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Processo n.º 965/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Comércio de Vila Nova de
Gaia, foi proferida decisão que recusou aplicação, com fundamento na sua
inconstitucionalidade orgânica, ao disposto no artigo 89°, n.º 1, alínea a) da
Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, na redacção que lhe foi conferida pelo
artigo 29º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março. Fundamentou-se assim
aquela decisão:
“Estipula o art° 102° do Código de Processo Civil que a incompetência absoluta
pode ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo.
Constituem casos de incompetência absoluta, entre outros, os de violação de
regras de competência em razão da matéria.
A competência deste Tribunal encontra-se delimitada pelo art.° 89.° da LOTJ.
Por força do disposto no art° 89°, n° 1 a) da Lei Orgânica dos Tribunais
Judiciais na redacção que lhe foi conferida pelo DL 5 3/04 de 18- 03, este
Tribunal apenas é competente para tramitar processos de insolvência nos casos em
que o devedor seja uma sociedade comercial ou a massa insolvente integre uma
empresa.
Em 30-06-2006 entrou em vigor o DL 76-A/2006 (art° 64° do referido Diploma),
que, no seu art° 29°, alterou a redacção do art° 89° da Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais, conferindo-lhe, no que aqui interessa e na alínea a) do n°
1, competência para “Os processos de insolvência”.
Ora, estipula o art° 165° da Constituição da República Portuguesa que é “da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo:
p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto
dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de
composição de conflitos;
Prevê o n° 2 do mesmo preceito que “As leis de autorização legislativa devem
definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização”.
No caso, o DL 76-A/2006, foi promulgado no uso de autorização legislativa
concedida pelo art° 95º da Lei 60-A/2005 de 30 de Dezembro.
A referida Lei, no seu art° 95°, por sua vez, prevê, sob a epígrafe Dissolução e
liquidação de entidades comerciais o seguinte: “1 - O Governo fica autorizado,
durante o ano de 2006, a alterar o regime da dissolução e liquidação de
entidades comerciais, designadamente das sociedades comerciais, das sociedades
civis sob forma comercial, das cooperativas e dos estabelecimentos individuais
de responsabilidade limitada, através da aprovação de um regime de dissolução e
liquidação por via administrativa aplicável às referidas entidades. 2 - O
sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número anterior são
os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para que
possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de um
procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior,
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.
Donde, dúvidas não há que a alteração da alínea a) do art° 89° da Lei Orgânica
dos Tribunais Judiciais não foi autorizada por tal Lei (sequer se relaciona com
a matéria que a mesma visa regular) pelo que, sendo tal matéria da competência
da Assembleia da Assembleia da República e não estando o Governo autorizado a
legislar nessa matéria, é inconstitucional a alteração em apreço, em razão
orgânica.
Como tal, não se aplica a redacção em causa antes se repristinando a anterior.
Ora, os Requeridos nos presentes autos são pessoas singulares e não é referido
na petição inicial que a massa insolvente integre uma empresa.
A referida Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais prevê também os tribunais de
competência genérica, aos quais compete residualmente, para além do mais,
preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro
tribunal (art.° 77º, n.° 1, al. a)).
A competência em razão da matéria para preparar e julgar a presente acção, tem
de caber, pois, ao tribunal de comarca.
Nestes termos, julgo este Tribunal incompetente em razão da matéria para a
presente acção e, em consequência, absolvo os Requeridos da instância [...].”
2. É desta decisão que vem interposto pelo Representante do Ministério Público
junto daquele Tribunal, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70º da LTC,
o presente recurso para apreciação da conformidade da “norma da alínea a) do n.°
1 do artigo 89.° da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOTJ), na redacção dada pelo
artigo 29º do DL n.° 76-A/2006. de 29 de Março. com a norma do artigo 165°. n.°
1. alínea p) da Constituição”.
3. Já neste Tribunal foi o Ministério Público, ora recorrente, notificado para
alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – A norma constante do artigo 89º, nº 1, alínea a) da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na versão emergente do Decreto-Lei nº
76-A/2006, de 29 de Março, ao ampliar a competência material dos tribunais de
comércio, de modo a abranger a preparação e julgamento de todos os ‘processos de
insolvência’, independentemente da natureza do devedor e da massa insolvente
configura-se como inovatória face ao regime legal que a precedia, resultante do
diploma que aprovou o Código de Insolvência – tendo, deste modo, ampliado a
competência material dos tribunais de comércio relativamente à dos tribunais
comuns.
2 – Na verdade, no regime emergente do citado Decreto-Lei nº 53/04 – e em
estrita consonância com a respectiva lei de autorização legislativa – a Lei nº
39/03, de 22 de Agosto – a competência material dos tribunais de comércio apenas
abrangia os processos de insolvência em que o devedor fosse uma sociedade
comercial ou a massa insolvente integrasse uma empresa.
3 – Tal inovação legislativa carece de credencial parlamentar bastante, já que o
artigo 95º da Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro, apenas autoriza o Governo a
legislar sobre o tema da desjudicialização dos processos de liquidação e
dissolução de entidades comerciais – matéria perfeitamente diversa e autónoma da
que se reporta à repartição de competências entre tribunais de comércio e
tribunais comuns para o processamento da insolvência
4 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica
da norma desaplicada na decisão recorrida.”
Cumpre decidir.
II. Fundamentação.
4. Na sequência da Lei nº 39/2003, de 22 de Agosto, foi publicado o Decreto-Lei
n.º 53/2004, de 18 de Março, cujo artigo 8º alterou a redacção da alínea a) do
artigo 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais). De acordo com tal alteração, passou a ser conferida
aos tribunais de comércio competência para o processo de insolvência se o
devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
Por sua vez, em 30 de Dezembro de 2005, foi publicada a Lei nº 60-A/2005 (Lei do
Orçamento de Estado para 2006), a qual, no que ora releva, estatuiu no seu
artigo 95º:
Artigo 95.0
Dissolução e liquidação de entidades comerciais
1 - O Governo fica autorizado, durante o ano de 2006, a alterar o regime da
dissolução e liquidação de entidades comerciais, designadamente das sociedades
comerciais, das sociedades civis sob forma comercial, das cooperativas e dos
estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, através da aprovação
de um regime de dissolução e liquidação por via administrativa aplicável às
referidas entidades.
2 - O sentido e a extensão da autorização legislativa concedida no número
anterior são os seguintes:
a) Atribuição às conservatórias do registo das competências necessárias para
que possam proceder à dissolução e liquidação de entidades comerciais através de
um procedimento administrativo, em substituição do regime de dissolução e
liquidação judicial de entidades comerciais, sem prejuízo das excepções
previstas na alínea seguinte;
b) Estabelecimento das situações em que a dissolução e a liquidação judicial de
entidades comerciais pode ter lugar;
c) Aplicação imediata do regime de dissolução e liquidação de entidades
comerciais através de um procedimento administrativo aos processos judiciais de
dissolução e liquidação que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem
instaurados e pendentes em tribunal;
d) Regulação das condições e requisitos da remessa às conservatórias de registo
dos processos judiciais referidos na alínea anterior;
e) Determinação do tribunal competente para a impugnação judicial dos actos
praticados no âmbito do procedimento administrativo de dissolução e liquidação
de entidades comerciais.
Invocando o uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 95.º da Lei n.º
60-A/2005, de 30 de Dezembro, foi, em 29 de Março de 2006, publicado o
Decreto-Lei nº 76-A/2006, o qual, no seu artigo 29º, veio a estatuir:
Artigo 29.º
Alteração à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais
O artigo 89.° da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.º 101/99,
de 26 de Julho, pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de Dezembro, e 38/2003,
de 8 de Março, pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18 de Março, e pela Lei n.º 42/2005, de 29 de Agosto, passa a ter a
seguinte redacção:
“Artigo 89.º
[...]
1 - Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
[...]
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
[...]
2 – Compete ainda aos tribunais de comércio julgar:
a) [...]
b) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como
as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos
procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades
comerciais;
[...]”
A alteração de redacção da alínea a) do nº 1 do artigo 89º da Lei nº 3/99
produzida pela entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006 “ampliou” a
competência que os tribunais de comércio possuíam na vigência do Decreto-Lei nº
53/2004. Na verdade, enquanto anteriormente aqueles tribunais apenas eram
competentes para julgar os processos de insolvência em que o devedor fosse uma
sociedade comercial ou em que a massa insolvente integrasse uma empresa, na nova
versão, passaram a ser competentes, em geral, para os processos de insolvência,
aí se incluindo os respeitantes a pessoa singular e aqueles em que a massa
insolvente não integrasse uma empresa.
Perante uma tal situação, impõe-se saber se, por um lado, o Governo teria
competência para editar, sem autorização parlamentar, uma norma como a que
consta do artigo 29º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, e, por outro, em caso de
resposta negativa, se a autorização concedida pelo artigo 95º da Lei nº
60-A/2005 pode ser considerada como abrangendo a autorização porventura
necessária para uma tal edição.
5. Estas questões foram já objecto de acórdão no processo n.º 928/2006, onde o
Tribunal afirmou o seguinte:
“2.1. Como resulta evidente, a alteração de redacção introduzida na alínea a) do
nº 1 do artº 89º da Lei nº 3/89 pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006 consequenciou uma
«inovação» na competência material dos tribunais de comércio relativamente à que
detinham antes de se operar a vigência deste último diploma.
Ora, como tem este Tribunal sublinhado, é da reserva relativa de competência da
Assembleia da República [nos termos da alínea p) do nº 1 do artigo 165º da
Constituição na versão da Lei Fundamental decorrente desde a Lei Constitucional
nº 1/92, de 20 de Setembro, vigente à data do diploma em causa] a edição de
legislação sobre a competência material dos tribunais, onde se inclui, “para
além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e
a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais – … a
distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos
diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou
específica” (cfr., verbi gratia, os Acórdãos números 36/87, 356/89, 72/90,
271/92, 163/95, 198/95 e 268/97, publicados, respectivamente, no Diário da
República, I Série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e 2 de Abril de
1990, mesmo jornal oficial, II Série, de, 23 de Novembro de 1992, 8 de Junho de
1992, 22 de Junho de 1995 e 22 de Maio de 1997). Ou, como se referiu no Acórdão
nº 476/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “inclui-se na reserva
parlamentar a definição de toda a competência judiciária ratione materiae – ou
seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais
dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam
relações de supra-ordenação e de subordinação”.
Aqui chegados, e uma vez que o Decreto-Lei nº 76-A/2006 veio invocar o uso da
autorização legislativa concedido pelo artº 95º da Lei nº 60-A/2005, claramente
que, para a dilucidação no problema em apreço, se terá de enfrentar a questão de
saber se, ponderando o que se prescreve no nº 2 do artigo 165º da Lei
Fundamental, aquele normativo da Lei do Orçamento de Estado para 2006 (acima
transcrito) constituía credencial parlamentar bastante para habilitar o Governo
a emitir a norma ínsita no artº 29º do mencionado Decreto-Lei nº 76-A/2006.
Torna-se a todos os títulos claro que o sentido e extensão (que, como sabido é,
para se usarem as palavras de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da
República Portuguesa Anotada, Tomo II, 537, significam a concretização do
“objectivo e o critério da disciplina legislativa a estabelecer a condensação
dos princípios ou a orientação fundamental a seguir pelo decreto-lei”) da
autorização legislativa constante do aludido artº 95º e enunciados no seu nº 2,
não podem comportar um entendimento que conduza a considerar que nela foi
delineado, por entre o mais, um programa legislativo que implicasse a atribuição
de uma dada competência a uma sorte de tribunais (para o caso, afectando-a a
determinados de competência especializada).
Na verdade, aquele artigo, substancialmente, visou a introdução de um programa
legislativo que consubstanciasse uma real «desjudicialização» do regime de
dissolução e liquidação das entidades comerciais – a operar por via
administrativa –, e prevendo-se ainda uma forma de possibilitação da impugnação
das decisões tomadas por essa via, em passo algum se descortina se surpreende a
atribuição de competência a que acima se aludiu.
E, mesmo focando a alínea b) do nº 2 do citado artigo, torna-se patente que a
autorização para o editando diploma governamental estabelecer as situações em
que a dissolução e a liquidação judicial das entidades comerciais pode ter lugar
não pode comportar um sentido de onde se extraia qual a atribuição de
competência a uma dada espécie de tribunal, pois que o «estabelecimento das
situações» significa, inequivocamente, a definição dos casos e condicionalismos
em que aquelas entidades podem vir a ser liquidadas por via jurisdicional e não
a definição do órgão judicial que vai aferir deles.
Neste contexto, o normativo em apreço, ao ser editado pelo Governo a descoberto
de credencial parlamentar e tendo em conta a matéria que regula, enferma do
vício de inconstitucionalidade orgânica.”
É esta jurisprudência, integralmente aplicável ao presente caso, que agora aqui
se reitera.
III. Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do nº 1 do
artigo 165º da Constituição, a norma constante do artigo 29º do Decreto-Lei nº
76-A/2006, de 29 de Março, na parte em que veio conferir nova redacção à alínea
a) do nº 1 do artigo 89º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Sem custas, por a elas não haver lugar.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2006
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Artur Maurício