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Processo nº 987/2006.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Inconformada com o acórdão proferido em 26 de Abril de
2006 pelo tribunal colectivo da 2ª Vara Criminal do Porto que, pela autoria de
factos que foram subsumidos ao cometimento de um crime de peculato, previsto e
punível pelo nº 1 do artº 375º do Código Penal, a condenou na pena de quatro
anos de prisão, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto a arguida A..
Na motivação adrede produzida, a arguida formulou as
seguintes «conclusões»: –
“1.ª – O Tribunal «a quo» [deu] como provado que a recorrente se apropriou e
causou prejuízo ao Estado e a organismos que nele se integram, no valor global
de € 690.067,22, tendo actuado pela forma que do Acórdão consta.
2ª – O juízo que permitiu ao Colectivo dar como provados esses pontos da matéria
de facto, assentou «na apreciação crítica do conjunto da prova produzida,
designadamente:
– no teor dos documentos juntos aos autos;
– no depoimento das testemunhas inquiridas;
– na confissão parcial da arguida, bem como os
esclarecimentos por si prestados.
3.ª – A arguida confessou ter-se apropriado, a partir do ano de 2001, da quantia
de cerca de € 200.000,00, e não a que constava da acusação e que veio a constar
do Acórdão, mais tendo confessado que as sucessivas apropriações parciais
ocorreram da forma que ela também confessou e que o Tribunal também deu como
provada.
4. ª – Os documentos constantes dos autos atestam os erros de somas e os demais
elementos que permitem concluir pela falta de dinheiro no Cartório que nele se
deveria encontrar.
5ª – E, dos depoimentos das testemunhas conclui-se que era a arguida quem se
encarregava da contabilidade e preenchia os documentos a ela relativos; desses
depoimentos avultam os dos três Notários sob cuja égide e subordinação a arguida
trabalhou, tendo-se a falta de dinheiro verificado quando cada um deles exercia
a função de Chefe da Repartição onde a arguida exercia as suas funções.
6ª – Da referência a esses meios de prova, que o Colectivo, para decidir como
decidiu, não dispôs de qualquer meio de prova que lhe permitisse concluir que
fora efectivamente a arguida a apropriar-se de todas as quantias que faltavam no
Cartório onde prestava a sua actividade de Primeira Ajudante – pelo que só por
inferência lógica, por presunção judicial, o Colectivo poderá tê-lo concluído.
7ª – Porém, afigura-se que o Colectivo terá ultrapassado essa inferência lógica,
tendo chegado ao juízo que chegou tão-só porque a arguida era quem se
encarregava da contabilidade, mormente era ela quem preenchia as guias e porque
confessou ter-se apropriado das quantias em falta no Cartório.
8ª – E não terá dado a merecida relevância à circunstância singela de três
Notários que sucessivamente chefiaram a Repartição onde a arguida exercia as
suas funções, a quem competia vigiar, supervisionar e controlar a actividade da
arguida mormente controlar o rigor das quantias a entregar ao Estado a título de
imposto de selo e se havia duplicação de contas de utentes – se terem
sucessivamente demitido dessas funções de controle e vigilância por forma a
permitir que o Cartório viesse a ser lesado nas importâncias em que o foi.
9ª – À luz da experiência comum, se poderia ser compreensível que um Notário,
por desleixo, incúria ou negligência não exercesse as tarefas e funções a que
legal e estatutariamente estava obrigado, três Notários sucessivos já extravasa
qualquer regra da experiência, vale dizer, é uma «coincidência» de todo
inaceitável.
10ª – Cada um deles não poderia, pelo menos, ter deixado de se aperceber que as
quantias relativas a emolumentos, que recebia, não ‘correspondiam’ de modo algum
às de imposto de selo constantes das guias que assinava, pois aquele imposto
corresponde ao dobro ou triplo daqueles.
11ª – o que é dizer, face aos dados da experiência comum, não é possível, não é
crível, que as quantias em questão fossem desaparecendo sem que cada um dos
Notários pelo menos de tal não se tivesse apercebido; inversamente, era
impossível que cada um deles não o tivesse constatado.
12.ª – Não competia à arguida confirmar se o dinheiro efectivamente existente na
caixa do Cartório e em seguida depositado na CGD correspondia efectivamente ao
que se encontrava referido nas contas dos utentes e que ela lançava nos livros
do Cartório, como não lhe competia subscreveras guias de imposto de selo e
confirmar a exactidão dos respectivos saldos.
13ª – competia, sim, a cada um dos três Notários que se sucederam como seus
Chefes, e que efectivamente subscreveram as mencionadas guias, dessa forma
responsabilizando-se pela respectiva exactidão.
14.ª – Essa circunstância de todo anómala e em absoluto incompreensível face aos
dados da experiência do comum das pessoas, suscita e levanta a dúvida razoável
sobre se teria sido efectivamente ela a embolsar tudo quanto faltava no Cartório
na parte em que ela não confessou – e as dúvidas razoáveis resolvem-se mediante
aplicação do princípio «in dubio pro reo».
15. ª – Pelo que neste «item» particular, e sem qualquer quebra de respeito,
concluir que a arguida «ficou com tudo» o que faltava no Cartório não terá pois
resultado de uma prova feita segundo a experiência e a prudência de quem procura
atingir a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.
16 – Está-se, pois, perante um erro notório na apreciação da prova, já que o
comum dos homens conclui que a motivação da decisão da matéria de facto,
relativa ao ponto em apreço, não permite decidir que os factos tenham ocorrido
tal como o Colectivo sentenciou, não sendo tal permitido pelo princípio de livre
apreciação das provas (Cód. Proc. Penal, art. 1.º e art. 655.º n.º 1, do Cód.
Proc. Civil).
17.ª – Donde resulta, nos termos das disposições conjugadas dos art.s 410.º-2
als. a) e c) e 426.º do CPP, ou a conclusão de que a arguida apenas se apropriou
da quantia que confessou, ou a necessidade do reenvio do processo para novo
julgamento relativamente à matéria da falta de dinheiro que a arguida não
admitiu ter sido ela a apropriar-se.
18.ª – Sem conceder, mesmo a concluir-se que teria sido a arguida a apropriar-se
de tudo, o inexplicável comportamento dos três sucessivos Notários diminuem de
forma acentuada a culpa da arguida, pelo que a pena a aplicar-lhe deveria ser
especialmente atenuada, nos termos do n. º 1 do art. 72.º do CP, reduzindo-se em
um terço o limite máximo da pena de prisão – art. 73.º n.º 1 al. a).
Por outro lado:
19.ª – A arguida foi condenada a indemnizar a CGD pelo montante de 3.000,00
Euros, quantia em que esta entidade teve de indemnizar o Cartório por ter pago o
montante de um cheque deste que foi apresentado a pagamento numa altura em que a
arguida já não tinha poderes para movimentar a conta sobre a qual o cheque fora
sacado.
20.ª – Porém, dessa forma, o prejuízo da CGD não resultou de qualquer acto
ilícito da recorrente, mas sim de incúria e negligência dela demandante, que não
cuidou de apurar que ela «já não tinha poderes para movimentar aquela conta»,
recusando o pagamento do cheque, como devia.
21. ª – Se ilícito houve por parte da arguida, ao entregar a um terceiro um
cheque do Cartório, não há qualquer nexo de causalidade entre esse ilícito e o
prejuízo invocado pela CGD – pelo que o pedido de deveria ter sido julgado
improcedente (Cód. Civil, art. 483.º).
22.ª – O Acórdão recorrido fez, salvo o devido respeito, interpretação inexacta
da matéria de facto e dos normativos citados nas 16.ª a 18.ª e 21.ª conclusões.”
Anote-se, por outro lado, que, no «teor» da mencionada
motivação, não se surpreende qualquer asserção da qual decorra, directa ou
indirectamente, explícita ou implicitamente, o assacar de um vício de
desconformidade com a Lei Fundamental reportadamente a dado normativo (ou a
dados normativos) ínsito (ou ínsitos) no ordenamento jurídico
infra-constitucional, ainda que alcançado ele (ou alcançados eles) por via de um
processo interpretativo incidente sobre determinados preceitos.
Tendo aquele Tribunal de 2ª instância, por acórdão de 19 de
Julho de 2006, rejeitado o recurso por manifesta improcedência, intentou a
arguida recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
Porém, o Desembargador Relator do Tribunal da Relação do
Porto, por despacho de 21 de Agosto de 2006, notificado à arguida em 22
seguinte, não admitiu o recurso, fundado na alínea f) do nº 1 do artº 400º do
Código de Processo Penal.
Em 13 de Setembro de 2006, a arguida fez juntar aos autos
requerimento por via do qual manifestava o seu desiderato de, “do Acórdão
proferido”, recorrer para o Tribunal Constitucional, dizendo que o fazia “com
fundamento nos arts. 400.º, n.º 1 e 432.º do CPP”.
É o seguinte o texto do indicado requerimento: –
“A., recorrente nos autos em referência, notificada do
Acórdão proferido, e com o mesmo não se podendo conformar, dele pretende
interp[o]r, como interp[õ]e, recurso para o Tribunal Constitucional com
fundamento nos arts. 400.º, nº 1 e 432.º do CPP, nos termos em que expõe na
motivação anexa.
Respeitosamente requer a V. Exa que, junto este as Autos, se digne receber o
recurso.”
Anexo a esse requerimento encontra-se um outro em que é
referido: –
“A., recorrente nos autos em referência, não se conformando
com o despacho que lhe foi notificado, vem dele interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
– o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do
art. 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº
85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro;
– pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das
normas dos artigos 400.º, nº 1 e 432º do CPP, com a interpretação com que foram
aplicadas na decisão recorrida;
– tais normas violam os princípios constitucionais
consagrados nos artigos 29.º e 32.º nº 1 da Constituição da República
Portuguesa;
– a questão de inconstitucionalidade foi suscitada nos autos
a fls… (recurso para o Supremo Tribunal de Justiça);
Nestes termos, requer a V. Exa que se digne admitir o
presente recurso e feito o mesmo subir, com efeito próprio, seguindo-se os
demais termos legais”
Por despacho de 6 de Outubro de 2006, prolatado pela
Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação do Porto, não foi admitido o
recurso para este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade
normativa, com base no argumento segundo o qual o mesmo foi apresentado a
destempo.
É deste despacho que vem, pela arguida, deduzida a vertente
reclamação.
No requerimento dela corporizador pode ler-se: –
“(…)
1. Afigura-se que não será exacta, quer a asserção constante da conclusão feita
à Mma. Juiz Desembargadora-Relatora, quer o teor do despacho proferido por este
última, quando referem que o recurso interposto pela ora reclamante para o
Tribunal Constitucional teria sido apresentado fora de prazo.
2. Na verdade, nos termos do art. 75º nº 1 da Lei nº 28/82, de 15.11. o prazo
para o recurso para o Tribunal Constitucional é de oito dias.
3. E nos termos do nº 2 do preceito, tal prazo «conta-se do momento em que se
torne definitiva a decisão que não admita o recurso» ordinário «que não seja
admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão».
Ora,
4. A aqui reclamante interpôs recurso ordinário para o STJ do Acórdão da Relação
que confirmou a sentença condenatória da primeira instância.
5. Por despacho notificado à ora reclamante sob registo datado de 2006.08.22.
tal recurso não foi recebido com fundamento no art. 400º nº 1 al. f) do CPP, ou
seja, por o Acórdão condenatório ter sido proferido em confirmação da sentença
da primeira instância e o processo respeitar a crime a que é aplicável pena de
prisão não superior a oito anos e, como tal, não ser admissível recurso
ordinário para o STJ.
6. O que é dizer, esse recurso ordinário não foi admitido pelo Tribunal da
Relação com fundamento em irrecorribilidade da decisão.
7. Segue-se, pois, que o prazo de oito dias para a interposição de recurso para
o Tribunal Constitucional se contava e se conta «do momento em que se torne
definitiva a decisão que não admita o recurso», ou seja, a partir do trânsito em
julgado de tal despacho.
8. Ora, sem computar os três dias úteis subsequentes, o despacho de não admissão
do recurso ordinário para o STJ terá transitado em 2006.09.11 – e computando
esses dias, o trânsito terá ocorrido em 14 do mesmo mês.
9. Tendo o recurso para o Tribunal Constitucional sido apresentado em 12 de
Setembro seguinte, o mesmo foi intentado dentro do prazo de oito dias
subsequente a esse trânsito, pelo que,
10. foi atempadamente apresentado.
11. Pelo que deverá ser admitido.
(…)”
Pronunciando-se sobre a reclamação, o Ex.mo Representante do
Ministério Público veio dizer: –
“A argumentação da reclamante assenta em manifesto equívoco,
decorrente da deficiente indicação de qual é a decisão que pretendia, afinal,
impugnar perante este Tribunal.
Como é evidente, o ‘acórdão’ proferido pela Relação não
aplicou as normas atinentes à recorribilidade para o S.T.J., questionadas no
requerimento de interposição de recurso de fls. 114 dos autos – pelo que,
independentemente da questão da tempestividade, aferida nos termos do art. 75º,
nº 2, da Lei nº 29/82, a reclamação sempre teria de ser julgada improcedente.
Se, pelo contrário, a reclamante pretendia antes questionar o
‘despacho de rejeição do recurso, é evidente que, para além de a respectiva
impugnação ter de ser deduzida no prazo de 10 dias subsequente à respectiva
notificação, tal decisão não é passível de recurso, sem prévio esgotamento dos
meios impugnatórios ordinários: no caso a reclamação para o Presidente do
S.T.J., onde podia e devia ter sido suscitada a questão de constitucionalidade
que, na óptica da recorrente, seria pertinente colocar à apreciação deste
Tribunal.”
Cumpre decidir.
2. Como tem sido entendimento seguido sem discrepâncias por
este Tribunal, tendo em conta o que se preceitua no nº 4 do artº 77º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, aquando da apreciação das reclamações a que se refere
esse artigo, incumbirá a este órgão de administração de justiça verificar se se
congregam todos os pressupostos e condições de admissibilidade do recurso, não
se devendo, consequentemente, tão só ater na análise do fundamento que conduziu
à prolação do despacho de não admissão.
Neste contexto, como deflui do relato supra efectuado,
independentemente da questão conexionada com a atempada ou não atempada
apresentação do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o
que é inequívoco é que [sublinhando-se que esse recurso não poderia deixar de
ser esteado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
sendo certo que nos estamos a reportar ao requerimento, acima transcrito, em que
a arguida manifesta a sua vontade de interpor recurso do “Acórdão proferido”
pelo Tribunal da Relação do Porto], precedentemente ao proferimento do aresto
tirado em 19 de Julho de 2006, não houve, por banda da arguida, a suscitação de
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
O que conduz a que se tenha de considerar que, à míngua de
cumprimento do ónus de suscitação da referida questão, a impugnação em apreço
nunca poderia ter sido admitida.
2.1. Numa outra perspectiva, qual fosse a de se atentar no
requerimento anexo àqueloutro (e que igualmente acima se transcreveu) em que é
revelado o intento de se impugnar perante este Tribunal o despacho de não
admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação do Porto – e em que, por um lado, o despacho exarado em 6 de
Outubro de 2006 pela Desembargadora Relatora daquele tribunal de 2ª instância
quereria incidir sobre esse mesmo requerimento (e já não sobre aquele que se
referia pretender impugnar-se o “Acórdão proferido”, entendido este como sendo o
aresto de 19 de Julho de 2006 – questão de que se duvida) e, por outro, visaria
a reclamação uma não admissão do recurso quanto a esse particular –, então é
inequívoco que o recurso nunca poderia ter sido admitido, justamente pela razão
segundo a qual desse despacho ainda era admissível uma forma de impugnação
ordinária, qual seja a da reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça.
Assim, mesmo nesta óptica, faltava, no caso, o pressuposto do
esgotamento dos recursos ordinários a que se reportam os números 2 e 3 do artº
70º da Lei nº 28/82.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se a
impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2006
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício