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Processo nº 840/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal Cível de Lisboa, em que é
recorrente o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da
decisão daquele Tribunal, de 16 de Setembro de 2005, que recusou a aplicação do
Anexo à Lei nº 34/04, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6º a 10º da
Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que seja
considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente de
benefício do apoio judiciário, maior, estudante, a quem são prestados alimentos
pela avó, o rendimento desta, por violação do direito de acesso ao direito e aos
tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
2. A. impugnou judicialmente decisão do Centro Distrital de Segurança Social de
Lisboa que indeferiu o pedido por si formulado de apoio judiciário na modalidade
de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e nomeação e
pagamento de honorários de patrono.
Pela sentença agora recorrida, foi concedido provimento à impugnação, nos
seguintes termos:
«A., residente na Rua …, …, em Lisboa requereu benefício do apoio judiciário nas
modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo,
nomeação e pagamento de honorários de patrono, pagamento faseado de taxa de
justiça e demais encargos com o processo, de honorários de patrono e de
remuneração de solicitador de execução, para a acção declarativa de que os
presentes são apenso.
*
O Instituto de Segurança Social, I P informou o requerente da intenção de
indeferir o pedido de apoio judiciário, porquanto “pela aplicação da fórmula
constante da Portaria 1085-A/2004, ao que foi documentado pelo requerente, este
não comprova uma situação de insuficiência económica de forma a beneficiar de
apoio judiciário, na modalidade requerida (dispensa de pagamento de taxa de
justiça e demais encargos com o processo e nomeação e pagamento de honorários de
patrono).”
E informou o requerente que “segundo o documentado por este, apenas terá direito
a apoio judiciário, na modalidade “de pagamento faseado” em conformidade com o
Anexo II da Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, tendo em conta que: o rendimento
liquido anula é de € 10 048,00, o rendimento mensal para efeitos de protecção
jurídica é de € 398,74, a periodicidade da liquidação será mensal, o valor a
liquidar será de €60,00.”
Consignou ainda que “caso queira beneficiar desta modalidade, deverá enviar uma
carta com essa intenção”.
*
O requerente pronunciou-se dizendo que não auferia os rendimentos referidos, é
estudante, não trabalha e sobrevive apenas com o apoio de uma pensão de
sobrevivência de € 100,00, não dispondo de meios para suportar o pagamento de
taxas de justiça e honorários com patrono, incluindo o pagamento faseado
proposto, requerendo a alteração da decisão.
*
O Instituto de Segurança Social, I P indeferiu o pedido de apoio judiciário na
modalidade requerida, considerando que o requerente não aceitou a concessão do
benefício do apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado.
*
Deduziu o requerente impugnação judicial da referida decisão dizendo, em
síntese, que não dispõe de rendimentos que lhe permitam suportar a prestação
mensal de € 60,00, pois é estudante, não exerce qualquer actividade remunerada,
apenas recebendo € 100,00 de pensão de sobrevivência, não correspondendo á
verdade que aufira o rendimento liquido anual de € 10 048,00, sobrevive com o
apoio da avó, a sua mãe não lhe deixou qualquer património.
Termina requerendo a alteração da decisão do ISS concedendo-se ao requerente o
benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e
demais encargos do processo, nomeação e pagamento de honorários de patrono.
*
O ISS pronuncia-se dizendo que decidiu em conformidade com o que consta da lei,
pelo que a decisão deve ser mantida.
*
2. Dos factos relevantes
1. O requerente é estudante.
2. Aufere uma pensão de sobrevivência de € 100,00.
3. O requerente vive com a avó, B., que é quem provê ao seu sustento.
4. A referida B. aufere uma pensão de sobrevivência liquida mensal de € 776,59.
*
3. Direito
A compreensão da impugnação do requerente passa pela convocação das normas
legais aplicáveis ao caso.
Nos termos do art.º 20° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa – e que
está integrado na parte relativa aos princípios gerais dos direitos e deveres
fundamentais – a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Em termos de lei ordinária, o apoio judiciário é regulado pela Lei n.º 34/2004,
de 29 de Julho, em cujo art.º 1 o se dispõe que o sistema de acesso ao direito e
aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido,
em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios
económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos.
E nos termos do art.º 7° n.º 1 da mesma Lei têm direito a protecção jurídica,
nos termos da presente lei, os cidadãos nacionais e da União Europeia, bem como
os estrangeiros e os apátridas com título de residência válido num Estado membro
da União europeia, que demonstrem estar em situação de insuficiência económica.
Até aqui não há qualquer inovação relativamente ao Direito anterior.
No entanto a Lei n.º 34/04 implementou uma profunda remodelação no que respeita
à delimitação/concretização da insuficiência económica como pressuposto da
concessão do benefício do apoio judiciário, remodelação que começa com o n.º 1
do art.º 8° o qual dispõe que encontra-se em situação de insuficiência económica
aquele que, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva
capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente
os custos de um processo.
E nos termos do n.º 5 do mesmo preceito, a prova e a apreciação da insuficiência
económica devem, ser feitas de acordo com os critérios estabelecidos e
publicados em anexo á presente lei.
O Conselheiro Salvador da Costa, in Apoio Judiciário, pág. 64 entende que a
referida regulamentação em anexo não se consubstancia em delimitação do direito
fundamental consagrado no art.º 20° n.º1 da CRP (....)
Salvo melhor opinião, mas como resulta claro do citado n.º 5 do art.º 8° e como
resultará claro da simples leitura dos preceitos que a seguir serão citados,
outra coisa não se faz que não seja delimitar o direito de acesso ao Direito e
aos tribunais, pois tal acesso depende de uma situação de insuficiência
económica, cujos critérios de apreciação são fixados/tabelados, inclusive por
recurso a uma fórmula matemática.
Mas continuando a analisar os preceitos relevantes há que considerar o que
consta do Anexo e que tem o seguinte teor:
(…)
Ou seja, a norma que constituía o art.º 7° n.º 1 da Lei n.º 30-E/20 de Dezembro
e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma preenchida
legislativamente.
O que era antes uma norma aberta à ponderação do caso concreto passou a ser uma
norma fechada, ponderando estritos aspectos económicos-financeiros, como resulta
claro da adopção de uma fórmula matemática.
Sendo pressuposto da concessão do beneficio do apoio judiciário uma situação de
insuficiência económica, ao tabelarem-se os critérios de apreciação dessa
situação, inclusive com recurso a uma fórmula matemática como resulta dos
artigos 6° a 10° da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, é manifesto que
se procedeu a uma delimitação do direito de acesso ao Direito e aos tribunais.
Tal delimitação não foi feita na norma que consagra o direito; foi feita ao
nível da sua concretização.
*
O ISS indeferiu o pedido de apoio judiciário ao requerente, considerando para
tanto que o seu agregado familiar tinha um rendimento relevante que lhe dava
direito ao benefício do apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado e
porque o requerente recusou tal modalidade de apoio judiciário.
O conceito de “economia comum” pressupõe uma comunhão de vida, com base num lar
em sentido familiar, moral, e social, uma convivência conjunta com especial
“affectio” ou ligação entre as pessoas coenvolvidas, com sujeição a uma economia
doméstica comum, contribuindo todos ou só alguns para os gastos comuns.
Neste conspecto não é possível deixar de considerar que o requerente vive em
economia comum com a avó, integrando o seu agregado familiar.
A questão é que a aplicação do Anexo à Lei n.º 34/2004 que remete a apreciação
da insuficiência económica para o rendimento relevante do agregado familiar e da
fórmula matemática previstas nos artigos 6° a 10° da Portaria n.º 1085-A/04,
conduzem, no caso concreto, a um resultado que não se mostra conforme o direito
fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais, quer por que implica uma
restrição intolerável de tal direito – violação do princípio da
proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais
restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se
a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em
relação aos fins tidos em vista – quer por que se traduz numa violação do
principio da igualdade – que obriga à diferenciação, como forma de compensar a
desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes
públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica ou cultural
(Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, 3ª edição, pág. 127).
Na verdade, o rendimento relevante assenta todo ele na pensão de reforma
auferida pela avó do requerente, maior, estudante, que, para além de uma pensão
de sobrevivência, não tem quaisquer rendimentos.
Refira-se que os alimentos a que a avó do requerente está obrigada são os
necessários á alimentação, saúde, habitação e vestuário.
Não se incluem nos alimentos, “despesas de demanda” – Moitinho de Almeida, in Os
alimentos no Código Civil de 1966, ROA, 1968, pág. 94.
Ou seja, recusou-se o benefício do apoio judiciário ao requerente não com base
na sua insuficiência económica, mas na suficiência económica de um terceiro
obrigado a alimentos, alimentos que não incluem despesas de demanda, o que
constitui uma clara distorção ao art.º 20° n.º 1 da CRP nas vertentes já
referidas: violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
O único rendimento relevante que deve ser considerado é o de € 100,00 que o
requerente obtêm de uma pensão de sobrevivência.
Considerando a alínea a) do Anexo que dispõe que o requerente cujo rendimento
relevante para efeitos de protecção jurídica seja igual ou menor do que um
quinto do salário mínimo nacional, não tem condições objectivas para suporta
qualquer quantia relacionada com os custos de um processo e considerando que
único rendimento que deve ser considerado relevante é o da pensão de
sobrevivência auferida pelo requerente, considerando que essa pensão é de €
100,00 mensais, impõe-se conceder provimento ao recurso e em consequência
conceder ao requerente o benefício do apoio judiciário nas modalidades
peticionadas: dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com processo,
nomeação e pagamento de honorários de patrono.
*
4. Decisão
Termos em que se decide:
- não aplicar o Anexo à Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, conjugado com os artigos
6° a 10° da Portaria n.º 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõem seja
considerado para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do
benefício do apoio judiciário, maior, estudante, a quem são prestados alimentos
pela avó, o rendimento daquela, por violação do direito de acesso ao Direito e
aos tribunais consagrado no art.º 20° da CRP;
- conceder provimento ao recurso e em consequência e pelos fundamentos expostos,
conceder ao requerente o benefício do apoio judiciário nas modalidades
peticionadas: dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o
processo, nomeação e pagamento de honorários de patrono».
3. Recebidos os autos neste Tribunal, alegou o recorrente, sustentando que deve
confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
«1 - O acesso ao direito e aos tribunais não se configura, no nosso ordenamento
jurídico-constitucional, como mero direito a uma prestação social, traduzindo
antes um direito fundamental, ligado à efectividade da protecção jurídica e
dependente, em termos essenciais, dos critérios que delimitam e condicionam a
apreciação da insuficiência económica invocada pelo requerente.
2 - Constitui restrição excessiva e desproporcionada a tal direito fundamental a
obrigatória e tabelar ponderação do rendimento global, auferido por todas as
pessoas que vivam em economia comum com o interessado, integrando o seu agregado
familiar, independentemente da natureza da acção e da sua exclusiva conexão com
interesses pessoais do próprio requerente.
3 - As normas constantes dos artigos 6° a 10° da Portaria n° 1085-A/04, de 31 de
Agosto, enquanto – em conexão com o Anexo à Lei n° 34/04, de 29 de Julho –
estabelecem que o rendimento relevante do requerente do benefício de apoio
judiciário é sempre tabelar e rigidamente calculado em função do rendimento
líquido completo do respectivo agregado familiar, constitui restrição excessiva
e desproporcionada àquele direito fundamental, proclamado pelo artigo 20° da
Constituição da República Portuguesa, sendo materialmente inconstitucionais, por
violação do disposto no artigo 18° da Constituição».
