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Processo n.º 192/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., melhor identificado nos autos, intentou acção declarativa de condenação,
emergente de contrato individual de trabalho, com processo ordinário, contra B.,
S.A., C. e D., também com os sinais nos autos, pedindo a declaração de nulidade
do processo disciplinar de que fora alvo, ou, ao menos, a declaração de
ilicitude do seu despedimento, bem como a condenação dos réus a indemnizar
prejuízos materiais e não patrimoniais de diversa ordem, com juros desde a
citação.
Tendo os 2.º e 3.º réus sido absolvidos da instância por ilegitimidade,
prosseguiu a acção contra a ex-entidade patronal do autor, vindo o 2.º Juízo do
Tribunal do Trabalho de Lisboa, em sentença de 15 de Julho de 2002, a condená-la
ao pagamento de diversos montantes referentes a férias vencidas em 1994 e 1995 e
subsídio de férias e de Natal referentes a 1995, julgando a acção, no mais,
improcedente.
O autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 22 de
Maio de 2003, deliberou negar provimento ao recurso e confirmar a sentença
recorrida.
Inconformado, recorreu o autor para o Supremo Tribunal de Justiça alegando,
entre o mais, que
“os art.ºs 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a), b), da Lei dos
Despedimentos são interpretados de forma contrária à Constituição, visto que a
irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como
provadas e não constantes da Nota de Culpa tem de decorrer de uma interpretação
dessas normas manifestamente inconstitucional por violação do n.º 10 do art.º
32.º da Lei Fundamental (norma essa que, de resto, veio a explicitar garantia
idêntica constante do art.º 269.º, n.º 3, da Lei Fundamental);”
e que
“no contexto factual apurado pelas instâncias, considerar que a
categoria-habilitação é determinante da categoria-função corresponde a
interpretar os n.ºs 1 e 2 do art.º 22.º LCT com ofensa do princípio da segurança
de emprego consagrado no art.º 53.º da Constituição;”
Por decisão de 4 de Fevereiro de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça considerou,
quanto à primeira questão de constitucionalidade, que as infracções dadas como
provadas constavam todas da nota de culpa e, quanto à segunda, que o facto de o
autor ter sido contratado em função da categoria-habilitação a que a entidade
patronal pretendeu reconduzi-lo “respeita exactamente assim o acordo havido”,
confirmando o acórdão impugnado.
2.Veio então o autor interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo a apreciação das seguintes normas:
«I) As normas conjugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas
a) e b), da Lei dos Despedimentos (Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro),
interpretadas no sentido da irrelevância da inclusão na decisão disciplinar de
infracções dadas como provadas e não constantes da Nota de Culpa (in casu, “ter
faltado à verdade” ao fazer certa afirmação de que, na vigência do contrato de
trabalho, nunca actuar na Companhia como Engenheiro, ao passo que na Nota de
Culpa lhe fora apenas imputada uma “notória falta de lealdade para com a sua
entidade patronal, já que bem sabe o Arguido que é Engenheiro Civil, que foi
como Engenheiro Civil que se candidatou e que caricato se torna que ‘deite às
urtigas’ os anos que passou na universidade, dizendo, absurdamente, que apesar
de Engenheiro Civil, não se sente habilitado para o ser” art.º 36.°).
II) As normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 22.º, versão originária (vigente à data
do despedimento, em 1994) do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho
de 1969, interpretadas no sentido de que a categoria-habilitação (no caso, o
diploma de licenciatura em engenharia civil) é determinante da categoria-função
(técnico de marketing).»
Determinada a produção de alegações, concluiu assim o recorrente:
«A) O ora Recorrente, ao serviço da B., não podia negar, nem negou, que fora
contratado em 1983, em regime de profissão liberal, para exercer funções de
Engenheiro Civil na Empresa;
B) Simplesmente, em 1985 passou a exercer funções de técnico de Marketing na
empresa, tendo sido admitido, como trabalhador por conta de outrem, na B. com a
categoria-habilitação de Engenheiro Civil, continuando a desempenhar funções na
área de Marketing;
C) Na sequência de uma “queda em desgraça” na Empresa, foi lhe dada ordem de
transferência para a área da Engenharia Civil na B., ao fim de um período de
nove anos em que não exerceu estas funções;
D) Na sequência de uma fase litigiosa em que foi discutida pelo trabalhador a
licitude da ordem de transferência, foi instaurado um processo disciplinar ao
trabalhador, foi suspenso preventivamente e foi, finalmente, despedido com justa
causa;
E) Enquanto que, na Nota de Culpa do Processo Disciplinar, o trabalhador era
acusado de falta de lealdade para com a Entidade Patronal - por não acatar a
ordem desta de o transferir para a área da Engenharia Civil, onde já exercera
funções como profissional liberal – no Relatório Final e na Decisão Disciplinar
passou a ser tido por autor de uma mentira deliberada, por ter negado que fora
admitido como Engenheiro Civil na B., ENQUANTO TRABALHADOR POR CONTA DE OUTREM;
F) A Decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, considerou que a
falta de lealdade continha em si só a acusação de mentira, por esta ser um
desenvolvimento de outra imputação, concluindo no sentido da improcedência da
nulidade suscitada;
G) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma
interpretação do disposto nas normas conjugadas dos art.ºs 10.°, n.ºs 1, 4 e 5,
e 12.°, n.° 3, alíneas a) e b), da Lei dos Despedimentos de 1989 (Decreto-Lei
n.° 64-A/89, de 27 de Fevereiro) contrária às garantias do processo disciplinar
constantes do art.º 32.°, n.° 10, da Constituição, revisão de 1997, as quais já
se continham na versão anterior da Constituição (art.º 269.°, n.º 3, aplicável
por analogia), sendo a nova disposição interpretativa da versão anterior da
Constituição;
H) Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a
categoria-habilitação define o trabalhador-tipo a que se refere o contrato de
trabalho em concreto, tanto bastando para que a transferência ordenada do
Recorrente da área de Marketing para a área de Engenharia fosse lícita;
I) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou um
entendimento do art.º 22.°, n.ºs 1 e 2, do Regime do Contrato Individual de
Trabalho (versão originária) que é contrário ao art.º 53.° da Constituição, por
admitir um ius variandi sem restrições, nomeadamente a de desvalorização do
trabalhador em termos sócio-profissionais.”
Não houve contra-alegações por parte da recorrida.
Na sequência das alegações do recorrente, o relator proferiu despacho em que
advertiu o recorrente para a eventualidade de se não poder vir a tomar do
recurso, reportado à constitucionalidade de dimensões normativas tal como elas
foram, por último, representadas nas alegações de recurso, tendo o recorrente
sido notificado para se pronunciar sobre tal possibilidade.
O recorrente veio, então, dizer que se lhe afigura indiscutível que o Supermo
Tribunal de Justiça aceitou como ratio decidendi “a norma retirada da conjugação
dos arts. 10.º, n.º 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da Lei dos
Despedimentos de 1989, interpretada no sentido da irrelevância da inclusão na
decisão disciplinar de infreacções dadas como provadas e não constantes da nota
de culpa”. Para o recorrente,
“(…) o Supremo Tribunal de Justiça considerou equivalente, como facto indiciador
de uma infracção disciplinar, um juízo de valor – “falta de lealdade”, ilustrada
por afirmações constantes de exposições subscritas pelo Recorrente – e um facto
concreto, traduzido no proferimento de afirmações conscientemente falsas, ou
seja, ter faltado à verdade.”
E concluiu ainda (ponto III – Conclusões) o seguinte:
“Ora, independentemente da procedência da apreciação de mérito ou de fundo, da
questão de constitucionalidade, é patente que a ratio decidendi da decisão do
Supremo tem a ver com as normas do art.º 22.º, n.ºs 1 e 2, da referida Lei do
Contrato de Trabalho, na interpretação referida, abundantemente demonstrada e
denunciada como inconstitucional pelo Recorrente, sendo certo que a decisão
sobre esta matéria condiciona o juízo sobre se houve ou não desobediência
ilegítima por parte do Recorrente em relação à sua entidade patronal.”
Cumpre apreciar a decidir.
III. Fundamentos
3.Começando pela questão de constitucionalidade referida às normas dos n.ºs 1 e
2 do artigo 22.º do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho (LCT), na versão
originária (por vigente à data do despedimento, ocorrido em 1994), nota-se que,
no requerimento de interposição de recurso, essa questão surgia como decorrente
da sua interpretação “no sentido de que a categoria-habilitação (no caso, o
diploma de licenciatura em engenharia civil) é determinante da categoria-função
(técnico de marketing)”.
Se bem que, prima facie, se admitisse que alguma questão de constitucionalidade
se poderia colher desta fórmula – embora aparentemente inversa do que estava em
causa (se alguma categoria-função poderia ser vista como determinada pela
licenciatura em engenharia civil, ela não era certamente a de técnico de
marketing) –, assim se tendo determinado a produção de alegações, o modo como o
recorrente veio a equacionar e precisar a questão de constitucionalidade nessas
suas alegações de recurso tornou clara a impossibilidade da sua apreciação, por
nenhum dos sentidos impugnados corresponder ao sentido com que as normas
questionadas foram aplicadas na decisão recorrida.
De facto, como o Supremo Tribunal de Justiça deixou claro, a norma do artigo
22.º, n.ºs 1 e 2, da LCT (na versão vigente em 1994) não foi interpretada como
bastando-se com “a titularidade de uma categoria-habilitação para permitir
atribuir ao trabalhador a categoria-função própria dessa habilitação”, nem foi
entendido “que a categoria-habilitação é determinante da categoria-função, ainda
que ocorra desvalorização profissional”, tal como se não entendeu que tais
normas admitissem “um jus variandi sem restrições, nomeadamente a desvalorização
do trabalhador em termos sócio-profissionais”, que, alternativamente, foram os
sentidos que vieram a ser impugnados nas alegações do recorrente.
As transcrições que o acórdão recorrido fez de passos relevantes da sentença do
2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, apoiando o juízo de que não eram as
habilitações do autor que determinavam as suas actividades na empresa, mas sim
os próprios termos do contrato por ele celebrado, sem que houvesse nesse
regresso às origens qualquer desvalorização, provam isso mesmo: o autor “não foi
admitido na ré como especialista de Marketing, mas como Engenheiro, sendo que o
seu recrutamento para a ré, embora em regime de prestação de serviços, teve como
base fundamental o seu currículo e capacidades na área de Engenharia Civil”; “no
âmbito do contrato de trabalho vigente entre autor e ré, estava incluída a
eventual prestação de trabalho na área da Engenharia, competências e
habilitações estas do autor que foram determinantes para o seu recrutamento para
a ré”; “as novas funções atribuídas ao autor na área de Engenharia eram
compatíveis com as suas habilitações académicas e idênticas a outras que em
tempos exercera já na ré antes de Maio de 1985, no âmbito de um contrato de
prestação de serviços, e sem prejuízo em termos de posição salarial”; “[e]stando
a actividade na Área da Engenharia compreendida no objecto do seu contrato, é de
considerar terem sido atribuídas ao autor funções que se justificam nos termos
do art.º 22.º, n.º 1, LCT, sem qualquer desvalorização profissional, e sem
modificação substancial da sua posição”.
Não correspondendo, como é patente, a interpretação professada pelo Supremo
Tribunal de Justiça a nenhuma das que foram impugnadas como desconformes à
Constituição, nem havendo sequer critério para preferir umas às outras, atenta a
desconformidade com a que foi incluída no requerimento de interposição do
recurso, falha logo o primeiro pressuposto do recurso intentado: que a norma
impugnada tivesse sido aplicada, com o sentido impugnado, na decisão recorrida.
A resposta do recorrente ao despacho do relator que o convidou a pronunciar-se
sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso (fl. 974) não altera tal
verificação. Designadamente, não releva afirmar-se que “o Supremo Tribunal de
Justiça privilegia a fase de celebração de um primeiro contrato de prestação de
serviço do Recorrente como profissional liberal” (ponto 20), e que para o
Supremo Tribunal de Justiça “é relevante, no domínio laboral, o desempenho de
certas funções no âmbito de um anterior contrato de prestação de serviço” (ponto
28, a.), uma vez que o objecto do recurso se encontra delimitado pelas
inconstitucionalidades suscitadas durante o processo e indicadas no respectivo
requerimento de interposição e que no recurso de constitucionalidade a norma
aplicada pelo tribunal a quo é, para o Tribunal Constitucional, um dado que este
não pode alterar, não lhe competindo controlar, e corrigir, a interpretação do
direito infra-constitucional ou, ainda menos, a interpretação da matéria de
facto efectuada pelo tribunal recorrido.
Não se pode, pois, tomar conhecimento do recurso, na parte em que se refere ao
artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Regime do Contrato Individual de Trabalho constante
do Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969, sob pena de a intervenção
do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma
impugnada não se reflectir utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão
recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada viesse a ser julgada
inconstitucional (cfr. os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 124/88, 454/91, 337/94,
608/95, 577/95 e 196/97, publicados os quatro primeiros no Diário da República,
II Série, respectivamente, de 5 de Setembro de 1988, 24 de Abril de 1992, 4 de
Novembro de 1994, e 19 de Março de 1996, e os dois últimos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
4.No requerimento de interposição de recurso, a questão de constitucionalidade
referida às normas dos artigos 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e
b), do Decreto-Lei n.º 64-A/89 era dita decorrente de uma alegada “irrelevância
da inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não
constantes da Nota de Culpa”, particularizando-se em seguida: «in casu, “ter
faltado à verdade” ao fazer certa afirmação de que, na vigência do contrato de
trabalho, nunca actuara na Companhia como Engenheiro, ao passo que na Nota de
Culpa lhe fora apenas imputada uma “notória falta de lealdade para com a sua
entidade patronal, já que bem sabe o Arguido que é Engenheiro Civil, que foi
como Engenheiro Civil que se candidatou e que caricato se torna que ‘deite às
urtigas’ os anos que passou na universidade, dizendo, absurdamente, que apesar
de Engenheiro Civil, não se sente habilitado para o ser” art.º 36.º.»
Mesmo desconsiderando as notórias especificidades do caso concreto, que não
relevam para o sentido normativo, resulta já desta tentativa de delimitação do
objecto do recurso que o que o recorrente provavelmente visava era realmente a
reapreciação da avaliação e subsunção dos factos realizada pelo tribunal a quo,
e não a apreciação de uma norma, em si mesma ou numa dimensão interpretativa. E
tal veio a confirmar-se com as alegações apresentadas a este Tribunal, onde se
pode ler:
“G) Ao decidir como decidiu, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma
interpretação do disposto nas normas conjugadas dos art.ºs 10.°, n.ºs 1, 4 e 5,
e 12.°, n.° 3, alíneas a) e b), da Lei dos Despedimentos de 1989 (Decreto-Lei
n.° 64-A/89, de 27 de Fevereiro) contrária às garantias do processo disciplinar
constantes do art.º 32.°, n.° 10, da Constituição, revisão de 1997, as quais já
se continham na versão anterior da Constituição (art.º 269.°, n.° 3, aplicável
por analogia), sendo a nova disposição interpretativa da versão anterior da
Constituição;”
Ora, em que é que se teria traduzido essa interpretação contrária às garantias
do processo disciplinar? É o próprio recorrente a afirmá-lo nas conclusões
imediatamente anteriores:
“E) Enquanto que, na Nota de Culpa do Processo Disciplinar, o trabalhador era
acusado de falta de lealdade para com a Entidade Patronal - por não acatar a
ordem desta de o transferir para a área da Engenharia Civil, onde já exercera
funções como profissional liberal – no Relatório Final e na Decisão Disciplinar
passou a ser tido por autor de uma mentira deliberada, por ter negado que fora
admitido como Engenheiro Civil na B., ENQUANTO TRABALHADOR POR CONTA DE OUTREM;
F) A Decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, considerou que a
falta de lealdade continha em si só a acusação de mentira, por esta ser um
desenvolvimento de outra imputação, concluindo no sentido da improcedência da
nulidade suscitada;”
Na resposta ao despacho do relator de fl. 974, o recorrente acrescenta (ponto
11):
“(…) o Supremo Tribunal de Justiça considerou equivalente, como facto indiciador
de uma infracção disciplinar, um juízo de valor – “falta de lealdade”, ilustrada
por afirmações constantes de exposições subscritas pelo Recorrente – e um facto
concreto, traduzido no proferimento de afirmações conscientemente falsas, ou
seja, ter faltado à verdade.”
O juízo do Supremo Tribunal de Justiça que o recorrente contesta condensa-se na
passagem seguinte:
«a falta de lealdade para com a entidade patronal imputada ao Recorrente no
artigo 36.° da nota de culpa, no contexto em que essa imputação foi feita, só
tem um significado: o de que o Recorrente faltou à verdade para com a sua
entidade patronal. Efectivamente, o que ficou a constar no referido artigo é que
o Recorrente apesar de saber que se candidatou como engenheiro civil e que foi
nessa qualidade que a Recorrida o recrutou, nunca admitiu esses factos, tendo
antes afirmado, como se refere no artigo 35.° da nota de culpa, designadamente
que “nunca actuou na empresa como engenheiro” e que “foi como especialista de
marketing que foi admitido na empresa”. Embora no artigo 36.° da nota de culpa
se tenha utilizado a expressão “falta de lealdade” e no ponto 71, alínea c), do
Relatório Final se tenha utilizado a expressão “ter faltado à verdade” as duas
expressões reflectem a mesma realidade e daí que se imponha concluir, tal como
se concluiu no douto acórdão recorrido, pela inexistência de discrepância entre
os factos dados como provados no Relatório Final e os vertidos na nota de culpa,
não tendo havido, consequentemente, violação do direito de audiência e defesa
que é reconhecido no n.° 4 do artigo 10.° do RJCCT, aprovado pelo Decreto-Lei
n.° 64-A/89, de 27 de Fevereiro.»
Este juízo é idêntico ao que já fora formulado pelo 2.º Juízo do Tribunal de
Lisboa (ff. 752 dos autos) e reproduzido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (ff.
836):
“Verifica-se deste modo que os factos dados como provados no Relatório Final ou
são exactamente os mesmos constantes da Nota de Culpa ou são mero
desenvolvimento ou concretização dos já constantes na nota de culpa, o que, como
é entendimento quase absoluto da Jurisprudência, não determina nulidade do
processo disciplinar (veja-se, a título meramente exemplificativo, o AC. do STJ
de 20/5/88, BMJ-377.º, pág. 396 e s, maxime a pág. 400).”
Pretende o recorrente que um tal juízo sobre a sua conduta implica, ou
pressupõe, uma interpretação inconstitucional das normas do artigo 10.º, n.ºs 1,
4 e 5 e do artigo 12.º, n.º 3, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 64-A/89, assim
redigidas:
“Artigo 10.°
(Processo)
1. Nos casos em que se verifique algum comportamento que integre o conceito de
justa causa, a entidade empregadora comunicará, por escrito, ao trabalhador que
tenha incorrido nas respectivas infracções a sua intenção de proceder ao
despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circunstanciada dos factos
que lhe são imputáveis.
(…)
4. O trabalhador dispõe de cinco dias úteis para consultar o processo e
responder à nota de culpa, deduzindo por escrito os elementos que considere
relevantes para o esclarecimento dos factos e da sua participação nos mesmos,
podendo juntar documentos e solicitar as diligências probatórias que se mostrem
pertinentes para o esclarecimento da verdade.
5. A entidade empregadora, directamente ou através de instrutor que tenha
nomeado, procederá obrigatoriamente às diligências probatórias requeridas na
resposta à nota de culpa, a menos que as considere patentemente dilatórias ou
impertinentes, devendo, nesse caso, alegá-lo fundamentadamente, por escrito.
(…)”
“Artigo 12.º
(Ilicitude do despedimento)
(…)
3. O processo só pode ser declarado nulo se:
a) Faltar a comunicação referida no n.° 1 do artigo 10.°;
b) Se se fundar em motivos políticos, ideológicos ou religiosos, ainda que com
invocação de motivo diverso;
(…)”
Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar ou valorar, novamente, para efeitos
disciplinares, a conduta do ora recorrente, ou controlar a apreciação que a tal
propósito foi efectuada pelo tribunal a quo, ainda que apenas para averiguar se
as infracções verificadas foram ou não efectivamente provadas e constavam, ou
não, da nota de culpa.
Ora, tendo em conta a imputação que se fez na nota de culpa, e considerando que
as instâncias julgaram corresponder, neste particular, ao fundamento invocado na
decisão final do processo disciplinar – “as duas expressões reflectem a mesma
realidade”, diríamos, o mesmo facto concreto, o qual integra violação do dever
de lealdade –, logo tem, porém, de concluir-se que as previsões do artigo 10.º,
n.ºs 1, 4 e 5, foram consideradas preenchidas e, portanto, que as normas do
artigo 12.º, n.º 3, alíneas a) e b) do referido diploma não foram interpretadas
em sentido diverso do que a Constituição lhes impõe, como poderia ser o caso se
tivesse havido um juízo de desconformidade entre a imputação da nota de culpa e
o fundamento invocado na decisão final do processo disciplinar.
Pode, efectivamente, ler-se no acórdão recorrido, a fls. 920vs e 921 dos autos:
«(…)
Ora, prossegue, da nota de culpa não constam as imputações de o recorrente
faltar conscientemente à verdade, ou seja, ser mentiroso.
Mas não é assim.
Na realidade, no art.º 35.º da Nota de Culpa são feitas referências várias a
afirmações do recorrente constantes de diversas exposições escritas enviadas à
entidade patronal, dizendo-se depois, no art.º 36.º, que, aquelas (afirmações)
envolviam uma “notória atitude de falta de lealdade para com a sua entidade
patronal, já que bem se sabe o arguido é engenheiro civil, que foi como
engenheiro civil que se candidatou e foi recrutado (…)”.
Ora, como bem diz o Mm.ª Procuradora-Geral Adjunta “… a falta de lealdade para
com a entidade patronal imputada ao recorrente no art.º 36.º da nota de culpa,
no contexto em que essa imputação foi feita, só tem uma justificação: a de que o
recorrente faltou à verdade para com a sua entidade patronal. Efectivamente, o
que ficou a constar no referido artigo é que o recorrente apesar de saber que se
candidatou como engenheiro civil e que foi nessa qualidade que a recorrida o
recrutou, nunca admitiu esses factos, tendo antes afirmado, como se refere no
artigo 35.º da nota de culpa, designadamente que “nunca actuou na empresa como
engenheiro” e que “foi como especialista de marketing que foi admitido na
empresa”.
Embora no artigo 36.º da nota de culpa se tenha utilizado a expressão “falta de
lealdade” e no ponto H, alínea c), do Relatório Final se tenha utilizado a
expressão “ter faltado à verdade”, as duas expressões reflectem a mesma
realidade e daí que se imponha concluir, tal como se concluiu no douto acórdão
recorrido, pela inexistência de discrepância entre os factos dados como provados
no Relatório Final e os vertidos na nota de culpa”.
Não se pode dizer, assim, que houve violação do direito de audiência e de defesa
tal como é reconhecido no art.º 10.º, n.º 4, da LCCT.»
Não assiste, pois, razão ao recorrente quando, na resposta ao despacho do ora
relator de fl. 974, defende que
“o Supremo Tribunal de Justiça aceitou como ratio decidendi a norma retirada da
conjugação dos art.ºs 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas a) e b), da
Lei dos Despedimentos de 1989, interpretada no sentido da irrelevância da
inclusão na decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não
constantes da nota de Culpa.” (Ponto 12).
Na medida em que o juízo de conformidade constitucional de uma norma dependa de
um juízo de facto sobre o cumprimento ou não cumprimento de normas
infra‑constitucionais, não pode o Tribunal Constitucional, sob pena de exorbitar
das suas competências de estrito controlo normativo, deixar de acatar esse juízo
de facto.
Em consequência, e porque o sentido normativo pretensamente desconforme com a
Constituição teria de assentar num juízo em matéria de facto, e sua valoração,
distinto do que foi reiteradamente formulado pelas três instâncias, tem este
Tribunal de concluir que o sentido normativo impugnado, relativo à inclusão na
decisão disciplinar de infracções dadas como provadas e não constantes da nota
de culpa, não foi aplicado na decisão recorrida, e, portanto, que também em
relação às normas dos artigos 10.º, n.ºs 1, 4 e 5, e 12.º, n.º 3, alíneas b) e
c), do Decreto-Lei n.º 64-A/89, se não verificam os pressupostos para poder
tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do presente recurso e, consequentemente, condenar o recorrente em custas,
fixando a taxa de justiça em 20 ( vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da
declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por entender que o Tribunal Constitucional
deveria ter tomado conhecimento da dimensão normativa suscitada, já que ela
consta necessariamente da respectiva ratio decidendi.
Na realidade, entendo que a imputação constante da nota de culpa relativamente à
violação do dever de lealdade se baseava em factos específicos diversos dos que
vieram a constar da Decisão Disciplinar, podendo, obviamente, estar em causa a
violação do mesmo dever.
De qualquer modo, a fundamentação da violação do dever em questão depende, por
razões garantísticas e de defesa, de factos individualizados, não podendo ser
imputada ao trabalhador apenas uma genérica violação do dever de lealdade.
Aliás, a diversidade dos factos não só poderia ser relevante para efeitos de
defesa como para efeitos de uma eventual pluralidade de infracções do mesmo
dever.
Os factos que estão em causa revelam uma diferenciação suficiente, apesar de
existir entre eles conexão. No entanto, são factos diversos uma eventual
desobediência e a invocada mentira deliberada sobre a posição com que o
trabalhador entrou na empresa. Que “desobediência” e “mentira” se distinguem é,
porém, manifesto.
Assim, se o Tribunal Constitucional não podia “apreciar ou valorar, novamente,
para efeitos disciplinares, a conduta do ora recorrente”, em si mesmo, como
refere o Acórdão, também é verdade que, sendo a raiz do problema de
constitucionalidade precisamente a possibilidade de factos diferentes aos da
nota de culpa constarem da Decisão Disciplinar, não poderia prescindir da
consideração desse facto. Essa era a matéria objecto da questão de
constitucionalidade.
Por tudo isto, conheceria do objecto do presente recurso.
Maria Fernanda Palma