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Processo n.º 702/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), da decisão sumária de 11 de
Outubro de 2006, que decidiu não tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade por ele interposto e condená-lo em custas, com sete unidades
de conta de taxa de justiça. Tal decisão teve o seguinte teor:
«1. Em 18 de Janeiro de 2006, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão
decidindo, entre o mais, conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo
arguido A., alterando a medida das penas parciais que lhe haviam sido aplicadas,
“que passam, cada uma delas, a ser de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão,
e a pena única, que passa a ser de 4 (quatro) anos de prisão, e o valor da
indemnização arbitrada, que passa a ser de 25.000 € (vinte e cinco mil euros),
mantendo, em tudo o mais, a decisão recorrida.” (fl. 620 dos autos).
Deste acórdão recorreu A. para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso foi admitido por despacho do relator no Tribunal da Relação de Lisboa
de fl. 712 dos autos.
Na sua resposta, a Magistrada do Ministério Público junto da Relação de Lisboa
suscitou questão prévia relativa à inadmissibilidade do recurso, nos termos
seguintes:
«1. – O arguido foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 4 (quatro) anos de
prisão pela prática de dois crimes de abuso sexual de pessoa internada, nos
termos do disposto no art.º 166.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, do C. Penal.
A pena prevista no n.º 2 do citado artigo é de 1 a 8 anos de prisão.
Nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do C.P.Penal, “não é admissível
recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de 1.ª Instância, em processo por crime a que seja aplicável
pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de
infracções”.
2. – O Acórdão ora recorrido confirmou a condenação do arguido, em cúmulo
jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
3. – Ora,
“A irrecorribilidade para o STJ, prevista na alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º
do Código de Processo Penal, no caso de concurso de infracções, deve ser aferida
apenas tendo em conta a moldura penal referente a cada um dos crimes que o
integram” – vd. Ac. STJ de 07.12.2005, Proc. 3262, in http//www.dgsi.pt/jstj.
4. – Além disso, no caso concreto, o arguido, único recorrente, nunca poderá ver
agravada a pena (de 4 anos) em que foi condenado (art.º 409.º CPP).
Essa é a pena máxima aplicável, que coincide, por força da proibição da
reformatio in pejus, com a pena aplicada, estando presente o limite da al. f) do
n.º 1 do art.º 400.º do C.P.Penal – vide entre outros, Ac. S.T.J. de 12.06.2003
– proferido no Processo n.º 2295/03 – 5.ª Secção em
http://www.Pgdlisboa.pt/jurel/SEJ.
4.[5] – Por último será de ter presente que, no caso concreto, o Acórdão
recorrido confirmou parcialmente a decisão da 1.ª instância – no que concerne à
condenação –, situando-se a divergência apenas no quantum punitivo.
Neste caso, também há que o ter como abrangido na expressão da al. f) do n.º 1
do art.º 400.º do C.P.Penal – vd. Ac. STJ de 13.02.2003, de 13.02.2003, Processo
n.º 4667/02 – 5.ª Secção – in http://www. pgdlisboa/jurel/STJ.
Por todo o exposto, o Recurso deverá ser rejeitado, por inadmissibilidade do
mesmo. (…)»
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público junto do
tribunal a quo, em vista do processo, pronunciou-se no sentido de que
“Tendo presente o disposto nos artigos 400.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P. e
166.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do C.P., o recurso não é admissível, devendo
agora ser rejeitado – artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, ambos do C.P.P.”
Em resposta ao parecer transcrito, A. veio dizer:
«1.º Dispõe, de uma forma absolutamente clara e pacífica, a alínea f) do n.º 1
do art.º 400.º do Cód. de Proc. Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º
59/1998, de 25 de Agosto, que não é admissível recurso “de acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de
1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.”
2.º Assim sendo, perante uma leitura, ainda que meramente desatenta, do referido
normativo legal, não se vislumbra qualquer tipo de colhimento na tese defendida
pelo Ministério Público, quer junto do Tribunal da Relação de Lisboa quer junto
do Supremo Tribunal de Justiça, que ora se quer em crise,
3.º A qual, aliás, em momento algum foi, sequer, acompanhada pela Assistente.
4.º Certo é que inexistem nos presentes Autos quaisquer Acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelo Tribunal da Relação, que confirmassem qualquer
decisão de 1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de
prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
Senão vejamos:
5.º Conforme consta de fls. dos Autos, o ora Recorrente foi, oportunamente,
acusado pelo Ministério Público da prática de 3 (três) crimes de abuso de pessoa
incapaz de resistência, p.p. pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 165.° do Cód. Penal em
concurso aparente com 3 (três) crimes de abuso sexual de pessoa internada, p.p.
pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 166.º do Cód. Penal,
6.º Sendo certo que para cada crime de abuso de pessoa incapaz de resistência a
pena aplicável seria de 2 a 10 anos,
7.º E para cada crime de abuso sexual de pessoa internada a pena aplicável seria
de 1 a 8 anos.
8.º Assim sendo, e em face de todo o retro exposto, dúvidas não remanescem sobre
a eventual aplicabilidade de uma pena de prisão superior a 8 anos, mesmo em caso
de concurso de infracções.
9.º Ora, realizado o respectivo julgamento (em sede de Tribunal Colectivo) foi,
ao ora recorrente, efectivamente determinada pelo Douto Tribunal a sua
condenação pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de pessoa internada,
p.p. pela alínea c) do n.º 1 e pelo n.º 2, ambos do art.º 166.º do Cód. Penal,
numa pena de 5 anos de prisão para cada crime.
10.º Uma vez mais, conclui-se, com uma pena aplicável e não aplicada superior a
8 anos,
11.º Sendo, efectivamente, condenado no cúmulo jurídico numa pena única de 6
anos de prisão.
12.º Certo é que, o ora exponente, não concordando com tal decisão, interpôs o
competente recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
13.º Julgado o respectivo recurso foi, por este Tribunal, concedido provimento
parcial ao recurso, alterando a medida das penas parciais para 3 (três) anos e 6
(seis) meses de prisão, numa pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
14.º Analisado o respectivo conteúdo de tal acórdão, e não se conformando,
igualmente, com o respectivo teor, interpôs, o ora exponente, nos termos e para
os efeitos da alínea h) do n.º 1 do art.º 61.º, da alínea b) do n.º 1 do art.º
401.º, dos n.ºs 1 e 3 do art.º 411.º e do art.º 432.º, todos do Cód. de Proc.
Penal, o presente Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
15.º Sendo tal petitório, conforme fls. dos Autos, em 15 de Fevereiro de 2006,
admitido pelo ilustre Juiz Desembargador, com subida imediata e com efeitos
suspensivos.
16.° Em face do exposto, é inquestionável inexistir qualquer base de sustentação
para uma eventual rejeição do presente recurso, conforme o requerido pelo
ilustre magistrado do Ministério Público.
Mas mais:
17.º Conforme refere Maia Gonçalves in “Cód de Proc. Penal anotado. 2005”, a
alínea f), do supra citado art.º 400.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal,
referindo-se a pena aplicável e não a pena aplicada, manifestamente não alude à
pena que foi efectivamente aplicada, mas à moldura geral abstracta.
18.º Ora tal moldura, no caso vertente, é manifestamente superior a 8 anos de
prisão,
19.º Legitimando, também por aí, o presente recurso.
20.º Certo é que, sobre esta matéria, também a jurisprudência tem sido pacífica,
vide, a título meramente exemplificativo, Ac. do STJ de 14 de Fevereiro de 2002
produzida no Proc. 380/02-5.ª: SASTJ n.º 58,68, Ac. do STJ de 8 de Janeiro de
2003, lavrada no Proc. 4221/02-3.ª SASTJ n.º 67,65 e Ac. do STJ de 22/9/99, in
CJ, Ano VII-199-Tomo III, p. 154.
21.º Em conclusão, não assiste qualquer razão, factual ou jurídico, que assista
ao Parecer do ilustre Magistrado do Ministério Público, devendo ser mantida a
(boa) decisão proferida pelo Juiz Desembargador que admitiu o recurso interposto
pelo ora exponente.»
Por acórdão de 18 de Maio de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, em
conferência, rejeitar o recurso, pelos seguintes fundamentos:
«II. Está em causa a questão da inadmissibilidade do recurso interposto do
acórdão da Relação de Lisboa com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1,
alínea f), do Código de Processo Penal.
Nos termos deste preceito, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios
proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão da primeira
instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
O recorrente foi acusado pelo Ministério Público da prática de três crimes de
abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo
165.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, com prisão de 2 a 10 anos, em concurso
aparente com três crimes de abuso sexual de pessoa internada, previstos e
punidos pelo artigo 166.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma.
Na 1.ª instância, com base na factualidade provada, considerou-se que faltou o
elemento objectivo do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de oferecer
resistência, consistente na incapacidade da vítima em exprimir a sua vontade,
bem como o elemento subjectivo, traduzido no aproveitamento por parte do arguido
da situação de incapacidade do ofendido de opor resistência em função de um
motivo psíquico. Daí a conclusão de que o recorrente cometera dois crimes de
abuso sexual de pessoa internada, previstos e punidos no artigo 166.º, n.ºs 1,
alínea a), e 2, do Código Penal, com a prisão de 1 a 8 anos.
Só o arguido recorreu dessa decisão.
A Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, reduzindo as penas parcelares e
únicas aplicadas.
Não se controverte, para efeitos de se aferir da admissibilidade do recurso para
este Supremo Tribunal, que se deva atender às penas parcelares, e não à moldura
do concurso.
A questão consiste em saber se a circunstância de o recorrente ter sido acusado
da prática de três crimes puníveis com prisão de 2 a 10 anos deve sobrepor-se à
condenação pela prática de dois crimes puníveis com prisão de 1 a 8 anos.
A entender-se que se deve atender às penas correspondentes aos crimes imputados
na acusação, como pretende o recorrente, tratando-se de crimes puníveis com
prisão superior a 8 anos, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do
Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 432.º, alínea b), do mesmo
diploma, o acórdão da Relação seria recorrível.
Entendendo-se que se deve atender às penas correspondentes aos crimes pelos
quais o arguido foi condenado na 1.ª instância, como sustenta o Ministério
Público na Relação e neste Supremo Tribunal, porque o limite das mesmas não é
não superior a 8 anos, o acórdão será irrecorrível.
Temos para nós que com a condenação na 1.ª instância, sem que o Ministério
Público tenha dela recorrido, a imputação de crimes ao recorrente relevante para
efeitos processuais passou a ser por crimes puníveis com prisão de 1 a 8 anos.
Deve considerar-se que houve uma convolação da acusação, sem alteração do
objecto do processo, pelo que, a partir da condenação na 1.ª instância, os
direitos de defesa do arguido incidem sobre a nova qualificação jurídica dos
factos, mais favorável.
Como expende Damião da Cunha, em «O Caso Julgado Parcial», pág. 471, um modelo
de estrutura acusatória permite que o objecto do processo possa ser «reduzido»
por influência dos sujeitos processuais.
Para efeitos de recurso tudo se passa como se ab initio tivesse sido feita a
imputação pela prática dos crimes de abuso sexual de pessoa internada. Se assim
tivesse acontecido, não se levantavam dúvidas de que do acórdão da Relação não
havia recurso para este Supremo Tribunal. Tendo-se apurado, após a produção de
prova em audiência de julgamento, que os factos praticados integram outros
crimes que a constarem da acusação não consentiriam a interposição de recurso de
acórdão da 2.ª instância, deve aplicar-se a mesma solução.
Daí não resulta, como parece evidente, qualquer compressão inadmissível das
garantias de defesa do arguido, designadamente o direito ao recurso, consagradas
no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, pois o recurso para o Supremo estaria
também vedado se a acusação tivesse incidido sobre os factos que se vieram a
apurar.
A possibilidade de recurso tem de se aferir em função da pena aplicável em
abstracto no momento processualmente relevante. Deste modo, a referência no
artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, a «processo por
crime a que seja aplicável...» tem de se entender com o sentido de crime que no
momento releva para o efeito, olvidando realidades jurídicas ultrapassadas.
Em suma, é de considerar que a Relação confirmou urna decisão da 1.ª instância,
proferida em processo na altura por crimes puníveis com pena de prisão não
superior a 8 anos, numa situação de dupla conforme.
Consequentemente, do acórdão da mesma não cabe recurso para este Supremo
Tribunal.
Em situação similar assim se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de
27-01-2005, proc. n.º 43 16/04.
Deixa-se ainda consignado que a circunstância de ter havido uma redução de penas
não afasta a dupla conforme, pois trata-se de uma alteração in mellius. Neste
sentido v. acórdãos deste Supremo Tribunal de 30-10-2003, proc. n.º 2921/03, e
de 19-07-2005, proc. n.º 2643/05, entre outros.
O acórdão da Relação era pois irrecorrível.
A decisão que o admitiu não vincula este Tribunal – artigo 414.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal.
Por força do disposto no artigo 420.º, n.º 1, segunda parte, do Código de
Processo Penal, o recurso deve ser rejeitado.»
2. O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos:
«1 – Sendo, conforme resulta do art.º 277.°, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa (CRP), inconstitucionais todas as normas que infrinjam o disposto na
Constituição ou os princípios nela consagrados,
2 – E, competindo ao Tribunal Constitucional, conforme art.º 6.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, apreciar quer das inconstitucionalidades quer das
ilegalidades que, por via daquele normativo, sejam suscitadas,
3 – É, face à legitimidade do ora recorrente, conforme resulta do art.º 72.º,
n.º 1, b), da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional,
4 – O presente recurso interposto ao abrigo do estabelecido pela alínea b) do
n.º 1 do art.º 70.º da supra referida Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com
redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, do estatuído na alínea b) do n.º 1 e no n.º 4, ambos do art.º 280.º
da CRP e do n.º 2 do art.º 75.º da referida LOTC,
5 – Pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma estatuída na alínea
f) do n.º 1 do art.º 400.° do Cód. de Proc. Penal, conjugada com disposto no n.º
1 do art.º 20.º, do n.º 1 do art.º 32.º, do n.º 1 do art.º 202.º, todos da CRP,
no sentido em que foi interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça,
6 – Indeferindo o recurso oportunamente interposto pelo ora recorrente,
7 – E sustentando tal despacho com a invocação da limitação do direito ao
recurso e cita-se, “em função da pena aplicável em abstracto no momento
processualmente relevante.., olvidando realidades jurídicas ultrapassadas”.
8 – Ou seja, inequivocamente afirmando depender o direito ao recurso de qualquer
arguido não da moldura penal que lhe seria aplicável em abstracto no caso em que
em concreto vinha acusado,
9 – Mas antes da moldura penal correspondente à sentença que efectivamente lhe
veio a ser aplicada em sede de Tribunal de 1.ª Instância,
10 – Com tal interpretação, não apenas renegando o núcleo essencial das garantia
de defesa de qualquer arguido, constitucionalmente consagradas,
11 – Mas renegando, igualmente, jurisprudência pacífica do próprio Supremo
Tribunal de Justiça, sobre a mesma matéria (vd Ac STJ, de 22 Set. 99, in CJ, ano
7°-199, Tomo 3, pág. 154; Ac STJ, 14 Fev. 02, in Proc. n.º 380/02, da 5.ª Secção
e Ac STJ, de 8 Jan. 03, Proc. 4221/02, da 3.ª Secção),
12 – E recusando com o indeferimento, sequer apreciar.
13 – Recorde-se, resultar do AC do TC n.º 63/2002, de 6 de Fevereiro, constituir
levantamento de uma questão de inconstitucionalidade normativa, a invocação da
desconformidade com a lei fundamental de uma determinada interpretação normativa
conferida a certo preceito.
14 – Neste mesmo sentido veio também, e na perspectiva do recorrente bem, também
Fernando Amâncio Ferreira in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 5.ª ed.,
pág. 405.
15 – Ao interpretar, agora, em detrimento da sua própria jurisprudência, tal
normativo, no sentido de ser aferida a possibilidade de recurso em função da
pena aplicável em abstracto a “momento processualmente relevante”, viola os
princípios constitucionais supra invocados e o expressamente disposto no art.º
400.º, n.º 1, al. f), do Cód. Proc. Penal,
16 – Conforme, aliás, reitere-se, em tempo invocado pelo ora recorrente, quer em
sede de resposta ao douto parecer do Digno Procurador Gera Adjunto da Republica
junto do STJ, quer em sede de reclamação, aduzida junto do Juiz-Conselheiro
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por este nem sequer conhecida,
conforme claramente resulta dos despachos de fls. dos autos datados
respectivamente de 6 e 27 de Julho de 2006.
17 – Sem prescindir, resulta claramente dos despachos do Mui Ilustre Juiz
Presidente do STJ, ser entendimento do mesmo não decorrer do art.º 205.º da CRP
a obrigação de fundamentação das suas decisões ainda que nenhum deles integrasse
a noção de despacho de mero expediente, o que, não se concedendo,
18 – Determina seja apreciada a constitucionalidade de tal entendimento, que
originou, conforme facilmente resulta da análise daqueles, a interpretação de
tal normativo no sentido da omissão de fundamentação dos despachos,
19 – Contudo imposta quer pela invocada norma fundamental, quer em sua
consequência pelo princípio da legalidade processual.
20 – O ora recorrente é, quer nos termos do estatuído na alínea b) do n.º 1 do
art.º 72.º da LOTC, quer do estatuído no n.º 4 do art.º 280.º da CRP,
inequivocamente, parte legítima,
21 – Pelo que, em face do exposto deverá o presente recurso ser admitido e,
salvo o devido respeito, com efeito suspensivo e subida imediata nos termos do
art.º 78.º, n.º 4, da Lei Orgânica do TC, com as demais consequências legais.»
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por despacho de fl. 822
dos autos.
II. Fundamentos
3. O presente recurso foi admitido no tribunal a quo, mas tal decisão não
vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), e, entendendo‑se que não
pode dele tomar-se conhecimento, é de proferir decisão sumária nos termos do n.º
1 do artigo 78.º-A da referida Lei do Tribunal Constitucional.
Na verdade, constitui pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional a invocação pelo
recorrente, durante o processo, da questão de (in)constitucionalidade normativa
que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. O artigo 72.º, n.º 2,
da mesma Lei concretiza tal pressuposto, ao estabelecer que esse recurso só pode
ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade
de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade
de suscitar a questão de (in)constitucionalidade, este Tribunal tem considerado
admissível o recurso de constitucionalidade sem que o recorrente tenha efectuado
essa suscitação (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 232/94, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Agosto de 1994, e nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 27.º vol., p. 1119 e ss.).
Ora, o recorrente pretende a apreciação da inconstitucionalidade da norma
constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, “no
sentido em que foi interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça”
(ponto 5, parte final, do requerimento de recurso). Como este Tribunal tem
afirmado repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa
interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses
casos, o recorrente tem o ónus de indicar, de modo claro e perceptível, perante
o tribunal que proferiu a decisão recorrida, a exacta dimensão normativa do
preceito que entende não dever ser aplicada por ser incompatível com a
Constituição. Como se disse, entre muitos outros, no Acórdão n.º 269/94 (Diário
da República, II Série, de 18 de Junho de 1994, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 27.º vol., pp. 1165 e ss.), impõe-se que “ao suscitar-se a
inconstitucionalidade de uma norma, se identifique a mesma com precisão e
clareza”, já que “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é
fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que
tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama,
obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível,
identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma),
que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição”. Como
recentemente se reiterou no acórdão n.º 21/2006 (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), “identificar uma interpretação normativa é, no
mínimo, indicar com precisão o sentido dado à norma, para que o Tribunal, se
vier a julgar inconstitucional essa mesma norma – entendida nesse preciso
sentido –, possa enunciar, na decisão que proferir, de modo que todos os
operadores jurídicos disso fiquem cientes, qual a interpretação que não pode ser
adoptada, por ser incompatível com a Constituição”.
Compulsados os autos, verifica-se, porém, que o recorrente não suscitou, perante
o tribunal a quo, a questão da inconstitucionalidade da norma que pretende ver
apreciada pelo Tribunal Constitucional. Na verdade, o recorrente, nas alegações
produzidas junto do Supremo Tribunal de Justiça (o tribunal ora recorrido),
limitou-se a afirmar, a fls. 681 e 682, o seguinte:
«1.º Verdade incontestável é a da garantia constitucional de acesso aos
tribunais na defesa dos direitos, conforme o legalmente estatuído no art.º 20.º,
n.º 1, da Const. da Rep. Port.,
2.º Sendo, em consequência, assegurada a possibilidade a todos os cidadãos de
solicitarem a intervenção de um tribunal superior, no sentido de obter decisão
sobre toda e qualquer questão juridicamente relevante que permita a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos, reprimindo a violação da legalidade
democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos ou privados,
conforme, aliás, disposto no art.º 202.º, n.º 2, da referida Lei Fundamental.
3.º Por essa razão as decisões judiciais não são, uma vez proferidas,
necessariamente irrevogáveis,
4.º Tendo, precisamente, a referida Constituição, consagrado, entre as garantias
de defesa do arguido, o direito ao recurso, nos termos do seu n.º 1 do art.º
32.º.
5.º Assim sendo, de tal acto que constitui o único meio previsto na legislação
para obter a correcção dos vícios substanciais das decisões judiciais,
6.º Pretende, o ora recorrente, pelo presente texto, fazer uso,
7.º Sendo, inegável, a sua legitimidade em interpor o presente recurso. (…)»
Tal tipo de considerações, em que não se identifica qualquer norma, dimensão ou
interpretação normativa, que se reputa inconstitucional, é insuficiente para se
poder considerar suscitada, de forma clara e perceptível, uma
inconstitucionalidade normativa. Designadamente, não pode considerar‑se
suficiente para dar como cumprido o ónus de suscitar a questão de
(in)constitucionalidade a invocação por parte do recorrente de um conjunto de
preceitos constitucionais, que bem poderiam igualmente referir-se à decisão a
tomar, e não a qualquer norma ou decisão normativa.
A verdade é que apenas no requerimento do recurso de constitucionalidade o
recorrente veio a imputar a uma determinada interpretação da alínea f) do n.º 1
do artigo 400.º do Código de Processo Penal, a violação dos preceitos
constitucionais do n.º 1 do artigo 20.º, do n.º 1 do artigo 32.º e do n.º 1 do
artigo 202.º, todos da Constituição – o que é manifestamente extemporâneo,
atendendo ao disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional e ao artigo 72.º, n.º 2, da mesma Lei, já referidos, cujo sentido
é o de exigir a suscitação da questão de constitucionalidade “durante o
processo”, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo. E
o recorrente teve, aliás, oportunidade processual de suscitar a questão de
(in)constitucionalidade em momento atempado – concretamente, na resposta ao
parecer apresentado pela Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a
quo,
Não o tendo feito, não pode considerar-se preenchido um dos pressupostos
processuais do presente recurso – a invocação da questão de
(in)constitucionalidade normativa durante o processo – e, consequentemente, não
pode do mesmo tomar-se conhecimento.»
2. Diz-se na reclamação apresentada:
«1.º Oportunamente veio o ora reclamante interpor o competente recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do estabelecido pela alínea b) do n.º 1 do
70.º da supra referida Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada
pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, e Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, do
estatuído na alínea b) do n.º 1 e no n.º 4, ambos do art.º 280.º da CRP e do n.º
2 do art.º 75.º da referida LOTC,
2.º Pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma estatuída na alínea
f) do n.º 1 do art.º 400.° do Cód. de Proc. Penal, conjugada com o disposto no
n.º 1 do art.º 20.º, do n.º 1 do art.º 32.º, do n.º 1 do art.º 202.º, todos da
CRP, no sentido em que foi interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal
Justiça,
3.º Indeferindo o Recurso oportunamente interposto pelo ora Recorrente,
4.º E sustentando tal Despacho com a invocação da limitação do direito ao
recurso e cita-se, “em função da pena aplicável em abstracto no momento
processualmente relevante… olvidando realidades jurídicas ultrapassadas”.
5.º Ou seja, inequivocamente afirmando depender o direito ao recurso de qualquer
arguido não da moldura penal que lhe seria aplicável em abstracto no caso em que
em concreto vinha acusado,
6.º Mas antes da moldura penal correspondente à sentença que efectivamente lhe
veio a ser aplicada em sede de Tribunal de 1.ª Instância,
7.º Com tal interpretação, não apenas renegando o núcleo essencial das garantias
de defesa de qualquer arguido, constitucionalmente consagradas,
8.º Mas, renegando, igualmente, jurisprudência pacífica do próprio Supremo
Tribunal de Justiça, sobre a mesma matéria (vd Ac STJ de 22 Set. 99, in CJ, ano
7.º-199, tomo 3, pg 154,; Ac STJ 14 Fev 02, in Proc. n.º 380/02 da 5.ª Secção e
Ac STJ 8 Jan 03, Proc 4221/02 da 3.ª Secção),
9.º E recusando, com o indeferimento, sequer apreciar.
10.º Recorde-se resultar do Ac. do TC n.º 63/2002, de 6 de Fevereiro, constituir
levantamento de uma questão de inconstitucionalidade normativa a invocação da
desconformidade com a lei fundamental de uma determinada interpretação normativa
conferida a certo preceito.
11.º Neste mesmo sentido veio também, e na perspectiva do recorrente bem,
Fernando Amâncio Ferreira in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 5.ª ed.,
pág. 405.
12.º Ao interpretar, em detrimento da sua própria jurisprudência, tal normativo,
no sentido de ser aferida a possibilidade de recurso em função da pena aplicável
em abstracto a “momento processualmente relevante”, violou, o Douto Tribunal, os
princípios constitucionais supra invocados e o expressamente disposto no art.º
400.º, n.º 1, al. f), do Cód Proc. Penal.
13.º Esta foi, sinteticamente, a sustentação do requerimento de recurso
oportunamente efectuado.
14.º Em face do mesmo veio o Douto Juiz Conselheiro Relator do Tribunal
Constitucional, no Douto Despacho que ora se quer em crise, proferida nos termos
do estatuído no n.º 1 do art.º 78.º-A da LTC, decidir não tomar conhecimento do
recurso por, no presente processo, não haver sido invocada a questão da
inconstitucionalidade normativa que pretende ser, agora, apreciada pelo Tribunal
Constitucional.
15.º Alegou que, na referida Decisão que ora se quer em crise, tinha o
recorrente o ónus de indicar de modo claro e perceptível perante o Tribunal que
proferiu a decisão recorrida a exacta dimensão normativa do preceito que entende
não dever ser aplicada por ser incompatível com a Constituição.
16.º Ora, compulsados os autos, no entendimento do Douto Juiz Conselheiro
Relator, verificou-se que o recorrente não suscitou perante o Tribunal a quo a
questão da inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada pelo
Tribunal Constitucional.
17.º Ora com esse fundamento foi decidido, pelo referido Juiz Conselheiro
Relator, o não conhecimento do presente recurso.
18.º Ora, salvo o devido respeito, não tem, o ilustre Juiz Conselheiro, razão.
19.º Conforme é consabido, é inquestionável que não basta invocar-se a
inconstitucionalidade ou a ilegalidade de uma norma para ser admissível recurso
de uma sentença judicial para o Tribunal Constitucional,
20.º Sendo o respectivo recurso admitido nos casos expressamente mencionados no
artigo 280.º da C.R.P., preceito que contempla os requisitos para uma válida
recorribilidade para o Tribunal Constitucional, com vista à fiscalização da
constitucionalidade.
21.º Ora um requisito para uma válida recorribilidade encontra-se previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da C.R.P., nos termos do qual cabe recurso
para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, o qual no
entendimento do digno Juiz Relator não terá sido cumprido pelo ora exponente.
22.º A ratio desta disposição encontra-se na restrição que ela opera nos
recursos para o Tribunal Constitucional, ou seja, a norma em causa há-de ter
sido suscitada durante o processo.
23.º Deste modo, as partes têm o duplo ónus de, por um lado, especificar as
normas cuja apreciação se pretende e, por outro, de precisar as normas
constitucionais violadas.
24.º Acresce, ainda, o facto de não se poder invocar a inconstitucionalidade
posteriormente à decisão ou fundamentação do juiz.
25.º Em sede de legitimidade para interpor o recurso para o Tribunal
Constitucional, deverá atender-se ao disposto no n.º 4 do mesmo artigo 280.º,
que prevê atribuição exclusiva da legitimidade activa à parte que haja suscitado
a questão de inconstitucionalidade, quando se trate de decisão [que] haja
aplicado norma julgada inconstitucional, pelo que, nesta matéria, nada obsta à
viabilidade de apreciação do presente recurso.
26.º Certo é que o recurso para o Tribunal Constitucional deverá ser apresentado
mediante requerimento, no qual deverá indicar-se qual o fundamento do recurso
(ou seja, a alínea do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
ao abrigo da qual o recurso é interposto) qual a norma cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie, o que o
ora exponente fez.
27.º Tratando-se de recurso de decisão judicial que tenha aplicado norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, deve ainda constar
do requerimento a norma ou princípio constitucional que se considera violado,
bem como a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade ou ilegalidade.
28.º Ora é inquestionável que, com o presente recurso, pretende-se ver apreciada
a constitucionalidade da norma estatuída na alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do
Cód. de Proc. Penal, conjugada com o disposto no n.º 1 do art.º 20.º, do n.º 1
do art.º 32.º, do n.º 1 do art.º 202.º, todos da CRP, no sentido em que foi
interpretada e aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
29.º Tal questão, ao invés do que refere o Exmo Juiz Conselheiro Relator, foi
invocada durante o processo em sede de reclamação, deduzida pelo ora exponente,
constante de fls. dos autos e datada de 5 de Junho de 2006.
30.º Em tal petitório, designadamente nos art.ºs 11.º, 12.º, 29.º, 30.º, 33.º,
34.º, 35.º, 39.º e 40.º, foi focada a questão em apreço.
31.º Assim sendo, é inquestionável o lapso que incorre a Douta decisão que ora
se quer em crise.
Mas mais:
32.º Conforme é inquestionável, mesmo nas hipóteses em que uma das partes
invocou a inconstitucionalidade sem especificar a norma, o Juiz não tem de
rejeitar a pretensão e declarar-se incompetente, pois está habilitado a
averiguar qual a norma que possa ter sido violada,
33.º Aliás, o Juiz nem tem, sequer, de se confinar à norma constitucional
invocada como parâmetro, podendo julgar à luz de outra norma constitucional que
tenha por mais adequada ao caso, neste sentido vide Jorge Miranda in “Manual de
Direito Constitucional”, tomo VI, pág. 211,
34.º Uma vez que este tipo de recurso, como é o caso do ora interposto pelo ora
recorrente, e cujos fundamentos constam de fls. dos autos, tem por base um
direito e uma natureza análoga à dos próprios direitos, liberdades e garantias.
35.º Porém, conforme refere Jorge Miranda in obra supra cit., o Tribunal
Constitucional só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão
recorrida tenha aplicado,
36.º Pode, todavia, fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios
constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada,
37.º Assim como pode dar à norma infraconstitucional um sentido diferente do que
lhe foi dado pelo tribunal recorrido e chegar, mesmo, a uma interpretação
conforme com a Constituição que depois se impõe àquele.
38.º Por outro lado, nada impede o Tribunal Constitucional de conhecer de
incidentes conexos com a questão assim definida que afectem a marcha normal do
recurso, de acordo com princípio geral estatuído no n.º 1 do art.º 96.º do Cód.
de Proc. Civil.
39.º Contudo, é de realçar que o recurso em questão não abrange a questão
principal discutida no Tribunal a quo, sendo restrito à questão de
inconstitucionalidade,
40.º Sem prescindir, o recurso em apreço impõe a exaustão dos recursos
ordinários, o que ocorreu no caso vertente.
41.º Aliás foi precisamente essa “exaustão” que conduziu à interposição do
presente recurso por haver sido recusado pelo Supremo Tribunal de Justiça o
conhecimento do recurso de acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
42.º Ora, sem prejuízo do retro exposto, e conforme refere Jorge Miranda in obra
supra cit, pode, contudo, suceder que o interessado não disponha de oportunidade
processual de arguir a inconstitucionalidade, por não poder ou não lhe ser
exigível prever a aplicação da norma.
43.º Em tais casos o Tribunal Constitucional tem admitido o recurso, dispensando
o recorrente do ónus da suscitação prévia.
44.º Neste sentido vide Jorge Miranda, in obra supra cit., pág. 223.
45.º No mesmo sentido vide o ilustre Juiz Conselheiro Guilherme da Fonseca e a
ilustre Assessora Inês Domingos in “Breviário de Direito Processual
Constitucional”, pág. 49.
46.º Com efeito, tratando-se de admissibilidade de recurso, tendo a questão de
inconstitucionalidade sido suscitada após a prolação da decisão de indeferimento
proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, é inquestionavelmente a reclamação
um meio idóneo e atempado para suscitar a questão (Vide a este respeito Acórdãos
n.ºs 206/86, 3 66/96 e 674/99, todos do Tribunal Constitucional).
47.º No caso vertente a inconstitucionalidade apenas ocorreu com o despacho de
não conhecimento de recurso proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
48.º Foi, precisamente, esse despacho que, no entendimento do ora reclamante,
colocou em causa quer a norma estatuída na alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do
Cód. de Proc. Penal, quer o disposto no n.º 1 do art.º 20.º, do n.º 1 do art.º
32.º e do n.º 1 do 202.º, todos da CRP.
49.º Ora, assim sendo, nos casos em que a suscitação da questão de
inconstitucionalidade após a decisão recorrida ainda satisfaz os pressupostos do
70.º, n.º 1, b), da LOTC, a impugnação da norma deve ser feita no momento mais
próximo daquele momento em que emergiu a questão de constitucionalidade
50.º Que, por via de regra, surge com o requerimento de interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional.
51.º Neste sentido vide Ac. n.º 461/91 do Tribunal Constitucional.
52.º Recorde-se que, nestes casos, o Tribunal tem entendido que não era exigível
ao recorrente o ónus de prever antecipadamente a decisão do órgão ora recorrido.
Em Conclusão:
53.º O presente Recurso tem por base o despacho exarado a fls. dos autos pelo
Supremo Tribunal de Justiça, no qual foi decidido não tomar conhecimento do
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
54.º Discordando o requerente, em consequência, da interpretação dada pelo
Supremo Tribunal de Justiça ao estatuído na alínea f) do n.º 1 do art.º 400.º do
Cód. de Proc. Penal.
55.º Foi após a prolação da referida decisão que a colocação da “bondade”
constitucional da mesma se colocou,
56.º Legitimadora da interposição de recurso nos termos do art.º 70.º da LOTC
para o Tribunal Constitucional.
57.º Assim sendo, o momento oportuno para a sua alegação era precisamente o do
referido requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
58.º O que, o ora exponente, fez, atendendo à gravosidade do ocorrido
consubstanciador da violação dos seus mais básicos direitos constitucionais.
59.º Sem prescindir, e por uma questão de mero cuidado, após a prolação da
decisão geradora do presente recurso, em sede de reclamação, invocou e
identificou os normativos em apreço.
60.º Em conformidade com o retro exposto, e salvo o devido respeito, não tem
qualquer cabimento a invocação, no texto decisório que ora se quer em crise, das
alegações de recurso do ora exponente produzidas junto do Supremo Tribunal de
Justiça,
61.º Uma vez que a questão da constitucionalidade da norma que pretende, o ora
exponente, ver apreciada pelo Douto Tribunal apenas ocorreu em fase posterior,
62.º Com a prolação de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que
determinou o não conhecimento do recurso de acórdão proferido pelo Tribunal da
Relação.
63.º É aí que a questão temporal e factual objecto do presente recurso para o
Tribunal Constitucional se coloca.
64.º É sobre a admissibilidade do próprio recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça que a questão da constitucionalidade se colocou e coloca, o que,
obviamente, apenas poderá ocorrer em fase, claramente, posterior às das
alegações junto daquele Tribunal que acompanham a própria interposição de
recurso dada a própria natureza do processo em contraposição ao que ocorre no
processo civil,
65.º Enquadrando-se o presente pleito, e sem prejuízo do retro explanado, num
dos casos excepcionais em que deve ser admitido o recurso com dispensa do ónus
da suscitação prévia.
66.º Assim sendo, deverá ser deferido o presente requerimento e em consequência
ser ordenado pela Conferência o conhecimento do presente recurso com as demais
consequências legais.»
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
respondeu pela seguinte forma à reclamação:
«1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante – assenta em manifesto equívoco
sobre a natureza do recurso de fiscalização concreta e os ónus que a lei
justificadamente pôs a cargo do recorrente – em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso interposto.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4. Adianta-se que a presente reclamação não pode obter provimento, pois não
abala os fundamentos em que se baseou a decisão reclamada. Com efeito, e como se
afirmou na decisão reclamada, tratando-se do recurso previsto na alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que
se possa tomar conhecimento do recurso, que o recorrente haja suscitado, durante
o processo, de modo processualmente adequado, a questão de
(in)constitucionalidade perante o tribunal a quo. Se o recorrente apenas
questiona uma dada dimensão ou interpretação de uma norma, deve precisar o
sentido que pretende ver submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, de
modo a que, se tal norma vier a ser julgada inconstitucional, o Tribunal
Constitucional a possa enunciar na decisão e que o tribunal recorrido saiba qual
o sentido da norma que não pode ser aplicado por desconforme com a Constituição.
Tal necessidade de individualização do segmento ou de enunciação do sentido ou
interpretação normativos que o recorrente reputa inconstitucional é
particularmente evidente quando o preceito ao qual se imputa a
inconstitucionalidade, logo pela sua redacção, contém vários segmentos
normativos, ou se reveste de várias dimensões ou sentidos interpretativos,
susceptíveis de suscitar questões de constitucionalidade diversas.
Tudo isto resulta simplesmente do sentido e da função das exigências contidas no
artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional, como tem sido
esclarecido por uma jurisprudência firmemente estabelecida, e amplamente
conhecida, deste Tribunal – cfr., por exemplo, os arestos indicados no Acórdão
n.º 116/2002 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), como, por ex.,
Acórdão n.º 199/88 (in Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989),
onde se escreveu:
“[...] este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe
cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de
inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade
constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de
uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem
por violador da lei fundamental. (Ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
178/95 – publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 –,
521/95 e 1026/96, inéditos).”
É, pois, sobre o recorrente que incumbe o ónus de definir a norma ou dimensão
normativa cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, não sendo ao Tribunal
Constitucional que compete averiguar essa norma – como parece pretender o
recorrente, ao afirmar (confundindo a norma que é objecto de apreciação com a
norma que constitui parâmetro de constitucionalidade), no n.º 32.º da presente
reclamação, que “mesmo nas hipóteses em que uma das partes invocou a
inconstitucionalidade sem especificar a norma, o Juiz não tem de rejeitar a
pretensão e declarar-se incompetente, pois está habilitado a averiguar qual a
norma que possa ter sido violada”.
Na presente reclamação afirma-se também que, no caso vertente, “a
inconstitucionalidade apenas ocorreu com o despacho de não conhecimento de
recurso proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça”, tratando-se de um dos
“casos em que a suscitação da questão de inconstitucionalidade após a decisão
recorrida ainda satisfaz os pressupostos do 70.º, n.º 1, b), da LOTC”, “em que o
Tribunal tem entendido que não era exigível ao recorrente o ónus de prever
antecipadamente a decisão do órgão ora recorrido”.
O reclamante reconhece, pois, que a questão de (in)constitucionalidade foi
invocada “em sede de reclamação, deduzida pelo ora exponente, constante de fls.
dos autos e datada de 5 de Junho de 2006”. Mesmo então, verifica-se, porém, que
não foi preenchido o requisito de identificação da questão de modo que o
tribunal perante o qual ela é posta saiba que tem uma questão de
constitucionalidade de determinada norma para decidir, o que exige que tal se
faça de modo claro e perceptível, identificando a norma – ou um segmento ou
certa interpretação da mesma – que, no entender de quem suscita essa questão,
viola a Constituição.
Na verdade, o que o recorrente escreveu, para o que ora releva, na reclamação
para o Supremo Tribunal de Justiça a fls. 1 a 6 dos autos foi o seguinte:
“[…]
11.º
Ora conforme é absolutamente claro e pacífico, dispõe a alínea f) do n.º 1 do
art.º 400.º do Cód. de Proc. Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º
59/1998, de 25 de Agosto, que não é admissível recurso “de decisões
condenatórias proferidas, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de
1.ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não
superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.”
12.º
Assim sendo, perante uma leitura, ainda que meramente desatenta, do referido
normativo legal, não se vislumbra qualquer tipo de acolhimento da tese defendida
pelo Ministério Público, quer junto do Tribunal da Relação de Lisboa quer junto
do Supremo Tribunal de Justiça, que ora se querem em crise, uma vez que estamos
perante decisões diversas, não existindo a chamada “Dupla Conforme” (Doc. n.º 5
e 6).
[…]
26.º
Ora, julgado o respectivo recurso foi, por este Tribunal, concedido provimento
parcial ao recurso, alterando a medida das penas parciais para 3 (três) anos e 6
(seis) meses de prisão, numa pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
27.º
Analisado o respectivo conteúdo de tal acórdão, e não se conformando,
igualmente, com o respectivo teor, interpôs, o ora exponente, nos termos e para
os efeitos da alínea h) do n.º 1 do art. 61.º, da alínea b) do n.º 1 do art.
401.º, dos n.ºs 1 e 3 do art. 411.º e do art. 432.º, todos do Cód. de Proc.
Penal, o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
28.º
Sendo tal petitório, conforme fls. dos autos, em 15 de Fevereiro de 2006,
admitido pelo ilustre Juiz Desembargador, com subida imediata e com efeitos
suspensivos.
29.º
Em face do exposto, é inquestionável não existir qualquer base de sustentação
para uma eventual rejeição do presente recurso, conforme o requerido pelo
ilustre magistrado do Ministério Público e determinado pelo acórdão que se quer
em crise.
30.º
Conforme refere Maia Gonçalves in “Cód de Proc. Penal anotado. 2005”, a alínea
f) do supra citado art.º 400.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal, referindo‑se a
pena aplicável e não a pena aplicada, manifestamente não alude à pena que foi
efectivamente aplicada, mas à moldura geral abstracta.
31.º
Ora tal moldura, no caso dos autos, é manifestamente superior a oito anos de
prisão,
32.º
Legitimando, também por aí, o presente recurso.
33.º
Certo é que, sobre esta matéria, também a jurisprudência tem sido pacífica,
vide, a título meramente exemplificativo, Ac. do STJ de 14 de Fevereiro de 2002
produzida no Proc. 380/02-5.ª: SASTJ n.º 58,68, Ac. do STJ de 8 de Janeiro de
2003, lavrada no Proc. 4221/02-3.ª SASTJ n.º 67,65 e Ac. do STJ de 22/9/99, in
CJ, Ano VII-199-tomo III, p. 154.
34.º
Ora a sufragar-se o entendimento do acórdão em apreço, rejeitando-se o presente
recurso, colocar-se-ia em causa o estatuído no n.º 1 do art.º 20.º e 202.º ambos
da Const. da Rep. Port.
35.º
Ora um dos direitos de defesa do arguido é…o direito ao recurso, os termos do
estatuído no n.º 1 do art.º 32.º do referido diploma legal.
39.º
O entendimento do acórdão ora proferido, e contraditório aos supra invocados,
coloca em causa o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido (vide Ac
de 14de Julho de 2004, Proc. 1101/04-3.ª).
40.º
Em conclusão, e perante todo o acima aduzido, não assiste qualquer razão,
factual ou jurídico, que assista quer ao parecer do ilustre Magistrado do
Ministério Público, que ao acórdão que, na prática, o confirmou, devendo ser
mantida a (boa) decisão proferida pelo Juiz Desembargador que admitiu o recurso
interposto pelo ora exponente.”
Estas considerações, remetendo para o “entendimento do Acórdão ora proferido, e
contraditório aos supra invocados” (ou seja, a vários entendimentos, como,
aliás, resulta também da transcrição), não constituem, porém, modo
processualmente adequado de suscitar, de forma clara e perceptível, uma questão
de constitucionalidade de certa interpretação normativa perante o tribunal de
cuja decisão se recorre para o Tribunal Constitucional, por ter aplicado norma
arguida de inconstitucionalidade. Antes “impende sobre o recorrente o ónus de
equacionar correcta e perceptivelmente a questão, em termos de o tribunal
recorrido ficar a saber que tem essa questão, claramente equacionada, a
resolver. Ou seja, não lhe basta alegar uma inconstitucionalidade normativa,
mesmo que remetida para a norma ou princípio eventualmente ofendido,
competindo-lhe justificar minimamente a sua alegação: a suscitação de uma
questão de inconstitucionalidade não proporciona, por si só, a abertura da via
do recurso de constitucionalidade, implicando que, idónea e adequadamente, a
articule com um mínimo de suporte argumentativo” (Acórdão deste Tribunal n.º
273/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Mesmo, portanto, independentemente de saber se o recorrente dispôs de
oportunidade processual para levantar a questão de constitucionalidade antes de
proferida a decisão de que pretendeu recorrer, por se ter verificado uma
situação excepcional ou anómala que justifica essa dispensa – situação que,
diga-se, nem sequer se verificou no caso dos autos, dado que, como se disse na
decisão reclamada e o próprio recorrente reconhece nos pontos 29.º e 40.º da
reclamação de fls. 1 e segs. dos autos, teve oportunidade processual de suscitar
a questão de inconstitucionalidade na resposta ao parecer apresentado pela
Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo (fls. 748 e segs. dos
autos) –, por o recorrente não ter cumprido o ónus da suscitação de modo
processualmente adequado de uma questão de constitucionalidade normativa,
susceptível de servir de base a um recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade fundado no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional, não podia tomar-se conhecimento do presente recurso de
constitucionalidade. E a decisão sumária nesse sentido merece, pois, ser
confirmada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar o
recorrente em custas, com 20 ( vinte ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos