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Processo nº 1027/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, os Hospitais
da Universidade de Coimbra vêm reclamar, ao abrigo do previsto no artigo 76º, nº
4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), do despacho proferido naquele Tribunal, em 29 de Agosto de 2006, pelo
qual se decidiu não admitir o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. No processo comum singular nº 783/99.9TACBR do 1º Juízo Criminal do Tribunal
Judicial da Comarca de Coimbra, três arguidos, a quem foi imposta pena de multa
pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, foram
condenados solidariamente, juntamente com os Hospitais da Universidade de
Coimbra e A. – Companhia de Seguros, S. A, a pagarem aos demandantes a quantia
de 32.500,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos
pela vítima do crime.
Interposto recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra acordou em negar provimento
ao mesmo e confirmar a decisão recorrida, para o que agora releva, com os
seguintes fundamentos:
«Concordamos com o teor da douta sentença recorrida, quando nela se exarou o
seguinte:
“Temos por assente que a intervenção cirúrgica a que a ofendida se submeteu, na
qual foi efectuada a quadrantectomia, efectuada pelos demandados B. e C., assim
como o acompanhamento clínico anterior e posterior efectuada pela demandada D.
se inseriu na prestação de cuidados de saúde proporcionados pelos HUC e nos
quais aqueles demandados prestavam serviços. Os HUC são “hospitais públicos”,
que se reconduzem à noção de institutos públicos (…), integrados na
administração estadual indirecta. Como refere Sérvulo Correia (…), são
estabelecimentos públicos de saúde “todas as pessoas colectivas públicas que, no
seio do Serviço Nacional de Saúde, asseguram cuidados de saúde aos beneficiários
deste”
Sendo a justiça administrativa definida, em sentido estrito, por Vieira de
Andrade (…), como “conjunto institucional ordenado normativamente à resolução de
questões de direito administrativo, nascidas de relações
jurídico-administrativas externas, atribuídas à ordem judicial administrativa e
a julgar segundo um processo administrativo específico” e estando em causa, como
no caso vertente, questões relacionadas com a responsabilidade civil
extracontratual de pessoas colectivas públicas, no âmbito daquilo que o Prof.
Marcello Caetano definia como “função técnica do estado” (…) e por actos
funcionais praticados por servidores do Estado, afigura-se, em primeira linha, a
competência dos Tribunais Administrativos, nos termos definidos pelo demandado
excipiente.
Porém, no caso em apreço, não cuidamos da “culpa institucional”. Estriba-se o
pedido na responsabilidade criminal assacada aos médicos em causa – que são,
também, qualificáveis de funcionários – e deduzido por dependência do respectivo
processo criminal.
Os factos que se traduzem na prática de uma infracção penal e que são objecto do
processo penal servem de fundamento à responsabilidade criminal, despoletando as
diversas reacções penais. Estes factos, ao lesarem ou criarem uma situação de
perigo para bens jurídicos fundamentais da comunidade, não são encarados,
apenas, como pressupostos da responsabilidade penal, pois frequentes vezes
implicam a lesão de interesses susceptíveis de serem reparados patrimonialmente,
nos termos da lei civil.
Esta responsabilidade civil emergente da prática de um crime tem por causa de
pedir a própria infracção criminal, ou seja, os factos que são pressuposto da
responsabilidade penal.
Havendo, pois, no fundo, duas acções, uma penal e outra civil, criaram-se três
modelos teóricos que, do ponto de vista processual, têm por fim determinar qual
o modo como será possível fazer valer estes dois tipos de responsabilidade em
conexão:
- O sistema da identidade, também denominado por sistema da “confusão total” (…)
já ultrapassado;
- O sistema da absoluta independência, de carácter individualista, típico dos
ordenamentos anglo-saxónicos e
- O sistema da interdependência, preconizado pela nossa lei, e que permite uma
grande variedade de soluções concretas, mas que impõe a possibilidade ou a
obrigatoriedade de juntar a acção civil à penal, cabendo ao juiz penal decidir,
também, da acção civil. Presidem razões de economia processual e evita-se
contradição de julgados.”
E também concordamos quando expressamente se refere:
“Face ao Direito vigente e hodiernamente é inquestionável a autonomia de ambas
as responsabilidades. A indemnização arbitrada em processo penal tem natureza
civil. Neste sentido dispõe o art° 128° do Código Penal: “a indemnização de
perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”. Tal regulação
enquadra-se, assim, nas normas de direito civil, essencialmente nos arts° 483° e
segs. e 562° e segs. do Código Civil.
Decorre do art° 71° que a acção civil de indemnização fundada na prática de um
crime deve ser deduzida no respectivo processo penal. Consagra-se o princípio da
adesão cujo desrespeito poderá acarretar, inclusivamente, a renúncia à
prossecução criminal, conforme resulta do disposto no art.º 72° n.° 2 do Cód.
Proc. Penal.
No caso sub judice, fundando-se a dedução do pedido na responsabilidade criminal
dos médicos, é o citado preceito legal que impõe a dedução do pedido no próprio
processo penal. O processo penal é, por definição, suficiente, com capacidade
para acolher e decidir todas as questões relacionadas com a responsabilidade
criminal do indivíduo, sendo que os benefícios decorrentes dessa solução global
integrada protagonizada pelo princípio da adesão – possibilitando um menor
dispêndio de meios, uma concentração da produção de prova numa só sede e
evitando a contradição de julgados – são incomensuravelmente superiores ao apelo
da especialização quando as normas de direito público são aqui chamadas apenas
em segunda linha para definir, não a responsabilidade do funcionário, que
decorre da prática de um crime mas, apenas, como forma de enquadrar a
responsabilidade solidária do Estado apenas para efeitos de ser sujeito passivo
da obrigação de indemnizar.
A solução preconizada – a da prevalência do princípio da adesão em detrimento de
uma competência dos tribunais administrativos caso não concorresse a
responsabilidade criminal – não é inédita. Procurando soluções no direito
comparado temos o caso espanhol.
Também naquele país, por via da reforma operada na regulamentação administrativa
nos anos de 1998 a 2000, por via da Lei Reguladora da Jurisdição
Contencioso-Administrativa (…) se existir responsabilidade por parte da
Administração Pública, ainda que actuando em relações de Direito privado, é
competente exclusivamente a ordem contencioso-administrativa, resolvendo-se a
questão aplicando-se apenas as normas próprios definidoras da responsabilidade
patrimonial do Estado. Porém, à semelhança do que defendemos para o caso
português, “(...) a Ordem Penal tem “vis attractiva” sobre os restantes
ordenamentos (civil, social e contencioso administrativo) para conhecer da
responsabilidade civil se os factos são constitutivos de delito ou falta. Em
caso contrário, a Ordem contencioso-administrativa tem competência exclusiva
para conhecer dos pedidos por responsabilidade patrimonial dirigidas contra a
Administração. Finalmente, se os factos não são constitutivos de delito nem se
dirige reclamação contra a Administração é competente a ordem civil (...)” (…).
Concluindo, fundando-se o pedido na responsabilidade extracontratual derivada da
prática de um crime e dirigido, em primeira linha, contra os autores da prática
desse crime, pelo princípio da adesão e pelas decorrências deste acima
assinaladas, é este Tribunal competente sem prejuízo de o Estado, com fonte no
art.º 22° da CRP, ser solidariamente responsável.”
Então, que acrescentar a estes argumentos já constantes dos autos?
Diremos apenas o seguinte:
A reforma do contencioso administrativo entrada em vigor em 01.01.2004, alargou
o âmbito de competências dos Tribunais Administrativos, de modo a englobar não
só a responsabilidade por actos de gestão pública, mas também, por actos de
gestão privada, de estrita natureza juridico-civilista, desde que neles
intervenha uma entidade pública.
Assim, a responsabilidade por factos ilícitos puramente civil, viu-se arredada
dos Tribunais Judiciais, mau grado a sua natureza estritamente privada, quando
naqueles factos intervenha uma pessoa de Direito Público ( v. g. os HUC) para
ficar cometida aos Tribunais Administrativos e, assim, “desaparece a dicotomia
tradicional “gestão pública/gestão privada” como critério de repartição de
competência entre o foro administrativo e o foro comum” – Maria João Estorninho,
Justiça Administrativa, Setembro/Outubro 2002, pág. 5.
Quer dizer:
Se os Tribunais Administrativos passaram a ser competentes para apreciar algumas
questões de Direito Civil – como referimos – e se manteve inalterada a
competência do Tribunal Criminal para conhecer do ressarcimento de danos por
factos criminais nos termos do mesmo Direito Civil, então as competências deste
último foro abrangem agora, por força do referido Princípio da Adesão, um ponto
que fica cometido aos Tribunais Administrativos quando não conexionados com a
prática de um crime.
De qualquer modo, também o tribunal a quo seria o competente, em obediência ao
princípio Tempus regit actum, já que, à data em que o pedido de indemnização dos
assistentes foi deduzido, ainda não estava em vigor esta reforma do contencioso
administrativo, pelo que nunca poderiam os demandantes ficar prejudicados com
uma mudança de regime jurídico (v. g. com o recurso da prescrição do seu direito
de ser ressarcidos).
Consequentemente, não se mostram violadas quaisquer das normas indicadas pelo
recorrente, designadamente os art.°s 105°, n° 1, do C. P. Civil, ex vi do art.º
4° do C. P. Penal, 44º, n°1, do ETAF, art.º 37°, n° 2, al. f), do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 209°, 211º e 212°, todos da
C.R. Portuguesa.
E também o art.º 71°, do C. P. Penal, não impõe uma interpretação - como a
defendida pelo tribunal a quo -, que obrigue esse tribunal a não o aplicar com
fundamento em inconstitucionalidade por violação do art.º 204°, da C. R.
Portuguesa. É que, francamente, nenhuma violação do art.º 204° da C. R.
Portuguesa vislumbramos, com a existência (manutenção, certamente porque
querida, após a reforma do contencioso administrativo) do art.° 71° do C. P.
Penal.
Bem andou, pois, mais uma vez, o Tribunal a quo ao se julgar competente para
conhecer do pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes, e ao
indeferir a excepção da incompetência absoluta deduzida pelos HUC nestes autos
(e, naquela altura, também pela companhia de seguros A.).
Face ao exposto, improcedem as conclusões das motivações do recorrente HUC,
mantendo-se a douta decisão recorrida, por não merecer qualquer censura».
3. Os Hospitais da Universidade de Coimbra interpuseram recurso
desta decisão para o Tribunal Constitucional, requerendo a apreciação da
inconstitucionalidade da norma do artigo 71º do Código de Processo Penal, quando
interpretada e aplicada no sentido de permitir que uma matéria da competência da
ordem Jurisdicional Administrativo Fiscal seja deduzida e decidida num tribunal
judicial, por violação dos artigos 209º, 211º, 212º e 204º da Constituição da
República Portuguesa.
4. Por despacho de 29 de Agosto de 2006, o recurso não foi admitido, pelas
seguintes razões:
«Entendemos que o Recurso não é admissível.
Com efeito:
O que o Tribunal a quo decidiu – e esta Relação confirmou – foi a qualificação
da relação jurídica existente nos autos como sendo de Direito Privado (e não de
Direito Público Administrativo).
Sendo a relação jurídica de direito privado, os tribunais comuns são os
competentes para a dirimir no âmbito do art.º 71.º do C. P. Penal.
Por conseguinte, não se atribui aos tribunais comuns competência para decidir
questões jurídico-administrativas, como erroneamente se afirma.
Assim sendo – como é – não existe qualquer interpretação dissidente, no que
respeita ao art.º 71.º do C. P. Penal, quanto à competência do Tribunal
Criminal.
Consequentemente, e porque a qualificação jurídica de um acto não é matéria que
interesse ao foro da constitucionalidade, que cuida da fiscalização de normas e
de decisões judiciárias e da sua conformidade com a Constituição da República
Portuguesa, não pode ser admissível o recurso – art.º 211.º, 223.º e 227.º e
segs. da C. R. Portuguesa.
Termos em que decido não admitir o recurso que os Hospitais da Universidade de
Coimbra pretendiam interpor a fls. 2938 a 2939 dos autos».
5. É esta decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade que é agora
objecto de reclamação, sustentando o reclamante o seguinte:
«O Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu o Recurso para este Tribunal
afirmando que:
“O que o Tribunal a quo decidiu – e esta Relação confirmou – foi a qualificação
da Relação jurídica existente nos autos como sendo de Direito privado (e não de
Direito Público Administrativo).
Sendo a relação jurídica de direito privado, os tribunais comuns são os
competentes para dirimir no âmbito do artigo 71º C. P. Penal.
Por conseguinte, não se atribuiu aos tribunais comuns competência para decidir
questões jurídico-administrativas, como erroneamente se afirma.
(...)
Consequentemente, e porque a qualificação jurídica de um acto não é matéria que
interesse ao foro da constitucionalidade, que cuida da fiscalização de normas e
de decisões judiciárias e da sua conformidade com a constituição da República
Portuguesa, não pode ser admissível o recurso – art. 211. °, 223. ° e 277.º e
ss. Da C.R. Portuguesa.” (Vide despacho de 29-08-06 do Tribunal da Relação de
Coimbra a fls. 2968 e segs., o negrito é nosso).
Porém não é essa a realidade dos autos, como facilmente se verifica da leitura
do acórdão e se comprova pelas transcrições (da douta Sentença de 1 ª Instância
que o Acórdão do Tribunal da Relação confirmou) que se seguem:
«Temos por assente que a intervenção cirúrgica a que a ofendida se submeteu, na
qual foi efectuada a quadrantectomia, efectuada pelos demandados B. e C., assim
como o acompanhamento clínico anterior e posterior efectuada pela demandada D.
se inseriu na prestação de cuidados de saúde proporcionados pelos HUC e nos
quais aqueles demandados prestavam serviços. Os HUC são “hospitais públicos”,
que se reconduzem à noção de institutos públicos, integrados na administração
estadual indirecta. (...)
Sendo a justiça administrativa definida, em sentido estrito, por Vieira de
Andrade, como “conjunto institucional ordenado normativamente à resolução de
questões de direito administrativo, nascidas de relações
jurídico-administrativas externas, atribuídas à ordem judicial administrativa e
a julgar segundo um processo administrativo específico” e estando em causa, como
no caso vertente, questões relacionadas com a responsabilidade civil
extracontratual de pessoas colectivas públicas, no âmbito daquilo que o Prof.
Marcello Caetano definia como “função técnica do estado”, e por actos funcionais
praticados por servidores do Estado, afigura-se, em primeira linha, a
competência dos tribunais administrativos, nos termos definidos pelo demandado
excipiente.” (Fls. 101 e 102 da douta Sentença da 1ª instância, o sublinhado e o
negrito são nossos)
A fls. 105 e 106 pode ler-se:
«No caso sub judice, fundando-se a dedução do pedido na responsabilidade
criminal dos médicos, é o citado preceito legal [artigo 71° do Código de
Processo Penal] que impõe a dedução do pedido no próprio processo penal.
(...)
A solução preconizada – a da prevalência do princípio da adesão em detrimento de
uma competência dos tribunais administrativos caso não concorresse a
responsabilidade criminal – não é inédita.
(...)
Porém à semelhança do que defendemos para o caso português, “(...) a ordem penal
tem “vis atractiva” sobre os restantes ordenamentos (civil, social e contencioso
administrativo) para conhecer da responsabilidade civil se os factos são
constitutivos de delito ou falta. Em caso contrário, a Ordem
contencioso-administrativa tem competência exclusiva para conhecer dos pedidos
por responsabilidade patrimonial dirigidos contra a Administração.
(...)
Concluindo, fundando-se o pedido na responsabilidade extracontratual derivada da
prática de um crime e dirigido, em primeira linha, contra os autores da prática
desse crime, pelo princípio da adesão e pelas decorrências deste acima
assinaladas, é este tribunal competente sem prejuízo de o estado, com fonte no
art.° 22° da CRP, ser solidariamente responsável.» (sublinhado e negrito são
nossos).
Trechos estes e outros – da douta sentença do Tribunal a quo - que o Tribunal da
Relação de Coimbra transcreveu/reproduzindo no seu Acórdão, mais afirmando
concordar com o seu teor
(vide fls 98 a 102 do referido Acórdão).
Aliás a Relação de Coimbra não apresentou qualquer outro argumento acerca da
qualificação da relação jurídica como sendo jurídico-privada ou
jurídico-administrativo (e é esse o critério constitucionalmente erigido para
definir a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Sendo que, como se pode comprovar, a decisão do Tribunal de primeira instância –
que a Relação confirmou – aplicou o artigo 71. ° do Código de Processo Penal de
forma a considerar os Tribunais Judiciais competentes em razão da matéria para
decidirem de uma relação jurídico-administrativa com fundamento na existência de
uma identidade dos factos que servem de fundamento à responsabilidade criminal e
à responsabilidade civil.
E é esta norma - assim “mediatizada pela decisão recorrida” (conforme formula de
Gomes Canotilho) -, que se pretende ver declarada inconstitucional, pois, no
nosso entender, tal interpretação viola a distribuição constitucional de
competências entre os Tribunais Judiciais e os Tribunais Administrativos e
Fiscais constante dos artigos 209°, 211º, 212º e 204° da Constituição da
República Portuguesa (…).
Razão e fundamento esse da interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional com vista a ver apreciada a inconstitucionalidade da referida
norma na interpretação e aplicação que lhe foi dada.
Pelo que não se percebe a razão de não ter sido admitido e, muito menos, o
argumento (transcrito supra) em que se funda tal indeferimento.
Argumento com o qual se tenta tornear a questão jurídica da definição de
competências entre os Tribunais Judiciais e os Tribunais Administrativos (tão
brilhantemente exposta pelo Tribunal de primeira instância, apesar de não se ter
concordado com a solução apresentada) através de uma transmutação da mesma numa
“qualificação jurídica de um acto” – quando resulta abundantemente dos autos que
a relação jurídica presente no pedido de indemnização civil era
jurídico-administrativa e assim foi compreendida pela sentença confirmada pela
Relação de Coimbra – aparentemente com o único objectivo de, após esta
transformação, não ser já esta “matéria que interesse ao foro da
constitucionalidade, que cuida da fiscalização de normas e de decisões judiciais
e da sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa” (vide despacho
de não admissão de recurso, a fls. 2970, linha 20 a 26).
É, aliás, por se ter entendido e entender que é a distribuição constitucional de
competências entre os Tribunais Judiciais e os Tribunais Administrativos e
Fiscais e a interpretação do artigo 71° do C.P. Penal que está (e sempre esteve)
em causa – e que a mesma deve ser resolvida e não camuflada/encoberta/disfarçada
– que se interpôs recurso para o Tribunal Constitucional reclamando da decisão
de não admissão do mesmo».
6. Neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se
pronunciou pela forma seguinte:
«A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Na verdade, a argumentação da entidade reclamante confunde indevidamente os
planos substantivo e adjectivo – só este último tendo obviamente conexão com a
regra de competência afirmada pela norma que integra o objecto do recurso.
Pelo contrário, o plano substantivo conduz-nos de forma decisiva, à qualificação
da relação material controvertida, permitindo configurá-la como tendo natureza
“civil” ou “administrativa”. E, no caso, o acórdão recorrido realojou esta
qualificação em torno da aplicação da norma constante do art. 128.º do C. Penal
(cf. fls. 255): considera-se, deste modo, que “a indemnização de perdas e danos
emergentes de um crime é regulada pela lei civil”. “Tal regulação enquadra-se,
assim, nas normas do direito civil, essencialmente nos arts. 483.º e segs. e
562.º e segs. do Código Civil”.
Perante tal qualificação ou definição da natureza da relação material
controvertida, assente decisivamente no citado art. 128.º, é evidente que o
acórdão recorrido não interpretou e aplicou a norma processual do art. 71.º do
C.P.P. com o sentido que a entidade recorrente lhe atribui de cometer ao foro
criminal a apreciação de uma “relação jurídica administrativa”.
Bem pelo contrário, a aplicação de tal regra de competência teve como
pressuposto o entendimento de que, no caso dos autos, estava em causa uma “acção
civil de indemnização”, o que naturalmente deita por terra a interpretação
normativa delineada pela ora reclamante».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Requerida a apreciação da norma do artigo 71º do Código de Processo Penal
interpretada e aplicada no sentido de permitir que uma matéria da competência da
ordem Jurisdicional Administrativo Fiscal seja deduzida e decidida num tribunal
judicial, o Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu o recurso de
constitucionalidade interposto, considerando que a matéria em causa – a
“qualificação jurídica de um acto” e não, propriamente, a interpretação do
artigo 71º daquele Código – “não interessa ao foro da constitucionalidade, que
cuida da fiscalização de normas e de decisões judiciárias e da sua conformidade
com a Constituição da República Portuguesa”.
Por seu turno, o reclamante sustenta que aquele Tribunal da Relação aplicou o
artigo 71.º do Código de Processo Penal de forma a considerar os Tribunais
Judiciais competentes em razão da matéria para decidirem de uma relação
jurídico-administrativa com fundamento na existência de uma identidade dos
factos que servem de fundamento à responsabilidade criminal e à responsabilidade
civil.
Admitindo que foi requerida a apreciação da inconstitucionalidade de uma norma –
e as normas, diferentemente das decisões judiciais, podem constituir objecto do
recurso de constitucionalidade –, importa concluir se o tribunal recorrido a
interpretou e aplicou no sentido apontado pelo recorrente. Com efeito, um dos
requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
LTC é que a decisão recorrida tenha aplicado norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo, por só desta forma se poder reflectir
utilmente no processo a decisão da questão de constitucionalidade. Por outras
palavras, o recurso previsto naquela alínea só é admissível se o tribunal
recorrido tiver aplicado, como ratio decidendi, a norma cuja constitucionalidade
é questionada pelo recorrente.
No caso em apreço, como bem salienta o Ministério Público, o Tribunal da Relação
de Coimbra não interpretou e aplicou a norma processual do artigo 71º do Código
de Processo Penal com o sentido que a entidade recorrente lhe atribui de cometer
ao foro criminal a apreciação de uma “relação jurídico-administrativa”, pelo que
não se pode dar como verificado aquele requisito do recurso de
constitucionalidade interposto.
Do texto da decisão recorrida decorre antes que aquele artigo foi interpretado e
aplicado no sentido de os tribunais judiciais serem competentes para decidirem
de uma relação jurídico-civil:
«“Face ao Direito vigente e hodiernamente é inquestionável a autonomia de ambas
as responsabilidades. A indemnização arbitrada em processo penal tem natureza
civil. Neste sentido dispõe o art° 128° do Código Penal: “a indemnização de
perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”. Tal regulação
enquadra-se, assim, nas normas de direito civil, essencialmente nos arts° 483° e
segs. e 562° e segs. do Código Civil.
Decorre do art° 71° que a acção civil de indemnização fundada na prática de um
crime deve ser deduzida no respectivo processo penal» (sublinhado aditado).
É certo que no acórdão recorrido se afirma, remetendo para a sentença de 1ª
instância, que “afigura-se, em primeira linha, a competência dos Tribunais
Administrativos, nos termos definidos pelo demandado excipiente”. Mas a tal
afirmação segue-se de imediato outra, no sentido de que “porém, no caso em
apreço, não cuidamos da «culpa institucional»”. Mais se acrescentando que “as
normas de direito público são aqui chamadas apenas em segunda linha para
definir, não a responsabilidade do funcionário, que decorre da prática de um
crime mas, apenas, como forma de enquadrar a responsabilidade solidária do
Estado apenas para efeitos de ser sujeito passivo da obrigação de indemnizar”.
Importa, pois, concluir que o recurso não pode ser admitido.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2007
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício