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Processo n.º 228/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
(Conselheiro Paulo Mota Pinto)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público junto do
Tribunal Judicial de Oeiras interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra a sentença
do juiz do 2.º Juízo Criminal daquele Tribunal, de 26 de Janeiro de 2006, que
recusou a aplicação, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da
igualdade e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 1.º, 13.º, n.º 1,
18.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
(CRP), da norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do Decreto‑Lei n.º
108/78, de 24 de Maio, e, consequentemente, absolveu o arguido A. da
transgressão de que vinha acusado (falta de título de transporte válido em
transportes públicos, prevista e punida pela referida norma).
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional apresentou alegações, que culminam com a formulação das
seguintes conclusões:
“1 – É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa,
da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 3.°, n.º 2, alínea a), do
Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de
multa de valor fixo, que o tribunal terá sempre de aplicar em caso de
condenação.
2 – Termos em que deverá confirmar‑se a decisão recorrida quanto à questão de
inconstitucionalidade que é objecto de recurso.”
O recorrido não contra‑alegou.
Não tendo logrado vencimento o projecto de
acórdão inicialmente apresentado, operou‑se mudança de relator.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
O Decreto‑Lei n.º 108/78, de 24 de Maio,
estabeleceu normas relativas à fiscalização da cobrança de bilhetes e outros
títulos de transporte em transportes colectivos de passageiros e à penalização
das correspondentes infracções, dispondo o seu artigo 3.º, n.º 2, alínea a),
que: “Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo
[diverso da cobrança feita por cobrador, a que respeita o n.º 1 deste artigo],
os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso,
acrescido de uma multa de montante de: a) 50% do preço do respectivo bilhete mas
nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na
hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte”.
A questão da constitucionalidade desta norma
foi objecto do recente Acórdão n.º 579/2006, desta 2.ª Secção, que confirmou o
juízo de inconstitucionalidade formulado pela sentença recorrida, desenvolvendo,
para tanto, a seguinte argumentação:
“3. A norma sob apreciação estabelece uma sanção penal (uma
multa) fixa no seu valor, caso se verifique a situação descrita no tipo
(utilização de transporte público sem título válido). Trata‑se, deste modo, de
uma infracção penal (contravenção) à qual são aplicáveis os princípios que
conformam o regime das penas criminais.
O Tribunal Constitucional, em diversos arestos (cf. Acórdãos
n.ºs 95/2001, 202/2000, 70/2002 e 124/2004, www.tribunalconstitucional.pt)
decidiu julgar inconstitucionais normas que consagrem penas fixas.
No mencionado Acórdão n.º 124/2004, o Tribunal Constitucional
julgou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma da parte final do
§ único do artigo 67.º do Decreto n.º 44 623, de 10 de Outubro de 1962, enquanto
manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º do mesmo diploma para o
crime de pescar em época de defeso, quando concorrer a agravante de a pesca ter
lugar em zona de pesca reservada, por violação dos princípios constitucionais
da culpa, da igualdade e da proporcionalidade. Nesse Acórdão, o Tribunal
Constitucional, transcrevendo o Acórdão n.º 95/2001, considerou o seguinte:
«(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata‑se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de José
de Sousa e Brito (local citado, página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1.º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27.º, n.º 1); e, nos dizeres de Jorge de Figueiredo Dias,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas
fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também
o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de
prevenção) que, em cada caso, se há‑de encontrar a medida concreta da pena,
situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de
culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão‑pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas,
o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações
essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também
vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa,
que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há‑de
observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena
de prisão, quer seja uma pena de multa.
Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português cit., página 193), depois de
dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão
nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma
responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena
conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do
princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”.
Este Tribunal, no seu Acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República,
II Série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou‑se sobre a norma constante do
artigo 31.º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a
pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele
que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o
emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional,
por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu‑se aí:
“Deve, pois, reconhecer‑se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena
fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização
de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade
com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e
das suas «circunstâncias») corresponda também uma diferenciação da sanção penal
que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de
tal situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na
verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de
caçar invariável de cinco anos para o «crime de caça» do artigo 31.º, n.º 10, da
Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional.”
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal
sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram
apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando‑a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o Acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão‑só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73.º do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo («quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada
a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena», diz o n.º 1 do
artigo 72.º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer‑se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são «diminutas»
«a ilicitude do facto e a culpa do agente»; que o «dano» já foi «reparado»; e
que «à dispensa de pena» se não opõem «razões de prevenção» (cf. o artigo 74.º
do mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado Acórdão
n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – «dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção».
Recorrendo, de novo, aos dizeres do Acórdão n.º 202/2000:
«Não pode aceitar‑se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa”, ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há‑de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente).»
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo Acórdão n.º 202/2000:
«A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente
seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de
quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo‑se as exigências
constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos
gerais.»”
Estas considerações são, no essencial, transponíveis para os presentes autos.
Com efeito, as contravenções que o legislador manteve no sistema penal
português, após a criação do Regime Geral das Contra‑Ordenações (Decreto‑Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro, agora na redacção do Decreto‑Lei n.º 356/85, de 17 de
Outubro, e do Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro), não estão em geral
despenalizadas, isto é, subtraídas aos princípios constitucionais do Direito
Penal, tal como o princípio da culpa e a proibição constitucional de penas
fixas. Na verdade, o legislador, mesmo em termos processuais, subordinou a
matéria de processamento e julgamento de contravenções a um regime processual
penal simplificado, mas, em todo o caso, de natureza processual penal e não
administrativa (Decreto‑Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro). E, apesar de as
infracções terem sido despenalizadas nesta específica matéria através da Lei n.º
28/2006, de 4 de Julho (artigos 7.º, 13.º e 14.º), é ainda aplicável aos
processos pendentes o regime concretamente mais favorável ao agente,
nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis (artigo 14.º, n.º 2). A
evolução legislativa impede, assim, não só de situar as infracções qualificadas
como ilícito contravencional no Direito de mera ordenação social, no Direito
Civil ou em qualquer outro ramo do Direito, mantendo‑se a natureza que legal,
doutrinária e jurisprudencialmente sempre lhe foi conferida (cf. Eduardo
Correia, Direito Criminal, vol. I, reimp., 1996, p. 213 e ss.; Figueiredo Dias,
Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do
crime, 2004, p. 145; e, ainda, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 3.ª ed.,
1977, anotação ao artigo 3.º), como também, nesta matéria específica, é
salvaguardada a subordinação a princípios do Direito Penal garantísticos.
Também não há qualquer obrigação constitucional genérica de despenalizar o
ilícito contravencional, na medida em que a opção do legislador ao nível do
ilícito, da sanção e do processo não interfira com o princípio da necessidade da
pena.
E, por fim, ainda o próprio Direito de mera ordenação social adopta, no
essencial, os princípios do Direito Penal (artigos 2.º, 3.º, 8.º e 9.º do
Decreto‑Lei n.º 433/82), não sendo sequer os princípios da culpa e da proibição
de penas fixas expressamente afastados por aquele regime legal.
Consequentemente, não existem razões substanciais, nem legais nem
constitucionais, inerentes à menor gravidade do ilícito contravencional que
tornem inadequada ou injustificada a aplicação daqueles princípios, sobretudo
na medida em que eles se exprimam numa acentuação das garantias do arguido.
Razões de economia processual ou de celeridade bem como argumentos relacionados
com a massificação das infracções não têm dignidade constitucional por si para
prevalecer sobre princípios constitucionais que se aplicam directa,
expressamente e sem excepções a matéria de ilícito e sanções penais e que não
são sequer incompatíveis com a natureza do próprio Direito de mera ordenação
social.
E, finalmente, também não existem argumentos derivados da espécie de sanção –
uma multa penal – que impeçam a sua adaptação aos princípios constitucionais.
Não suscitando o presente recurso qualquer outra questão que deva ser apreciada,
remete‑se para a jurisprudência constitucional citada (cujo fundamento é
acolhido pela decisão recorrida), concluindo‑se pela inconstitucionalidade da
norma sob apreciação, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade.”
É este o entendimento que ora se reitera.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos
princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, a
norma constante do artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 108/78, de
24 de Maio; e, consequentemente,
b) Confirmar a sentença recorrida, na parte
impugnada.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto (Vencido, em conformidade com o projecto de acórdão que,
enquanto relator, apresentei, seguindo os fundamentos da declaração de voto que
juntei ao Acórdão n.º 579/2006)
Benjamim Silva Rodrigues (Vencido nos termos constantes da declaração de voto
aposta ao Acórdão n.º 579/2006)
Rui Manuel Moura Ramos