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Processo nº 844/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional:
A – Relatório
1 – A., S.A., reclama para a conferência, ao abrigo do disposto
no n.º 3 do art. 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), da decisão do relator, no Tribunal Constitucional, que, conhecendo
do mérito do recurso de constitucionalidade, decidiu negar-lhe provimento.
2 – Fundamentando a sua reclamação, diz a reclamante o
seguinte:
Notificados do teor da douta decisão sumária dela nos apresentamos a
interpor reclamação para a conferência o que fazemos nos termos e com os
fundamentos seguintes:
1. É verdade que há decisão anterior e é verdade que vai em sentido
contrário ao pretendido por nós, mas também é verdade que – por exemplo – na
questão relativa ao direito à identidade pessoal, conexa com o problema do
reconhecimento da paternidade, o Tribunal Constitucional decidiu várias vezes
pela constitucionalidade de norma gritantemente inconstitucional (porque,
justamente, a identidade pessoal é direito incondicionável e, por isso,
insusceptível de lhe ver oposto um qualquer prazo procedimental) mas, graças à
confiança de algum advogado diante do risco a questão foi de novo suscitada e,
enfim, o Tribunal Constitucional pôde vê-la;
2. Não cremos que aqui tenhamos êxito análogo, mas pensamos que a questão
deve ser re-examinada por nela haver tanto quanto parece – mais do que foi
decidido;
3. Na verdade, a decisão sumária cita a tradução portuguesa do nº 2 do
art. 2º do 7º Protocolo anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
4. (Confessamos que não havíamos visto tal texto, ou teríamos
suscitado imediatamente a questão) e nessa versão traduz-se “acquitement” por
absolvição...
5. Na verdade, “acquitement” é algo mais do que uma absolvição (que
poderia expressar-se, no plano de generalidade pretendido, como “renvoi” sendo
essa a única expressão que poderia equivaler a englobar todos os matizes
possíveis e plausíveis (o “relaxe” por exemplo) que a absolvição abrange no
direito francês;
6. “Acquitement” é realmente uma sentença específica de um
tribunal específico (a cour d’assises) e com um regime de recurso específico (já
que a decisão do “pourvoi” não pode lesar os interesses da pessoa ilibada na
sentença). A decisão de acquitement é definitiva desse ponto de vista.
7. Também no Direito Anglo-Saxónico a decisão com a designação de
“acquittal” é insusceptível de condenação posterior a decidir em recurso;
8. A “Cour d’Assises” (“tribunal dos assises” como se ousou traduzir no
Gabinete de Direito Comparado da PGR e, sem corar de vergonha, se consente que
esteja no Eurodicton) é um tribunal colectivo com competência para julgar os
crimes, tal como os define a Lei Penal Francesa (onde se distingue entre
contravenção, delito e crime) tribunal aliás com intervenção de jurados e
presidido por magistrado do Tribunal Superior.
9. Tal tribunal também pode funcionar como Tribunal de Recurso contra
decisão de idêntico tribunal (a partir de 2001) reunindo então e neste caso com
maior número de jurados.
10. As peças de Direito Internacional deviam ter a tradução portuguesa
proibida... Há aqui um problema, só assim se evitaria que o Gabinete de Direito
Comparado da Procuradoria Geral, traduza sempre por “decisão de absolvição” a
“order of acquittal” e a “court’s decision involving an acquittal or nonsuit”;
11. Aparentemente, não lhes passa pela cabeça que o uso de duas
expressões há-de significar, no mínimo, que quando se opta por uma delas é
porque há uma intencionalidade específica quanto ao que pretende expressar-se,
12. Sempre houve uma acentuada tendência do chamado tradutor-médio local
para traduzir “essência” por “gasolina”, circunstância em razão da qual talvez
se pudessem proibir essas traduções, ao menos no plano editorial, não vá dar-se
o caso de alguém pensar que tais traduções existem (é um caso de protecção do
consumidor, como qualquer outro)
13. Já quanto a “acquittal by the Assise Court after reconsideration of
sentence” dizem (é incrível) “absolvição pelo tribunal de assises após revisão”
(isto é que é saber Português, não?... Não falando já do Francês e do Inglês),
14. Pudéramos nós fazê-lo e haveríamos de dizer-lhes duas ou três
coisas (felizmente, porém, jamais nos cruzamos) mas a verdade é que todas estas
luminosas ideias estão no Eurodicton (“ad majorem culturae gloriam”, imagina-se)
15. Deus nos valha...
16. “Acquitement”, por consequência, não é o “relaxe” nem cabe na
fórmula genérica de “renvoi” (embora tenha o “renvoi” como efeito e esse efeito
assim possa expressar-se pragmaticamente)
17. À tradução de “acquiternent”, por consequência e em todo o caso, não
basta a palavra “absolvição”.
18. Ora saber se o recurso contra um “acquitement” se traduzirá em decisão
da qual possa não caber recurso (de acordo com os Direitos nacionais) é matéria
aparentemente clara (pesem embora as volatilidades das aparências em Direito)...
Mas isso será assim contra qualquer “renvoi” de qualquer acusado, ou arguido?
19. Essa é a questão;
20. Primeiro, porque se assim fosse – e assim fosse em todos os casos
e sempre – o nº 1 do art. 2º do 7º Protocolo careceria de sentido útil, porque
traduziria simples inutilidade admitir um soleníssimo compromisso internacional
quanto a objecto relativamente ao qual todos os outorgantes ficariam, nos termos
de tal interpretação, com a liberdade absoluta de a todo o tempo o
desrespeitarem em todos os termos,
21. Outorgar o inútil carece de sentido,
22. Portanto, a liberdade reciprocamente concedida pelos estados
outorgantes, neste plano, é certamente alguma, mas não pode ser toda, porque em
tal caso o 7º Protocolo não teria existência prática.
23. E assim, diríamos, que quanto às decisões do pleno do Supremo
Tribunal de Justiça quando julgue em primeira instância está o Direito Nacional
dispensado da segunda instância de recurso (ressalvadas as questões de Direito
Constitucional, bem entendido), podendo desse ponto de vista invocar-se esta
disposição (o nº 2 do art. 2º do 7º Protocolo);
24. Outra situação onde se poderia invocar esta disposição seria a
concessão aos direitos nacionais da possibilidade de rever, em recurso, a
decisão designada por acquittal no Direito Anglo-saxónico ou por acquitement no
direito francês, com o matiz de admitir uma decisão de recurso de alcance
condenatório e, aí, sem a possibilidade de novo recurso;
25. Naturalmente, isso insere-se numa perspectivação do alarme que uma
absolvição possa causar em caso de crime de maior gravidade, parecendo razoável
deixar aos Direitos Nacionais – como expressão da vontade soberana dos
respectivos Povos – a gestão dessas questões e a gestão das acentuações
processuais nestes casos, necessariamente muito graves (cuja punibilidade
ultrapasse os cinco anos de prisão porque só esses casos são julgados pela Cour
d’Assises);
26. Também carece de sentido levar ao Supremo Tribunal de Justiça uma
simples multa, em contravenção e também aqui o nº 2 consente aos Direitos
Nacionais a salvaguarda dos seus Tribunais Superiores (em obediência ao brocardo
em cujos termos “de mininis non curat praetor”);
27. Tal não significa que as questões de menor gravidade caibam no
horizonte dos cinco anos de prisão, como a douta decisão sumária, sem mais,
formulou...
28. Bem ao contrário – sempre salvo melhor entendimento – o que a
doutrina europeia dos Direitos do Homem tem usado como critério de classificação
da gravidade como menor é, justamente, a ausência da pena de prisão, termos em
que aqui parece haver uma interpretação contrária ao sentido geral (o que de
resto é, passe a expressão, natural entre nós);
29. Um crime punível com cinco anos de prisão não é infracção de menor
gravidade à luz da Convenção Europeia e dos seus protocolos anexos;
30. E tão pouco um crime punível com cinco anos de prisão corresponde
a um julgamento na Court d’Assises, motivo pelo qual não corresponde à
respectiva decisão absolutória o “acquitement”, mas o “relaxe”
31. Ora, justamente – e ao contrário do que com toda a segurança e
clareza escreve a decisão sumária – pensamos que são estes os casos onde o
7ºProtocolo não dispensa, explícita ou implicitamente, o recurso de uma primeira
condenação em segunda instância (contra a decisão de “relaxe” e não contra a
decisão de “acquitement”);
32. Pode ser, evidentemente, que não tenhamos razão e pode ser que a
tenhamos e no-la neguem, mas o que nos parece indesmentível é que todos
ganharemos com uma resposta específica a estas questões
Assim, em conclusão,
I. “Acquitement” não pode traduzir-se, sem mais, pela expressão
genérica “absolvição” – como o fez a versão portuguesa do 7º Protocolo adicional
à Convenção Europeia dos Direitos do Homem – por corresponder a decisão
específica, de um específico tribunal, numa forma demarcada de processo, quanto
a previsões penais de maior gravidade,
II. A recusa de recurso ao arguido contra decisão que pela primeira vez o
condene em segunda instância, deve ter-se por assente quando a decisão
absolutória originária tenha sido proferida por Tribunal do Júri, (o vago
correspondente local da Court d’Assises julgando em primeira instância) devendo
esta solução entender-se como o reconhecimento recíproco das Altas Partes do
direito de gerir e resolver os problemas que colocam as perspectivas das
respectivas comunidades face aos crimes mais graves,
III. Tal não significa que um crime punível com cinco anos de prisão deva
classificar-se, nos termos do protocolo em referência, como infracção menos
grave, porque, justamente, a menor gravidade das infracções para estes efeitos
define-se justamente pela ausência da pena de prisão, tal como tem sido
perspectivado pela doutrina europeia dos Direitos do Homem; assim sendo,
IV. Se bem vemos,
V. O “renvoi” anulado por uma primeira condenação em segunda instância,
está fora da licença concedida quanto a procedimento análogo em caso de
“acquitement”;
VI. Termos em que uma absolvição (não decretada por Tribunal do Júri) anulada
em primeira condenação pelo Tribunal Superior, não suscitando a gravidade desse
crime qualquer alarme ao qual deva fazer face a Lei Processual Penal – como se
concede neste Protocolo para casos mais graves julgados pelo Tribunal do Júri –
está fora das licenças concedidas pelo art. 2º/2 deste texto de Convenção
Internacional
VII.Motivo pelo qual deve rever-se a douta decisão sumária dando-se provimento à
presente reclamação com o alcance pretendido no requerimento de interposição do
recurso para este Venerando Tribunal,
VIII. Devendo notificar-se o recorrente para a apresentação das respectivas
alegações».
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
respondeu dizendo:
“1 – A presente reclamação é manifestamente
improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em
nada abala os fundamentos da decisão reclamada e da firme corrente
jurisprudencial que lhe está subjacente”.
4 – A decisão reclamada diz o seguinte:
«1 – A., S.A., com os sinais identificativos dos autos, recorre
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC),
pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1,
alínea e), do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos que vedem
ao arguido pela primeira vez condenado num tribunal superior (condenado na
sequência de uma absolvição na primeira instância) o exame da decisão
condenatória numa instância jurisdicional superior, assim negando a dupla
jurisdição de recurso no caso do arguido ser pela primeira vez declarado culpado
num Tribunal da Relação e na sequência de absolvição anterior, pretextando que
tal norma viola o artigo 2.º do 7.º Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, tendo o alcance de uma violação das garantias de defesa do
processo penal enunciadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.
2 – A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“I. Os arguidos A., S.A., B., C. e D. interpuseram recurso para este Supremo
Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que
alterou a decisão da 1ª instância e condenou a sociedade arguida na pena única
de 300 dias de multa à taxa legal mínima e os arguidos na pena única de um ano e
meio de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano na condição de
pagarem as importâncias fixadas a título de indemnização civil, ou que vierem a
ser fixadas em acordo ulteriormente formulado entre as partes.
Por despacho do Exmo. Desembargador Relator, esse recurso não foi admitido, nos
termos do art. 400º, nº 1, alínea e), do CPP.
Inconformados com o assim decidido deduziram os recorrentes reclamação para o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, onde, além de atacarem a decisão da
Relação, invocando a nulidade da mesma, sustentam que a interpretação dada ao
art. 400º do CPP [seguramente a sua alínea e)], viola o art. 2º do 7º Protocolo
adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem bem como o princípio da
dupla jurisdição de recurso.
II. Cumpre apreciar e decidir.
No caso em apreço, está em causa um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal
da Relação de Évora que, em processo respeitante a um concurso de infracções,
alterou a decisão da 1ª instância, condenando a sociedade arguida na pena única
de 300 dias de multa à taxa legal mínima e os arguidos na pena única de um ano e
meio de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, na condição de
pagarem as importâncias fixadas a título de indemnização civil, ou que vierem a
ser fixadas em acordo ulteriormente formulado entre as partes, pela prática dos
crimes continuados de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a
segurança social, p. e p. pelos arts. 105º e 107º da Lei nº 15/2001, de 5 de
Junho.
Abstractamente, nem a cada um dos crimes integrantes do cúmulo jurídico era
aplicável isoladamente pena superior a cinco anos, nem a pena aplicável a esse
cúmulo em referência a cada um dos arguidos podia ser superior a cinco anos de
prisão, atento o que se dispõe no art. 77º, nº 2, do CP.
Ora essa situação cai precisamente na previsão da parte final do nº 1 da alínea
e) do art. 400º do CPP.
No que concerne à alegação de que o acórdão da Relação padece de nulidade,
refere-se que, a existir o alegado vício processual, devia ter sido arguido
perante o Tribunal da Relação, como resulta do art. 379º, nº 2, do CPP, atento o
disposto no art. 668º, nº 3 do CPC, aplicável ex vi do art. 4º daquele diploma.
A lei não desprotege assim os ora reclamantes quando o acórdão padece de alguma
nulidade, sendo a decisão irrecorrível, uma vez que lhe possibilita a sua
arguição perante o próprio tribunal que a proferiu.
Não se pode entender que a simples invocação da nulidade de um acórdão que a lei
considera irrecorrível, transforme esse mesmo acórdão em decisão recorrível para
este Supremo Tribunal.
Em resumo: se o acórdão é recorrível, a nulidade deve ser invocada no recurso a
interpor para o S.T.J.; se o acórdão é irrecorrível, a nulidade só pode ser
invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão.
No respeitante à alegação que a interpretação dada ao art. 400º, nº 1, alínea
e), do CPP, viola o art. 2º do 7º Protocolo adicional à Convenção Europeia dos
Direitos do Homem refere-se que, tendo este como epígrafe o “direito a um duplo
grau de jurisdição em matéria penal”, apenas garante àquele que é declarado
culpado o direito de se fazer examinar por uma jurisdição superior, resultando o
mesmo do art. 32º da CRP, que referencia o direito ao recurso como uma garantia
de defesa do processo criminal, ou seja, garante-se aos arguidos o segundo grau
de jurisdição, tal como aconteceu no caso dos autos aquando do julgamento pela
Relação.
Aliás, o Tribunal Constitucional já apreciou esta questão no acórdão nº 49/2003,
de 29 de Janeiro (DR, II Série, de 16.04.2003), concluindo pela não
inconstitucionalidade do art. 400º, nº 1, alínea e), do CPP.
Diz-se neste acórdão, na parte que releva, que não desrespeita o nº 1 do art.
32ºda CRP a norma da alínea e) do nº 1 do art. 400º do CPP, quando interpretada
no sentido de não admitir o recurso para o STJ a decisão condenatória proferida
pela Relação em recurso de decisão absolutória da 1ª instância, por o acórdão da
Relação consubstanciar a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta
que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa.
III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, com a taxa de justiça de 3 UC.
Notifique”.
3 – Integrando-se o caso sub judicio no âmbito normativo
delimitado pelo artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, passa a decidir-se com base nos
seguintes fundamentos:
A questão decidenda foi já apreciada neste Tribunal, que, pelo
Acórdão n.º 49/03, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do artigo
400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
Tal aresto sustentou-se na argumentação que, de seguida, se
transcreve:
“(...)
A questão de constitucionalidade suscitada reside, assim, em saber se o nº 1 do
artigo 32º da Constituição impõe o direito a recorrer de decisões condenatórias
proferidas pelo tribunal da relação em recurso de decisões absolutórias,
relativamente a crimes de pequena gravidade (puníveis com pena de multa ou com
prisão até cinco anos). Apenas se considera, portanto, a norma contida na alínea
e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal quando aplicada a recursos
interpostos de acórdãos condenatórios da Relação proferidos em recursos
interpostos de decisões absolutórias da 1ª instância, pois que é a esta dimensão
que as alegações apresentadas neste Tribunal pela recorrente restringem o
objecto do recurso de constitucionalidade.
4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade
para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das
mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.
Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos.
Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com
efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese
de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito
– é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem
dúvida proporcionar a detecção de tais erros, através de um novo olhar sobre o
processo.
Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a
proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a
virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão
obtida nesta nova sede.
Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal
superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição
jurídico-processual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de
o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão
sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão
possa ter em consideração a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam
verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. A ligação entre o
direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é, pois, evidente, sendo
reconhecida pela recorrente nas alegações apresentadas neste Tribunal (cfr. a
conclusão D).
5. A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do nº 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal – exclui, nos casos nela previstos, a
possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos
proferidos em recurso pela relação.
Importa ter presente, todavia, que tais acórdãos resultam justamente da
reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o
arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras, o
acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo
grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao
recurso.
Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na
primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer
da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus
fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também,
em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o
duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de
recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda
que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do
Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da
Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos
razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante
a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao
Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralização, e a
circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta
segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº
1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa
for aplicável pena de prisão 'não superior a oito anos' (alínea f)) – não sendo
hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se
este confirmar 'decisão de 1ª instância'.
Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição
pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do
caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias
de defesa constitucionalmente consagradas.
6. A concluir, refira-se o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção para a
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para
ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, 27 de Setembro,
e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 51/90, da mesma data),
cujo texto é o seguinte:
Artigo 2º
1 – Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem
o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de
culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os
fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei.
2 – Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores,
definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em
primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no
seguimento de recurso contra a sua absolvição.
Como se vê, a parte final do nº 2 ressalva, precisamente, a hipótese
que está em apreciação no presente recurso.
7. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão
recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade”.
4 – Acolhendo a bondade desta argumentação, que aqui se renova,
cumpre apenas reiterar também, por mor da sua particular pertinência para o caso
sub judicio, o que se deixou consignado no Acórdão n.º 352/98 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), onde se deixou claro que “se a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num sentido de aplicação
directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não olvidar que, se dos
preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais já se retirarem,
em todas as suas vertentes (aqui se incluindo as que se extraiam de uma
interpretação efectuada, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira in
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 138, 'de acordo com as
regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fundamentais'), os
alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo,
pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das
coisas, destituído de sentido (cfr., por entre muitos, os Acórdãos deste
Tribunal números 14/84, ponto 2.2., parte final, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 2º vol., 339 e segs. e 222/ /90, idem, 16º vol., 635 e
segs.)”.
Ora, como se viu, as exigências tutelares assinaladas ao
mencionado preceito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem em nada se
diferenciam, quanto às garantias de defesa dos arguidos, principaliter no que
tange com o direito a um duplo grau de jurisdição, das que se encontram
concretizadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com 8 (oito) UCs. de taxa de justiça».
B – Fundamentação
5 – Como resulta dos termos da sua reclamação, a reclamante não
refuta os fundamentos de direito constitucional em que, por apropriação da
doutrina expendida no Acórdão n.º 49/03, se abona a decisão reclamada, e,
nomeadamente, a relação de correspondência, nele afirmada, entre a garantia de
existência de um segundo grau de jurisdição em material penal, consagrada na
nossa Constituição, e o sentido do texto do art. 2.º, n.º 2 do Protocolo n.º 7 à
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais,
na tradução em português, constante da resolução da Assembleia da República n.º
22/90 e que foi ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 51/90, de
27 de Setembro.
Quanto ao alegado relativamente ao sentido da palavra
acquitement, constante do original do Protocolo, em língua francesa, que faz fé,
é de notar que Portugal está vinculado, apenas, ao texto da Convenção e não
também ao sentido que esse termo pode transportar nos regimes processuais dos
diferentes Estados, como a França ou a Inglaterra, aí, conformados dentro da
liberdade que lhes é deixada pela Convenção.
O uso dos vocábulos, nos originais do texto da Convenção que
fazem fé, não carrega qualquer vontade pactícia de observância dos regimes
processuais penais vigentes nos Estados, até porque essa matéria foi deixada à
soberania destes.
Não se vislumbram, assim, razões para abandonar a firme
corrente jurisprudencial em que se abona a decisão sumária (cf., entre outros,
os Acórdãos nºs 377/03, 390/04, 140/06 e 487/06, todos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
C – Decisão
Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20
UCs.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2006
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
(com declaração de voto correspondente à que juntei ao Acórdão n.º 390/04, em
que suscitei dúvidas no sentido da inconstitucionalidade).
Rui Manuel Moura Ramos