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Processo n.º 703/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 414 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão
instrutória proferida pelo 3.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa
de 8 de Novembro de 2004 (cfr. fls. 218), que o pronunciou pela prática, em
co-autoria material, de 'um crime de abuso de informação, previsto e punido pelo
artigo 378.º, n.º 1, com referência ao n.º 4 do Código dos Valores Mobiliários
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro), por força do artigo
280.º, n.º 1, do Código Penal', e de 'um crime de abuso de informação, previsto
e punido pelo artigo 378.º, n.º 3, com referência ao n.º 4, do Código dos
Valores Mobiliários (…)'.
Nas conclusões da motivação do respectivo recurso (cfr. fls. 674/6),
na parte que agora releva, o recorrente afirmou o seguinte:
«a) A fls. da decisão instrutória a Mmª Juiz a quo considerou não se verificar
no caso sub judice a nulidade invocada pelo recorrente no seu requerimento de
abertura de instrução considerou que CMVM actua, na fase de averiguações
preliminares da possível existência do crime, com total poder de acesso à
informação abrangida pelo sigilo bancário não sendo aplicável o regime do
processo penal (artigo 385º a contrario) e portanto, não tendo de solicitar
autorização ao juiz de instrução criminal para a quebra o sigilo às entidades
bancárias.
d) [sic] Acontece, todavia, que a Divisão de Inspecção da CMVM, ao aceder às
contas bancárias do arguido ora recorrente, no caso sub judice actuou no âmbito
do processo de averiguações preliminares previsto nos artigos 383.º e seguintes
do Código de Valores Mobiliários (…).
e) [sic]A actuação da CMVM neste âmbito pauta-se obrigatoriamente pelo regime
previsto no Código de Processo Penal.
b) [sic] Por consequência, a CMVM deveria ter solicitado autorização judicial
para ter acesso às contas bancárias do arguido, ora recorrente e sua mulher não
obstante não o fez, tendo, tais elementos e informação, sido carreadas para os
autos sem ter existido qualquer sindicância jurisdicional (que ademais, o
Ministério Público também não requereu).
(…)
d)[sic] Actuou assim a CMVM e o Ministério Público de forma manifestamente
ilegal, não podendo o seu comportamento, desprovido de suporte legal, ser
considerado, senão, como uma abusiva intromissão na vida privada do arguido ora
recorrente e de sua mulher, que a lei comina com a nulidade (cfr. n.º 8 do
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).
e)[sic] Resulta assim do exposto que a decisão proferida pela Mm.ª Juiz a quo,
em que se considera como não verificada a nulidade invocada pelo ora recorrente
no seu requerimento de abertura de instrução, carece de fundamento legal e viola
o disposto no n.º 5 do artigo 385.º do Código de Valores Mobiliários, o disposto
no n.º 8 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio
constitucionalmente consagrado da reserva da intimidade da vida privada.
(…)»
2. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Julho de
2005 (cfr. fls. 280), foi negado provimento ao recurso.
Tendo A. arguido a respectiva nulidade, o Tribunal da Relação de
Lisboa, por acórdão de 2 de Maio de 2006 (cfr. fls. 337) decidiu «sanar a
nulidade por omissão de pronúncia do acórdão desta Relação na parte em que não
conheceu a invocada nulidade da falta de autorização judicial da CMVM para
aceder às contas bancárias do recorrente A.». Como se disse no mesmo acórdão, «a
CMVM dispõe da prerrogativa legal da quebra de sigilo bancário em quaisquer
circunstâncias com a fundamentação legal do artº 361., n.º 2, do CVM, aprovado
pelo DL n.º 486/99, de 13 de Novembro, não sendo de forma alguma aceitável a
interpretação que o reclamante pretende retirar do n.º 5 do artº 385. do DL n.º
486/99, de 13 de Novembro, ao pretender submeter a CMVM à exigência de
autorização judicial para ter acesso às contas bancárias do reclamante A.».
A. veio ainda pedir a aclaração deste último acórdão, pedido esse
apreciado pelo acórdão do mesmo tribunal de 20 de Junho de 2006, de fls. 363.
3. A. veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional do
«Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a 5 de Julho de 2005,
entretanto objecto de arguição de nulidade que foi decidida por Acórdão de 2 de
Maio de 2006, e de pedido de aclaração que foi decidido por Acórdão de 20 de
Junho de 2006», nos seguintes termos:
«1. O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (…).
2. As normas sob apreciação são o art. 361.º, n.º 2, al. a), e o art. 385.º, n.º
2, e n.º 5, do Código dos Valores Mobiliários, na concreta interpretação
acolhida pelo Acórdão recorrido, essencialmente resultante da leitura conjugada
e contextualizada daqueles dois preceitos.
3. Tais normas, tal como foram interpretadas, padecem de inconstitucionalidade
material por violação do art. 32.º, n.º 8, da Constituição, relativo às
proibições de prova, e bem assim, do art. 32.º, n.º 4, da Constituição, relativo
ao princípio da reserva de juiz em sede de instrução criminal e, ainda, do
princípio da reserva de intimidade da vida privada.
4. A questão da inconstitucionalidade foi reiteradamente suscitada pela
recorrente, desde logo nos artigos iniciais do seu requerimento de abertura de
instrução. Em todo o caso, e em directo cumprimento do disposto no n.º 2 do art.
75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, basta compulsar as alegações de recurso da decisão de pronúncia,
proferida por sentença do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, apresentadas
junto do Tribunal da Relação de Lisboa, tanto no seu corpo como nas suas
conclusões (designadamente, conclusões 6.ª, 7.ª e 8.ª).»
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
4. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do
presente recurso.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie
a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que
foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e
não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da
lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de
exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da
República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de
ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs
313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série,
respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de
ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
5. Ora, no caso presente, verifica-se que o recorrente não suscitou 'durante o
processo' a inconstitucionalidade de nenhuma norma contida nos preceitos legais
que indica no requerimento de interposição de recurso – os artigos 361º, n.º 2,
a) e 385º, n.ºs 2 e 5, do Código dos Valores Mobiliários –, como, aliás, se pode
verificar pela transcrição acima efectuada.
Também não ocorre qualquer motivo que justifique o afastamento do ónus
correspondente, por não ser manifestamente imprevisível que os referidos
preceitos fossem aplicados na decisão recorrida.
Torna-se, assim, desnecessário convidar o recorrente, ao abrigo do disposto nos
n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, a definir as normas que, contidas
nos preceitos legais que indica, considera inconstitucionais, como seria
imprescindível se o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do recurso.
6. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão
sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. »
2. Inconformado, o recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto
no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão
sumária, decisão que, em seu entender, 'numa atitude formalista e superficial,
atentou nas palavras usadas pelo recorrente nas conclusões da motivação de
recurso da decisão instrutória que dirigiu à Relação de Lisboa (e transcritas
nesta decisão), assim se prendendo equivocamente à palavra 'decisão' nelas
escrita', prendendo-se 'a um jogo de palavras e a questões semânticas e
meramente formais, para decidir não dever conhecer do objecto do presente
recurso'.
Ora, 'uma abordagem material do presente recurso, que vá além da que foi
aparentemente levada a cabo na decisão sumária, conduzirá inexoravelmente a
decisão diversa, pois do processo resulta inegável que o que o recorrente põe
realmente em causa não é a inconstitucionalidade de uma decisão, mas a
inconstitucionalidade da decisão que é a interpretação a contrario sensu das
normas em causa do CVM (artigos 361º e 385º), questão esta que cabe no âmbito da
fiscalização concreta da constitucionalidade que a esse tribunal cumpre
apreciar.
A decisão sumária traduz-se em vedar ao recorrente obter uma decisão desse
Digníssimo Tribunal acerca da conformidade constitucional da interpretação
apreciada pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e pela Relação de
Lisboa, quando aquele, desde o início deste processo (leia-se, desde a abertura
da instrução), sempre invocou e sustentou que o processo se encontrava ferido de
nulidade e que decisão que assim não entendesse configuraria uma interpretação
inconstitucional das normas do CVM aplicáveis.
A decisão sumária proferida, a manter-se, redunda num resultado – sonegação de
justiça – que não é, manifestamente, o desejado num Estado-de-Direito como o
nosso, em que o direito à tutela judicial efectiva está dotado de elevada
protecção e erigido em princípio estruturante da Constituição'.
Esta conclusão retira-a o ora reclamante da circunstância de, em seu entender,
ter suscitado a inconstitucionalidade que indica no requerimento de interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional 'ao longo do processo no âmbito da
arguição da nulidade da prova obtida pela (…) CMVM, nulidade que começou por ser
arguida no requerimento de abertura de instrução e que, reiteradamente
sustentada pelo recorrente, foi sendo indeferida pelas várias pronúncias
judiciais que sobre a mesma incidiram'.
Discorda da decisão reclamada porque considera que, 'no recurso interposto da
(…) decisão instrutória, o que o recorrente faz mais não é do que invocar a
inconstitucionalidade da interpretação (a contrario) do aludido preceito levada
a cabo pelo tribunal a quo (o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa).
(…) As referências feitas na motivação do recurso à decisão do tribunal a quo,
às quais a decisão sumária notificada se prende, não podem ter outra
interpretação senão a de o recorrente quando diz decisão está igualmente a dizer
a interpretação dos artigos 385º, n.º 5, e 361 do CVM em que assenta a decisão.
É que a decisão do tribunal a quo, no sentido de indeferir a nulidade invocada,
funda-se numa interpretação (a contrario) daquele artigo e é evidente que quando
o recorrente diz no seu recurso que a decisão é inconstitucional está igualmente
a dizer que a interpretação normativa em que a mesma assenta é
inconstitucional.
(…) Aliás, a mera leitura da motivação de recurso apresentada não deixa dúvidas
de que o que está em causa é a interpretação dos artigos do CVM em conformidade
à Constituição, sendo que o recorrente entende, e ali expõe, que a única
interpretação capaz de passar o crivo constitucional é aquela que ali sustenta,
e sustentou desde a abertura da instrução (no sentido de que é necessária, nos
termos do disposto no Código de Processo Penal, uma autorização judicial para o
acesso pela CMVM a contas bancárias).'
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de
que a reclamação é 'manifestamente improcedente', porque, 'na verdade, e como é
óbvio, o reclamante não suscitou, durante o processo e em termos processualmente
adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para
servir de suporte ao recurso que interpôs para este Tribunal Constitucional'.
4. Com efeito, a reclamação é improcedente, pela razão apontada na decisão
reclamada, decisão, aliás, que não assenta, nem em jogos de palavras, nem em
formalismos superficiais, mas antes no incumprimento do pressuposto essencial de
qualquer recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82: suscitar, perante o tribunal
recorrido, uma questão de constitucionalidade normativa, de forma a obter uma
decisão sobre a qual o Tribunal Constitucional se possa pronunciar por via de
recurso.
Note-se, aliás, que, nem no requerimento de interposição de recurso (cfr. parte
final do ponto 5. da decisão reclamada), nem na reclamação, o ora reclamante
define a norma ou normas que, tendo sido aplicadas pela decisão recorrida,
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Não é naturalmente equivalente
alegar a inconstitucionalidade de determinados preceitos legais na interpretação
que deles fez a decisão recorrida, sem a identificar – o que, como é evidente, o
recorrente fez ao interpor recurso para o Tribunal Constitucional – e
efectivamente definir uma norma que, contida nesses preceitos, se acusa de ser
inconstitucional.
De todo o modo, nem mesmo isso o reclamante fez perante o Tribunal da Relação de
Lisboa, como exige a al. b) do n.º 1 do artigo 70º e o n.º 2 do artigo 72º da
Lei nº 28/82, e como facilmente se verifica pela leitura das conclusões da
motivação parcialmente transcritas na decisão sumária. Com efeito, se, como o
reclamante sustenta na reclamação, 'o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou
as mesmas normas no sentido em que vinham já interpretadas pelo tribunal a quo,
limitando-se a manter a decisão instrutória e, logo, a respectiva fundamentação,
que mais não é que a interpretação normativa a ela subjacente', nenhuma
dificuldade se lhe colocava de enunciar a interpretação dos preceitos que
considerava inconstitucional, de forma a que a Relação de Lisboa, primeiro, e o
Tribunal Constitucional, posteriormente, avaliassem a respectiva conformidade
com a Constituição.
5. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se a
decisão de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 22 de Novembro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício