) se invoca, como justificação da medida ora em
causa, a existência de precedentes no que concerne às Regiões Autónomas,
precedentes estes que consistem precisamente na atribuição às respectivas
assembleias legislativas de “diminuir as taxas nacionais dos impostos sobre o
rendimento (IRS e IRC) e do imposto sobre o valor acrescentado, até ao limite de
30% e dos impostos especiais de consumo” (n.º 4 do artigo 37.º da Lei das
Finanças Regionais – Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro).
Conclui‑se, assim, que, na sua dimensão fiscal,
a medida em causa consiste substancialmente na atribuição aos municípios do
poder de diminuir a taxa nacional do imposto sobre o rendimento pessoal.
2. Os poderes tributários constitucionalmente
atribuídos às autarquias locais.
Como é sabido, foi a revisão constitucional de
1997 que aditou ao artigo 238.º (anterior artigo 240.º) da Constituição da
República Portuguesa (CRP), o seu n.º 4, segundo o qual: “As autarquias locais
dispõem de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”.
E como também é sabido, esta alteração
constitucional teve por causa próxima as divergências de que o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 57/95 se deu conta quanto à possibilidade de as
autarquias locais fixarem as taxas de um imposto local (a contribuição
autárquica) e de lançarem derramas.
O precedente acórdão (n.º 13) extrai da
intervenção de um Deputado, em sede de Comissão Eventual da Revisão
Constitucional, em que se aludiu, a par do Código da Contribuição Autárquica,
ao Código do IRC, a conclusão de que se pretendeu permitir a outorga legal às
autarquias locais de possibilidade de intervenção não apenas em impostos locais,
mas também em impostos nacionais, concretamente, “no montante do imposto sobre o
rendimento”.
Para além da questionável relevância, em sede
de interpretação da Constituição, de considerações baseadas na hipotética
vontade do legislador histórico, é unanimemente reconhecida a extrema
fragilidade de argumentos extraídos de trabalhos preparatórios de leis,
designadamente provenientes de órgãos colegiais, sobretudo se respeitam a
intervenções orais, muitas vezes proferidas de improviso, não sendo lícito
afirmar a existência de consenso quanto a afirmações produzidas pelo mero facto
de não serem imediatamente contraditadas. Acresce que, no presente caso,
imediatamente antes da intervenção referida no precedente acórdão (da autoria do
Deputado Luís Marques Guedes), ocorreu outra intervenção (do Deputado Luís Sá),
que o acórdão omite, em que apenas se alude, como efeito do aditamento desse
número, à possibilidade de o município fixar a taxa de incidência da
contribuição autárquica (Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º
116, de 9 de Julho de 1997, p. 3399).
De qualquer forma, outros argumentos existem
que me levam a repudiar o entendimento dado no precedente acórdão ao alcance do
n.º 4 do artigo 238.º da CRP, sendo o mais determinante dentre eles o que
resulta da comparação entre esse preceito e o artigo 227.º, n.º 1, alínea i),
que atribui às regiões autónomas poderes para “exercer poder tributário
próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às
especificidades regionais, nos termos da lei‑quadro da Assembleia da República”.
Não sendo obviamente equiparáveis a autonomia
política das regiões autónomas e a autonomia meramente administrativa das
autarquias locais e resultando da alínea i) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP que
o poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais é
algo distinto do “poder tributário próprio” – e sendo certo que o n.º 4 do
artigo 238.º da CRP nem sequer qualifica como próprios os poderes tributários
que consente que a lei venha a atribuir às autarquias locais –, tenho por seguro
que entre os poderes tributários que este último dispositivo constitucional
possibilita que se confiram às autarquias não se encontra o poder de adaptar o
sistema fiscal nacional. É o que resulta da inexistência, no artigo 238.º, de
inciso similar ao da alínea i) do n.º 1 do artigo 227.º e da incomparabilidade
entre o carácter político da autonomia regional face ao carácter meramente
administrativo da autonomia local.
Este entendimento é, aliás, perfilhado por José
Magalhães (Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 129), que
imputa ao aditamento em causa o objectivo de dar “cobertura constitucional
apropriada a legislação em vigor” e de abrir “a possibilidade de diversos
modelos de «impostos locais», sempre gizados pela Assembleia da República mas
podendo devolver às autarquias opções filiadas em estratégias de incentivo
fiscais diferentes” (itálico acrescentado).
Em suma: o n.º 4 do artigo 238.º da CRP não
constitui credencial para a atribuição às autarquias locais, designadamente aos
municípios, de poderes para alterarem elementos (e muito menos elementos
essenciais) de impostos nacionais (ou estaduais).
3. Violação dos limites constitucionais dos
poderes tributários das autarquias locais.
Assente que o n.º 4 do artigo 238.º da CRP não
constitui credencial para a atribuição às autarquias locais, designadamente aos
municípios, de poderes para alterarem elementos de impostos nacionais (supra,
n.º 2), e que a medida em causa consiste substancialmente na atribuição aos
municípios do poder de diminuir a taxa nacional do imposto sobre o rendimento
pessoal (supra, n.º 1), impõe‑se a conclusão que as normas ora em causa violam
aquele preceito constitucional.
A idêntica conclusão se chegaria, aliás, mesmo
que se adoptasse a qualificação da diminuição de imposto a pagar como um
benefício fiscal.
4. Violação do princípio da capacidade
contributiva, enquanto projecção do princípio da igualdade.
Seguindo a lição de Teixeira Ribeiro (Lições de
Finanças Públicas, 5.ª edição, Coimbra, 1995, pp. 260 e seguintes), o princípio
da igualdade tributária, fiscal ou contributiva concretiza-se na generalidade e
na uniformidade dos impostos: generalidade quer dizer que todos os cidadãos
estão adstritos ao pagamento de impostos; uniformidade quer dizer que a
repartição de impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério, a critério
idêntico para todos. A uniformidade dos impostos traduz‑se na igualdade
horizontal (os indivíduos nas mesmas condições devem pagar o mesmo imposto) e
na igualdade vertical (os indivíduos em condições diferentes devem pagar
diferentes impostos, na medida da diferença). Daqui deriva (com afastamento do
princípio do benefício, segundo o qual cada um deve ser tributado consoante o
benefício que aufere dos bens públicos) o princípio da capacidade de pagar,
segundo o qual estão nas mesmas condições, devendo satisfazer o mesmo imposto,
os que têm a mesma capacidade de pagar; estão em diferentes condições, devendo
satisfazer diferente imposto, os que têm capacidade de pagar diferente.
O Tribunal Constitucional tem, desde sempre,
reconhecido como um princípio basilar da “Constituição fiscal” o princípio da
capacidade contributiva. Na formulação do Acórdão n.º 84/2003:
“10 – O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da
igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de
todos pagarem impostos segundo o mesmo critério –, preenchendo a capacidade
contributiva o critério unitário da tributação.
Consiste este critério em que a incidência e a repartição dos
impostos – dos «impostos fiscais» mais precisamente – se deverá fazer segundo a
capacidade económica ou capacidade de gastar (na formulação clássica
portuguesa, de Teixeira Ribeiro, «A justiça na tributação», in Boletim de
Ciências Económicas, vol. XXX, Coimbra 1987, n.º 6, autor que também se lhe
refere como capacidade para pagar) de cada um e não segundo o que cada um
eventualmente receba em bens ou serviços públicos (critério do benefício).
A actual Constituição da República não consagra expressamente
este princípio com longa tradição no direito constitucional português – a Carta
Constitucional de 1826 expressa‑o na fórmula de tributação «conforme os haveres»
dos cidadãos e, na Constituição de 1933, o artigo 28.º consigna‑o na obrigação
imposta a todos os cidadãos de contribuir para os encargos públicos «conforme os
seus haveres»).
Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento
generalizado da doutrina que a capacidade contributiva continua a ser um
critério básico da nossa «Constituição fiscal», sendo que a ele se pode (ou
deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados
nos artigos 103.º e 104.º da CRP (cf. Casalta Nabais, O dever fundamental de
pagar impostos, págs. 445 e seguintes, onde, no entanto, se defende que, embora
o princípio não careça – para ter suporte constitucional – de preceito
específico e directo, não é de todo inútil ou indiferente a sua consagração
expressa).
Autores há, porém, que contestam a operatividade jurídica
prática ao princípio da capacidade contributiva, em razão, nomeadamente, da sua
acentuada e indiscutível indeterminabilidade, não se estando aí senão perante
uma «fórmula passe-partout» imprestável para um teste jurídico‑constitucional
dos impostos, quer porque se limitaria a «estabelecer que ‘deve pagar-se o que
se pode pagar’» sem definir o «poder pagar», quer porque «não forneceria nenhum
critério concreto para a repartição justa dos encargos fiscais por todos os
contribuintes», quer ainda porque «diria muito pouco sobre as taxas a considerar
correctas dos impostos ou sobre a sua exacta progressão, caso esta, em alguma
medida possa resultar de um tal princípio» (cf. Casalta Nabais, ob. cit., págs.
459 e 461).
Diferentemente, outros autores, como é o caso do próprio
Casalta Nabais, reconhecem ainda «importantes préstimos» ao princípio, o qual
«afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando‑o a que, na selecção e
articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade
contributiva, ou seja, erija em objecto ou matéria colectável de cada imposto
um determinado pressuposto que seja manifestação dessa capacidade e esteja
presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» e tem «especial
densidade no concernente ao(s) imposto(s) sobre o rendimento» exigindo «um
conceito de rendimento mais amplo do que o rendimento-produto» e implicando
«quer o princípio do rendimento líquido (...) quer o princípio do rendimento
disponível (...)» (Direito Fiscal, págs. 157/168).”
Não se ignora que o Tribunal Constitucional tem
reconhecido a existência de liberdade de conformação do legislador neste
domínio, mas tem‑no feito com mais frequência quando está em causa o princípio
da capacidade como direito fundamental, ou seja, como direito a não pagar mais
imposto do que a capacidade do contribuinte consente, do que quando está em
causa esse princípio como medida da igualdade, ou seja, como direito a não pagar
mais imposto do que outrem nas mesmas condições (cf. Guilherme Waldemar
d’Oliveira Martins, Os Benefícios Fiscais: Sistema e Regime, Almedina, 2006, p.
30): cf. Acórdãos n.ºs 806/93 (sobre o abatimento de rendas), 308/2001 (sobre o
abatimento das pensões de preço de sangue), 211/2003 (sobre presunções
inilidíveis), 452/2003 (sobre rendimentos presumidos), 142/2004 (sobre despesas
dedutíveis), 601/2004 (sobre requisitos processuais para a impugnação de
liquidação de imposto de mais‑valias), 173/2005 e 178/2005 (sobre dedução de
pensões) e 278/2006 (sobre a prevalência dos valores das avaliações de imóveis).
Mesmo na vertente de medida da igualdade, o
princípio da capacidade contributiva consente derrogações. Questão é que essas
derrogações se mostrem justificadas pela necessidade de defesa de outros valores
constitucionais. E é esta justificação que, a meu ver, não ocorre com a medida
legislativa cuja constitucionalidade se pretende ver aferida.
Na verdade, a circunstância do domicílio fiscal
– muitas vezes (sobretudo nas áreas metropolitanas e grandes centros urbanos)
não coincidente com o local da fonte dos rendimentos – não é um critério
atendível para justificar a diferenciação de tratamento, já que, diferentemente
do que acontecia nos casos tratados nos acórdãos acabados de citar, nada tem a
ver com a definição dos rendimentos e encargos do contribuinte e do seu agregado
familiar.
Por outro lado, a opção conferida aos
municípios é uma opção cega e sem critério. Ela beneficia – e beneficia
necessariamente, sem qualquer possibilidade de diferenciação – todos os
contribuintes fiscalmente domiciliados no município em causa, independentemente
dos respectivos níveis de rendimento, e sem qualquer exigência de fundamentação
da opção pela renúncia total ou parcial, e em que percentagem, à participação do
município no IRS.
Não se vislumbra como e porquê a autonomia
local obriga, legitima ou justifica esta reconhecida violação do princípio da
capacidade contributiva. A autonomia local em nada sai beliscada se não for
conferida aos municípios, como o não tem sido até agora, a possibilidade de,
através da renúncia à participação total no IRS, determinarem um desagravamento
da carga fiscal, a nível da tributação do rendimento pessoal, dos contribuintes
fiscalmente domiciliados no município.
Não se nega que são constitucionalmente
admissíveis e que são mesmo, na prática, frequentes as derrogações ao princípio
da capacidade contributiva, mas isso desde que a violação deste princípio seja
justificada pela necessidade de preservação de outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, o que, no caso, não se verifica.
5. Violação dos princípios constitucionais da
tributação do rendimento pessoal.
Para além da violação do princípio da
capacidade contributiva, princípio que atravessa todo o sistema fiscal, ocorre
ainda violação dos princípios constitucionais específicos da tributação do
rendimento pessoal.
O “programa constitucional”, neste domínio, tem
como objectivo a diminuição das desigualdades, como requisitos a unicidade e a
progressividade e como critérios as necessidades e os rendimentos do agregado
familiar (artigo 104.º, n.º 1, da CRP)
A medida ora em causa fomenta a desigualdade,
permitindo que cidadãos com o mesmo rendimento paguem impostos diferentes pela
mera circunstância de estarem fiscalmente domiciliados em municípios diversos;
compromete a unicidade do imposto, permitindo alterações significativas de seus
elementos essenciais de acordo com as áreas territoriais, o que, em termos
práticos, significa que se aplicarão taxas de imposto diferentes de acordo com a
residência fiscal; afecta a progressividade, uma vez que reduz a mesma
percentagem de imposto a pagar seja qual for o nível de rendimentos; e é
totalmente indiferente a considerações relacionadas com as necessidades e os
rendimentos do agregado familiar.
6. Violação do princípio da legalidade
tributária.
Como escrevi na declaração de voto de vencido
aposta ao Acórdão n.º 70/2004:
“A justificação actual desse princípio [do princípio da
legalidade tributária, consagrado no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, enquanto
comete à lei que cria impostos a determinação da sua incidência e da sua taxa]
já não assenta na ideia de autotributação nem se esgota numa função de garantia
dos contribuintes, que seria satisfeita pela mera fixação, pelo Parlamento, de
limites máximos das taxas aplicáveis aos diversos impostos, sendo lícito ao
Governo fixar limites inferiores, porque daí não derivaria agravamento da
situação dos contribuintes. Pelo contrário, ao Parlamento incumbe a definição
da política fiscal, e essa definição passa não só pela determinação dos
impostos a cobrar, mas também pela definição dos seus elementos essenciais,
entre os quais a incidência e a taxa.
Considero, assim, que cabe à lei proceder à determinação da
taxa dos impostos e não apenas à indicação dos seus limites, tal como era
defensável face ao artigo 70.º da Constituição de 1933, após a revisão de 1971,
que reservava à lei tão‑só a determinação da taxa ou dos seus limites. A
Constituição de 1976, ao eliminar a menção “ou dos seus limites”, quis
claramente reservar à própria lei a directa determinação da taxa dos impostos.
Como se refere na declaração de voto do Ex.mo Cons. Monteiro Diniz, aposta ao
Acórdão n.º 57/95: «Por força do princípio assim consagrado [no então artigo
106.º, actual artigo 103.º, n.º 2, da CRP], a criação e determinação dos
elementos essenciais dos impostos não pode deixar de constar de diploma
legislativo (reserva de lei), o que implica a tipicidade legal, isto é, o
imposto há‑de ser definido na lei de forma suficientemente determinada, sem
margem para desenvolvimento regulamentar nem para discricionariedade
administrativa quanto aos seus elementos essenciais. E assim sendo, ‘não pode
deixar de considerar‑se como constitucionalmente excluída a possibilidade de a
lei conferir às autoridades administrativas (estaduais, regionais ou locais) a
faculdade de fixar dentro dos limites legais mais ou menos abertos, por exemplo,
as taxas de determinados impostos’ (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.
cit. [Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993],
pág. 458).»
Não se ignora que o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão
n.º 57/95, embora com diversos votos dissidentes, aceitou como
constitucionalmente tolerável que a lei se tivesse cingido a determinar os
limites da variação possível da taxa da contribuição autárquica, «devolvendo às
assembleias deliberativas dos municípios a competência para, dentro das balizas
por ela traçadas, fixar o respectivo valor». Mas fê‑lo salientando a
excepcionalidade da situação, fruto da conjugação, no caso, de diversas
especificidades: (i) «o poder atribuído aos municípios para fixar a taxa da
contribuição autárquica diz respeito a um imposto de natureza municipal – não
apenas porque a sua receita reverte para os municípios, mas também porque o
valor patrimonial dos prédios é fortemente influenciado pelas obras realizadas
por aqueles entes públicos territoriais»; (ii) «o grau de variação fixado pela
lei entre o mínimo e o máximo da taxa daquele imposto é relativamente curto
(1,1% a 1,3 % do valor matricial), pelo que a margem das assembleias municipais
é bastante estreita»; (iii) «o poder conferido pela lei para modelação da taxa
do referido imposto, dentro dos limites rigorosos por ela definidos, tem como
destinatários os municípios, ou seja, as autarquias locais mais importantes
actualmente existentes, dotadas de personalidade jurídica e de autonomia
administrativa e financeira». Só por força da conjugação destes factores é que o
Tribunal Constitucional concluiu então pela não violação do princípio da
legalidade tributária, entendendo que as funções específicas desse princípio (a
de natureza democrática, ligada à ideia de autotributação, e a de natureza
garantística, sendo a anterioridade da lei condição necessária para que os
cidadãos saibam antecipadamente e com exactidão o que vão ser chamados a
pagar) não eram postas em causa «pelo facto de um órgão da administração
autárquica ser autorizado pela lei a definir a taxa de um imposto local, dentro
dos limites muito apertados fixados pelo órgão parlamentar» (sublinhado
acrescentado).”
Nenhuma destas especificidades ocorre no
presente caso: não se trata de imposto local, mas de imposto estadual; não
existe necessariamente conexão entre o município que delibera a redução do
imposto e a ser pago e as fontes dos rendimentos sobre que este incide; são
muito maiores os limites de variação (duas décimas no caso do Acórdão n.º 57/95
face a 5 pontos percentuais no presente caso); e a lei não fixa nenhum critério
de orientação da tomada de deliberação pelo município, que surge, assim,
revestido de ilimitada arbitrariedade.
7. Violação das competências constitucionais
das assembleias municipais.
Resulta do princípio do pedido, consagrado no
artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, que este Tribunal só
pode declarar (ou pronunciar‑se sobre) a inconstitucionalidade de normas cuja
apreciação tenha sido requerida, mas pode fazê‑lo com fundamentação na violação
de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi
invocada. Isto é: o Tribunal Constitucional está vinculado ao objecto do pedido,
mas não à causa de pedir.
Por isso, no presente caso, apesar de, na
formulação do pedido, a inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 2, 3, 5, 6 e
7 do artigo 20.º do diploma em causa surgir como consequencial da
inconstitucionalidade imputada directamente aos n.ºs 1 e 4 do mesmo preceito,
conjugados com a alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º, nada impede –
contrariamente ao que se entendeu no n.º 5.1. do precedente acórdão – que a
constitucionalidade daquelas normas seja apreciada pelo Tribunal Constitucional
na perspectiva de outros princípios e normas constitucionais.
Ora, a norma do n.º 2 do artigo 20.º, se for
interpretada – como o seu teor literal não apenas permite, mas até sugere (e,
por isso, alguns dos pareceres juntos preconizam a necessidade de uma
interpretação, que não pode deixar de se qualificar como correctiva, no sentido
de se entender que o legislador quis referir‑se a assembleias municipais) – no
sentido de atribuir às câmaras municipais competência para deliberar qual a
percentagem de participação no IRS que pretendem auferir, violará a competência
constitucionalmente reservada às assembleias municipais, como órgãos
deliberativos do município (artigos 239.º, n.º 1, e 251.º da CRP).
Mário José de Araújo Torres