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Processo nº 837/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em
que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B. e Mulher, foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no
artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 13 de Julho de
2006.
2. Em 18 de Outubro de 2006, foi proferida decisão sumária no sentido de que não
podia conhecer-se do objecto do recurso em causa, com os seguintes fundamentos:
«Um dos requisitos do recurso de constitucionalidade que o recorrente pretendeu
interpor – o previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC – é que tenha
sido suscitada previamente, durante o processo, a questão de
inconstitucionalidade formulada no requerimento de interposição de recurso para
este Tribunal.
Das passagens acima transcritas (ponto 3. do Relatório) – e, em geral, da peça
processual em que se inserem – decorre que o recorrente não suscitou
previamente, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade normativa
agora formulada no requerimento de interposição de recurso. De tais passagens e
de tal peça processual resulta apenas que a violação do artigo 32º, nº 1, da
Constituição da República Portuguesa decorre da ausência das transcrições. Por
outro lado, quando se referem os nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo
Penal não há em tal referência qualquer juízo de inconstitucionalidade dos
mesmos ou de uma sua interpretação. Pelo contrário, o recorrente socorre-se
destas disposições para sustentar que “imporiam decisão diversa”.
Justifica-se, assim, a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da
LTC), uma vez que a não verificação do requisito da suscitação prévia da questão
de inconstitucionalidade normativa formulada no requerimento de interposição de
recurso obsta ao conhecimento do objecto do recurso interposto.
Independentemente da questão de saber se a decisão recorrida interpretou e
aplicou os nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, no sentido que
é apontado no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal».
3. O recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo
78º-A da LTC, com os seguintes fundamentos:
«1 – Entendendo que o Recorrente “não suscitou previamente, durante o processo,
a questão de inconstitucionalidade normativa agora formulada no requerimento de
interposição de recurso”, a Meritíssima Juiz Conselheira Relatora decidiu, nos
termos do disposto no artigo 78°-A n°1 da LTC, não tomar conhecimento do objecto
do presente recurso.
2 – Permite-se o Recorrente discordar de tal decisão sumária, motivo pelo qual
se dirige a essa Conferência.
3 – O Recorrente recorreu para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 13 de
Julho de 2006 desse Tribunal da Relação de Lisboa, corrigido em 19 de Julho de
2006, que não considerou procedente o recurso interposto pelo Recorrente do
Despacho do Meritíssimo Juiz de primeira instância que, considerando serem as
cassetes “perfeitamente audíveis”, não deu razão ao Recorrente / Requerente
quando este requereu a anulação e repetição do julgamento com base na invalidade
dos registos da prova, com tal recurso pretendendo o Recorrente ver apreciada a
inconstitucionalidade das normas constantes dos n°s3 e 4 do artigo 412° do
Código de Processo Penal, efectivamente aplicadas pelo Tribunal da Relação de
Lisboa, com a interpretação de que não é necessário que todos os depoimentos
prestados em audiência de julgamento, documentados por gravação áudio e que
estiveram na base da convicção do tribunal, sejam totalmente audíveis e
inteligíveis, pois que semelhante leitura viola o direito de defesa do arguido
Recorrente e, de forma directa, o artigo 32° n°1 da Constituição da República
Portuguesa por, nomeadamente, impossibilitar que o Recorrente impugne, em toda a
plenitude a que tem direito, a matéria de facto que entende ter sido
incorrectamente julgada, não lhe sendo assim asseguradas todas as garantias de
defesa a que tem direito, incluindo o recurso.
4 - Esta questão da inconstitucionalidade dos referidos preceitos normativos foi
devidamente suscitada e colocada à apreciação do Tribunal da Relação de Lisboa,
autor da decisão de que ora se recorre, na Motivação do Recurso interposto, em
30 de Abril de 2002, do Despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz em 9 de Abril
de 2002.
5 – E é nesta questão que o ponto de vista do Recorrente contende com a decisão
sumária proferida nestes autos.
6 – De facto, contrariamente ao que foi considerado, o Recorrente, de forma
suficientemente perceptível, alegou, desde logo perante o autor da decisão
recorrida – Tribunal da Relação de Lisboa -, a inconstitucionalidade dos
normativos legais que nesta sede são colocados à apreciação deste Tribunal.
7 – Percorrendo a Motivação de recurso onde foi suscitada a questão da
inconstitucionalidade – motivação de recurso do despacho proferido em 9.04.2002
- podemos ler, nas respectivas conclusões:
“4 - Pretendendo o arguido ora recorrente impugnar a matéria de facto constante
do acórdão condenatório, por entender que determinados pontos de facto foram
incorrectamente julgados, deparou-se com a impossibilidade de, em toda a
plenitude a que tem direito, especificar a totalidade do teor das declarações
que imporiam decisão diversa da então recorrida, nos termos dos n°s 3 e 4 do
artigo 412° do Código de Processo Penal. (...)
6 - Impossibilitado de fazer uso em toda a sua plenitude do recurso sobre a
matéria de facto, por não conseguir, dentro do que é humanamente possível,
transcrever a integralidade dos depoimentos prestados em audiência de
julgamento, não vê o arguido ora recorrente asseguradas todas as garantias de
defesa que lhe são constitucionalmente atribuídas.
7 - A ausência de tais transcrições integrais consubstanciam violação do artigo
32° n°1 da Constituição da República Portuguesa, o qual assegura ao arguido
todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”
8 – Ora, desta alegação decorre claramente que o facto de se poder considerar
que o artigo 412° nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal permite a não
transcrição total dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, assim
afectando as garantias de defesa do arguido, viola o artigo 32° nº1 da
Constituição da República Portuguesa.
9 – Ainda que esta ideia possa não ter sido escrita, na motivação de recurso,
exactamente desta forma, a mesma resulta ali suficientemente exposta para que o
Tribunal da Relação de Lisboa a pudesse perceber e sobre a mesma se pronunciar.
10 – Julga o Recorrente que a exigência da Lei Constitucional de que a questão
da constitucionalidade tem de ter sido previamente suscitada obedece à
necessidade lógica de que o tribunal chamado a resolver essa questão se aperceba
da mesma, ficando em condições de sobre ela opinar, o que no caso concreto
ocorreu.
11 – O rigor excessivo de formalismo linguístico que se pretenda imprimir a este
requisito (que a inconstitucionalidade da norma aplicada tenha sido suscitada
durante o processo) não se compadece com um Tribunal defensor dos mais elevados
direitos de um cidadão como é o Tribunal Constitucional.
12 – O que o Recorrente coloca à apreciação de V. Exas é que verifiquem o
cumprimento do requisito aqui em discórdia, ou seja, que, oportunamente, deu a
conhecer ao Tribunal da Relação de Lisboa a insusceptibilidade de transcrição
total dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e documentados em
gravação áudio.
13 – Que deu a conhecer que, sem tais transcrições, impostas pelo artigo 412°
n°s 3 e 4 do Código de Processo Penal, não lhe seria possível recorrer sobre a
matéria de facto.
14 – Que deu ainda a conhecer que esta impossibilidade, se permitida por leitura
daquele normativo legal, atinge o seu direito ao recurso e as suas garantias de
defesa,
15 – assim resultando violado o artigo 32° n°1 da Constituição da República
Portuguesa.
16 – Como dizer que o Recorrente não suscitou, previamente e durante o processo,
a questão da inconstitucionalidade colocada à apreciação desse Tribunal
Constitucional?
17 – É quanto a esta recusa de conhecimento que o Recorrente se insurge e pede a
intervenção de V. Exas., Meritíssimos Juízes Conselheiros, no sentido de
reapreciarem a decisão sumária proferida e admitirem conhecer o objecto do
recurso».
4. Notificados os recorridos, o representante do Ministério Público junto deste
Tribunal respondeu nos termos seguintes:
«1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão sumária no que toca à evidente inverificação dos pressupostos de
admissibilidade do recurso.
3 – Radicando, aliás, exclusivamente na circunstância de não ter na devida conta
o ónus de suscitação adequada da questão de inconstitucionalidade normativa que
se pretende submeter à apreciação deste Tribunal Constitucional».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão que é objecto da presente reclamação concluiu pelo não conhecimento do
objecto do recurso interposto, com fundamento na não suscitação prévia da
questão de inconstitucionalidade formulada no requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal. Para tal concluir, a decisão considerou a peça
processual indicada pelo recorrente, em cumprimento do disposto na parte final
do nº 2 do artigo 75º-A da LTC e, nomeadamente, as passagens que o reclamante
agora transcreve no ponto 7 do requerimento de reclamação (cf. ponto 3. do
Relatório).
Estas passagens, bem como a peça processual onde se inserem, globalmente
considerada, são significativas de que o reclamante não suscitou qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente a depois formulada no
requerimento de interposição de recurso – os nºs 3 e 4 do artigo 412° do Código
de Processo Penal interpretados no sentido de que não é necessário que todos os
depoimentos prestados em audiência de julgamento, documentados por gravação
áudio e que estiveram na base da convicção do tribunal, sejam totalmente
audíveis e inteligíveis, violam o artigo 32º, nº 1, da Constituição.
Reiterando a decisão sumária, importa concluir que o então recorrente reportou a
violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa à ausência
de transcrições integrais e não a uma qualquer norma ou uma sua interpretação.
Nomeadamente, não a reportou aos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo
Penal, os quais, no entender do recorrente, até imporiam a especificação da
totalidade do teor das declarações e, consequentemente, uma decisão diversa da
recorrida.
Resta assim confirmar, contrariando o sustentado na reclamação, que o recorrente
não suscitou previamente a questão de inconstitucionalidade formulada no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, não se
podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso de constitucionalidade
interposto (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício