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Processo n.º 650/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Mª Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade o
Tribunal Judicial da Comarca de Leiria proferiu a seguinte decisão, datada de 31
de Maio de 2006:
“--- HOSPITAL A., S.A., com sede na Rua ..., Leiria, intentou a presente acção
declarativa de condenação, com processo sumário, contra B., residente na Rua
..., Marinha Pequena, Marinha Grande, pedindo a condenação do réu no pagamento
da quantia de €:4.865,23, acrescida de €: 322,71 de juros de mora já vencidos e
dos vincendos à taxa legal, desde a citação até efectivo embolso. -----
--- Para tanto alegou, em síntese, que no dia 15 de Maio de 2001 o réu deu
entrada no seu serviço de urgências para aí receber tratamento médico, tendo
ficado internado até ao dia 22 de Maio de 2001, pelo facto de naquele dia e em
circunstâncias desconhecidas, ter sofrido diversas lesões. -----
--- Acrescentou que os tratamentos médicos ministrados ao réu importaram o
montante de €: 4.865,23, quantia que o réu não pagou da mesma forma que não
forneceu de quaisquer informações acerca das circunstâncias de tempo, modo e
lugar do acidente nem do seu número de beneficiário, razão pela qual é
responsável pelo pagamento da mencionada quantia. ------
--- Regularmente citado, o réu deduziu contestação, alegando que nunca recebeu
qualquer notificação para fornecer as informações pretendidas pela autora e
acrescentando que, sendo beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, não terá que
suportar o pagamento da quantia reclamada pela autora. ----------
--- Dispensada a fase de saneamento e condensação do processo, instruíram as
partes o processo com os meios de prova que entenderam pertinentes. ------
--- Procedeu-se a julgamento respeitando o formalismo legal aplicável, como da
respectiva acta consta, findo o qual, pelo despacho proferido a fls. 86 e
seguintes, o tribunal decidiu da matéria de facto controvertida. ----
--- A instância permanece válida e regular, nada obstando à apreciação do mérito
da causa, consistindo a questão decidenda em aferir da responsabilidade do réu
pelo pagamento da quantia reclamada pela autora, a título de despesas
relacionadas com a prestação de cuidados de saúde. ------
2.Fundamentos da Acção
2.1. Os Factos
--- Terminada a discussão da causa, este tribunal considerou provados os
seguintes factos: --------
-- A) --
--- No dia 15 de Maio de 2001, o réu deu entrada no serviço de urgências da
autora para aí receber tratamento médico, pelo facto de naquele dia e em
circunstâncias desconhecidas, ter sofrido diversas lesões, tendo ficado
internado até ao dia 22 de Maio de 2001 (cf. Artigos 1º) e 2º) da Petição
Inicial). ------
-- B) --
--- Os tratamentos médicos ministrados ao réu ascenderam ao montante de €:
4.865,23 (cf. Artigo 3º) da Petição Inicial). --
-- c) --
--- Através da carta constante de fls. 5, remetida para a residência do réu e aí
recebida por outrem que não o réu, a autora, através do seu mandatário, informou
o réu de que só não seria proposta acção em tribunal “se a dívida se
mostrar paga (…) no prazo de dez dias, ou nos informar do que for conveniente,
nomeadamente se efectuaram a participação enviando-nos cópia da mesma, ou nos
forneçam a descrição do acidente mencionando o número de apólice válida que
possa regularizar o sinistro” (cf. Artigo 4º) da Petição Inicial). ------
-- D) --
--- O réu não forneceu o número de beneficiário nem quaisquer informações ao
Hospital da autora (cf. Artigo 5º) da Petição Inicial).------
-- E) --
--- Quando foi assinado o aviso de recepção relativo à carta mencionada no
artigo 4º) da Petição Inicial, o réu encontrava-se internando num Centro de
Recuperação, não contactando com o exterior, designadamente, com familiares (cf.
Artigo 11º) da Contestação). ------
-- F) --
--- O réu é beneficiário da Segurança Social desde Dezembro de 1990, sendo
titular do cartão de beneficiário com o número 111363975 cf. Artigo 13º) da
Contestação). ------
2. Fundamentos da Acção (cont.)
2.2. O Direito
--- Definida a factualidade apurada nestes autos, é tempo de proceder à
aplicação do direito, tendo presente o objecto da presente acção, acima
sucintamente delineado pela definição da questão decidenda. ------
--- Nos termos do artigo 64º, da Constituição da República Portuguesa, todos têm
direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover, sendo tal
direito realizado, designadamente, através de um serviço nacional de saúde
universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos
cidadãos, tendencialmente gratuito, para o que incumbe prioritariamente ao
Estado garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição
económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação.
-----
--- Como é sabido, garante-se no preceito constitucional citado o direito à
protecção da saúde na sua feição de direito social, ali se consagrando um
direito positivo dos cidadãos que, pela sua própria estrutura, exige prestações
do Estado e impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas,
designadamente, a criação e manutenção do serviço nacional de saúde. -------
--- Na verdade, a principal obrigação do Estado para realizar o direito à
protecção da saúde consiste na criação de um serviço nacional de saúde, o qual,
de acordo com as características contidas no próprio texto constitucional,
deverá ser universal, porque dirigido à generalidade dos cidadãos, geral, ou
seja, deve abranger todos os serviços públicos de saúde e todos os domínios e
prestações médicos, e tendencialmente gratuito, pois que o cidadão deverá ter
direito a esse serviço sem qualquer encargo ou através do pagamento de taxas, as
quais, em qualquer caso, não podem impedir o acesso ao serviço nacional de saúde
em virtude de condições económicas ou sociais (vd. Gomes Canotilho, Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p.
342). -----
--- Por outro lado, o direito à protecção da saúde consagrado na citada norma
encerra, ainda, uma dimensão objectivo-programática, a qual impõe sobre o Estado
o dever de cumprir adequadamente às imposições constitucionais, sob pena de
incorrer numa inconstitucionalidade por omissão. -----
--- Ora, ao nível da legislação ordinária, encontramos vários diplomas legais
que mais não são do que o resultado do cumprimento, pelo Estado, das imposições
decorrentes do texto constitucional citado. ------
--- Assim, impõe-se, desde logo, destacar a Lei número 48/90, de 24 de Agosto (a
Lei de Bases da Saúde), em cuja Base I se estabelece: -----
1- A protecção da saúde constitui um direito dos indivíduos e da comunidade que
se efectiva pela responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do
Estado, em liberdade de procura e de prestação de cuidados, nos termos da
Constituição e da lei.
2 - O Estado promove e garante o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de
saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis.
3 - A promoção e a defesa da saúde pública são efectuadas através da actividade
do Estado e de outros entes públicos, podendo as organizações da sociedade civil
ser associadas àquela actividade.
4 - Os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do
Estado ou, sob fiscalização deste, por outros entes públicos ou por entidades
privadas, sem ou com fins lucrativos.
--- Por outro lado, importa, ainda, citar a Base IV da Lei citada, nos termos da
qual: -----
1 - O sistema de saúde visa a efectivação do direito à protecção da saúde.
2 - Para efectivação do direito à protecção da saúde, o Estado actua através de
serviços próprios, celebra acordos com entidades privadas para a prestação de
cuidados e apoia e fiscaliza a restante actividade privada na área da saúde.
3 - Os cidadãos e as entidades públicas e privadas devem colaborar na criação de
condições que permitam o exercício do direito à protecção da saúde e a adopção
de estilos de vida saudáveis.
--- Atentos os contornos do caso destes autos, importará também atentar no
capítulo III, da citada Lei de Bases da Saúde, onde, com interesse, se definem
as seguintes bases: -----
Base XXIV (características)
O Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por: a) Ser universal quanto à
população abrangida; b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir a
sua prestação; c)Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo em conta as
condições económicas e sociais dos cidadãos; d) Garantir a equidade no acesso
dos utentes, com o objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades
económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados; e) Ter
organização regionalizada e gestão descentralizada e participada.
Base XXV (Beneficiários)
1 - São beneficiários do Serviço Nacional de Saúde todos os cidadãos
portugueses.
2 - São igualmente beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos
nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos termos das normas
comunitárias aplicáveis.
3 - São ainda beneficiários do Serviço Nacional de Saúde os cidadãos
estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os
cidadãos apátridas residentes em Portugal.
--- Ora, com vista à regulamentação da citada Lei de Bases da Saúde, foi
aprovado o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, publicado em anexo ao
Decreto-lei número 11/93, de 15 de Janeiro, Estatuto que, nos termos do artigo
2º, deste diploma, se aplica às instituições e serviços que constituem o Serviço
nacional de Saúde e às entidades particulares e profissionais em regime liberal
integradas na rede nacional de prestação de cuidados de saúde, quando
articuladas com o Serviço Nacional de Saúde. -----
--- De acordo com os artigos 1º e 2º, do referido Estatuto, o Serviço Nacional
de Saúde é um conjunto ordenado e hierarquizado de instituições e de serviços
oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou
a tutela do Ministério da Saúde, sendo seu objectivo a efectivação, por parte do
Estado, da responsabilidade que lhe cabe na protecção da saúde individual e
colectiva. ----
--- Por outro lado, importará atender ainda ao disposto no artigo 23º, do
referido Estatuto, no qual, sob a epígrafe “Responsabilidade pelos encargos”, se
estabelece: -----
I - Além do Estado, respondem pelos encargos resultantes da prestação de
cuidados de saúde prestados no quadro do Serviços Nacional de Saúde:
a) Os utentes não beneficiários do SNS e os beneficiários na parte que lhes
couber, tendo em conta as suas condições económicas e sociais;
b) Os subsistemas de saúde, neles incluídas as instituições particulares de
solidariedade social, nos termos dos seus diplomas orgânicos ou estatutários;
c) As entidades que estejam a tal obrigadas por força de lei ou de contrato;
d) As entidades que se responsabilizem pelo pagamento devido pela assistência em
quarto particular ou por outra modalidade não prevista para a generalidade dos
utentes;
e) Os responsáveis por infracção às regras de funcionamento do sistema ou por
uso ilícito dos serviços ou material de saúde.
2 - São isentos de pagamento de encargos os utentes que se encontrem em
situações clínicas ou pertençam a grupos sociais de risco ou financeiramente
mais desfavorecidos, constantes de relação a estabelecer em decreto-lei.
3 - A demonstração das condições económicas e sociais dos utentes é feita
segundo regras a estabelecer em portaria do Ministro da Saúde, podendo ser
considerados os elementos definidores da sua situação fiscal.
--- Decorrendo, pois, da Constituição e da Lei que o cidadão português é, como
simples decorrência dessa cidadania, beneficiário do Serviço Nacional de Saúde,
sentiu-se necessidade de estabelecer um sistema de identificação dos utentes
daquele Serviço, o qual, assegurando a definição exacta da situação de cada
utente, tinha como objectivo garantir a concretização dos direitos dos seus
titulares, designadamente, o acesso a actividades de protecção da saúde, à
prestação de cuidados e ao fornecimento de medicamentos, quer pelos serviços
próprios do Serviço Nacional de Saúde quer pela entidades privadas com ele
convencionadas. ------
--- Assim, para responder a tal necessidade, o Decreto-lei número 198/95, de 29
de Julho, criou o cartão do utente do Serviço Nacional de Saúde, podendo ler-se
no respectivo Preâmbulo: -----
“Importa, por isso, unificar, no respeito pelos princípios da universalidade e
da equidade, o sistema de identificação dos utentes do Serviços Nacional de
Saúde, através da instituição de um cartão, de emissão gratuita e natureza
substitutiva, em termos idênticos aos existentes para utentes de subsistemas.
-----
“Prossegue-se, deste modo, a mais fácil identificação pessoal nos serviços de
saúde, sem necessidade de apresentação de qualquer outro documento. Para além
disso, esta medida, representa um benefício acrescido para o seu titular, na
medida em que elimina circuitos e procedimentos burocráticos e simplifica a
atribuição da isenção das taxas moderadoras e o reconhecimento de outras
situações de isenção. A natureza do cartão do utente promove, ainda, a
movimentação mais fácil no âmbito dos serviços de saúde, pela eliminação de
circuitos e de documentos, substituíveis por este cartão.
“Doutra parte, a existência de um cartão de identificação uniforme garante ao
respectivo titular o conhecimento adequado e actualizado dos respectivos
direitos, designadamente, no que respeita à identificação de terceiros
responsáveis, à isenção de taxas e comparticipação especial de medicamentos.
“O cartão de identificação do utente é, pois, para o seu titular, um instrumento
de participação esclarecida no processo de efectivação do direito à protecção da
saúde(…)”
--- Em perfeita sintonia com o espírito de tal diploma legal, estabelecia-se no
seu artigo 2º, que: ------
1- O cartão de identificação do utente constitui um meio facultativo, com
natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu titular perante a
instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde e as entidades
privadas na área da saúde.
2- O cartão de identificação do utente é de emissão gratuita e substitui, para
os efeitos referidos no número anterior, qualquer outro cartão ou documento de
identificação do seu titular.
--- A norma citada foi, todavia, objecto de profunda alteração, por força da
entrada em vigor do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril, cujo artigo único
atribuiu ao citado artigo 2º, do Decreto-lei número 198/95, de 29 de Julho, a
seguinte redacção: -----
1- O cartão de identificação do utente deve ser apresentado sempre que os
utentes utilizem os serviços das instituições e serviços integrados no Sistema
Nacional de Saúde ou com ele convencionado.
2- A não identificação dos utentes nos termos do número anterior não pode, em
caso algum, determinar a recusa de prestações de saúde.
3- Aos utentes não é cobrada, com excepção das taxas moderadoras, quando
devidas, qualquer importância relativa às prestações de saúde quando devidamente
identificados nos termos deste diploma ou desde que façam prova, nos dez dias
seguintes à interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde
prestados, de que são titulares ou requereram a emissão do cartão de
identificação de utente do Serviço Nacional de saúde.
--- A dimensão da alteração legislativa operada pelo mencionado Decreto-lei
número 52/2000, de 7 de Abril, surge particularmente impressiva quando se atente
no respectivo preâmbulo, no qual se refere: -----
“O sistema de saúde português necessita, para ser mais eficaz e eficiente, de
conhecer toda a população e as suas características.
“A identificação dos utilizadores do Serviço Nacional de Saúde foi instituída
pelo Decreto-Lei número 198/95, de29 de Julho.
“De facto, o conhecimento inequívoco de cada utente no sistema, a referenciação
com identificação única inter e intra-estabelecimentos de saúde, a medição de
frequência de utilização e o acesso a diferente tipologia de serviços de saúde
potenciam uma melhor prestação de cuidados de saúde, para além de constituírem
uma mais-valia global em termos de planeamento e estatística da saúde.
“Urge, por isso, promover a generalização do uso do cartão de utente no sistema
de saúde.
“Esclarece-se que a não exibição do cartão não pode em circunstância alguma pôr
em causa o direito à protecção na saúde constitucionalmente garantido, evitando
que o problema burocrático ou administrativo da identificação do utente do
Serviço Nacional de Saúde impeça a realização das prestações de saúde.
“Todavia, torna-se necessário associar consequências à não identificação do
cartão e que assentam no pressuposto que o utente não identificado não é
beneficiário do Serviço Nacional de Saúde, associando o ónus do pagamento
directo do utente pelos encargos decorrentes de cuidados de saúde, quando não se
apresente devidamente identificado nas instituições e serviços prestadores ou
não indique terceiro, legal ou contratualmente responsável. Esta
responsabilização prática das instituições e serviços integrados no Serviço
Nacional de Saúde fica agora mitigada pela possibilidade de o utente se eximir
da responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados requerendo o respectivo
documento de identificação.”
--- Assim, da conjugação do artigo único do citado Decreto-lei número 52/2000
com o respectivo preâmbulo, conclui-se que tal diploma legal tem na sua base a
seguinte principiologia: a) Ao utente que apresentar o cartão de utente do SNS
ou que faça prova, no prazo de 10 dias sobre a interpelação para o pagamento dos
encargos com os cuidados de saúde prestados, de que requereu a emissão do
cartão, não é cobrada (com excepção das taxas moderadoras) qualquer importância
relativa a prestações de saúde; b) Os utentes que não forem titulares do cartão
ou que não requererem a sua emissão deverão pagar os cuidados de saúde
prestados. ------
--- Ora, sem descurar que uma interpretação ou aplicação mais restritiva da
norma introduzida pelo referido diploma no Decreto-lei número 198/95, de 20 de
Julho (condicionadora da gratuitidade da prestação de cuidados de saúde à
apresentação do cartão ou à prova da requisição da sua emissão), é susceptível
de aspoletar algumas objecções ao nível da constitucionalidade material do
preceito, na medida em que poderá colidir com a consagração constitucional do
“direito à saúde” (vd. artigo 64º da Constituição da República Portuguesa, acima
citado), o certo é que o próprio diploma que consagrou tal norma – o Decreto-lei
número 52/2000 - suscita algumas dúvidas do ponto de vista da sua
constitucionalidade formal.----
--- Na verdade, com a introdução da norma referida no Ordenamento Jurídico
Português, o legislador afastou-se claramente do espírito que presidira à
promulgação do Decreto-lei 198/95, de 29 de Julho, que assentava na criação de
um sistema de identificação dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, elevando o
cartão de utente do Serviço Nacional de Saúde a condição da gratuitidade da
prestação dos cuidados de saúde. Resumindo: por força do Decreto-lei número
52/2000, o cartão de utente do serviço nacional de saúde deixou de ser um
simples documento de identificação (como o era à luz da redacção originária do
Decreto-lei número 198/95, de 29 de Julho), para passar a ser condição da
gratuitidade da prestação de cuidados de saúde pelas instituições e serviços
integrados no Serviço Nacional de Saúde ou com ele convencionados. -----
--- Dizendo isto, é manifesto que o diploma em questão veio materialmente
desenvolver a própria Lei de Bases da Saúde, designadamente, a sua BASE XXV,
acima citada, na medida em que introduziu uma importante precisão na parte
relativa à definição dos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, impondo
àqueles que se enquadrem em tal categoria a obtenção de um cartão de
identificação, sem o qual deixarão na prática de ser beneficiários de tal
serviço e deverão suportar o pagamento dos cuidados que lhes forem prestados
pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde ou com ele
convencionados.-
--- Por outro lado, veio ainda tal diploma alterar, ainda que não expressamente,
o próprio Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, na medida em que, para além das
pessoas indicadas no artigo 23º, de tal Estatuto, acima citado, passarão a
responder pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde todos
aqueles que, independentemente de serem ou não beneficiários do Serviço Nacional
de Saúde (ou seja, independentemente de se enquadrarem na definição da Base XXV
da Lei de Bases da Saúde), não façam prova, nos dez dias seguintes à
interpelação para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados, de
que são titulares ou requereram a emissão do cartão de identificação de utente
do Serviço Nacional de Saúde. ------
--- Ora, no artigo 198º, número 1, da Constituição da República Portuguesa,
estabelece-se o seguinte: -----
1. Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a) Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
b) Fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da Assembleia da
República, mediante autorização desta;
c) Fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos
regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
2. É da exclusiva competência legislativa do Governo a matéria respeitante à sua
própria organização e funcionamento.
3. Os decretos-leis previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 devem invocar
expressamente a lei de autorização legislativa ou a lei de bases ao abrigo da
qual são aprovados.
--- Nestes termos, e por contender directamente com a Lei de Bases da Saúde, nos
termos que se acabam de descrever, matéria esta que é da reserva (relativa) da
Assembleia da República, ao Governo apenas estava deferida a faculdade de
legislar sobre a matéria versada pelo Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril
(condições de acesso à prestação gratuita de cuidados de saúde no âmbito do
Serviço Nacional de Saúde), através de decreto-lei de desenvolvimento, com
referência à Lei de Bases da Saúde, e não mediante decreto-lei independente
(neste sentido, Gomes Canotilho, Vital Moreira, op. cit., p. 778), sendo certo
que, por força do citado artigo 198º, número 3, da Constituição da República
Portuguesa, se impunha ao órgão legiferante a invocação expressa da Lei de Bases
da Saúde, ao abrigo da qual o diploma mencionado deveria ter sido aprovado.
-----
--- Todavia, analisando o diploma em questão, na sua forma, é manifesto que se
não trata de um decreto-lei de desenvolvimento, tendo o Governo expressamente
invocado o artigo 198º, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (o
que dá ao diploma em apreço a configuração de um decreto-lei independente), sem
qualquer menção à Lei de Bases da Saúde, cujo regime veio, não obstante e como
acima se deixou dito, desenvolver. -----
--- Ora, nos termos do artigo 277º, número 1, da Constituição da República
Portuguesa, são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na
Constituição ou os princípios nela consignados. ---
--- Da citada norma resulta, pois, que a inconstitucionalidade de uma norma
consiste na ofensa da disciplina constitucional em qualquer dos seus aspectos -
incompetência, vício de forma ou de procedimento, contradição entre o conteúdo
da norma e o conteúdo normativo da Constituição -, podendo dizer-se, com Gomes
Canotilho e Vital Moreira (op. cit., p. 992), que uma norma será
inconstitucional sempre que viole qualquer dos aspectos constitucionalmente
vinculados. -----
--- Por outro lado, tal inconstitucionalidade poderá ser declarada pelos
tribunais comuns, no âmbito da chamada fiscalização concreta da
constitucionalidade, prevista no artigo 280º, número 1, alínea a), da
Constituição da República Portuguesa, também designada por processo incidental
ou acção judicial de inconstitucionalidade, a qual encerra um direito de
fiscalização dos juízes (judicial review) relativamente a normas a aplicar a um
caso concreto. -----
--- Tal fiscalização concreta da constitucionalidade, que deve ser levantada num
feito submetido a julgamento, perante um tribunal, poderá ser suscitada a
instâncias de parte, ex officio pelo juiz e pelo Ministério Público, quando seja
parte no processo. -----
--- Como requisitos objectivos desse controlo concreto da constitucionalidade
das normas, importa enunciar, com interesse para os presentes autos, os
seguintes: 1) que se trate de uma questão de constitucionalidade, ou seja, que
se coloque perante o tribunal comum uma questão de conformidade ou
desconformidade de um concreto acto normativo a aplicar a um caso submetido a
julgamento, questão que deverá ser suscitada e julgada independentemente do seu
acolhimento ou rejeição trazer benefícios a qualquer das partes processuais; 2)
que a questão da constitucionalidade seja relevante para a decisão da causa,
i.é, terá que tratar-se de uma questão prévia relevante para a decisão da
questão principal, exigindo-se, por um lado, que tal questão seja relevante do
ponto de vista da decisão do feito submetido a julgamento e que, por outro lado,
concluindo-se pela inconstitucionalidade da norma, esta seja efectivamente
desaplicada no caso sub lite com esse fundamento; 3) que a questão da
inconstitucionalidade tenha por objecto normas que tenham que ser aplicadas na
causa, com o sentido de limitar a fiscalização da constitucionalidade a actos
normativos, normas, sejam materiais ou processuais, que podem incidir sobre o
mérito da causa, ou apenas sobre meios probatórios ou pressupostos processuais,
podendo lesar ou não direitos fundamentais ou interesses legítimos das partes
(vd. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, ed. Almedina, Coimbra, 1992, p.
1059 e sgts.). ------
--- Ora, vertendo tais requisitos ao caso destes autos, poder-se-á imediatamente
concluir que os mesmos se acham aqui integralmente verificados. ------
--- Com efeito, a questão que se acaba de suscitar é uma efectiva questão de
constitucionalidade (formal), colocando-se em causa a conformidade do artigo
único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de Abril, com a Constituição, em
virtude de tal diploma ter desenvolvido, ainda que não assumidamente, a Base XXV
da Lei de Bases da Saúde, concretizando os termos em que os beneficiários do
Serviços Nacional de Saúde podem aceder gratuitamente à prestação de cuidados de
saúde, sem fazer qualquer referência à lei de bases que poderia sustentar a sua
aprovação (Lei de Bases da Saúde). ------
--- Por outro lado, trata-se de uma questão relevante do ponto de vista da
decisão da causa, uma vez que o pedido formulado pela autora se funda na
circunstância de o réu não ter feito prova da qualidade de beneficiário do
Serviço Nacional de Saúde, no prazo previsto no citado artigo 2º, do Decreto-lei
número 198/95, de 29 de Julho, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-lei
número 52/2000, de 7 de Abril. Assim, é manifesto que, concluindo-se pela
inconstitucionalidade de tal norma e consequente desaplicação ao caso, tal
conduzirá à manifesta improcedência da acção. -----
--- Na verdade, afastada a aplicação do referido diploma, passarão a valer os
princípios gerais da Lei de Bases da Saúde e do Estatuto do Serviço Nacional de
Saúde (Base XXV, da Lei de Bases da Saúde, e artigo 23º, número 1, alínea a), do
Estatuto do Serviço Nacional de Saúde), à luz dos quais, a acção só seria
procedente e o réu condenado a pagar à autora a quantia peticionada, caso esta
tivesse alegado e provado que o mesmo não é beneficiário do serviço nacional de
saúde (o que não foi alegado nem provado). -----
--- Finalmente, é manifesto que se está in casu perante uma eventual
desconformidade de um acto normativo (Decreto-lei) com a Constituição, que teria
que ser aplicado ao caso submetido a julgamento, pelo que se conclui pela
verificação do último requisito acima enunciado. -----
--- Assim, e por tudo o que se deixa exposto, impõe-se declarar a
inconstitucionalidade do artigo único do Decreto-lei 52/2000, de 7 de Abril.
-----
--- Declarada a inconstitucionalidade de tal norma, o artigo 2º, do Decreto-lei
número 198/95, de 29 de Julho, passará a valer com a sua redacção originária,
acima transcrita (1- O cartão de identificação do utente constitui um meio
facultativo, com natureza substitutiva, de comprovação da identidade do seu
titular perante a instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de
Saúde e as entidades privadas na área da saúde.2- O cartão de identificação do
utente é de emissão gratuita e substitui, para os efeitos referidos no número
anterior, qualquer outro cartão ou documento de identificação do seu titular), a
qual nenhuma relevância tem do ponto de vista da decisão da causa. -----
--- Nestes termos, estando o Hospital A., S.A., integrado no Serviço Nacional de
Saúde (cf. artigo 2, número 2, do Decreto-lei número 297/2002), a apreciação do
pedido formulado nestes autos passa necessariamente pela análise do artigo 23º,
número 1, alínea a), do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, conjugado com a
Base XXV, da Lei de Bases da Saúde. ----
--- Ora, nos termos do artigo 23º, número 1, alínea a), do Estatuto do Serviço
Nacional de Saúde, além do Estado, respondem pelos encargos resultantes da
prestação de cuidados de saúde prestados no quadro do Serviços Nacional de
Saúde, os utentes não beneficiários do SNS e os beneficiários na parte que lhes
couber, tendo em conta as suas condições económicas e sociais. -----
--- Por outro lado, para os efeitos da norma citada deverão considerar-se
beneficiários do Serviço Nacional de Saúde todos os cidadãos portugueses, bem
como os cidadãos nacionais de Estados membros das Comunidades Europeias, nos
termos das normas comunitárias aplicáveis, e, ainda, os cidadãos estrangeiros
residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, e os cidadãos apátridas
residentes em Portugal (cf. Base XXV, da Lei de Bases da Saúde). -----
--- Nessa medida, a procedência do pedido formulado pela autora dependia da
alegação e prova de que o réu, por não se integrar em nenhuma das hipóteses
previstas na Base XXV, da Lei de Bases da Saúde, não é beneficiário do Serviço
Nacional de Saúde, pois que, atento o disposto no artigo 23º, do Estatuto do
Serviço Nacional de Saúde, só nesse circunstancialismo fáctico poderia ser
responsabilizado pelo pagamento das despesas hospitalares reclamadas nestes
autos. ------
--- Ora, no caso destes autos, a autora não alegou nem provou que o réu não
fosse beneficiário daquele serviço, de onde se conclui que, julgada
inconstitucional a norma do artigo único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de
Abril, não existe fundamento para deslocar do Estado para o réu a obrigação de
suportar o pagamento das despesas hospitalares reclamadas pela autora. -------
--- Responsabilidade pelas Custas: Assim, deverá a presente acção ser julgada
improcedente, absolvendo-se o réu do pedido formulado pela autora. Face a tal
desfecho, deverá a autora ser condenada nas custas, às quais, com o seu
decaimento, deu causa - cf. artigo 446º, números 1 e 2, do Código de Processo
Civil. ------
3. Decisão
--- Nestes termos e com tais fundamentos, este tribunal decide declarar
inconstitucional a norma do artigo único do Decreto-lei número 52/2000, de 7 de
Abril, por violação do artigo 198º, números 1 e 3, da Constituição da República
Portuguesa. ------
--- Mais, decide este tribunal julgar a presente acção improcedente, por não
provada, e, consequentemente, absolver o réu do pedido.”
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade
obrigatório para apreciação de conformidade à Constituição do Decreto-Lei n.º
52/2000, de 7 de Abril, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do
Tribunal Constitucional.
Junto do Tribunal Constitucional o Ministério Público
apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“1 – O estabelecimento, pelo Decreto-Lei nº 52/00, de um dever acessório de
identificação dos utentes do Sistema Nacional de Saúde, através da titularidade
e apresentação do respectivo cartão, tem uma natureza meramente “secundária” ou
“procedimental”, não respeitando à matéria da definição das “bases gerais” da
saúde, não contendendo com as normas da Lei de Bases da Saúde que delimitam os
beneficiários do Serviço Nacional de Saúde – situando-se, deste modo, no âmbito
da competência legislativa própria do Governo.
2 – Face ao artigo 64º da Constituição da República Portuguesa, o direito –
universal e geral – à protecção da saúde – embora dependente de uma interposição
concretizadora do legislador – implica que as prestações positivas alcançadas do
serviço nacional de saúde se configurem como “tendencialmente gratuitas”, o que
seguramente implica que o encargo suportado pelo utente, no caso de indivíduos
economicamente carenciados, não possa corresponder à integralidade do custo de
tais prestações ou cuidados de saúde.
3 – Constitui restrição desproporcionada e excessiva a tal “direito social” a
que se traduz em sancionar o incumprimento do dever acessório de identificação
do utente através do cartão, a realizar no prazo peremptório de 10 dias,
contados da interpelação, com o integral pagamento dos serviços prestados,
independentemente da situação económica do utente e da relevância concreta desse
incumprimento, nomeadamente da efectiva possibilidade de a Administração o poder
identificar cabalmente através dos elementos fornecidos e disponíveis.
4 – É, pois, materialmente inconstitucional a norma constante do nº 3 do artigo
2º do Decreto-Lei nº 198/95, enquanto considera precludido o direito à
“gratuitidade tendencial” dos serviços prestados, ínsito no artigo 64º, nº 2,
alínea a) da Constituição da República Portuguesa, apenas pelo facto de o utente
não ter cumprido o dever acessório de demonstração da titularidade do respectivo
cartão, no prazo peremptório de 10 dias, subsequentes à interpelação para
pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.”
O recorrido não contra-alegou.
3. Cumpre apreciar.
II
FUNDAMENTAÇÃO
4. Na perspectiva da decisão recorrida, o artigo 2.º da
Decreto-Lei n.º 198/95, de 29 de Julho, na redacção do Decreto-Lei n.º 52/2000,
de 7 de Abril, preceito que condiciona o pagamento dos cuidados de saúde
prestados à apresentação do cartão de identificação de utente do Sistema
Nacional de Saúde (no momento do atendimento ou no prazo de 10 dias a contar da
interpelação para pagamento dos encargos, bastando então a prova da requisição
do cartão, é formalmente inconstitucional, já que, sendo o cartão condição de
gratuitidade da prestação dos cuidados de saúde, estar-se-ia perante um
desenvolvimento material da Lei de Bases da Saúde, desenvolvimento realizado por
decreto-lei desprovido de credencial bastante (artigo 190.º , n.ºs 1 e 3 da
Constituição).
Cabe, no entanto, realçar que a exigência da apresentação do
cartão ou da prova de o mesmo ter sido requerido não consubstancia encargo
excessivamente oneroso, já que, mesmo os utentes que não são titulares do cartão
podem requerê-lo e fazer respectiva prova, tendo desse modo acesso aos cuidados
de saúde (quanto aos cuidados de saúde, têm sempre acesso, mesmo que incumpram a
exigência) tendencialmente gratuitos.
Assim, verifica-se que a exigência da apresentação de cartão,
ou da prova de que foi requerido, constitui uma mera condição procedimental do
exercício do direito à assistência médica, não se traduzindo num critério de
definição do leque de utentes do Serviço Nacional de Saúde. Com efeito, mesmo na
vigência da norma que consagra esta exigência (o regime anterior estabelecia o
carácter facultativo da utilização do cartão), todos os cidadãos continuam a ter
acesso tendencialmente gratuito ao Serviço Nacional de Saúde (cfr. princípios da
universalidade e da tendencial gratuitidade, consagrados na Base XXIV, alíneas
a) e c), da Lei de Bases da Saúde – Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto).
Deste modo, o diploma em apreciação não inova em matéria
abrangida pela Lei de Bases da Saúde, regulando apenas a prova da titularidade
do utente do Serviço Nacional de Saúde, pelo que não contende com o disposto no
n.º 3 do artigo 198.º da Constituição, já que não está em causa a reserva de
competência relativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea f),
da Constituição].
Os fundamentos do juízo de inconstitucionalidade da decisão
recorrida improcedem, portanto.
5. Contudo, importa apreciar a conformidade à Constituição do
preceito em questão, utilizando como parâmetro de constitucionalidade o
princípio da proporcionalidade e o direito à saúde (artigos 18.º e 64.º da
Constituição).
Para o efeito, cabe ter presente que o regime em causa pode ter
por consequência a necessidade do pagamento pelo utilizador dos serviços
prestados.
Por outro lado, a Lei não prevê a forma pela qual a
interpelação para pagamento dos encargos decorrentes dos serviços prestados
(termo a quo do prazo de 10 dias para apresentar o cartão) tem lugar.
Sublinhe-se, também, que a lei não permite a valoração de uma
eventual ausência de culpa do utente no incumprimento do dever acessório em
questão.
Por último, no caso dos autos a Administração tinha
conhecimento do número Nacional de utente do recorrente através dos elementos
fornecidos e disponívies.
Ora, uma norma que impõe ao utente economicamente carenciado o
efectivo pagamento dos serviços clínicos prestados como mera consequência do
incumprimento de um ónus procedimental ou formal, de natureza manifestamente
secundária, afigura-se incompatível com o princípio da proporcionalidade e com o
carácter universal e tendencialmente gratuito do Serviço Nacional de Saúde,
expressão constitucional da consagração constitucional do direito à saúde
(artigos 2.º, 18.º e 64.º da Constituição).
6. Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade da norma
desaplicada, ainda que com fundamento diverso do da decisão recorrida.
III
DECISÃO
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide
confirmar, com fundamento diverso – a violação conjugada dos artigos 2.º, 18.º e
64.º da Constituição – o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão
recorrida, relativo à norma do artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei nº 52/2000, de 7
de Abril, interpretada no sentido de obrigar o pagamento dos serviços prestados
apenas pelo facto de o utente não ter cumprido o ónus de demonstração de
titularidade do cartão de utente no prazo de 10 dias subsequentes à interpelação
para pagamento dos encargos com os cuidados de saúde prestados.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos