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Processo nº 502/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A 2ª Secção do 4º Juízo Cível de Lisboa decidiu, por sentença de 20 de
Janeiro de 2006, condenar o arguido A., pela prática de dois crimes de
desobediência qualificada.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas respectivas
alegações, o arguido sustentou o seguinte:
3. É inconstitucional, por contrariar o artigo 25º da Constituição, qualquer
obrigatoriedade de o arguido ser submetido ao teste de alccolemia pelo que não
pode ser condenado por qualquer crime de desobediência, devendo portanto ser
totalmente absolvido por violação do artigo 25º da Constituição e nº 1 do artigo
117º do C. Proc. Penal.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Abril de 2006, decidiu
rejeitar o recurso por manifesta improcedência.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A. recorrente no RECURSO em que é recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO não se
conformando com o douto acórdão final deseja do mesmo interpor Recurso para o
Tribunal Constitucional nos termos da alínea b) do artigo 70° da Lei 28/82 de 15
de Novembro, para apreciação da inconstitucionalidade da sua condenação pelo
crime de desobediência motivada pela interpretação que foi dada ao artigo 348°
do C. Penal, que contraria o n° 1 do artigo 25° da Constituição, bem como da
falta de notificação ao arguido para comparecer no julgamento, sendo falso que
não quizesse assinar o termo de notificação de fls 2, sendo assim dada uma
errada interpretação à alínea b) do n° 1 do artigo 387° do CPP, o que contraria
os nºs 1 e 5 do artigo 32° da Constituição, conforme já indicou nos nºs 2 e 3
das suas conclusões do recurso que deu entrada em 3 de fevereiro de 2006.
Assim, e porque está em tempo, requer a V.Exa que considere interposto o
RECURSO, seguindo-se os ulteriores termos até final, com subida nos próprios
autos e efeito suspensivo (n° 4 do artigo 78° da Lei 28/82)
Proferido Despacho ao abrigo do artigo 75º‑A da Lei do Tribunal Constitucional
(fls. 268), o recorrente respondeu o seguinte:
A. no RECURSO em que é recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, vem, em obediência ao
douto despacho de V.Ex dizer o seguinte:
1. Na primeira Instância o arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática
de um crime de desobediência p. e p. pelos artigos 158° n°s 1 alínea a) e 3 do
C. da Estrada e 348° n° 1 alínea a) do C. Penal, e por outro crime de
desobediência p. e p. pelos artigos 387° n° 2 do C. Proc. P. e 348° n° 1 do C.
Penal, conforme se verifica pela respectiva douta sentença.
2. Esta sentença foi confirmada pelo douto acórdão da Relação de Lisboa.
3. Conforme referimos nas alegações que proferimos perante este Venerando
Tribunal, entendemos que ninguém, contra a sua vontade, pode ser compelido a
submeter-se a teste para despiste da taxa de alcoolémia nem a recusa de
submissão ao teste pode ser considerada crime de desobediência. E nem se digna,
para justificar essa disposição legal que, se não existisse, o trânsito em geral
corria perigo, pois basta o condutor ser impedido de conduzir se h essa
desconfiança e até provar, por sua livre vontade, que está em condições para o
fazer. Admitimos que no processo pudesse até presumir-se que tinha taxa
suficiente para ser condenado na pena máxima prevista, até que, livremente,
provasse a taxa de alcoolémia de que era portador. Não é contudo de admitir que
a recusa de se submeter ao teste possa levar a uma condenação por crime de
desobediência por a tal se opor o n° 1 do artigo 25° da Constituição e o n° 3,
primeira parte, deste mesmo artigo.
É assim inconstitucional o n° 3 do artigo 158° do C. da Estrada ao punir por
desobediência a recusa do arguido de submeter-se às provas estabelecidas para
detecção do estado de influenciado pelo álcool, nos termos do citado n° 1 do
artigo 25° da Constituição, como mais pormenorizadamente se procurará demonstrar
nas alegações e que já foi referido no n° 2 das conclusões das alegações perante
o Tribunal da Relação.
Por outro lado, como não existe qualquer prova cabal de que o arguido fosse
notificado para comparecer em juízo no dia 24 de Dezembro, não assinando
qualquer notificação pessoal, esta não pode ser substituída pela de fls. 2, que
não oferece qualquer garantia dentro do esquema processual que foi arquitectado
para encobrir a agressão de que foi vitima o arguido.
Consideramos assim que o arguido não pode ser considerado como notificado para
incorrer no crime de desobediência previsto no
3 do artigo 387° do C. Proc. Penal, pelo que foi dada uma interpretação a este
preceito que não assegura todas as garantias de defesa ao arguido contrariando
assim o n° 1 do artigo 32° da Constituição.
Pretendemos portanto que sejam consideradas inconstitucional a interpretação
dada ao n° 3 do artigo 158° do C. da Estrada e ao n° 3 do artigo 387° do C.
Proc. Penal.
A Relatora proferiu o seguinte Despacho:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como
recorrido o Ministério Público, são submetidas à apreciação do Tribunal
Constitucional duas questões de constitucionalidade: uma reportada ao artigo
158º do Código da Estrada; outra reportada ao artigo 387º do Código de Processo
Penal.
Quanto a esta última questão (a reportada ao artigo 387º do Código de Processo
Penal), o recorrente não identifica adequadamente a dimensão normativa que
pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, o recorrente não suscitou nas alegações de recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 217 e ss., qualquer questão de
constitucionalidade quanto a essa mesma questão.
Assim, não se verifica os pressupostos do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional quanto à questão do artigo 387º do Código
de Processo Penal.
2. Notifique o recorrente para produzir alegações quanto à questão do artigo
158º do Código da Estrada, suscitando‑se as questões prévias relativas ao artigo
387º do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de
Processo Civil, aplicável nos autos por força do artigo 69º da Lei do Tribunal
Constitucional.
O recorrente, restringindo expressamente as suas alegações à questão que tem por
objecto a norma do artigo 158º do Código da Estrada, concluiu o seguinte:
É inconstitucional a norma do artigo 158° do C. da Estrada ínsito no seu n° 3
que pune por desobediência (actual n° 3 do artigo 152°) conjugado com o artigo
348° do C. Penal a recusa da submissão às provas estabelecidas para detecção do
estado de influenciado pelo álcool por contrariar o n° 1 do artigo 25° da
Constituição.
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
Não tendo o recorrente suscitado, durante o processo e em termos processualmente
adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, não deverá
conhecer-se do recurso interposto.
O recorrente não respondeu à questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
II
Fundamentação
A)
Questões prévias
3. O recorrente identificou, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, duas questões: uma reportada ao artigo 158º do Código da
Estrada, outra reportada ao artigo 387º do Código de Processo Penal.
Nas alegações apresentadas na sequência do Despacho de fls. 274 transcrito
supra, o recorrente circunscreve o recurso à questão que tem por objecto a norma
do artigo 158º do Código da Estrada.
Desse modo, não se tomará conhecimento da questão relativa ao artigo 387º do
Código de Processo Penal.
4. O Ministério Público sustentou que a inconstitucionalidade da norma do
artigo 158º do Código da Estrada não foi suscitada de modo processualmente
adequado pelo recorrente nos autos.
Ora, o recorrente insurge‑se contra a norma que o obriga a realizar o teste de
alcoolemia e que pune o não acatamento da ordem para a sua realização como crime
de desobediência qualificado. Tal resulta da conclusão das alegações transcritas
supra e o Tribunal da Relação de Lisboa assim o entendeu, tendo apreciado e
decidido a questão.
Desse modo, tomar‑se‑á conhecimento do objecto do presente recurso no que se
refere à norma do artigo 158º do Código da Estrada.
B)
Apreciação da conformidade à Constituição
da norma do artigo 158º do Código da Estrada
5. A questão da obrigatoriedade da sujeição ao teste de alcoolemia
já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, no Acórdão
nº 319/95 (www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal Constitucional, apreciando
a conformidade à Constituição da norma do artigo 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº
124/90, de 14 de Abril, que determinava a competência do agente da autoridade
para a realização do teste, considerou o seguinte:
A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do
artigo 6º, nº 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela
dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação,
nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.
Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja
ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de Direito impõe é que
o processo (maxime, o processo criminal) se reja 'por regras que, respeitando a
pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento
da verdade' (cf. acórdão nº 128/92, publicado no Diário da República, II série,
de 24 de Julho de 1992).
Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços
essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova
perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do
álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a
integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à
salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo
processo penal. Ao que acresce que o quadro legal que rege a matéria, na parte
em que permite que os agentes de autoridade policial submetam, por sua
iniciativa, os condutores ao teste de detecção de álcool, é de molde a garantir
que a actividade policial, essencialmente preventiva, se desenvolva 'com
observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos' (cf. artigo 272º da Constituição).
Concretamente no que concerne ao dever de respeito pela dignidade da pessoa do
condutor, não é a submissão deste a exame para detecção de álcool que pode
violá-lo. O que atentaria contra essa dignidade seria o facto de se sujeitar o
condutor a exame de pesquisa de álcool, fazendo-se no local alarde público do
resultado, no caso de ele ser positivo.
Relativamente ao direito ao bom nome e à reputação, é quem conduzir sob a
influência do álcool, e não a sua submissão ao teste para a pesquisa de álcool,
que estará a denegrir o seu bom nome e a abalar a sua boa fama, pois que - como
se sublinhou no já citado acórdão nº 128/92 - um tal direito só é violado por
actos que se traduzam em imputar falsamente a alguém a prática da acções
ilícitas ou ilegais, ou que consistam em tornar públicas desnecessariamente
(isto é, sem motivo legítimo) faltas ou defeitos de outrem que, sendo embora
verdadeiros, não são publicamente conhecidos.
O direito à reserva da intimidade da vida privada - que é o direito de cada um a
ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões
alheias; o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder
penetrar sem autorização do respectivo titular (cf., sobre isto, o citado
acórdão nº 128/92) - acaba, naturalmente, por ser atingido pelo exame em causa.
No entanto, a norma sub iudicio não viola o artigo 26º, nº 1, da Constituição,
que o consagra.
De facto, não se trata, com o teste de pesquisa de álcool, de devassar os
hábitos da pessoa do condutor no tocante à ingestão de bebidas alcoólicas, sim e
tão-só (recorda-se) de recolher prova perecível e de prevenir a eventual
violação de bens jurídicos valiosos (entre outros, a vida e a integridade
física), que uma condução sob a influência do álcool pode causar - o que, há-de
convir-se, tem relevo bastante para justificar, constitucionalmente, esta
constrição do direito à intimidade do condutor.
Quanto ao direito à imagem, que, nas conclusões da alegação, o recorrente tem
por violado, assinala-se que o seu objecto é o retrato físico da pessoa, em
pintura, fotografia, desenho, slide, ou outra qualquer forma de representação
gráfica, e não a imagem que os outros fazem de cada um de nós. Ele não consiste,
por isso, num direito de cada pessoa a ser representada publicamente de acordo
com aquilo que ela realmente é ou pensa ser. Consiste, antes, no direito de cada
um a não ser fotografado, nem a ver o seu retrato exposto publicamente, sem o
seu consentimento, e no direito, bem assim, a não ser 'apresentado em forma
gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida' (cf. J.J GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª
edição, Coimbra, 1993, página 181. Cf. também o já citado acórdão nº 128/82 e o
acórdão nº 6/84, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 2º,
páginas 198 e seguintes).
Sendo este o conteúdo do direito à imagem, não pode ele ser violado pela norma
aqui em apreciação.
Em consequência, o Tribunal Constitucional proferiu um juízo de não
inconstitucionalidade.
O Tribunal Constitucional reiterou esta jurisprudência no Acórdão nº 423/95.
Os fundamentos da jurisprudência referida são transponíveis, no essencial, para
os presentes autos. Com efeito, o recorrente sustenta a inconstitucionalidade da
obrigação de sujeição ao teste de alcoolemia, invocando a violação da
integridade física e moral das pessoas, constitucionalmente tutelada pelo nº 1
do artigo 25º da Constituição. Ora, o Tribunal Constitucional, na jurisprudência
referida, demonstra que a obrigatoriedade de realização de testes de alcoolemia
não afecta de modo constitucionalmente inadmissível os interesses pessoais do
sujeito examinado (entendimento que agora se acolhe).
Na verdade, está em causa a recolha de um meio de prova perecível no âmbito da
prevenção e punição de comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária
e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.
Não procede o argumento do recorrente, segundo o qual bastaria
então impedir o condutor de prosseguir com o veículo. Na verdade, tal solução
não satisfaria a eficácia preventiva das medidas de combate à condução sob o
efeito do álcool (para além de pôr em causa os valores inerentes ao dever de
respeito pela autoridade). Os bens que a norma visa proteger assim como a
perigosidade das condutas a prevenir justificam e legitimam a medida normativa
em questão.
Por outro lado, o prejuízo do ponto de vista pessoal para o sujeito obrigado ao
teste de alcoolemia não atinge o núcleo essencial indisponível de direitos
fundamentais, não sendo desproporcionada a sua lesão em confronto com os bens
que se pretende tutelar. Assim, afigura‑se manifestamente despropositado e
improcedente invocar, como faz o recorrente, uma “nova forma de tortura”.
6. Assim, conclui‑se pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 158º, nº
3, do Código da Estrada.
III
Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento da questão relativa ao artigo 387º do Código de
Processo Penal;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 158º, nº 3, do Código da
Estrada;
c) Negar provimento ao recurso, confirmando consequentemente a decisão
recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos