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Processo nº 254/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Comarca de Oeiras, em
que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal de 14 de Dezembro de 2005.
2. Para o que agora releva, é o seguinte o teor desta decisão:
«4. Fundamentação de Direito.
4.1. A [O] arguida [arguido] vem acusada [acusado] da prática
da prática da infracção de falta de título de transporte válido em transportes
públicos, constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 108/78,
de 24 de Maio, o qual dispõe:
2 - Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa do montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;
b) 25% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cinquenta vezes o
mínimo cobrável no transporte utilizado, quando, não tendo ultrapassado a
paragem para que tinham bilhete válido, não tenham adquirido um bilhete
suplementar
4.2. A infracção prevenida no referido dispositivo reveste a
natureza de transgressão ou contravenção, regendo-se, ainda (ao menos do ponto
de vista substantivo) pelo C. Penal de 1886. Na verdade, o art.º 6.º do
Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o C. Penal vigente e
revogou o anterior, expressamente manteve o regime do C. Penal de 1886 no que às
contravenções concerne (…).
Sem outras considerações que, agora, se revelariam supérfluas,
sobre, nomeadamente, a natureza penal das transgressões e a própria liquidez
constitucional dessa realidade jurídica, actualmente, no ordenamento jurídico
português, mormente face ao universo do Direito das Contra-Ordenações
(constituindo as transgressões, sem dúvida, um corpo estranho no ordenamento
sancionatório português hodierno), importa, somente, assentar, que essa natureza
penal se mantém (…), e mais se mantém a definição que constava do vetusto Código
Penal de 1886, segundo o qual “considera-se contravenção o facto voluntário
punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância das
disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a
intenção maléfica” (art.º 3.º).
Isto posto cabe questionar se, na infracção em causa, se
estabelece uma pena (contravencional) fixa e, sendo assim, se tal é
constitucionalmente aceitável.
Quanto ao primeiro ponto, crê-se que a resposta deve ser
afirmativa. Com efeito, o preceito punitivo prevê duas penas fixas: a primeira,
consiste no preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma
multa do montante de 25% do preço do respectivo bilhete; a segunda, prevenida na
segunda parte da norma, redunda em cinquenta vezes o mínimo cobrável no
transporte utilizado, no caso de a multa, se calculada de acordo com o primeiro
critério, resultar em montante inferior a tal mínimo (é a hipótese que sucede na
esmagadora maioria, se não na totalidade, das situações).
Isto significa, portanto, que o julgador não tem qualquer
intervenção da determinação da pena concreta, em especial, adequando-a à culpa –
que pode ser, desde logo, dolosa ou negligente – e à própria situação
socio-económica do agente da infracção. Tal equivale, afigura-se, a concluir que
o normativo em apreço padece, irremediavelmente, de inconstitucionalidade por
violação dos princípio da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da
dignidade da pessoa humana (e, saliente-se, a adequação económico-financeira das
penas pecuniárias pode considerar-se um princípio geral do Direito Penal, em
sede de penas pecuniárias, com fundamento no próprio princípio constitucional da
dignidade da Pessoa Humana).
4.3. Como repetidamente tem sido afirmado pelo Tribunal
Constitucional (…) o Direito Penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se
sobre o homem como ser pessoal e livre, ancorado na dignidade da pessoa humana,
que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena
sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um
direito penal de culpa. E é - ou deve ser - um Direito Penal que só pode
intervir para a protecção de bens jurídicos com dignidade penal (ou, para
utilizar uma expressão hoje corrente, com ressonância ética), sendo que uma tal
danosidade social, capaz de justificar a imposição de uma punição, há-de ser
ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico.
O Direito Penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por
isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha se a
protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o
recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as
sanções criminais. A necessidade da pena - que, repete-se, há-de ser uma pena de
culpa - limita, pois, o âmbito de intervenção do Direito Penal, ou é mesmo o
critério decisivo dessa intervenção.
O legislador ordinário, além de um princípio de humanidade na
previsão das penas, que logo releva do princípio da dignidade da pessoa humana
(cf. art.ºs 25.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a
ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcional
idade.
4.4. É bem certo o Tribunal Constitucional, quando teve que
ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade,
sempre sublinhou que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos
crimes e no estabelecimento das penas correspondentes (…). E sublinhou, bem
assim, que, nessa matéria, só pode censurar-se, ratione constitutionis, as
decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições
excessivas: é que, no Estado de Direito, o legislador está vinculado por
concepções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de actuar
arbitrariamente ou de forma excessiva (…).
4.5. O que se disse acima – em apertada síntese – resulta,
entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do art.º 1.º, que baseia a
República na dignidade da pessoa humana; do art.º 18.º, n.º 2, que condiciona a
legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e
proporcionalidade das mesmas; do art.º 25.º, n.º 1, que sublinha a
inviolabilidade da integridade pessoal; e do art.º 30.º, n.º 1, que proíbe penas
ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter
perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
4.6 O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do
Direito Penal de um Estado de Direito, proíbe - já se disse - que se aplique
pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a medida da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e logo se
decanta da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (art.º 1.º
da Constituição) e, bem assim do direito de liberdade (art.º 27.º, n.º 1); No
dizer de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu “fundamento axiológico ao
princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais
essencial à ideia do Estado de Direito democrático”. (…)
Ora, um Direito Penal de culpa não é compatível com a
existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante
da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das
exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta
da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau e
intensidade de culpa do agente.
A previsão, pela Lei, de uma pena fixa também não permite que o
juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele; nem, enfim, à situação socio-económica do agente.
Ora, tal obriga a que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam.
4.7. Mas, o princípio da igualdade - que impõe se dê tratamento
igual a situações essencialmente iguais, e se trate diferentemente as que forem
diferentes - também vincula o juiz. A essência da aplicação do princípio da
igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos
e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que
significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem
de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de
ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso
de entender que tal se justifica. (…)
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz
se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção,
assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a
gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções
(nos três vectores essenciais: necessidade, adequação e
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o
princípio da culpa, o princípio da igualdade, e o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim para qualquer tipo de pena, maxime, pena de
prisão ou pena de multa.
4.8. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre situações
semelhantes (…).
Em todos as situações foi considerada inconstitucional a norma
constante da parte final do § único do art.º 67 ,o do Decreto n.º 44.623, de 10
de Outubro de 1962, enquanto sanciona com uma pena fixa (consistente no máximo
da pena prevista no art.º 64.º do mesmo Decreto) o crime agravado de pesca
ilegal em período de defeso.
Mas esta jurisprudência, até determinada altura, não foi
unívoca. Assim, por exemplo, dissentiu o Acórdão n.º 83/91 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, volume 18.º, pp. 493 e seguintes), o qual apreciou, justamente,
a norma referida.
Sublinhou-se nesse aresto que “não se nega, em tese geral, que
os princípios da igualdade e da proporcionalidade possam implicar o juízo de que
a cominação de penas criminais fixas quanto a certo crime por uma concreta norma
jurídica seja tida por materialmente inconstitucional”. Acrescentou-se que “não
se crê igualmente que destes princípios constitucionais tenha que decorrer
necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional
de todas as chamadas penas fixas”. Mais adiante, o aresto ponderou que, “no
domínio do direito penal económico ou do direito penal de defesa do ambiente e
da ecologia, pode aceitar-se, em casos pontuais e para certos tipos de
infracções, a cominação de penas fixas, ainda que o juiz possa sempre recorrer
aos meios gerais de suspensão da pena ou mesmo de dispensa da pena. Nessa
medida, só tendencialmente as penas serão fixas”.
Mais se transcreveu, a seguir, uma passagem de um estudo de
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (“Breves Considerações Sobre o Fundamento, o Sentido e
a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico”, in Direito Penal Económico,
CEJ, Coimbra, 1985, p. 40), na qual o Autor sustenta, em âmbitos determinados do
Direito Penal económico, em conformidade com a ideia de que a este direito não
só compete uma função de protecção de bens jurídicos, mas também de promoção de
valores económico-sociais no seio da comunidade, a possibilidade de o
legislador, legitimamente, proibir o juiz de impor uma pena inferior ao limite
mínimo ditado pela culpa, mas sem que essa proibição possa ir tão longe que
impeça a proporcionalidade entre a pena e a infracção, quando esta seja de
pequena gravidade, pois, de contrário, estaria a ultrapassar-se o limite máximo
permitido pela culpa, em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou
de intimidação o que seria, além do mais, duplamente inconstitucional por
irremissível violação do princípio da culpa, imposto pelos art.ºs 1.º, 13,º e
25,º, n.º 1, da Constituição; e inconstitucional, por violação do princípio da
proporcionalidade das sanções no direito penal económico, reconhecido sem
quaisquer
No dito aresto acrescentou-se: “Nesta linha de pensamento, não
se crê que possa afirmar-se [...] que a cominação desta pena fixa concreta,
quando surja uma circunstância agravante específica, viole intoleravelmente os
princípios da culpa ou da proporcionalidade das sanções à gravidade das
infracções. [...] Por um lado, não pode falar-se, no caso sub iudicio, de
violação do princípio da igualdade, na medida em que a norma desaplicada
considera manifestamente um grau de culpa que normalmente se verifica no comum
dos casos de pesca ilegal nocturnas nos períodos de defeso, sendo certo que
acentuado. Seja como for, tal norma (ou outras normas do diploma) não impede, de
forma absoluta, que o juiz adeqúe a sanção à gravidade da infracção, de harmonia
com os ditames da justiça distributiva.”
E mais adiante:
“No presente processo, e de forma decisiva, há-de considerar-se
[...] que “só em via de princípio”, ou seja, tendencialmente, se pode, ter por
fixa a cominação de penas prevista nesta legislação sobre fomento da
piscicultura e da defesa da pesca nos rios, já que “(...) nada obsta a que no
caso, desde que tal se justifique, se proceda à atenuação especial da pena
(artigos 73° e 74º do Código Penal) ou mesmo à dispensa da pena (artigo 75º do
mesmo Código). [...] Quer dizer, a norma sancionatória, devidamente interpretada
no contexto sistemático do Código Penal, não conduz a resultados arbitrários,
nem implica necessariamente uma igualdade de tratamento perante situações
diversas de agentes com acentuadas diferenças de grau de culpabilidade. Na
verdade, como se viu, não pode sustentar-se que a norma proíba de forma absoluta
que o juiz estabeleça uma diferenciação na aplicação de sanções quanto a
arguidos em situações materialmente diferentes, dando assim acolhimento à ideia
de diversificação, em detrimento de uma ideia de tratamento uniforme, encarada,
em princípio, pelo legislador.
A seguir, apreciando a norma à luz do princípio da
proporcionalidade, ponderou o Acórdão:
“Por outro lado, o estabelecimento de uma pena tendencialmente
fixa nestes casos não pode considerar-se que viole o princípio da
proporcionalidade, o qual postula, no Direito Penal, que a gravidade das sanções
deve ser proporcional à gravidade das infracções. A melhor interpretação da
norma desaplicada não acarreta um resultado que possa qualificar-se como
manifesta violação do princípio da proporcionalidade, visto que o juiz dispõe
sempre, como se viu, da possibilidade de recorrer a institutos de natureza geral
como o de atenuação especial da pena e o da dispensa de pena, evitando que se
atinjam, em concreto, resultados intoleráveis ou gravemente chocantes, “em
homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou de intimidação”, para se
utilizarem as expressões de Figueiredo Dias, no passo atrás transcrito. Acresce
que a pena cominada para o comum dos casos se afigura como razoavelmente
proporcionada ao conjunto de comportamentos recondutíveis a este específico tipo
criminal, no comum dos casos da vida, não tendo este Tribunal razões para
censurar a opção do legislador neste caso concreto.
Reafirma-se, assim, que tal pena tendencialmente fixa não
ofende o princípio da proporcionalidade da sanção à gravidade da infracção, isto
dando por adquirido que a eliminação do antigo artigo 88º, da Constituição na
segunda revisão constitucional, em 1989, não traduziu uma diferente valoração do
legislador constitucional sobre os princípios básicos do Direito Penal, em
especial do Direito Penal Económico [...].”
Por fim, olhando a norma então sub iudicio sob a perspectiva do
princípio da culpa, aditou-se:
“Por último, também para aqueles que sustentam que está
constitucionalmente consagrado o princípio da culpa em matéria penal, tão-pouco
se pode dizer que a cominação de penas fixas, com o sentido de tendencial
fixidez atrás exposto, possa conduzir a uma “irremissível violação do princípio
da culpa”, de novo se utilizando a expressão de Figueiredo Dias, atrás
transcrita. É que, já se viu, continua a reconhecer-se ao juiz uma apreciável
intervenção na adequação da sanção ao agente, em função dos resultados apurados
no julgamento, admitindo-se que seja determinada uma atenuação especial da pena
ou, até, a dispensa de pena. O juiz não está limitado a condenar ou a absolver o
arguido. No caso de ter de condenar, não tem necessariamente de lhe aplicar uma
sanção rigidamente fixa, como mero efeito da lei. [...] Se é verdade que, em
linha de princípio, se deve preferir um sistema de mobilidade das penas
cominadas para cada tipo criminal, entre um mínimo e um máximo fixados na lei,
de forma a que o juiz possa graduar a pena à gravidade da infracção e à
culpabilidade do agente, não se pode dizer que o estabelecimento de uma pena
tendencialmente fixa prive de todo em todo o juiz de levar em conta a
individualidade concreta do agente e as específicas circunstâncias de cada caso,
como atrás se viu Também aqui se pode dizer que não é violado o princípio da
culpa, dando como suposto que o mesmo tem consagração constitucional.
Tudo isto para concluir que não se mostram, assim, violados
pela norma em análise os princípios constitucionais de igualdade e de
proporcionalidade das sanções criminais.”
4.9. O Tribunal Constitucional retomou a doutrina deste Acórdão
n.º 83/91, aplicando-a no caso sobre que incidiu o acórdão n.º 441/93 (publicado
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 25.º, p. 643), estando em causa,
porém, já não uma sanção de natureza criminal, mas uma coima; o mesmo sucedendo
no Acórdão n.º 175/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume
36.º, pp. 103 e seguintes), confrontando-se com uma situação em que o limite
mínimo de uma coima passara a ser igual ao seu limite máximo (ou seja, em que a
coima passou a ser de montante fixo), embora neste último aresto, já se tenha
chamado a atenção “de a possibilidade de aplicação de uma sanção não variável
poder implicar uma frontal contradição com a vontade expressa do legislador no
artigo 30º da Lei n.º 30/89, onde se estabelecem os critérios para a graduação e
determinação, em concreto, dos montantes das coimas.”
No entanto, em resposta a tal doutrina seguiu-se o acórdão n.º
95/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002, o
qual, em seguida se transcreve para melhor elucidação :
«Pode dizer-se, em síntese, que o citado acórdão n.º 83/91
concluiu que a norma, que está sub iudicio nestes autos, não viola o princípio
da igualdade, nem o da proporcionalidade, nem o da culpa - e, por isso, não é
inconstitucional -, porque, não proibindo o juiz de lançar mão do instituto da
atenuação especial da pena ou, sendo caso disso, mesmo do da isenção de pena, o
que, ao cabo e ao resto, a norma em causa comina é uma pena tendencialmente
fixa. Não uma pena rigidamente fixa. Ora - pondera o aresto -, só este último
tipo de pena fixa a Constituição proíbe. Ou seja, ela só proíbe que a lei
preveja penas que, no caso de se provar que “o arguido agiu ilícita e
culposamente, isto é, que é imputável e que não se verifica nenhuma causa de
exclusão da ilicitude ou da culpabilidade”, o juiz tenha que aplicar
rigidamente, sem poder fazer outra coisa senão absolver ou condenar o arguido,
pois, “devendo condená-lo, terá de lhe aplicar a pena prevista na lei, sem
possibilidade de qualquer graduação”. A Constituição - sublinha o acórdão - não
proíbe as penas só tendencialmente fixas, ou seja, aquelas que o juiz, em
princípio, não pode graduar, mas em que pode “recorrer a institutos de carácter
geral, como os da atenuação especial da pena ou da dispensa da pena, para
adequar a sanção à personalidade do agente e às circunstâncias apuradas quanto à
infracção.
Pois bem: flui do que se disse atrás que a proibição
constitucional de penas fixas acarreta a ilegitimidade de todas as penas fixas:
mesmo daquelas a que o acórdão n.º 83/91 chama penas só tendencialmente fixas.
Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando
mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa
de pena, a que faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub
iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena
rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que
a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73°
do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias
com valor fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do
artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para - como se escreveu
no citado acórdão n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena - “dar
conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar
- à culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.º 202/2000:
Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma
em causa como prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o
princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade
das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das
infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das
necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial,
perante a perigosidade do agente).
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.º 202/2000:
A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas
na lei geral – de atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria
para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de
duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se
coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de
previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências
constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos
gerais.
A norma constante da parte final do § único do artigo 67º do
Decreto n.º 44.623, de10 de Outubro de 1962, aqui sub iudicio – ou seja: o
segmento dele que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º para o
crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter
lugar em zona de pesca reservada – é, pois, inconstitucional: ela viola os
princípios Constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade».
4.10. Toda esta doutrina, que se sufraga, é aplicável à
situação dos presentes autos. No caso em questão a Lei determina a aplicação de
um multa correspondente do preço do bilhete acrescido de uma multa do montante
de 25% do preço do respectivo bilhete; ou correspondente a 50 vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado. Em qualquer caso, trata-se sempre de uma multa
de valor fixo, que vem a ser aplicada em Tribunal, caso o arguido, oportuna e
voluntariamente não proceda ao pagamento da multa.
Embora a terminologia utilizada na norma constante do art.º
67.º, do Decreto 44.623 citado seja algo diferente, pois manda aplicar os
máximos das penas a partir de uma pena variável, a situação vem a ser e
idêntica. Cabe assim declarar em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade, nos termos do artigo 280.º, n.º1 alínea a), da CRP, a
inconstitucionalidade da, norma constante do artigo 3 ° n.° 2 alínea a) do
Decreto-Lei n° 108/78, de 24 de Maio, por violação dos princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
III. DECISÃO.
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos
art.ºs 1.º, 13.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da
Constituição, a norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei
n.º 108/78, de 24 de Maio, e em consequência,
B) Na não aplicação daquela norma, ABSOLVER o arguido A. da
transgressão de que vinha acusado».
3. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
«1 – É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade, a norma constante do artigo 3º., nº. 2, alínea b) do
Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de
multa de valor fixo, que o Tribunal terá sempre de aplicar em caso de
condenação.
2 – Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida
quanto à questão de inconstitucionalidade que é objecto de recurso».
4. Notificado para alegar, o recorrido concluiu pela manutenção da decisão
recorrida.
II. Fundamentação
1. O Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras recusou a aplicação da norma
constante do artigo 3º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 108/78, de 24 de
Maio, com fundamento na violação dos princípios constitucionais da culpa, da
igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1º, 13º, nº 1, 18º, nº
1, 25º, nº 1, e 30º, nº 1, da Constituição.
É a seguinte a redacção daquela disposição legal:
«Artigo 3º – 1 – (…)
2 – Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa de montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;
b) (…)».
2. A questão que é objecto deste recurso foi apreciada e decidida pelo Acórdão
do Tribunal Constitucional nº 579/2006 (Diário da República, II Série, de 3 de
Janeiro de 2006), onde se pode ler o seguinte:
«A norma sob apreciação estabelece uma sanção penal (uma multa) fixa no seu
valor, caso se verifique a situação descrita no tipo (utilização de transporte
público sem título válido). Trata‑se, deste modo, de uma infracção penal
(contravenção) à qual são aplicáveis os princípios que conformam o regime das
penas criminais.
O Tribunal Constitucional, em diversos arestos (cf. Acórdãos nºs 95/2001,
202/2000, 20/2002 e 124/2004, www.tribunalconstitucional.pt) decidiu julgar
inconstitucionais normas que consagrem penas fixas.
No mencionado Acórdão nº 124/2004, o Tribunal Constitucional julgou
inconstitucional com força obrigatória geral a norma da parte final do § único
do artigo 67º do Decreto nº 44.623, de 10 de Outubro de 1962, enquanto manda
aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º do mesmo diploma para o crime de
pescar em época de defeso, quando concorrer a agravante de a pesca ter lugar em
zona de pesca reservada, por violação dos princípios constitutivos de culpa, da
igualdade e da proporcionalidade. Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional,
transcrevendo o Acórdão nº 95/2001, considerou o seguinte:
(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ
DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas
fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também
o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de
prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena,
situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de
culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas,
o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações
essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também
vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa,
que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de
observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena
de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de
dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão
nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma
responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena
conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do
princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”.
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II
série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa
de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que
caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o
emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional,
por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu-se aí:
“Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena
fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de
acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a
exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das
suas “circunstâncias”) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que
lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal
situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na
verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de
caçar invariável de cinco anos para o “crime de caça” do artigo 31º, n.º 10, da
Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional”.
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal
sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram
apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do
artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado acórdão
n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.º 202/2000:
“Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente)”.
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.º 202/2000:
“A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida,
conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer
molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da
igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais”.
Estas considerações são, no essencial, transponíveis para os presentes autos.
Com efeito, as contravenções que o legislador manteve no sistema penal
português, após a criação do Regime Geral das Contra‑ordenações (Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, agora na redacção do Decreto-Lei nº 356/85, de 17 de
Outubro e do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro), não estão em geral
despenalizadas, isto é, subtraídas aos princípios constitucionais do Direito
Penal, tal como o princípio da culpa e a proibição constitucional de penas
fixas. Na verdade, o legislador, mesmo em termos processuais, subordinou a
matéria de processamento e julgamento de contravenções a um regime processual
penal simplificado, mas, em todo o caso, de natureza processual penal e não
administrativa (Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de Janeiro). E, apesar de as
infracções terem sido despenalizadas nesta específica matéria através da Lei nº
28/2006, de 4 de Julho (artigos 7º, 13º e 14º), é ainda aplicável aos processos
pendentes o regime concretamente mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à
medida das sanções aplicáveis (artigo 14º, nº 2). A evolução legislativa impede,
assim, não só de situar as infracções qualificadas como ilícito contravencional
no Direito de mera ordenação social, no Direito Civil ou em qualquer outro ramo
do Direito, mantendo‑se a natureza que legal, doutrinária e jurisprudencialmente
sempre lhe foi conferida (cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, reimp.,
1996, p. 213 e ss., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I,
Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, 2004, p. 145 e, ainda Maia
Gonçalves, Código Penal Anotado, 3ª ed., 1977, anotação ao artigo 3º), como
também, nesta matéria específica, é salvaguardada a subordinação a princípios do
Direito Penal garantísticos. Também não há qualquer obrigação constitucional
genérica de despenalizar o ilícito contravencional, na medida em que a opção do
legislador ao nível do ilícito, da sanção e do processo não interfira com o
princípio da necessidade da pena.
E, por fim, ainda o próprio Direito de mera ordenação social adopta, no
essencial, os princípios do Direito Penal (artigos 2º, 3º, 8º e 9º do
Decreto-Lei nº 433/82), não sendo sequer os princípios da culpa e da proibição
de penas fixas expressamente afastados por aquele regime legal.
Consequentemente, não existem razões substanciais, nem legais nem
constitucionais, inerentes à menor gravidade do ilícito contravencional que
tornem inadequada ou injustificada a aplicação daqueles princípios, sobretudo na
medida em que eles se exprimam numa acentuação das garantias do arguido.
Razões de economia processual ou de celeridade bem como argumentos relacionados
com a massificação das infracções não têm dignidade constitucional por si para
prevalecer sobre princípios constitucionais que se aplicam directa,
expressamente e sem excepções a matéria de ilícito e sanções penais e que não
são sequer incompatíveis com a natureza do próprio Direito de mera ordenação
social.
E, finalmente, também não existem argumentos derivados da espécie de sanção –
uma multa penal – que impeçam a sua adaptação aos princípios constitucionais.
Não suscitando o presente recurso qualquer outra questão que deva ser apreciada,
remete‑se para a jurisprudência constitucional citada (cujo fundamento é
acolhido pela decisão recorrida), concluindo‑se pela inconstitucionalidade da
norma sob apreciação, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade».
É este entendimento que agora se reitera, devendo, ainda, assinalar-se que a
violação do princípio da igualdade comporta também, precisamente porque está em
causa uma pena de multa, um tratamento desigual em função da situação económica
do condenado, nomeadamente do “agente de mais fraca situação
económico-financeira por absoluta incapacidade para a tomar em conta no momento
da determinação concreta” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As
Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p.
125.).
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a alínea b) do nº 2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº
108/78, de 24 de Maio, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da
igualdade e da proporcionalidade;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz
respeito ao juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2007
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme
declaração.
Artur Maurício – vencido pelo
essencial das razões
explanadas pelo Cons. Benjamim
Rodrigues, no seu voto
de vencido no Acórdão n.º 579/06
DECLARAÇÃO DE VOTO
Ao contrário da tese que fez vencimento no acórdão, entendo que a norma
constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 108/78 de 24 de
Maio (diploma que estabelece normas relativas à fiscalização da cobrança nos
transportes colectivos e penalizações das infracções) não estabelece uma sanção
penal.
Com efeito, tendo sido editada antes de vigorar no sistema jurídico português o
regime contra-ordenacional, afigura-se-me que a norma – segundo a qual os
infractores ficam sujeitos ao pagamento do preço do bilhete, acrescido da multa
do montante de 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem
vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem
adquirido qualquer título válido de transporte – se limita a estabelecer um
ilícito de mera ordenação social, sendo impraticável submeter a punição a uma
avaliação individualizada da culpa do infractor para efeito de graduação da
sanção correspondente.
Entendo, por isso, que a norma não padece do vício de inconstitucionalidade que
o Acórdão nela detectou.
Carlos Pamplona de Oliveira