II. Fundamentação
1. A decisão recorrida desaplicou o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho,
conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na
parte em que impõe que seja considerado para efeitos do cálculo do rendimento
relevante do requerente de benefício do apoio judiciário, maior, estudante, a
quem são prestados alimentos pela avó, o rendimento desta. Segundo esta decisão,
a aplicação do Anexo à Lei nº 34/2004, que remete a apreciação da insuficiência
económica para o rendimento relevante do agregado familiar, e das fórmulas
matemáticas previstas nos artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04 conduzem, no
caso concreto, a um resultado que não se mostra conforme o direito fundamental
de acesso ao Direito e aos tribunais.
Por força do disposto no nº 5 do artigo 8º e no nº 1 do artigo 20º da Lei nº
34/2004, de 29 de Julho (Altera o regime de acesso ao direito e aos tribunais e
transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva nº 2003/8/CE, do Conselho,
de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios
transfonteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas
ao apoio judiciário no âmbito desses litígios), a prova e a apreciação da
insuficiência económica do requerente de protecção jurídica deve ser feita de
acordo com os critérios estabelecidos e publicados em anexo àquela lei.
Compõem o Anexo, para o que agora releva, as seguintes normas:
«I – Apreciação da insuficiência económica
1 – A insuficiência económica é apreciada da seguinte forma:
a) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica igual ou menor do que um quinto do salário mínimo nacional
não tem condições objectivas para suportar qualquer quantia relacionada com os
custos de um processo;
b) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a um quinto e igual ou menor do que metade do
valor do salário mínimo nacional considera-se que tem condições objectivas para
suportar os custos da consulta jurídica e por conseguinte não deve beneficiar de
consulta jurídica gratuita, devendo, todavia, usufruir do benefício de apoio
judiciário;
c) O requerente cujo agregado familiar tem um rendimento relevante para efeitos
de protecção jurídica superior a metade e igual ou menor do que duas vezes o
valor do salário mínimo nacional tem condições objectivas para suportar os
custos da consulta jurídica, mas não tem condições objectivas para suportar
pontualmente os custos de um processo e, por esse motivo, deve beneficiar do
apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado, previsto na alínea d) do nº
1 do artigo 16º da presente lei;
2 – (…)
3 – Para os efeitos desta lei, considera-se que pertencem ao mesmo agregado
familiar as pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção
jurídica» (itálico aditado).
Por seu turno, os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/2004, que procede à
concretização dos critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica,
têm o seguinte conteúdo:
«SECÇÃO II
Apreciação do requerimento
Artigo 6.º
Rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — Para efeitos do disposto no anexo da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, o
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é o montante que
resulta da diferença entre o valor do rendimento líquido completo do agregado
familiar (YC) e o valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
(A), ou seja, YAP = YC–A.
2 — O rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (YAP) é expresso
em múltiplos do salário mínimo nacional.
Artigo 7.º
Rendimento líquido completo do agregado familiar
1 — O valor do rendimento líquido completo do agregado familiar (YC) resulta da
soma do valor da receita líquida do agregado familiar (Y) com o montante da
renda financeira implícita calculada com base nos activos patrimoniais do
agregado familiar (YR), ou seja, YC= Y+ YR.
2 — Por receita líquida do agregado familiar (Y) entende-se o rendimento depois
da dedução do imposto sobre o rendimento, das contribuições obrigatórias dos
empregados para regimes de segurança social e das contribuições dos empregadores
para a segurança social.
3 — O cálculo da renda financeira implícita é efectuado nos termos previstos no
artigo 10.º da presente portaria.
Artigo 8.º
Dedução relevante para efeitos de protecção jurídica
1 — O valor da dedução relevante para efeitos de protecção jurídica (A) resulta
da soma do valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado
familiar (D) com o montante da dedução de encargos com a habitação do agregado
familiar (H), ou seja, A = D + H.
2 — O valor da dedução de encargos com necessidades básicas do agregado familiar
(D) resulta da aplicação da seguinte fórmula:
em que n é o número de elementos do agregado familiar e d é o coeficiente de
dedução de despesas com necessidades básicas do agregado familiar, determinado
em função dos diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo
I.
3 — O montante da dedução de encargos com a habitação do agregado familiar (H)
resulta da aplicação do coeficiente h ao valor do rendimento líquido completo do
agregado familiar (YC), ou seja, H = h×YC, em que h é determinado em função dos
diversos escalões de rendimento, de acordo com o previsto no anexo II.
4 — O cálculo do montante da dedução de encargos com a habitação do agregado
familiar (H) apenas tem lugar se o seu valor for superior ao montante da despesa
efectivamente suportada pelo agregado familiar com o pagamento de renda da casa
de morada de família ou de prestações para a sua aquisição ou no caso de não ter
sido declarada qualquer despesa com a habitação do agregado familiar; caso o
valor realmente despendido (B) seja inferior, é este o valor considerado.
Artigo 9.º
Fórmula de cálculo do valor do rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica
1 — Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a fórmula de cálculo do valor
do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, especificada nos
artigos anteriores e no anexo III, é a seguinte:
2 — Se, porém, o montante da despesa efectivamente suportada pelo agregado
familiar com o pagamento de renda da casa de morada de família ou de prestações
para a sua aquisição (B) for inferior ao montante que resulte da aplicação do
coeficiente de dedução de encargos com a habitação do agregado familiar previsto
no artigo anterior, a fórmula de cálculo do valor do rendimento relevante para
efeitos de protecção jurídica é a seguinte:
Artigo 10.º
Cálculo da renda financeira implícita
1 — O montante da renda financeira implícita a que se refere o n.º 1 do artigo
7.º é calculado mediante a aplicação de uma taxa de juro de referência ao valor
dos activos patrimoniais do agregado familiar.
2 — A taxa de juro de referência é a taxa EURIBOR a seis meses correspondente ao
valor médio verificado nos meses de Dezembro ou de Junho últimos, consoante o
requerimento de protecção jurídica seja apresentado, respectivamente, no 1.º ou
no 2.º semestre do ano civil em curso.
3 — Entende-se por valor dos bens imóveis aquele que for mais elevado entre o
declarado pelo requerente no pedido de protecção jurídica, o inscrito na matriz
predial e o constante do documento que haja titulado a respectiva aquisição.
4 — Quando se trate da casa de morada de família, no cálculo referido no n.º 1
apenas se contabiliza o valor daquela se for superior a € 100 000 e na estrita
medida desse excesso.
5 — O valor das participações sociais e dos valores mobiliários é aquele que
resultar da cotação observada em bolsa no dia anterior ao da apresentação do
requerimento de protecção jurídica ou, na falta deste, o seu valor nominal.
6 — Entende-se por valor dos veículos automóveis o respectivo valor de mercado».
A norma que integra o objecto do presente recurso foi desaplicada pelo Tribunal
Cível de Lisboa, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República
Portuguesa, que dispõe o seguinte:
“A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada
por insuficiência de meios económicos” (itálico aditado).
2. Sobre a modalidade de protecção jurídica que está em causa nos presentes
autos, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 98/2004 (Diário da
República, II Série, de 1 de Abril de 2004) o seguinte:
«O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência económica,
seja denegada justiça aos cidadãos que pretendam fazer valer os seus direitos
nos tribunais, decorrendo, assim, a sua criação do imperativo plasmado no artigo
20º nº 1, da Constituição.
Não basta, obviamente, para cumprir tal imperativo, a mera existência do
referido instituto no nosso ordenamento; impõe-se que a sua modelação seja
adequada à defesa dos direitos, ao acesso à Justiça, por parte daqueles que
carecem dos meios económicos suficientes para suportar os encargos que são
inerentes à instauração e desenvolvimento de um processo judicial,
designadamente custas e honorários forenses».
O que cumpre decidir nos presentes autos é, precisamente, se a modelação do
instituto do apoio judiciário dada pela norma desaplicada, extraída do Anexo que
integra a Lei nº 34/2004, em conjugação com aos artigos 6º a 10º da Portaria nº
1085-A/2004, garante o acesso ao direito e aos tribunais por parte daquele que
carece de meios económicos suficientes para suportar os encargos que são
inerentes ao desenvolvimento de um processo judicial, designadamente custas e
honorários forenses. Por outras palavras, decidir se tal norma dá cumprimento à
dimensão “prestacional” da garantia fundamental do acesso ao direito e aos
tribunais, que se concretiza no “dever de o Estado assegurar meios (como o apoio
judiciário) tendentes a evitar a denegação da justiça por insuficiência de meios
económicos” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 467/91, Diário da República,
II Série, de 2 de Abril de 1992. Assim também, Gomes Canotilho, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição7, Almedina, p. 501, e Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, anotação ao
artigo 20º, ponto VI).
3. Tendo como referência a Constituição da República Portuguesa vigente, o
Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, editado ao abrigo da Lei nº 41/87,
de 23 de Dezembro, que autorizou o Governo a legislar sobre o estabelecimento do
regime do acesso ao direito e aos tribunais judiciais, foi o primeiro diploma
regulador do sistema de acesso ao direito e aos tribunais, configurando-o a
partir de acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de
protecção jurídica, revestindo esta última as modalidades de consulta jurídica e
de apoio judiciário (artigos 1º, nºs 1 e 2, e 6º).
Muito embora esta configuração se tenha mantido até ao presente (cf. artigos 1º,
nºs 1 e 2, e 6º da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 1º, nºs 1 e 2, e 6º da
Lei nº 34/2004, de 29 de Julho), foram introduzidas alterações significativas
através da Lei nº 30-E/2000, que atribuiu aos serviços de segurança social,
retirando tal competência aos tribunais, a apreciação dos pedidos de concessão
de apoio judiciário (artigo 21º), e da Lei nº 34/2004, que inovou em matéria de
determinação da insuficiência económica do requerente de protecção jurídica.
Na sequência deste diploma, a concessão de protecção jurídica a quem, tendo em
conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não
tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo
(cf. artigo 8º, nº 1, da Lei nº 34/2004) passou a depender do valor do
rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (artigos 8º, nº 5, e
20º, nº 1, e ponto 1. do Anexo da Lei nº 34/2004), determinado a partir do
rendimento do agregado familiar – ou seja, também a partir do rendimento das
pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica (nºs
1 e 3 do ponto 1. deste Anexo) – e das fórmulas previstas nos artigos 6º a 10º
da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto.
A apreciação em concreto da situação de insuficiência económica do requerente de
protecção jurídica passou a ter lugar a título excepcional (cf. artigos 20º, nº
2, da Lei de 2004 e 2º da referida Portaria), diferentemente do que sucedia no
direito anterior (cf. artigos 7º, nº 1, 20º, nºs 1 e 2, e 23º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 387-B/87, artigos 7º, nº 1, e 20º, nºs 1 e 2, da Lei nº 30-E/2000
e modelo de requerimento de apoio judiciário para pessoas singulares aprovado
pela Portaria nº 1223-A/2000, de 29 de Dezembro), relativamente ao qual é de
salientar, a título exemplificativo, que o afastamento da presunção de
insuficiência económica, legalmente estabelecida, dependia da circunstância de o
requerente fruir outros rendimentos, próprios ou de terceiros.
Face a esta alteração, a sentença recorrida conclui que «a norma que constituía
o art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 30-E/20 de Dezembro e que era preenchida em face do
caso concreto, passou a ser uma norma preenchida legislativamente. O que era
antes uma norma aberta à ponderação do caso concreto passou a ser uma norma
fechada, ponderando estritos aspectos económicos-financeiros, como resulta claro
da adopção de uma fórmula matemática»; assinalando o Ministério Público junto
deste Tribunal que aquela decisão recusa a aplicação das «normas delimitadoras e
reguladoras do âmbito do apoio judiciário, na versão actualmente vigente,
enquanto consideram rendimento relevante para aferir da invocada situação de
insuficiência económica todos os rendimentos auferidos pelo “agregado familiar”
do interessado – ou seja, pelo conjunto das pessoas que vivem em “economia
comum” com o requerente de protecção jurídica, sendo tal insuficiência económica
valorada, de modo rígido e tabelar, através da “fórmula matemática” contida nos
artigos 6° a 10° da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto» (fl. 56 e s. dos
autos).
4. Como o valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica,
determinado a partir do rendimento do requerente e da avó, com quem vive e de
quem recebe alimentos, e das fórmulas previstas na Portaria que fixa os
critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica para a concessão
daquela protecção, levava à inserção do caso em apreço nos presentes autos na
alínea c) do nº1 do ponto I do Anexo à Lei 34/2004 – concessão de apoio
judiciário na modalidade de pagamento faseado previsto na alínea d) do nº1 do
artigo 16º desta Lei – o tribunal recorrido desaplicou o Anexo à Lei nº 34/2004,
conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, por violação do
artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a aplicação conjugada deste Anexo e destes artigos não garante o
acesso ao direito e aos tribunais, consentindo a possibilidade de ser denegado
este acesso por insuficiência de meios económicos, na medida em que o rendimento
relevante para efeitos de concessão de apoio judiciário é determinado a partir
do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente fruir o
rendimento do terceiro que integra a economia comum. Devendo destacar-se que
facilmente se poderá verificar a hipótese de o requerente de protecção jurídica
não fruir, de facto, o rendimento do terceiro que integra a economia comum. Para
além de poder haver interesses conflituantes entre os membros da economia comum,
designadamente quanto ao objecto do processo, e de o requerente de protecção
jurídica poder querer exercer o direito de reserva sobre a defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos, o terceiro em causa pode não estar
juridicamente obrigado a contribuir para as despesas do requerente de apoio
judiciário.
Nos presentes autos, uma vez que o dever de prestar alimentos não compreende
despesas relativas a taxa de justiça e honorários forenses (cf. artigos 2003º e
2005º do Código Civil e 399º, nº 2, do Código de Processo Civil e o que sobre
isto se diz na decisão recorrida e nas alegações do recorrente, a fl. 59 e s.),
não se pode assumir que o requerente de apoio judiciário dispõe, efectivamente,
de parte do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica – a parte
correspondente ao rendimento de quem lhe presta alimentos (a avó) –, o que
consente a possibilidade de ser denegado o acesso ao direito e aos tribunais por
insuficiência de meios económicos. Podendo ainda invocar-se, neste mesmo
sentido, o artigo 116º, nº 1, do Código das Custas Judiciais, uma vez que em
caso de execução por custas respondem apenas os bens penhoráveis do requerente
de protecção jurídica e não também os bens daquele que com ele vive em economia
comum; e o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum, previsto
na Lei nº 6/2001, de 11 de Maio, já que as pessoas que integram esta economia
não estão obrigadas a contribuir para despesas como as que estão em causa nos
presentes autos.
Pelo que se expôs, é de concluir que a norma desaplicada pela decisão recorrida,
extraída do Anexo que integra a Lei nº 34/2004, em conjugação com aos artigos 6º
a 10º da Portaria nº 1085-A/2004, não garante o acesso ao direito e aos
tribunais por parte daquele que carece de meios económicos suficientes para
suportar os encargos que são inerentes ao desenvolvimento de um processo
judicial, designadamente custas e honorários forenses.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição
da República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com
os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que
impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio
judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado
familiar, independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal
rendimento;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o juízo de inconstitucionalidade
formulado na decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício