Imprimir acórdão
Processo nº 277/2006
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 .A. propôs contra B., SA uma acção emergente de contrato individual de
trabalho que veio a terminar por transacção, junta a fls. 61, homologada pela
sentença de fls. 63.
Da referida transacção consta uma cláusula segundo a qual “As custas em dívida a
juízo serão suportadas a meias”. Assim, a sentença homologatória determinou que
as custas ficavam a cargo de ambos os litigantes: “Custas pelas duas partes, nos
termos acordados”.
Tendo sido notificado para efectuar o pagamento da conta de custas, o autor
veio, a fls. 89, requerer a respectiva reforma, sustentando que “já pagou ao
processo a parte da taxa de justiça que era da sua responsabilidade, pelo que
apenas tem a pagar ao Tribunal o valor devido a título de procuradoria”.
Em síntese, afirmou que, dado o valor da causa, a taxa de justiça global do
processo teria o valor de 11 unidades de conta (979,00€). Todavia, tendo o
processo terminado antes da apresentação da oposição e da marcação da audiência
final, tal montante foi reduzido a metade (5,5 unidades de conta, 489,50€), não
sendo então devida taxa de justiça subsequente, nos termos dos artigos 14º, n.ºs
1 e 2 do Código das Custas Judiciais.
Ora, decorrendo da transacção e da lei (artigo 451º, n.º 1, do Código de
Processo Civil) que as custas são suportadas em partes iguais, e tendo ele,
autor, pago a taxa de justiça inicial, no montante de 2,75 unidades de conta
(244,75€), faltava apenas, para se haver por paga a taxa global devida, que o
réu procedesse ao pagamento de igual quantia, ficando então só por pagar a
procuradoria.
Não lhe cabe assim, segundo entende, pagar metade da taxa de justiça em falta
(122,38 €), como consta da conta de que foi notificado.
Sustentou ainda que tal conta se não pode basear no disposto nos artigos 31º,
n.º 1, 33º E 33º-A, n.º 1 do Código das Custas Judiciais, na redacção resultante
do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, preceitos, aliás, que, se
comportassem uma interpretação que a permitisse, conteriam normas
inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, do princípio do
processo equitativo e do disposto no n.º 2 do artigo 266º da Constituição.
O pedido de reforma foi indeferido, pelo despacho de fls. 95, nestes termos:
“A conta foi elaborada de acordo com o disposto no artº 56º do CCJ. Como o A.
Não desconhece, as taxas de justiça já pagas são reclamadas pela parte que tem
direito a receber custas de parte à parte contrária nos termos do artº 33-A/1 do
CCJ (artº 31/1 e 33/1/b do CCJ) para que esta proceda ao seu pagamento.
E bem sabendo o A. Desta disposição legal que refere expressamente no seu
articulado e cuja inconstitucionalidade suscita, poderia ter acordado numa
repartição de custas diferente, de modo a que nada mais tivesse que pagar, para
evitar ter que pagar ao Tribunal e reclamar da parte contrária o que adiantou
quando instaurou a acção.
Os artigos 31º, 33º e 33º-A do CCJ não violam o princípio da igualdade previsto
na Constituição nem o da equidade. O A. Terá apenas que lançar mão do
procedimento previsto neste artigo para ser reembolsado do que adiantou. Haveria
sim violação se a lei não tivesse previsto uma forma de o A. Ser ressarcido.
Ao Tribunal não cabe criticar as opções do legislador, desde que em
conformidade com a Constituição, estando obrigado a aplicar a lei.
Consequentemente, indefiro o requerido”.
2. A. veio então recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do
despacho de fls. 95, pretendendo a apreciação da interpretação com que os
artigos 31º, 33º e 33º-A do Código das Custas Judiciais, na redacção decorrente
do Decreto-Lei n.º 324/2003, foram aplicados, por serem orgânica e materialmente
inconstitucionais.
A inconstitucionalidade orgânica decorreria de o autor ser colocado perante a
necessidade de pagar ao Estado uma quantia que não tinha a natureza de taxa,
pois não correspondia a nenhuma contraprestação pelos serviços de justiça de que
ele, autor, beneficiou, mas antes ao pagamento de uma dívida do réu. Deveria,
pois, ser considerada como o pagamento de um imposto, criado por decreto-lei não
autorizado, organicamente inconstitucional (artigo 165º, n.º 1, i) da
Constituição).
Quanto à inconstitucionalidade material, resultaria da violação dos princípios
da legalidade tributária (artigo 103º da Constituição), da igualdade (artigo
13º) e do processo equitativo (n.º 4 do artigo 20º), bem como do artigo 266º da
Constituição, que impõe à Administração que conforme a sua actuação com os
princípios da igualdade e da proporcionalidade.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. A fls. 115, foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos do disposto nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro, convido o recorrente a definir as normas, contidas nos preceitos
legais que indica no requerimento de interposição de recurso – os artigos 31º,
33º e 33º- A do Código das Custas Judiciais – cuja inconstitucionalidade
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Com efeito, é ao recorrente que incumbe a definição do objecto do recurso; não
é suficiente, quando se questiona uma determinada interpretação normativa, a
afirmação de que é aquela que a decisão recorrida adoptou, assim transferindo
para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional – o ónus de
delimitar o objecto do recurso e impossibilitando-o de verificar o preenchimento
de todos os pressupostos de admissibilidade do recurso.”
A fls.119, o autor veio responder.
Relativamente ao artigo 31º, que restringe à parte em que prevê que “as taxas de
justiça pagas por cada parte integram as custas de parte”, o autor sustentou que
“é inconstitucional esta norma na interpretação que permita, não apenas (como
seria a interpretação correcta) integrar nas custas de parte as taxas de justiça
adiantadas em momento em que não se pode ainda saber qual das partes, a final,
será responsável pelo pagamento dessas quantias (única hipótese para a qual faz
sentido a previsão legal da posterior devolução dessa quantia, caso a parte que
pagou não seja, a final, responsável, e na medida em que não o seja), como
também cobrar a uma das partes, a título de taxa de justiça, uma determinada
quantia, em momento em que já seja certo que essa parte não é responsável
perante o tribunal pelo pagamento dessa quantia, com fundamento na ideia de que,
para essa quantia, a mesma, sendo “taxa de justiça paga”, integrará as custas de
parte e a parte que a pagou poderá pedir a sua devolução à parte contrária”.
Quanto ao artigo 33º, nº1, o recorrente, esclarecendo que apenas impugna na
parte a que respeita a respectiva alínea b),“As custas de parte compreendem o
que a parte haja despendido com o processo a que se refere a condenação e de que
tenha direito a ser compensada em virtude da mesma, designadamente. […] b) As
taxas de justiça pagas,” sustenta a inconstitucionalidade enquanto possa ser
interpretado com o sentido atrás referido ao artigo 31º e esclarece que “a
interpretação que se pretende ver julgada inconstitucional é, pois, aquela
segundo a qual possa ser exigido a uma parte o pagamento de quantias pelas quais
não é responsável (designadamente, porque o que já pagou a mais, em momento
anterior, chega para cobrir todo o montante pelo qual veio, a final, a ser
responsável), dando ‘em troca’, a essa parte, o ‘direito’ a exigir à parte
contrária a devolução dessas quantias”.
Finalmente, e quanto ao artigo 33º-A, que apenas impugna enquanto afirma que “a
parte que tenha direito a ser compensada das custas de parte remete à parte
responsável a respectiva nota discriminativa e justificativa, para que esta
proceda ao seu pagamento”, na parte em que “define a quem é que a parte pode
exigir o pagamento das custas a que tem direito”. Seria inconstitucional “na
medida em que permite que o Estado se subtraia do ónus de cobrança, à parte que
é a real devedora, das custas que são devidas ao Estado, fazendo sua (e
imputando-a àquelas custas devidas) a quantia paga ‘a mais’ pela outra parte,
transferindo para esta o ónus de cobrar à parte devedora o que pagou a mais e,
pior, transferindo para a parte que pagou ‘a mais’ o risco do não pagamento pela
parte devedora. É inconstitucional esta norma na medida em que transfere para o
domínio privado, entre dois particulares, os ónus e os riscos inerentes à
relação de débito/crédito estabelecida entre o Estado e um particular, obrigando
um particular que tenha como credor o Estado a ‘acertarem contas entre si’. Pois
que o Estado, já tendo em seu poder a quantia correspondente às custas globais
do processo, independentemente da sua proveniência, opta por se demitir dessa
função”.
4. Tendo em conta a entrada em vigor da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro de
2005 (aprova o orçamento de Estado para 2006), em momento posterior à
interposição do presente recurso (1 de Janeiro de 2006), foi proferido o
seguinte despacho, de fls. 93:
“Sendo plausível a aplicação, ao caso dos autos, do regime constante do n.º
1 do artigo 66º da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, e tendo em conta as
eventuais repercussões quanto ao conhecimento do recurso de constitucionalidade
pendente neste Tribunal, remeta os autos à primeira instância, a título
devolutivo, para os devidos efeitos.”
Com efeito, o citado n.º 1 do artigo 66º da referida Lei n.º 60-A/2005,
cuja epígrafe é “Incentivos à extinção da instância”, dispõe:
“1- Nas acções cíveis declarativas e executivas que tenham sido propostas
até 30 de Setembro de 2005, ou que resultem da apresentação à distribuição de
providências de injunção requeridas até à mesma data, e venham, a terminar por
extinção da instância em razão de desistência do pedido, de confissão, de
transacção ou de compromisso arbitral apresentados até 31 de Dezembro de 2006,
há dispensa do pagamento das custas judiciais que normalmente seriam devidas por
autores, réus ou terceiros intervenientes, não havendo lugar à restituição do
que já tiver sido pago nem, salvo motivo justificado, à elaboração da respectiva
conta”.
Em resposta., a fls. 132, o Juiz do tribunal recorrido pronunciou-se no sentido
de que entende que o referido regime não é aplicável ao caso presente, relativo
a “transacção homologada por sentença transitada em data anterior à entrada em
vigor da Lei 60-A/85, cujo prazo de pagamento voluntário não decorreu até
30.09.05”.
5. Assim, determinou-se que as partes fossem notificadas para apresentar
alegações, que o recorrente concluiu da seguinte forma:
«1.º
As normas legais que suportaram o entendimento sufragado no Despacho recorrido –
os artigos 31.º, 33.° e 33.°-A do CCJ – ao admitirem uma interpretação
conducente a um resultado como o supra descrito, são organicamente
inconstitucionais, por permitirem a criação de um encargo para um particular que
não tem a natureza bilateral característica da taxa, tendo antes a natureza
unilateral característica do imposto. Sendo a criação de impostos matéria
reservada à lei da Assembleia da República, os artigos 31.°, 33.° e 33.°-A do
CCJ, por terem sido decretados pelo Governo, sem autorização legislativa, são
organicamente inconstitucionais, por violação do artigo 165.°, alínea i), da
CRP.
2.°
As normas em apreço violam, assim, o princípio da legalidade tributária, que se
traduz no direito fundamental dos cidadãos plasmado no n.° 3 do artigo 103.° da
CRP, segundo o qual “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam
sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja
liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”.
3.º
Os artigos 31.º, 33º e 33.°-A do CCJ, ao permitirem uma diferenciação entre o
autor e a ré da acção no que toca aos deveres perante o Estado (sobrecarregando
e onerando o autor, por um lado, e favorecendo a ré, por outro), quando nenhuma
razão havia para um tratamento diferente e não obstante a lei, a vontade das
partes e a sentença judicial determinarem o tratamento igual das partes em
matéria de custas, violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.° da
CRP, na vertente da proibição de discriminação, uma vez que esta não é
materialmente fundada em qualquer motivo constitucionalmente legítimo.
4.º
As mesmas normas violam, ainda, a garantia do processo equitativo, consagrada no
artigo 20.°, n.° 4, da CRP, que se traduz no princípio da igualdade de armas,
uma vez que permitem uma diferenciação intolerável entre os intervenientes
processuais, obrigando injustificadamente uma das partes a proceder a um
pagamento que é da responsabilidade da outra parte, financiando-a e suportando
sozinha o risco do insucesso da cobrança à parte que era efectivamente devedora.
5.º
Os artigos 31.º, 33.º e 33.°-A do CCJ, ao permitirem que o Estado, no exercício
do seu poder de cobrador de custas judicias, abuse desse poder e obrigue uma das
partes ao pagamento de uma quantia que não é da sua responsabilidade,
transferindo assim para um particular (a parte pagadora) o ónus da cobrança e o
risco do não pagamento pela parte devedora, desonerando-se na medida em que vê
satisfeita parte do seu crédito, violam o disposto no artigo 266.°, n.° 2, da
CRP. De facto, as normas que permitem obrigar “o justo a pagar pelo pecador”,
tratando as partes de forma manifestamente desigual, impondo sobre uma delas um
sacrifício desnecessário e desproporcionado, consubstanciam uma verdadeira
violação da sujeição da Administração Pública ao respeito pelos princípios da
igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé.
Nestes termos e nos mais de direito, deve ser revogado o Despacho recorrido, que
deverá ser substituído por outro que defira a reclamação de conta apresentada
pelo ora Recorrente, e declarada a inconstitucionalidade dos artigos 31.°, 33.°
e 33.°-A do Código das Custas Judiciais, na interpretação que permita colocar a
cargo da parte que já liquidou inteiramente a taxa de justiça por si devida a
garantia do pagamento de uma parcela da taxa de justiça que, em termos
definitivos, é devida pela parte contrária, com o consequente ónus de reclamar a
respectiva restituição a título de custas de parte, correndo o risco (que para
si foi transferido pelo Tribunal) do insucesso da cobrança à parte efectivamente
devedora das custas, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA! »
Também alegou o Ministério Público, pronunciando-se igualmente no sentido da
inconstitucionalidade, e formulando as seguintes conclusões:
«1.º - Constitui interpretação normativa desproporcionada – e, consequentemente,
violadora do princípio do processo equitativo – dos artigos 31º, 33° e 33°-A do
Código das Custas Judiciais a que se traduz em colocar a cargo da parte – que já
liquidou inteiramente a taxa de justiça por ela devida — a garantia do pagamento
de uma parcela da taxa de justiça que, em termos definitivos, é devida pela
parte contrária, com o consequente ónus de reclamar a respectiva restituição a
título de custas de parte, suportando o risco da possível insolvabilidade do
devedor das custas.
2.° - Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
6. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso.
Como se viu, o despacho recorrido indeferiu um pedido de reforma da conta de
custas de que o autor tinha sido notificado, com o objectivo de obter o
pagamento de metade da taxa de justiça cujo pagamento final caberia ao réu,
pagamento esse que se traduziria na entrega de uma quantia que o autor ainda não
tinha desembolsado.
Todavia, o referido despacho negou o pedido invocando que “as taxas de justiça
já pagas são reclamadas pela parte que tem direito a receber custas de parte à
parte contrária nos termos do artº 33-A/1 do CCJ (artº 31/1 e 33/1/b do CCJ)
para que esta proceda ao seu pagamento”, e que o autor “poderia ter acordado
numa repartição de custas diferente, de modo a que nada mais tivesse que pagar,
para evitar ter que pagar ao Tribunal e reclamar da parte contrária o que
adiantou quando instaurou a acção”.
Ora, uma vez que nenhum adiantamento a mais tinha sido feito quando o autor
“instaurou a acção”, o Tribunal Constitucional considera que a única conclusão
possível é a de entender que, não obstante o texto poder aparentar outro
sentido, o despacho recorrido aplicou as normas impugnadas com a interpretação
que o recorrente acusa de ser inconstitucional.
Constitui assim objecto do presente recurso o conjunto normativo resultante dos
artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1, b) e 33º-A, n.º 1 do Código das Custas
Judiciais, com a redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, quando interpretado no
sentido de que pode ser exigido da parte que já suportou a totalidade da taxa de
justiça pela qual é responsável o adiantamento de parte da taxa de justiça de
que é responsável a parte contrária, cabendo-lhe depois exigir a esta a
devolução da quantia correspondente, nos termos aplicáveis às custas de parte.
Sendo certo que estas normas foram efectivamente aplicadas com este sentido, mas
num caso em que o processo terminou por transacção, nos termos da qual as custas
em dívida seriam suportadas a meias, e que a transacção foi homologada antes de
o réu ter procedido ao pagamento da (sua) taxa de justiça inicial, é apenas
nesta dimensão que as mesmas serão apreciadas.
7. O recorrente começa por sustentar a inconstitucionalidade orgânica das normas
em apreciação no presente recurso, sustentando que delas resultaria, na
interpretação com que foram aplicadas, a criação – por decreto-lei não
autorizado parlamentarmente – de um encargo que teria a natureza de um imposto,
assim sendo violado o disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165º da
Constituição.
Ora o Tribunal Constitucional já apreciou, por diversas vezes, normas
respeitantes à chamada taxa de justiça. Essa apreciação incidiu, sobretudo, no
problema da sua caracterização como imposto ou como taxa e no dos critérios de
fixação do seu montante, mas também no modo de repartição do correspondente
encargo entre as partes de uma acção.
Assim, e no que respeita à primeira questão, o Tribunal Constitucional tem
concluído uniformemente que se trata efectivamente de uma taxa (cfr., por
exemplo, o acórdão n.º 349/2002, Diário da República, II série, de 15 de
Novembro de 2002 e a jurisprudência nele citada), já que “é, em geral, a
contrapartida que o Estado autoritariamente cobra pela administração da justiça”
(acórdão n.º 377/94, Diário da República, II série, de 7 de Setembro de 1994).
No que toca à segunda, tem também o Tribunal Constitucional considerado que o
legislador dispõe de uma larga margem de liberdade de conformação, naturalmente
limitada por regras constitucionais como a da proporcionalidade (artigo 2º da
Constituição) ou a da tutela do direito de acesso à justiça (artigo 20º da
Constituição) – cfr. Acórdãos nºs 352/91 (Diário da República, II Série, de 17
de Dezembro de 1991), 1182/96 (Diário da República, II Série, de 11 de Fevereiro
de 1997), 521/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Março de 2000), ou
349/2002, Diário da República, II série, de 15 de Novembro de 2002).
Relativamente ao modo de repartição da taxa de justiça, escreveu-se no acórdão
n.º 303/2001 (Diário da República, II série, de 14 de Novembro de 2001): “Por
diversas vezes o Tribunal Constitucional afirmou que a taxa de justiça é uma
prestação pecuniária que os particulares pagam ao Estado como contrapartida pelo
serviço que este lhes presta – o serviço da administração da justiça (…).
Ora, em regra, o pagamento do serviço de administração da justiça, isto
é, o pagamento da taxa de justiça incumbe àquele cuja conduta “deu causa” à
intervenção do tribunal – a parte vencida, no processo civil, o arguido
condenado, no processo criminal.
Justifica-se que o legislador tenha optado pelo princípio da
correspondência entre a responsabilidade pelo pagamento das custas e o resultado
da actividade processual dos sujeitos intervenientes no processo. Na verdade, a
responsabilidade pelo pagamento das custas assenta na ideia de que um processo
não deve causar prejuízos à parte que tem razão, sendo as custas pagas pela
parte vencida, e na medida em que o for, ou, não havendo vencimento, pela parte
que tirou proveito da demanda. Em geral, não deve impor-se um sacrifício
patrimonial à parte em benefício da qual a intervenção do tribunal se realizou,
uma vez que é do interesse do Estado que a utilização do processo não cause
prejuízo ao litigante que tem razão. Assim, e como regra, a responsabilidade
pelo pagamento das custas assenta no princípio da causalidade e,
subsidiariamente, no princípio da vantagem ou proveito processual.”
É esta correspondência que o regime aprovado pelo Código das Custas
Judiciais de 2003 não considera essencial, com a justificação de que o vencedor
ainda “deu causa (em sentido amplo) à acção” .
Isso não significa, todavia, que se possa concluir que das normas em
apreciação resulte a criação de um imposto e não de uma taxa. Na verdade, não se
pode afirmar que não tenha sido prestado também ao autor um serviço
suficientemente individualizado para afastar a qualificação como taxa da
contrapartida a pagar globalmente pelas partes, independentemente do critério de
repartição que vier a ser aplicado para determinar quem o suporta
definitivamente (cfr. N.º 2 do artigo 4º da Lei geral tributária, aprovada pelo
Decreto-Lei n.º 398/98, de17 de Dezembro)
Improcede, assim, a alegada inconstitucionalidade orgânica. E, pelo
mesmo motivo, fica também afastada a acusação de inconstitucionalidade material
por violação do princípio da legalidade tributária (artigo 103º da
Constituição), nos termos apontados pelo recorrente.
8. O recorrente acusa ainda as normas em causa de inconstitucionalidade material
por violação do princípio da igualdade, “na medida em que dão ao que é igual – a
situação das partes no processo judicial – um tratamento desigual (onerando uma
das partes com a correspondente desoneração da outra)”.
Entende-se, todavia, que não é nesse plano que a conformidade constitucional da
norma deve ser analisada, já que se poderia, justamente, encontrar na
diversidade de posição processual das partes e no momento da homologação da
transacção a justificação para a diferença de solução.
Quanto à alegação de violação da “garantia do processo equitativo”, a
justificação apresentada pelo recorrente não tem autonomia relativamente à que
utiliza para sustentar os outros motivos de inconstitucionalidade que aponta.
E a verdade é que o Tribunal entende que é com o princípio da proporcionalidade
que as normas em apreciação devem ser confrontadas.
9. Como se explica no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 324/2003, uma das inovações
trazidas com a aprovação do novo Código das Custas Judiciais consistiu em
eliminar “a restituição antecipada (independentemente de o vencido proceder ao
pagamento das custas de sua responsabilidade), pelo Cofre Geral dos Tribunais,
da taxa de justiça paga pelo vencedor no decurso da acção” (ponto 5.),
transferindo para o vencedor o ónus de reaver do vencido o que adiantou através
do mecanismo de custas de parte.
Este mecanismo, desenhado pelos artigos 31º, n.º 1, 32º, n.ºs 1 e 2, 33º, n.º 1
e 33º-A do Código das Custas Judiciais, e que começa por se traduzir numa
garantia de que a taxa é efectivamente paga, pode levar a que o vencedor, não
obstante ter ganho a lide, suporte o respectivo custo, por não conseguir o
respectivo pagamento pelo vencido, nem voluntariamente, nem em via de execução.
Diz-se no mesmo preâmbulo que com esta inovação no regime da taxa de justiça se
pretende, “sem colocar em causa o princípio da tendencial gratuitidade da
justiça para o vencedor”, que o “custo efectivo” do processo “não opere à custa
da comunidade e do Estado, mas sim de quem deu causa (em sentido amplo) à
acção”, bem como “introduzir um factor de racionalização e moralização no
recurso aos tribunais, desincentivando-o por parte de quem já saiba de antemão
que não irá obter quaisquer benefícios reais com o processo”.
10. Sucede, todavia, que o regime acabado de referir só vale – só tem sentido,
aliás, e com esta afirmação não vai implícito qualquer juízo de conformidade ou
desconformidade constitucional das normas que o compõem – quando há reembolsos a
fazer, pois que a garantia de pagamento das custas em dívida consegue-se, nesta
lógica, retendo o que foi pago a mais pela parte vencedora e impondo-lhe o ónus
de, pelo mecanismo das custas de parte, o reaver da parte contrária.
De nenhum preceito do Código das Custas Judiciais resulta que, tendo uma das
partes pago a totalidade da quantia que, a título definitivo, lhe incumbiria
pagar, e não tendo a parte contrária pago ainda nada, se deva cobrar a quantia
que a esta última cabe determinando o pagamento de metade por cada uma.
Tal solução seria, aliás, desde logo, contraditória com as razões que levaram à
definição do novo regime.
Em primeiro lugar, porque, não havendo qualquer quantia paga a mais e, portanto,
a reter, não alcançaria o objectivo da garantia.
Em segundo lugar, porque, contrariando a simplificação proclamada igualmente no
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 324/2003, conduziria a uma maior complexidade de
regime: em vez de notificar uma parte para pagar a taxa que (exclusivamente) lhe
competia, notificavam-se as duas, cada uma para pagar metade; se a que já pagou
viesse efectivamente adiantar a parte que cabia à outra, haveria depois que
desencadear o mecanismo conducente ao reembolso das custas de parte; se não
viesse, e para além de se tornar necessário julgar uma eventual reclamação da
parte – como sucedeu no caso presente –, ainda se abriria a eventualidade de uma
execução por falta de pagamento… para depois o executado ir reaver da outra
parte o que foi obrigado a desembolsar.
Basta ver, por exemplo, o regime definido pelo n.º 2 do artigo 25º do mesmo
Código para verificar que o legislador quer evitar pagamentos de taxa de justiça
que previsivelmente depois tenham de ser reembolsados. Com efeito, o referido
n.º 2 do artigo 25º do Código prevê que, em caso de pluralidade activa ou
passiva, se o montante pago pela “parte” se revelar suficiente para cobrir o
valor correspondente à taxa de justiça subsequente, é dispensado o pagamento
deste última.
11. Está portanto em causa no presente recurso, como se viu e pelas razões já
apontadas, o conjunto normativo resultante dos artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1,
b) e 33º-A, n.º 1 do Código das Custas Judiciais, quando interpretado no sentido
de que pode ser exigida da parte que já suportou a totalidade da taxa de justiça
pela qual é responsável o adiantamento de parte da taxa de justiça pela qual é
responsável a parte contrária, cabendo-lhe depois exigir a esta a devolução da
quantia correspondente nos termos aplicáveis às custas de parte, quando o
processo terminou por transacção, nos termos da qual as custas em dívida seriam
suportadas a meias, homologada antes de o réu ter procedido ao pagamento da
(sua) taxa de justiça inicial.
Ora, das considerações constantes dos pontos anteriores resulta que, se tal
regime decorre do conjunto das normas que integram o objecto do presente
recurso, quando interpretadas no sentido em apreciação, o Tribunal
Constitucional não pode deixar de as julgar inconstitucionais, por violação do
princípio da proporcionalidade.
Como se sabe, o significado e as exigências decorrentes do princípio da
proporcionalidade, enquanto princípio decorrente do Estado de Direito (artigo 2º
da Constituição) e, assim, imposto, em geral, como limite à liberdade de
conformação do legislador ordinário (e é nesta dimensão que este princípio está
agora em causa, naturalmente), foi já objecto de inúmeras considerações pelo
Tribunal Constitucional.
Recorrendo, a título de exemplo, ao acórdão n.º 187/2001 (Diário da República,
II série, de 26 de Junho de 2001), cabe recordar que
«o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, pode (…) desdobrar-se
analiticamente em três exigências da relação entre as medidas e os fins
prosseguidos: a adequação das medidas aos fins; a necessidade ou exigibilidade
das medidas e a proporcionalidade em sentido estrito, ou “justa medida”. Como se
escreveu no (…) Acórdão n.º 634/93, invocando a doutrina:
“o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio
da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem
revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de
outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da
exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os
fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos
para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou
proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas,
desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).”»
A interpretação normativa de que nos ocupamos não é compatível com nenhuma
destas exigências, como resulta do que se disse atrás: não é adequada a alcançar
os objectivos de garantia e de celeridade do novo regime, não é necessária para
o mesmo efeito e traduz-se na imposição ao autor que já pagou a totalidade da
taxa de justiça que, definitivamente, lhe competia, de um ónus de desembolsar
parte do que cabe ao réu e de, posteriormente, ter de lançar mão das vias
previstas para obter o reembolso.
É, portanto, inconstitucional, por infracção do princípio da proporcionalidade.
12. Aqui chegados, e porque a interpretação analisada, bem vistas as coisas, não
decorre dos preceitos de onde foi extraída, os artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º1, b)
e 33º-A, n.º 1, do Código das Custas Judiciais, entende o Tribunal recorrer ao
mecanismo previsto no n.º 3 do artigo 80º da Lei nº 28/82.
Com efeito, é o seguinte o texto estes preceitos:
Artigo 31º
(Reembolso e devolução da taxa de justiça)
Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as taxas de justiça pagas por
cada parte integram as custas de parte, nos termos do artigo 33º.
(…)
Artigo 33º
(Custas de parte)
1. As custas de parte compreendem o que a parte haja dispendido com o processo a
que se refere a condenação e de que tenha direito a ser compensada em virtude da
mesma, designadamente:
(…)
b) As taxas de justiça pagas;
(…)
Artigo 33º-A
(Pagamento das custas de parte)
Sem prejuízo da sua cobrança em execução de sentença, no prazo de 60 dias a
contar do trânsito em julgado da mesma, a parte que tenha direito a ser
compensada das custas de parte remete à parte responsável a respectiva nota
discriminativa e justificativa, para que esta proceda ao seu pagamento.
(…)
Não decorre manifestamente destes preceitos, interpretados isoladamente ou em
conjunto, e conjugados com os demais preceitos do Código das Custas Judiciais
que, quando aplicados a uma acção que termine por transacção, homologada antes
de o réu ter procedido ao pagamento da taxa de justiça inicial, nos termos do
disposto nos artigos 22º, 23º e 24º, n.º 1, b) do Código, ambas as partes devam
ser notificadas, cada uma, para pagar metade da taxa de justiça devida pelo réu.
Segundo o disposto no n.º 2 do artigo 13º do Código das Custas Judiciais, “a
taxa de justiça do processo corresponde ao somatório das taxas de justiça
inicial e subsequente de cada parte”, sendo o respectivo cálculo efectuado de
acordo com o n.º 1 do mesmo preceito.
Resulta ainda do no n.º 1 do artigo 25º que são iguais os valores das taxas de
justiça inicial e subsequente; e da alínea b) do n.º 1 do artigo 14º que, caso a
acção termine”antes de oferecida a oposição”, a taxa (do processo) será reduzida
a metade, razão pela qual não é devida a taxa de justiça subsequente.
Assim sendo, em caso de transacção homologada antes de ser oferecida a
contestação e paga a taxa de justiça inicial do réu, mas, naturalmente, depois
de ter sido paga a taxa de justiça inicial do autor, falta para completar a taxa
de justiça do processo um valor igual ao que o autor já pagou; e, tendo sido
convencionado que as custas são suportadas em partes iguais, esse valor em falta
é da total e definitiva responsabilidade do réu, porque é a taxa de justiça (de
parte) que lhe incumbe suportar.
Nestes termos, fixa-se para o conjunto normativo resultante da interpretação
conjugada das normas dos artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1, b) e 33º-A, n.º 1, do
Código das Custas Judiciais, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º
324/2003, quando aplicadas em caso de transacção homologada antes de o réu ter
procedido ao pagamento da taxa de justiça inicial, a seguinte interpretação:
Em caso de transacção homologada judicialmente antes de o réu ter pago a sua
taxa de justiça inicial, segundo a qual as custas em dívida são suportadas em
partes iguais, tendo o autor suportado integralmente a taxa de justiça que lhe
compete, por ter pago a sua taxa de justiça inicial, deverá o réu ser notificado
para pagar o remanescente da taxa de justiça do processo.
13. Nestes termos, concede-se provimento ao recurso, devendo o despacho
recorrido ser reformulado de acordo com a interpretação fixada.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Bravo Serra (vencido,
pois que entendo que o juízo, efectuado no presente aresto, de desconformidade
constitucional dos normativos em causa e que conduziram ao juízo de
interpretação conforme, não tem a minha anuência; efectivamente, embora entenda
que as normas, da forma que foram interpretadas no despacho recorrido, não
constituam “bom direito”, perfilho a óptica que essa “deficiência” não atinge
proporção que conduza a se ter por violado o artigo 18.º da Lei Fundamental)
Gil Galvão (vencido
pelas razões constantes da declaração supra do Ex.mo Conselheiro Bravo Serra,
para a qual, com vénia, remeto).
Artur Maurício