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Processo n.º 729/2006
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Conselheira Maria Fernanda Palma)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães do despacho do
Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Valença que o pronunciou pela
prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo
21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Nas respectivas
alegações disse:
«(…)
7.ª Acresce que, sem prescindir, o artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa confere ao arguido A. o direito fundamental ao
contraditório relativamente aos meios de prova de que o Ministério Público se
socorre para estribar a sua acusação e para a sustentar em audiência de
julgamento;
8.ª A conservação das gravações não transcritas até ao trânsito em julgado da
decisão final, podendo o arguido requerer a sua audição em sede de julgamento ou
de recurso para contextualizar as conversações transcritas, constitui um direito
fundamental do arguido que neste caso se encontra irremediavelmente precludido,
afectando a totalidade da prova colhida com violação daquela norma
constitucional;
9.ª Deste modo, o artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na medida em que impede ao
arguido exercer o contraditório relativamente às escutas telefónicas por não
estarem nos autos os registos fonográficos integrais das mesmas é
inconstitucional, afectando a totalidade da prova colhida com violação daquela
norma constitucional.»
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 19 de Junho de 2006,
considerou o seguinte:
«(…)
Defende, por último, o recorrente que é inconstitucional, por violação do art.º
32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do
artigo 188.º, n.º 3, do CPP “na medida em que impede ao arguido exercer o
contraditório relativamente às escutas telefónicas por não estarem nos autos os
registos fonográficos integrais das mesmas”.
Vejamos...
Dispõe o artigo 188.º, n.º 3, do CPP, que “[s]e o juiz considerar os elementos
recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua transcrição
em auto e fá-lo juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição,
ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo
relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento”.
Por sua vez, o citado artigo 34.º, n.º 5, da CRP preceitua que: “o processo
criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos
instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva “[e]ste princípio traduz-se na
estruturação da audiência em termos de um debate ou discussão entre a acusação e
a defesa. Cada um destes sujeitos é chamado a aduzir as suas razões de facto e
de direito, a oferecer as suas provas, a controlar as provas contra si
oferecidas e a discretear sobre o resultado de umas e outras” – vd. Curso de
Processo Penal, Verbo, I vol., pág. 72.
Pois bem, não se vê como é que o preceituado no artigo 188.º, n.º 3, do CPP, na
parte em que estatui que o juiz ordena a destruição dos elementos que considerar
irrelevantes, viole o n.º 5 do art.º 34.º da Constituição da República
Portuguesa. A ordem de destruição dos elementos irrelevantes faz parte do
acompanhamento judicial da própria execução da operação de intercepção e
gravação das comunicações telefónicas, imposto pelo elevado potencial de
danosidade social desta intromissão.
Com efeito, se um dos propósitos visados com o acompanhamento judicial é, como
se escreve no Acórdão n.º 426/2005, do Tribunal Constitucional, “fazer depender
a aquisição processual da prova a um ‘crivo’ judicial quanto ao seu carácter não
proibido e à sua relevância”, então dificilmente se concebe que elementos
considerados irrelevantes pelo “crivo” judicial pudessem ser utilizados, maxime
para contextualizar precisamente o teor de chamadas telefónicas consideradas
relevantes, e que foram transcritas integralmente, como ocorreu no caso dos
presentes autos [cfr. pontos 9), 15 ) e 22)].
Funcionando, à face da nossa lei, a intervenção judicial como garantia tanto do
escutado como de terceiros, com vista a impedir a devassa sobre factos inúteis,
isto é, sem relevância para a descoberta da verdade, a não destruição dos
elementos considerados irrelevantes permitiria a devassa que precisamente se
quis evitar com a intervenção judicial.
Os elementos seleccionados pelo Juiz como relevantes e que são transcritos é que
constituem prova. E quanto a estes elementos assiste ao arguido, ao assistente e
às pessoas escutadas, nos termos do n.º 5 do art.º 188.º do CPP, o direito de
examinarem o auto de transcrição, por forma a conferirem a conformidade da
transcrição com a gravação e a exigirem a rectificação dos erros detectados ou
de identificação de vozes. E, esta prova, junta ao processo, está sujeita ao
contraditório em sede de audiência de julgamento. Nesta sede, o arguido poderá
discutir o seu valor probatório, designadamente o sentido da conversação
escutada.
Concluindo, entende-se que o citado preceito não viola o art.º 34.º, n.º 5, da
CRP.»
2.Veio, então, o arguido interpor recurso de constitucionalidade, nos seguintes
termos:
«O arguido A., notificado do douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de
Guimarães;
Inconformado quanto ao conteúdo do mesmo relativamente à improcedência das
inconstitucionalidades suscitadas, quer no requerimento de abertura da instrução
quer nas alegações apresentadas em juízo:
Vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional;
Para a fiscalização concreta da inconstitucionalidade.
Nos termos e com os fundamentos seguintes:
Disposição legal ao abrigo da qual se interpõe o recurso:
Artigo 70.º, n.º 1, al. b), da LOFPTC.
Normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada:
O artigo 180.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porque permite a
interpretação, feita no douto acórdão recorrido, segundo a qual o auto de
transcrição das fitas gravadas e as referidas fitas podem ser remetidas pelo
órgão de polícia criminal ao Ministério Público, uma vez que, “o Ministério
Público, como titular da acção penal, não pode ficar alheado do material das
escutas”;
O artigo 180.º, nº 3, do Código de Processo Penal, na medida em que o douto
acórdão recorrido interpreta a norma no sentido de permitir a destruição das
fitas gravadas ou similares das conversas telefónicas, impossibilitado o
contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República
Portuguesa (CRP), pois não lhe é permitido aceder na íntegra à gravação feita
pelo órgão de polícia criminal, isto é, o arguido não tem como verificar se as
afirmações que aparecem transcritas nos autos correspondem efectivamente às
conversas gravadas, se não surgem transcritas fora de um contexto prévio e/ou
ulterior, ou se contêm conversas que permitam ser utilizadas na defesa do
arguido. Por conseguinte, este meio de recolha da prova só pode ser utilizado
pela acusação, estando vedado ao arguido utilizar o mesmo meio e a prova que
eventualmente daí resulte em benefício da sua defesa.
Normas que se consideram violadas:
Os artigos 32.º, n.ºs 1, 4, 5 e 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da
Constituição da República Portuguesa.
Peças processuais em que foram suscitadas as inconstitucionalidades das normas:
Requerimento de abertura da instrução no Tribunal Instrução Criminal da Comarca
de Valença e alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
Termos em que requer-se a V. Exas. se dignem admitir o presente recurso,
fixando-lhe efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos.»
No Tribunal Constitucional foi proferido, pela Relatora, o seguinte despacho:
«1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Guimarães, em que figura como recorrente A. e como
recorrido o Ministério Público, é submetida à apreciação do Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, uma dimensão normativa do artigo 180.º, n.º 1, do
Código de Processo Penal, e uma dimensão normativa do artigo 180.º, n.º 3, do
mesmo Código (dimensões identificadas no requerimento de interposição do recurso
para o Tribunal Constitucional – fls. 101).
Quanto à questão reportada ao artigo 180.º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
verifica-se que o recorrente, nas alegações de recurso para o Tribunal da
Relação de Guimarães e na resposta ao parecer do Ministério Público, não
suscitou a inconstitucionalidade da dimensão normativa que pretende agora ver
apreciada.
Desse modo, não se verifica, quanto à primeira questão identificada pelo
recorrente, o pressuposto do recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
do Tribunal Constitucional, consistente na suscitação durante o processo da
questão de constitucionalidade normativa. Assim, não se poderá tomar
conhecimento da conformidade à Constituição da dimensão normativa do artigo
180.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que o recorrente impugna.
2. Em face do exposto, notifique-se o recorrente para, no prazo de 20 dias,
produzir alegações relativamente à questão que tem por objecto o artigo 180.º,
n.º 3, do Código de Processo Penal, suscitando‑se a presente questão prévia
relativa ao artigo 180.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nos termos do
artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável nos presentes autos
por força do artigo 69.º da Lei do Tribunal Constitucional.»
O recorrente apresentou alegações nas quais concluiu:
«1.º – Decorre do artigo 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 10 de Dezembro de 1948, que: “[t]oda a pessoa acusada de um acto
delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente
provada no decurso de um processo público, em que todas as garantias necessárias
de defesa lhe sejam asseguradas”.
2.º – Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 32.º,
n.º 1, garante: “[o] processo criminal assegura todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso.”
3.º – O n.º 2 da mesma norma assegura que: “[t]odo o arguido se presume inocente
até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no
mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.”
4.º – E o n.º 5 prevê: “(...) estando a audiência de julgamento e os actos
instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
6.º – Assim, no direito de defesa conferido ao arguido aflora como corolário o
direito ao contraditório relativamente à prova carreada pelo Ministério Público
com a colaboração do JIC.
8.º – Ora, tendo o JIC ordenado a destruição dos suportes fonográficos
previamente seleccionados pelo Ministério Público, relativamente às escutas
telefónicas, o arguido fica impedido de utilizar os registos fonográficos em sua
defesa, donde resulta um gritante desequilíbrio nos meios de prova e de recolha
da prova de que dispõe o Ministério Público para fundamentar a acusação e
aqueles que o arguido pode utilizar para contrariar os argumentos e os meios de
prova da defesa.
9.º – Ora, considerando a Exma. Senhora Juíza de Instrução e o Venerando
Tribunal “a quo” na interpretação que fizeram do artigo 188.º, n.º 3, do CPP,
defendendo que é perfeitamente harmonizável com as disposições fundamentais
supra citadas a destruição dos registos fonográficos relativos às conversas
telefónicas, o arguido pugna pela declaração de inconstitucionalidade daquela
dimensão normativa, devendo o Tribunal Constitucional considerar que para
garantir o direito fundamental de defesa do arguido deve-lhe ser garantido o
acesso às gravações integrais ordenadas pelo JIC, de modo a respeitarem-se,
entre outras normas, os artigos 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem de 10 de Dezembro de 1948, 6.º, n.º 3, da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, e 32.º,
n.ºs 1, 2, 5, da CRP.
Nestes termos e contando sempre com o douto suprimento de V. Exas., considerando
e acolhendo as conclusões enunciadas farão V. Exas. Justiça, não permitindo que
as escutas realizadas nos presentes autos possam ser utilizadas como meio de
prova contra o arguido.»
Contra-alegou o Ministério Público, concluindo o seguinte:
«1.º A norma do n.º 3 do artigo 188.º do Código de Processo Penal, no segmento
em que estabelece a destruição dos elementos não relevantes para a prova, sem
prévio acesso e conhecimento por parte do arguido, não é inconstitucional,
quando interpretada no sentido de que àquele não está vedado o pleno exercício
do contraditório relativamente à prova relevante constante do processo e na
ausência de qualquer indicação que o acesso a tais elementos, conhecidos,
analisados e controlados pelo juiz de Instrução, relevam para o exercício do
direito de defesa.
2.º Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
Cumpre apreciar e decidir, após inscrição do processo em tabela e mudança do
Relator.
II. Fundamentos
A) Delimitação do objecto do recurso
3.Importa começar por delimitar o objecto do recurso.
O recorrente indicou, como normas cuja constitucionalidade pretendia ver
apreciada: o “artigo 180.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porque permite a
interpretação, feita no douto acórdão recorrido, segundo a qual o auto de
transcrição das fitas gravadas e as referidas fitas podem ser remetidas pelo
órgão de polícia criminal ao Ministério Público”; e o “artigo 180.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, na medida em que o douto acórdão recorrido interpreta
a norma no sentido de permitir a destruição das fitas gravadas ou similares das
conversas telefónicas”.
A Relatora, no despacho que se encontra a fls. 113 dos autos, transcrito supra,
suscitou a questão prévia do não conhecimento do objecto do recurso
relativamente à dimensão normativa reportada ao “artigo 180.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal”, por falta de suscitação, durante o processo, da questão de
constitucionalidade dessa norma. O recorrente não apresentou qualquer
argumentação relativamente a este ponto, e verifica-se que, efectivamente, nas
alegações do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, o
recorrente apenas suscita a inconstitucionalidade do artigo 188.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal.
Desse modo, por falta de preenchimento do requisito, indispensável para se poder
conhecer do recurso, previsto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2,
da Lei do Tribunal Constitucional, não se poderá tomar conhecimento do presente
recurso no que se refere à norma indicada no requerimento de recurso e no
referido despacho da Relatora como reportada ao artigo 180.º, n.º 1, do Código
de Processo Penal.
4.O recorrente impugnou no requerimento de recurso, como se disse, o artigo
180.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de
permitir a destruição dos registos magnéticos obtidos mediante intercepção de
telecomunicações, que sejam considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, e
o despacho que determinou a produção de alegações reportou-se igualmente a essa
norma.
Como, porém, resulta das alegações do recorrente – e das contra-alegações do
Ministério Público – e do confronto entre os artigos 180.º e 188.º do Código de
Processo Penal, a indicação daquele primeiro preceito resulta de mero lapso,
aliás notado e corrigido pelos próprios recorrente e recorrido: o artigo 180.º
refere-se à apreensão em escritório de advogado ou em consultório médico, que
não está em causa, sendo, antes, o artigo 188.º do Código de Processo Penal,
referente às formalidades das operações de intercepção, gravação e transcrição
das telecomunicações, que está em causa – e em particular o seu n.º 3, na
interpretação segundo a qual permite a destruição, por ordem do juiz de
instrução, dos registos magnéticos que considere irrelevantes. Foi, aliás, a
inconstitucionalidade deste artigo 188.º, n.º 3, que foi suscitada durante o
processo, perante o tribunal recorrido.
Tendo o lapso sido corrigido sem consequências, tomar-se-á como objecto do
presente recurso a apreciação da constitucionalidade de uma dimensão normativa
referida ao artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
5.A dimensão normativa em causa corresponde, segundo o requerimento de recurso,
à interpretação do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal no sentido
de “permitir a destruição das fitas gravadas ou similares das conversas
telefónicas”, sem que ao arguido seja permitido “aceder na íntegra à gravação
feita pelo órgão de polícia criminal”.
Dispõe o artigo 188.º do Código de Processo Penal:
«Artigo 188.º (Formalidades das operações)
1 – Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto,
o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente
levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações,
com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados
relevantes para a prova.
2 – O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que
proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação
interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes
para assegurar os meios de prova.
3 – Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes
para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso
contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações
ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado
conhecimento.
4 – Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado,
quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se
necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações,
o disposto no artigo 101.º, n.ºs 2 e 3.
5 – O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem
sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição a que se refere o n.º 3
para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias
dos elementos naquele referidos.»
Consultando o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães recorrido verifica-se
que, efectivamente, este se baseou numa interpretação do transcrito n.º 3
segundo a qual o juiz de instrução pode ordenar a destruição dos elementos de
prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações que considere
irrelevantes, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa
pronunciar sobre a sua relevância, e mesmo que o órgão de polícia criminal os
tenha conhecido integralmente.
Segundo o acórdão recorrido, a “ordem de destruição dos elementos irrelevantes
faz parte do acompanhamento judicial da própria execução da operação de
intercepção e gravação das comunicações telefónicas, imposto pelo elevado
potencial de danosidade social desta intromissão”. Com efeito, a “intervenção
judicial como garantia tanto do escutado como de terceiros, com vista a impedir
a devassa sobre factos inúteis, isto é, sem relevância para a descoberta da
verdade, a não destruição dos elementos considerados irrelevantes permitiria a
devassa que precisamente se quis evitar com a intervenção judicial”.
Importa notar, porém, que o Tribunal da Relação de Guimarães se não baseou, como
fundamento para a destruição dos elementos de prova, no facto de estarem em
causa intercepções proibidas ou não levadas a cabo nos termos legalmente
previstos, ou, sequer, numa concretização, no caso, da referida danosidade
social pelo facto de intervirem nas comunicações concretamente destruídas
terceiros ou de o seu conteúdo se reportar a terceiros, pela circunstância de,
por exemplo, dizerem respeito a matérias sob segredo profissional ou outro tipo
de segredo, ou, ainda, de a divulgação daquelas comunicações (cujo risco se
mantém quando não são destruídos os seus registos) poder afectar particularmente
direitos, liberdades e garantias. Está em causa apenas a destruição dos registos
magnéticos das comunicações, por ordem judicial, baseada exclusivamente num
juízo sobre a sua relevância para a prova, e não em qualquer daquelas outras
razões – não sendo, aliás, de excluir que o resultado da ponderação das
exigências constitucionais quanto aos direitos do arguido com essas outras
razões (por exemplo, direitos de terceiro) possa conduzir a um juízo diverso
quanto à questão de constitucionalidade.
Note-se, aliás, que o que está em causa não é a questão de saber se é ao juiz de
instrução ou ao arguido que cabe a faculdade de decidir definitivamente sobre a
(relevância das comunicações e, consequentemente) a destruição dos registos
magnéticos. Está apenas em causa saber se o juiz pode ordenar a destruição
destes registos exclusivamente com base na sua apreciação da sua relevância, sem
que o conteúdo das comunicações possa, pois, ser logo ou posteriormente
comunicado, de forma integral e completa, ao arguido, ou para que este possa,
pelo menos, fundamentar cabalmente a sua apreciação, possivelmente diversa,
sobre a relevância, para o processo, das conversações que o juiz pode ter
considerado irrelevantes.
É também claro, por outro lado, que a decisão recorrida admitiu que seja
ordenada a destruição dos elementos de prova com base numa apreciação da sua
irrelevância efectuada pelo juiz, mesmo que o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público tomem conhecimento integral do conteúdo das comunicações,
resultando tal possibilidade do próprio procedimento para realização das escutas
– cf., aliás, o artigo 188.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e a parte final
do n.º 1, esta aditada pelo Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, por
forma a passar a prever que o auto é levado ao conhecimento do juiz “com a
indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados
relevantes para a prova” (pelo órgão de polícia criminal e pelo Ministério
Público, que dirige o inquérito – artigo 53.º, n.º 2, alínea c), do Código de
Processo Penal).
6.Segundo se lê na decisão recorrida, são os “elementos seleccionados pelo Juiz
como relevantes e que são transcritos” que constituem prova, e é apenas quanto a
estes elementos que “assiste ao arguido, ao assistente e às pessoas escutadas,
nos termos do n.º 5 do art.º 188.º do CPP, o direito de examinarem o auto de
transcrição, por forma a conferirem a conformidade da transcrição com a gravação
e a exigirem a rectificação dos erros detectados ou de identificação de vozes”,
sendo apenas essa prova, junta ao processo, que “está sujeita ao contraditório
em sede de audiência de julgamento”, aí podendo o arguido discutir o seu valor
probatório, designadamente o sentido da conversação escutada.
Invoca o recorrente que, tendo sido ordenada a destruição dos registos das
comunicações, “previamente seleccionados pelo Ministério Público”, o arguido
fica impedido de os utilizar em sua defesa, com “um gritante desequilíbrio nos
meios de prova e de recolha da prova de que dispõe o Ministério Público para
fundamentar a acusação e aqueles que o arguido pode utilizar para contrariar os
argumentos e os meios de prova da defesa”. Designadamente o recorrente alega que
não pode contraditar a relevância das gravações transcritas, ficando
impossibilitado de proceder a uma contextualização das conversas consideradas
relevantes.
É certo que o recorrente não concretizou os elementos que tencionava vir a
descobrir com o acesso integral ao conteúdos das comunicações interceptadas,
limitando-se a referir que necessitava desse acesso para contextualização das
gravações que o juiz considerou relevantes.
Tal não pode, porém, constituir obstáculo a que se tome conhecimento do recurso
– nem, adianta-se desde já, pode influir de modo decisivo na própria decisão da
questão de constitucionalidade.
Com efeito, exigir que o arguido justificasse a “contextualização” que pretendia
realizar, no caso concreto, com referência ao conteúdo das comunicações
interceptadas seria exigir-lhe que avançasse hipóteses, ou que fizesse
conjecturas, baseadas no conteúdo de comunicações a que não pôde aceder. Na
falta de outros elementos de prova, a referência apenas aos elementos que
ficaram registados não é suficiente, na medida em que possa estar justamente em
causa o seu enquadramento e explicação por outros elementos, os quais foram
destruídos. Estar‑se‑ia, assim, a exigir ao arguido, ainda que apenas para
fundamentar substancialmente a relevância do “contexto” dos elementos de prova
transcritos, que conjecturasse qual poderia ser o conteúdo das comunicações
destruídas, sem que, aliás, tendo em conta tal destruição, pudesse esperar que
essas conjecturas ou hipóteses viessem alguma vez a ser comprovadas. Tal ónus
não se afigura razoável.
Acresce que o arguido invoca que, com a destruição das gravações, fica impedido
de as utilizar em sua defesa, com “um gritante desequilíbrio nos meios de prova
e de recolha da prova de que dispõe o Ministério Público para fundamentar a
acusação e aqueles que o arguido pode utilizar para contrariar os argumentos e
os meios de prova da defesa”, o que não se limita à possibilidade de uma
contextualização. O acesso ao conteúdo das comunicações interceptadas pode
servir ao arguido, para os “utilizar em sua defesa”, não só para tal
enquadramento ou contextualização dos que se encontram já transcritos nos autos
e que foram utilizados pelo Ministério Público, como para a descoberta de novos
elementos que o arguido considere relevantes, capazes, por exemplo, de
influenciar o seu grau de culpa ou de permitir a invocação de causas de
justificação.
7.Tomar-se-á, pois, conhecimento do recurso, dirigido à apreciação da
constitucionalidade da norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo
Penal, no entendimento de que permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações e que o órgão de polícia criminal
conheceu, com base numa apreciação da sua relevância efectuada, e na consequente
ordem dada, pelo juiz de instrução, sem que o arguido chegue a tomar
conhecimento do seu conteúdo e sem poder, pois, pronunciar-se sobre a sua
relevância.
B) Questão de constitucionalidade
8.O recorrente fundamenta a inconstitucionalidade da norma impugnada na violação
do artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa. O
primeiro, como se sabe, prevê que o processo criminal assegura “todas as
garantias de defesa”, e o artigo 32.º, n.º 5, prevê que a audiência de
julgamento e os actos que a lei determinar estão subordinados ao princípio do
contraditório.
Por sua vez, o artigo 32.º, n.º 2, consagra a presunção de inocência do arguido
até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. A relevância directa deste
último parâmetro para a apreciação da constitucionalidade da norma em causa
pode, porém, ser afastada: a possibilidade de destruição de elementos de prova
considerados irrelevantes pelo juiz, e conhecidos pela acusação, mas sem
conhecimento por parte do arguido, pode ter consequências para a defesa deste no
processo, dificultando-a, mas não afecta, só por si, a presunção de inocência.
Em abstracto, tal destruição tanto poderá, aliás, facilitar como dificultar um
juízo sobre a prática dos factos em causa e a culpabilidade do arguido, como
pode simplesmente ser irrelevante.
Inversamente, porém, ocorre ainda a possível convocação, como parâmetros da
constitucionalidade das normas em causa, a par da previsão de “todas as
garantias de defesa” e do princípio do contraditório (ou contidos nas primeiras
e a par deste último), da garantia de que o processo criminal será um processo
leal (um due process of law), bem como de uma “igualdade de armas” entre a
acusação e a defesa, ínsitos também no princípio do Estado de Direito.
9.O Tribunal Constitucional nunca se pronunciou sobre a constitucionalidade da
norma em questão, apesar de ter já uma vasta jurisprudência sobre a matéria das
escutas telefónicas. Existem também poucas decisões sobre o problema da
destruição dos suportes magnéticos das comunicações interceptadas.
Pode destacar-se, desde logo, o Acórdão n.º 426/2005 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 232, de 5 de Dezembro de 2005), pelo qual não foi
julgada inconstitucional justamente a norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do
Código de Processo Penal, interpretados “no sentido de que são válidas as provas
obtidas por escutas telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo
juiz de instrução, não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por
leitura de textos contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente
apresentados pela Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou
elementos análogos” (itálicos aditados). Nesta decisão, tirada na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional, pode ler-se, com interesse para o presente caso:
«(…)
Com base nas referências, por transcrição ou por resumo, das passagens das
conversações que o órgão de polícia criminal (que está sujeito a especiais
obrigações de objectividade) considera relevantes – indicações essas que,
porque necessariamente acompanhadas do envio ao juiz das fitas gravadas ou
elementos análogos, merecem, à partida, um juízo de fidedignidade, atenta a
possibilidade efectiva de controlo da sua correspondência ao material gravado –
pode o juiz quer determinar de imediato a interrupção da intercepção revelada
desnecessária, quer formular juízo próprio sobre a admissibilidade e a
relevância dos elementos a transcrever.
Acresce que, em rigor, essa selecção dos elementos a transcrever é
necessariamente uma primeira selecção, dotada de provisoriedade, podendo vir a
ser reduzida ou ampliada. Assiste, na verdade, ao arguido, ao assistente e às
pessoas escutadas o direito de examinarem o auto de transcrição, exame que se
deve entender não ser apenas destinado a conferir a conformidade da transcrição
com a gravação e exigir a rectificação dos erros de transcrição detectados ou
de identificação das vozes gravadas, mas também para reagir contra transcrições
proibidas (por exemplo, de conversações do arguido com o defensor) ou
irrelevantes. Inversamente, deve ser facultado à defesa (e também à acusação) a
possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente
seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância
própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido
de passagens anteriormente seleccionadas.
No presente caso, os recorrentes não questionam a admissibilidade e a
relevância das transcrições seleccionadas pelo juiz com base nas indicações
fornecidas pelo órgão de polícia criminal, indicações com as quais o Ministério
Público manifestou plena concordância. O que, no fundo, os recorrentes acabam
por considerar inconstitucional é a circunstância de essa forma de coadjuvação
dos órgãos de polícia criminal ter sido prestada sem ter sido previamente
solicitada, por forma expressa, pelo juiz de instrução. No entanto, a inequívoca
aceitação, por parte deste, dessa coadjuvação, torna puramente formal a pretensa
irregularidade, que, de modo algum, pode ser considerada como pondo em risco os
valores prosseguidos pela exigência, feita pela jurisprudência constitucional,
de acompanhamento judicial contínuo e próximo, temporal e materialmente, da
fonte.
Conclui‑se, assim, que, independentemente de ser essa, ou não, a melhor
interpretação do regime legal vigente, não é constitucionalmente imposto que o
único modo pelo qual o juiz pode exercitar a sua função de acompanhamento da
operação de intercepção de telecomunicações seja o da audição, pelo próprio, da
integralidade das gravações efectuadas ou sequer das passagens indicadas como
relevantes pelo órgão de polícia criminal, bastando que, com base nas menções ao
conteúdo das gravações, com possibilidade real de acesso directo às gravações,
o juiz emita juízo autónomo sobre essa relevância, juízo que sempre será
susceptível de contradição pelas pessoas escutadas quando lhes for facultado o
exame do auto de transcrição.»
(itálicos aditados)
O regime da destruição dos registos magnéticos de comunicações interceptadas só
foi, porém, objecto de uma apreciação a título principal no Acórdão n.º 4/2006
(publicado no Diário da República, II série, n.º 32, de 14 de Fevereiro de
2006), embora a propósito de uma questão de certa forma diametralmente oposta à
que está agora em causa: não a de saber se é constitucionalmente permitido que o
juiz ordene a destruição dos registos com base apenas na sua apreciação sobre a
sua relevância, e sem conhecimento pelo arguido, mas antes a de saber se existe
uma obrigação constitucional de se proceder à imediata desmagnetização da
gravação das intercepções consideradas sem interesse –, tendo-se pronunciado no
sentido da inexistência de inconstitucionalidade. Para tanto, disse-se neste
Acórdão n.º 4/2006, tirado também na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
«(…)
Como já se assinalou quando se referenciou a jurisprudência do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem e como já se consignou no Acórdão n.º 426/2005, o que se
poderia considerar como constitucionalmente inadmissível seria, pelo contrário,
a privação da possibilidade – que a imediata desmagnetização da gravação logo
após a audição pelo juiz acarretaria – de a defesa requerer a transcrição de
passagens das gravações, não seleccionadas pelo juiz, que repute relevantes
para a descoberta da verdade. Por isso, no citado Acórdão n.º 426/2005 se
consignou que “deve ser facultado à defesa (e também à acusação) a
possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens do que as
inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas
assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou
contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas”.
Também em termos de direito comparado se assinalou (cf., supra, 2.8), que: na
Bélgica, as gravações são mantidas intactas a fim de as partes as poderem
consultar e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por
irrelevantes; em França, as gravações só são destruídas no termo do prazo de
prescrição do procedimento criminal; na Alemanha, elas são mantidas e podem ser
ouvidas na própria audiência de julgamento; em Itália, só após audição das
gravações (cuja guarda compete ao Ministério Público) pela defesa e pronúncia
dos diversos intervenientes é que o juiz manda suprimir os registos cuja
utilização é legalmente vedada e admite os que não são manifestamente
irrelevantes (artigo 268.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), sendo os
registos conservados até ao trânsito em julgado da sentença final, a menos que,
a requerimento dos interessados, com fundamento em tutela da privacidade, o juiz
autorize a destruição antecipada (artigo 269.º, n.º 2, do mesmo Código); em
Espanha, atenta a exiguidade da regulamentação legal, a jurisprudência do
Tribunal Constitucional e do Tribunal Supremo têm insistido na necessidade de
serem os originais das fitas de gravação ou elementos análogos a serem
remetidos ao tribunal, ficando à guarda do secretário judicial, que facultará o
seu acesso às partes (e ao Ministério Público) e dirigirá a tarefa de
transcrição das partes tidas por relevantes (cf. José Luis Rodríguez Lainz, obra
citada [La intervención de las comunicaciones telefónicas – Su evolución en la
jurisprudencia del Tribunal Constitucional y del Tribunal Supremo, Barcelona,
2002], pp. 179‑186).
E como também já se assinalou, os projectos legislativos apresentados na
Assembleia da República, previam: a Proposta de Lei n.º 150/IX, a conservação
das fitas gravadas ou elementos análogos até ao trânsito em julgado da decisão
final, a menos que, aquando do encerramento do inquérito, o juiz concluísse pela
irrelevância da totalidade dos elementos recolhidos e o arguido, notificado para
o efeito, não se opusesse à sua imediata destruição (artigo 188.º, n.ºs 6 e 7);
o Projecto de Lei n.º 519/IX, a destruição das fitas com gravações tidas
judicialmente por irrelevantes apenas após o exame concedido ao arguido e às
pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas para controlarem a
conformidade dos autos de transcrição e de destruição que lhes dissessem
respeito (artigo 188.º, n.ºs 5 e 7); e o Projecto de Lei n.º 424/IX, a
conservação das gravações não transcritas até ao trânsito em julgado da decisão
final, podendo o arguido requerer a sua audição em sede de julgamento ou de
recurso para contextualizar as conversações transcritas (artigo 188.º, n.º 7).
Nenhuma censura constitucional merece, pois, o critério normativo ora em causa,
tendo sobretudo em vista o acautelamento dos interesses do arguido e das pessoas
escutadas, sendo certo que, para concomitante defesa do direito à privacidade
destas, se deve enfatizar o dever de sigilo a que estão obrigados todos os
participantes na operação (artigo 188.º, n.º 3, do CPP), dever de sigilo que,
no que respeita às passagens das conversações que se consideraram inadmissíveis
ou irrelevantes e que, por isso, não chegaram a ser adquiridas para o processo,
perdura mesmo para além do termo da fase secreta do processo.»
(primeiro itálico aditado)
Não resulta, porém, claramente, desta decisão, se a referência à
inconstitucionalidade da “privação da possibilidade – que a imediata
desmagnetização da gravação logo após a audição pelo juiz acarretaria – de a
defesa requerer a transcrição de passagens das gravações, não seleccionadas pelo
juiz, que repute relevantes para a descoberta da verdade” constituiu verdadeira
ratio decidendi no sentido da inexistência de inconstitucionalidade de uma norma
que não imponha a obrigação de destruição (pois, como é óbvio, o que é
constitucionalmente proibido não pode ser constitucionalmente imposto), ou se,
até por se não chegar a tomar posição clara no sentido da inconstitucionalidade
da referida privação da possibilidade de requerer a transcrição, pela destruição
dos registos, se tratou de um mero obiter dictum.
10.Neste Acórdão n.º 4/2006, o Tribunal Constitucional, depois de recortar o
parâmetro constitucional atendível no caso, procedeu, retomando em parte
passagens do (também citado) Acórdão n.º 426/2005, a historiar a evolução
legislativa do regime das escutas e as perplexidades que suscitou e suscita, a
recordar a pertinente jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, e a referir de forma sumária sistemas jurídicos
próximos. Fê-lo nos termos seguintes, que interessam ao presente caso e se
recordam:
«Na versão originária do CPP, o artigo 187.º condicionava a intercepção e a
gravação de conversações ou comunicações telefónicas a: (i) ordem ou autorização
por despacho judicial; (ii) estarem em causa crimes: 1) puníveis com pena de
prisão de máximo superior a três anos; 2) relativos ao tráfico de
estupefacientes; 3) relativos a armas, engenhos, matérias explosivas e
análogas; 4) de contrabando; ou 5) de injúrias, de ameaças, de coacção e de
intromissão na vida privada, quando cometidos através de telefone (o Decreto‑Lei
n.º 317/95, de 28 de Novembro, substituiu a expressão “intromissão na vida
privada”, usada no artigo 180.º da versão originária do Código Penal, por
“devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego”, em conformidade com as
designações dos ilícitos previstos nos artigos 192.º e 190.º, n.º 2, do Código
Penal revisto pelo Decreto‑Lei n.º 48/95, de 15 de Março); e (iii) haver razões
para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da
verdade ou para a prova (n.º 1). Proibia‑se, porém, a intercepção e a gravação
de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o
juiz tivesse fundadas razões para crer que elas constituíam objecto ou elemento
do crime (n.º 3). As formalidades das operações eram estabelecidas no artigo
188.º, que determinava que: (i) da intercepção ou gravação fosse lavrado auto, o
qual, juntamente com as fitas gravadas ou elementos análogos, devia ser
imediatamente levado ao conhecimento do juiz que ordenara ou autorizara as
operações (n.º 1); (ii) o juiz, se considerasse os elementos recolhidos, ou
alguns deles, relevantes para a prova, fá‑los‑ia juntar ao processo, ou, caso
contrário, ordenava a sua destruição, ficando todos os participantes nas
operações ligados por dever de sigilo relativamente àquilo de que tivessem
tomado conhecimento (n.º 2); (iii) o arguido e o assistente, bem como as pessoas
cujas conversações tiverem sido escutadas, podiam examinar o auto para se
inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópia dos
elementos naquele referidos (n.º 3), excepto se, tratando‑se de operações
ordenadas no decurso do inquérito ou da instrução, o juiz tivesse razões para
crer que o conhecimento do auto ou das gravações pelo arguido ou pelo
assistente podia prejudicar as finalidades do inquérito ou da instrução (n.º
4). Nos termos do artigo 189.º, todos os requisitos e condições referidos nos
artigos 187.º e 188.º eram estabelecidos sob pena de nulidade, e o artigo 190.º
estendia o disposto nos três artigos anteriores às conversações ou comunicações
transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone.
As normas contidas nos referidos artigos 187.º, n.º 1, e 190.º foram apreciadas,
em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, pelo Tribunal
Constitucional, que, no Acórdão n.º 7/87, não se pronunciou pela sua
inconstitucionalidade, por entender que, “face à natureza e gravidade dos crimes
a que se aplicam (...) se afigura que tais restrições [ao direito à intimidade
da vida privada e familiar, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP] não
infringem os limites da necessidade e proporcionalidade exigidos pelos citados
números [n.ºs 2 e 3] do artigo 18.º da Constituição”.
A regulamentação legal da matéria em causa na versão originária do CPP, pelo seu
relativo laconismo, suscitou diversas dúvidas de interpretação e de aplicação:
qual o prazo de duração das escutas; quem tem legitimidade para as requerer ao
juiz; qual o relacionamento entre órgão de polícia criminal, magistrado do
Ministério Público e juiz de instrução; se a proibição do n.º 3 do artigo 187.º
é extensível a conversações com pessoas que, para além do defensor, estejam
legitimadas a recusar depoimento em nome de outros tipos de sigilo
profissional (artigo 135.º) ou que, em geral, possam recusar‑se a depor como
testemunhas (artigo 134.º); qual o conteúdo do auto de intercepção e gravação;
qual a oportunidade de efectivação da transcrição e da destruição; como se
efectiva o acesso do arguido, do assistente e das pessoas escutadas ao auto e
às gravações; se a nulidade referida no artigo 189.º respeita a nulidade da
prova ou a nulidade processual e se, neste caso, é sanável ou insanável, etc.
Foi neste contexto que foi emitido o Parecer (complementar) n.º 92/91, do
Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral da República, de 17 de Setembro de
1992 (cuja fundamentação foi integralmente transcrita no n.º 2.4. do citado
Acórdão n.º 426/2005), cuja doutrina foi sintetizada nas seguintes conclusões:
“1.ª – Da intercepção e gravação das comunicações telefónicas ou similares é
lavrado um auto (artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – CPP);
2.ª – O referido auto deve inserir a menção do despacho judicial que ordenou ou
autorizou a intercepção e da pessoa que a ela procedeu, a identificação do
telefone interceptado, o circunstancialismo de tempo, modo e lugar da
intercepção, bem como o conteúdo da gravação necessária à decisão judicial
sobre o que deverá ou não constar do processo penal respectivo;
3.ª – A transcrição do conteúdo da gravação a que se refere a alínea anterior
deverá abranger a integralidade dos elementos da comunicação telefónica ou
similar interceptada que a entidade responsável pelas operações considere de
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova dos crimes previstos no
artigo 187.º, n.º 1, do CPP;
4.ª – O conteúdo da gravação, que àquela entidade se revelar destituído de
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova dos crimes referidos na
conclusão anterior, deverá ser mencionado naquele auto, tão só de modo genérico
com a mera referência à sua natureza ou tema, sob a égide do respeito do direito
à intimidade da vida privada dos cidadãos;
5.ª – Lavrado o referido auto, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz
que tiver ordenado ou autorizado a intercepção telefónica ou similar (artigo
188.º, n.º 1, do CPP);
6.º – O juiz, por despacho, ordenará a junção ao processo dos elementos
relevantes para a prova e a destruição dos irrelevantes, incluindo a
desmagnetização das «cassetes» ou bandas magnéticas (artigo 188.º, n.º 2, do
CPP);
7.ª – O juiz, se o entender necessário à prolação da decisão referida na
conclusão segunda, poderá ordenar a transcrição mais ampla ou integral da parte
objecto da menção referida na conclusão 4.ª;
8.ª – Os participantes nas operações de intercepção, gravação, transcrição e
eliminação de elementos recolhidos ficam vinculados ao dever de sigilo quanto
àquilo de que em tais diligências tomaram conhecimento (artigo 188.º, n.º 2, do
CPP);
9.ª – As «cassetes» ou as bandas magnéticas cujo conteúdo seja inserido nos
autos devem a estes ser apensos ou, se isso se tornar impossível, guardadas
depois de seladas, numeradas e identificadas com o processo respectivo (artigos
10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil e 101.º, n.º 3, do CPP);
10.ª – O arguido, o assistente e as pessoas escutadas podem examinar o referido
auto a fim de controlarem a conformidade dos elementos recolhidos e objecto de
aquisição processual com os registos de som respectivos, e desses elementos
constantes do auto obterem cópias (artigo 188.º, n.º 3, do CPP);
11.ª – O arguido e o assistente não podem proceder ao exame referido na
conclusão anterior se a intercepção telefónica ou similar ocorrer no decurso do
inquérito ou da instrução e o juiz decidir que o conhecimento por eles do auto
ou das gravações é susceptível de prejudicar a respectiva finalidade (artigo
188.º, n.º 4, do CPP).”
Foi ainda na vigência da redacção originária do artigo 188.º do CPP que o
Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão n.º 407/97, que constitui a sua
primeira decisão sobre questão de constitucionalidade suscitada a propósito
dessa norma, embora centrada (como os posteriores Acórdãos n.ºs 347/2001,
528/2003, 379/2004 e 223/2005) na interpretação do conceito de “imediatamente”
reportado à apresentação, ao juiz que tiver ordenado ou autorizado a operação,
do auto de intercepção e gravação, juntamente com as fitas gravadas ou
elementos análogos. Após referências aos parâmetros constitucionais pertinentes
e ao direito comparado, o Acórdão n.º 407/97 fundou o seu juízo de
inconstitucionalidade, por violação do disposto no n.º 6 (actual n.º 8) do
artigo 32.º da CRP, da norma do n.º 1 do artigo 188.º do CPP – “quando
interpretado em termos de não impor que o auto da intercepção e gravação de
conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao
conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a
junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles,
e bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de
novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que
ordenou as escutas” – nas seguintes considerações:
“Trata‑se aqui de precisar o conteúdo constitucionalmente viável do trecho do
artigo 188.º, n.º 1, do CPP, onde surge a expressão «imediatamente». Ora,
partindo do pressuposto consubstanciado na proibição de ingerência nas
telecomunicações, resultante do n.º 4 do artigo 34.º da Lei Fundamental, a
possibilidade de ocorrer diversamente (de existir ingerência nas
telecomunicações), no quadro de uma previsão legal atinente ao processo
criminal (a única constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser
compaginada com uma exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade,
subjacente ao artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do
direito fundamental em causa (de qualquer direito fundamental que a escuta
telefónica, na sua potencialidade danosa, possa afectar) se limite ao
estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta
de um concreto crime e punição do seu agente.
Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da
escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão
específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto
constitucional.
O actuar desta imediação, potenciadora de um efectivo controlo judicial das
escutas telefónicas, ocorrerá em diversos planos, sendo um deles o que pressupõe
uma busca de sentido prático para a obrigação de levar «imediatamente» ao juiz
o auto da intercepção e «fitas gravadas ou elementos análogos», de que fala a
lei.
13. Vejamos, a este propósito, o discurso interpretativo subjacente à decisão
recorrida. De sublinhar nesta, desde logo, a afirmação de que o artigo 188.º,
n.º 1, do CPP, ao não fixar um prazo certo, «acaba por relativizar muito as
coisas». Há que reter esta ideia que torna patente a existência de um espaço
aberto à procura de um sentido, enfim, de um espaço aberto à interpretação.
Não obstante, mais adiante, a decisão recorrida parece apontar para uma
impossibilidade de alcançar o sentido da expressão «imediatamente» no contexto
normativo em causa (ao dizer a fls. 102: «Não sabemos. Não dispomos de qualquer
critério para decidir sobre isso. Nem sequer é possível estabelecer e assentar
num critério de razoabilidade a tal propósito»).
Ora, já se indicou que o critério interpretativo neste campo não pode deixar de
ser aquele que assegure a menor compressão possível dos direitos fundamentais
afectados pela escuta telefónica. Também já se assentou – e importa lembrá‑lo
de novo – que a intervenção do juiz é vista como uma garantia de que essa
compressão se situe nos apertados limites aceitáveis e que tal intervenção,
para que de uma intervenção substancial se trate (e não de um mero
tabelionato), pressupõe o acompanhamento da operação de intercepção
telefónica. Com efeito, só acompanhando a recolha de prova, através desse
método em curso, poderá o juiz ir apercebendo os problemas que possam ir
surgindo, resolvendo‑os e, assim, transformando apenas em aquisição probatória
aquilo que efectivamente pode ser. Por outro lado, só esse acompanhamento coloca
a escuta a coberto dos perigos – que sabemos serem consideráveis – de uso
desviado.
Com isto, não se quer significar que toda a operação de escuta tenha de ser
materialmente realizada pelo juiz. Contrariamente a tal visão maximalista, do
que aqui se trata é, tão‑só, de assegurar um acompanhamento contínuo e próximo
temporal e materialmente da fonte (imediato, na terminologia legal),
acompanhamento esse que comporte a possibilidade real de em função do decurso
da escuta ser mantida ou alterada a decisão que a determinou.
14. Refere‑se ainda o Acórdão a dificuldades práticas que a situação é
susceptível de criar («Sabemos, isso sim, que a Polícia Judiciária como muitos
outros departamentos do Estado, nos quais se incluem os tribunais, seguramente
carece, cronicamente, de meios técnicos e humanos que lhe não permitem cumprir,
muitas vezes, as suas tarefas em tempo normal»), moldando, no que não deixa de
ter um certo sentido correctivo, o conceito de «imediatamente» («usado por um
legislador excessivamente preocupado com a aceleração processual, porém
esquecido das grandes lacunas e dos grandes estrangulamentos do sistema») ao
que qualifica de entendimento «em termos hábeis». A saber: aquele em que
«imediatamente» equivale a «no tempo mais rápido possível». Ora, o «mais rápido
possível» significou aqui longos períodos de tempo em que as escutas não foram
acompanhadas (igual a controladas) pelo juiz e, mais ainda, espaços muito
significativos de tempo em que as escutas já haviam terminado e o processo
continuava sem ter qualquer conhecimento do seu teor (vejam‑se as conclusões
2.ª e 4.ª de fls. 4 verso, tendo‑se presente que as datas aí indicados obtêm
confirmação nos autos).
É a teorização interpretativa que sufraga esta situação que de modo algum se
pode ter por conforme ao disposto no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, lido à
luz do princípio da proporcionalidade. Se é certo que se não podem ignorar,
pura e simplesmente, os aspectos práticos de uma situação, designadamente as
dificuldades técnicas que esta ou aquela opção interpretativa possa ocasionar,
não é menos verdade que o ónus dessas dificuldades técnicas, num processo crime,
sempre correrá por conta do Estado (a quem compete ultrapassá‑las), jamais por
conta do arguido.
Poder‑se‑ia aqui relembrar o dilema, já relatado, do Juiz Holmes, sobre o «mal
maior» e o «mal menor». Obviamente que no processo criminal de um Estado de
direito democrático, face a «dificuldades técnicas», o «mal menor» sempre será a
hipotética impunidade de eventuais criminosos.
15. Trata‑se, pois, de fixar a interpretação constitucionalmente conforme do
artigo 188.º, n.º 1, do CPP no segmento em que se insere a expressão
«imediatamente», sendo certo ser tal expediente possível ainda nos limites da
interpretação.
Assim sendo, «imediatamente» não poderá, desde logo, reportar‑se apenas ao
momento em que as transcrições se mostrarem feitas (pois ficaria aberto o
caminho à existência de largos períodos de falta de controlo judicial à escuta
sempre que a transcrição se atrasasse). Em qualquer dos casos, «imediatamente»,
no contexto normativo em que se insere, terá de pressupor um efectivo
acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto as
operações em que esta se materializa decorrerem. De forma alguma
«imediatamente» poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse
acompanhamento e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que
essa actividade do juiz não resulte do processo.
Em qualquer caso, tendo em vista os interesses acautelados pela exigência de
conhecimento imediato pelo juiz, deve considerar‑se inconstitucional, por
violação do n.º 6 do artigo 32.º da Constituição, uma interpretação do n.º 1 do
artigo 188.º do CPP que não imponha que o auto de intercepção e gravação de
conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao
conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção
ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e bem
assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de novo
auto de escutas posteriormente efectuadas, sobre a manutenção ou alteração da
decisão que ordenou as escutas.
É esta, exposta com a minúcia possível, a interpretação conforme à Constituição.
A ela importa vincular o intérprete – «juiz incluído» como este Tribunal tem
repetidamente referido em situações onde faz uso deste recurso interpretativo.
Sublinhar‑se‑á apenas, como nota final, que as consequências a retirar da
interpretação da norma com o sentido apontado se encontram já fora do âmbito da
intervenção do Tribunal Constitucional, situando‑se claramente no domínio de
intervenção do Tribunal recorrido.”
Considerou, assim, o Tribunal Constitucional que a especial danosidade da
intromissão traduzida pela intercepção telefónica impunha uma intervenção
substancial do juiz no decurso da mesma, através de um acompanhamento contínuo
e próximo temporal e materialmente da fonte, acompanhamento esse que comportasse
a possibilidade real de, em função do decurso da escuta, ser mantida ou alterada
a decisão que a determinou, sublinhando, contudo, que o exigente critério
assumido não significava “que toda a operação de escuta tenha de ser
materialmente realizada pelo juiz”, posição que corresponderia a uma “visão
maximalista”, que o Tribunal não subscreveu.
2.3. A nível legislativo, a primeira alteração a assinalar foi a levada a cabo
pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que alterou a redacção, entre outros, dos
artigos 188.º e 190.º do CPP.
Estas alterações não constavam da Proposta de Lei n.º 157/VII, que esteve na
génese daquela Lei, antes resultaram de propostas de alteração apresentadas pelo
Grupo Parlamentar do Partido Socialista (cf. Código de Processo Penal –
Processo Legislativo, vol. II, tomo II, ed. Assembleia da República, Lisboa,
1999, pp. 114‑115), que viriam a ser aprovadas por unanimidade (obra citada, p.
107), tendo as relativas ao artigo 188.º sido justificadas, na Declaração de
Voto dos Deputados do Partido Socialista relativa à votação final global dessa
iniciativa legislativa, nos seguintes termos (obra citada, p. 153):
“As alterações levam em conta o parecer da Procuradoria‑Geral da República n.º
92/91 (complementar), as dificuldades práticas da «vida judiciária», o n.º 4 do
artigo 18.º da Lei de Segurança Interna e o acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 407/97 (Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 1997), que anulou
as escutas porque a transcrição não foi imediata.
Tornava‑se necessário clarificar: quem selecciona os elementos a transcrever;
se o agente de investigação pode ter contacto com a conversa (uma vez que a
operação é feita por técnico de telecomunicações, mas não pode excluir‑se a
presença da polícia, sob pena de a diligência não ter sentido ou eficácia); o
que é que o juiz ouve (sabendo‑se que, não ouvindo, manda transcrever a
totalidade dos registos, o que é excessivamente moroso, oneroso e inútil); e
esclarecer o procedimento.
O n.º 1 do artigo refere que da intercepção é lavrado auto (mas não distingue
entre auto de intercepção e auto de transcrição, sendo certo que importa
clarificar que são duas coisas diferentes). Assim, fica claro que uma coisa é o
auto de intercepção (n.º 1) e outra o auto de transcrição (n.º 3).
O n.º 2 permite que a polícia ouça e possa intervir de imediato, por exemplo,
para fazer uma apreensão de droga combinada telefonicamente e «apanhar o
flagrante».
Os n.ºs 3 e 4 tornam claro que é o juiz quem selecciona, que é o responsável
pelo conteúdo da transcrição, mas que é auxiliado materialmente pela polícia, o
que é importante em termos de execução.”
As modificações operadas pela Lei n.º 59/98 no artigo 188.º do CPP consistiram:
– no aditamento de um novo n.º 2, do seguinte teor: “O disposto no número
anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação
tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de
poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os
meios de prova”;
– na passagem do primitivo n.º 2 a n.º 3, dispondo agora, na sua primeira parte,
que “Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes
para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo;.”,
enquanto anteriormente apenas dizia que o juiz “... fá‑los juntar ao
processo;”; mantendo‑se inalterada a segunda parte: “caso contrário, ordena a
sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados por dever
de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento”;
– no aditamento de um novo n.º 4, do seguinte teor: “Para efeitos do disposto no
número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando entender conveniente, por
órgão de polícia criminal, podendo nomear, se necessário, intérprete. À
transcrição aplica‑se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo
101.º, n.ºs 2 e 3.”;
– na passagem do primitivo n.º 3 a n.º 5, com especificação de que o auto cujo
exame é facultado ao arguido, ao assistente e às pessoas escutadas, “para se
inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias dos
elementos naquele referidos”, é “o auto de transcrição a que se refere o n.º 3”
(a redacção originária referia‑se a “examinar o auto”, sem mais); e
– na eliminação do primitivo n.º 4 (que ressalvava “do disposto no número
anterior o caso em que as gravações tiverem sido ordenadas no decurso do
inquérito ou da instrução e o juiz que as ordenou tiver razões para crer que o
conhecimento do auto ou das gravações, pelo arguido ou pelo assistente, poderia
prejudicar as finalidades do inquérito ou da instrução”; trata‑se de eliminação
algo enigmática, pois nada no debate parlamentar foi referido para a justificar
ou sequer enunciar).
No artigo 190.º, a extensão originária da aplicabilidade do disposto nos artigos
187.º, 188.º e 189.º “às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer
meio técnico diferente do telefone” foi complementada com o seguinte
aditamento: “designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão
de dados por via telemática, bem como à intercepção das comunicações entre
presentes”.
2.4. A segunda alteração legislativa com especial relevância para as questões
que constituem objecto do presente recurso resultou do Decreto‑Lei n.º
320‑C/2000, de 15 de Dezembro, que aditou ao n.º 1 do artigo 188.º do CPP (“Da
intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto, o qual,
junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao
conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações”) a
expressão: “com a indicação das passagens das gravações ou elementos análogos
considerados relevantes para a prova”.
Este inciso final corresponde à utilização da autorização legislativa concedida
pela Lei n.º 27‑A/2000, de 17 de Novembro, que autorizou o Governo a rever o
Código de Processo Penal, com o sentido e extensão definidos nos artigos
seguintes (artigo 1.º), entre os quais, segundo o artigo 4.º: “Permite‑se que o
juiz possa limitar a audição das gravações às passagens indicadas como
relevantes para a prova, sem prejuízo de as gravações efectuadas lhe serem
integralmente remetidas”. Esta norma não constava da Proposta de Lei n.º 41/VIII
(Diário da Assembleia da República, VIII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa, II
Série‑A, n.º 59, de 15 de Julho de 2000, pp. 1891‑1898), tendo surgido no texto
de substituição elaborado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, e aí aprovada por unanimidade (Diário da Assembleia da
República, VIII Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, II Série‑A, n.º 10, de 23
de Outubro de 2000, pp. 218‑224), tal como no Plenário (Diário citado, I Série,
n.º 13, de 20 de Outubro de 2000, p. 498).
Para terminar a recensão do quadro legal aplicável, resta referir que a Lei n.º
5/2002, de 11 de Janeiro, que estabeleceu um regime especial de recolha de
prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado
relativa, entre outros, aos crimes de associação criminosa, lenocínio e
lenocínio e tráfico de menores, estes quando praticados de forma organizada
(artigo 1.º, n.ºs 1, alíneas f) e h), e 2), estatuiu no seu artigo 6.º (Registo
de voz e de imagem):
“1 – É admissível, quando necessário para a investigação de crimes referidos no
artigo 1.º, o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento
do visado.
2 – A produção desses registos depende de prévia autorização ou ordem do juiz,
consoante os casos.
3 – São aplicáveis aos registos obtidos, com as necessárias adaptações, as
formalidades previstas no artigo 188.º do Código de Processo Penal.”
2.5. No que concerne à jurisprudência do Tribunal Constitucional, há a
assinalar, para além do já citado Acórdão n.º 407/97, a prolação dos Acórdãos
n.ºs 347/2001, 528/2003, 379/2004 e 223/2005 e da Decisão Sumária n.º 324/2004,
todos incidindo sobre a questão da “imediatividade” da apresentação ao juiz do
auto de intercepção e gravação prevista no artigo 188.º, n.º 1, do CPP (o
primeiro Acórdão reportado à redacção anterior à Lei n.º 59/98, o segundo à
redacção dada por esta Lei, os dois últimos quer à redacção anterior quer à
posterior ao Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, e a Decisão Sumária a esta última
redacção), e ainda os Acórdãos n.ºs 411/2002 (que julgou inconstitucional, por
violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a interpretação normativa que torna
inaplicável ao prazo de arguição de nulidade respeitante a escutas telefónicas
ocorrida durante o inquérito o que vem consagrado no artigo 120.º, n.º 3, alínea
c), do CPP [até ao encerramento do debate instrutório] e aplicável o
estabelecido no artigo 105.º do mesmo Código [dez dias a contar da notificação
da acusação, terminando antes do fim do prazo para requerer a instrução]) e
198/2004 (que não julgou inconstitucional a norma do artigo 122.º, n.º 1, do
CPP, entendida como autorizando, face à nulidade/invalidade de intercepções
telefónicas realizadas, a utilização de outras provas, distintas das escutas e
a elas subsequentes, quando tais provas se traduzam nas declarações dos próprios
arguidos, designadamente quando tais declarações sejam confessórias).
Nos três primeiros Acórdãos citados (o quarto – Acórdão n.º 223/2005 – incidiu
sobre uma situação de incumprimento do Acórdão n.º 379/2004), o Tribunal
Constitucional reiterou o critério decisório definido no Acórdão n.º 407/97,
que conduziu, nos casos em cada um desses arestos apreciados, à emissão de
similares juízos de inconstitucionalidade.
No Acórdão n.º 347/2001 – que julgou inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º
2, da CRP, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na redacção
anterior à que foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, quando interpretada
no sentido de não impor que o auto da intercepção e gravação de conversações e
comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento
do juiz e que, autorizada a intercepção e gravação por determinado período, seja
concedida autorização para a sua continuação sem que o juiz tome conhecimento
do resultado da anterior –, após se sumariarem as ideias‑chave do Acórdão n.º
407/97, consignou‑se:
“Ora, no caso dos autos, a norma do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, com a
interpretação acolhida no acórdão impugnado, não se isenta do mesmo vício de
inconstitucionalidade.
Na verdade, fazer equivaler o inciso «imediatamente» ao «tempo mais rápido
possível», em termos de «cobrir» situações como a de o auto de transcrição ser
apresentado ao juiz meses depois de efectuadas a intercepção e gravação das
comunicações telefónicas, mesmo tendo em conta a gravidade do crime investigado
e a necessidade daquele meio de obtenção da prova, restringe
desproporcionadamente o direito à inviolabilidade de um meio de comunicação
privada e faculta uma ingerência neste meio para além do que se considera ser
constitucionalmente admissível.
Ficar no desconhecimento do juiz, durante tal lapso de tempo, o teor das
comunicações interceptadas, significa o desacompanhamento próximo e o controlo
judiciais do modo como a escuta se desenvolve, o que se entendeu no citado
Acórdão n.º 407/97 – como aqui se entende – colidir com os interesses
acautelados pela exigência de conhecimento imediato pelo juiz. E impede, ainda,
a destruição, em tempo necessariamente breve, dos elementos recolhidos sem
interesse relevante para a prova, a que, só por si, não obsta a fixação pelo
juiz de um prazo para a intercepção, no termo da qual esta deve findar.
Por outro lado, autorizar novos períodos de escuta, a mero requerimento do
Ministério Público, sem que a autorização seja precedida do conhecimento
judicial do resultado da intercepção anterior, continua a significar a mesma
ausência de acompanhamento e de controlo por parte do juiz, o que pode até
traduzir‑se em longos períodos (um dos postos telefónicos foi interceptado
desde 3 de Novembro de 1995 a 15 de Novembro de 1996 e o outro desde 3 de Abril
de 1996 a 12 de Novembro de 1996 e de novo entre 31 de Março de 1997 a 5 de
Setembro de 1997) de utilização deste meio de obtenção de prova na
disponibilidade total dos órgãos de investigação.
É certo que, tal como a decisão recorrida no Acórdão n.º 407/97, o acórdão
impugnado faz apelo às dificuldades práticas – a reconhecida carência de meios
técnicos e humanos – para justificar o entendimento dado ao referido inciso
«imediatamente», num quadro de exigências de repressão da criminalidade grave,
praticada por redes altamente organizadas.
A esse argumento se respondeu, ainda no Acórdão n.º 407/97, em termos que
também aqui se acolhem, que tais dificuldades constituem, num processo crime,
ónus do Estado de Direito democrático, ónus que não pode estar a cargo do
arguido, ainda que, no limite, isso signifique deixar impunes alguns criminosos.
Não é de todo admissível num Estado de Direito democrático, caracterizado pela
publicização do ius puniendi, fazer reverter contra o arguido o ónus da escassez
de meios e dificuldades na obtenção de prova para o condenar.
Note‑se que na nova redacção dada ao artigo 188.º (em especial, no n.º 3) pela
Lei n.º 59/98 (actualmente pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro)
se procurou obviar às alegadas dificuldades de transcrição imediata dos
elementos recolhidos, pois esta só será judicialmente ordenada depois de o juiz
considerar tais elementos relevantes para a prova.
Resta acrescentar que o Tribunal Constitucional tem apenas poderes para
verificar a constitucionalidade de normas, pelo que lhe está vedado «declarar
inválidos todos os actos que dependerem das intercepções telefónicas realizadas,
conforme os artigos 122.º e 189.º do CPP», como o recorrente pretende.
Isto significa que é ao tribunal recorrido que compete reformar a sua decisão em
conformidade com o presente juízo de constitucionalidade, extraindo dele as
consequências pertinentes ao nível do direito infraconstitucional e do concreto
processo crime em causa.”
A validade da jurisprudência assim definida foi reafirmada no Acórdão n.º
528/2003 – que julgou inconstitucional, por violação das disposições conjugadas
dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP, a norma
constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na redacção anterior à que foi dada
pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, quando interpretada no
sentido de não impor que o auto da intercepção e gravação de conversações e
comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado ao conhecimento do
juiz –, o qual, após transcrição da fundamentação relevante dos Acórdãos n.ºs
407/97 e 347/2001, acrescentou:
“Agora apenas se referirá que, mais recentemente, o Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem voltou a ter oportunidade para reiterar a sua jurisprudência
em matéria de escutas telefónicas. Tal aconteceu, nomeadamente, nos casos PG e
JH v. Reino Unido (acórdão de 25 de Setembro de 2001) e Prado Bugallo v. Espanha
(acórdão de 18 de Fevereiro de 2003). Neste último acórdão, aquele Tribunal
voltou a sublinhar a necessidade de preenchimento, pelas legislações nacionais,
das condições exigidas pela sua jurisprudência, designadamente nos acórdãos
Kruslin v. França e Huvig v. França, para evitar os abusos a que podem conduzir
as escutas telefónicas. Referiu‑se, então, nomeadamente, à necessidade de
definição das infracções que podem dar origem às escutas, à fixação de um
limite à duração de execução da medida, às condições de estabelecimento dos
autos das conversações interceptadas, bem como às precauções a tomar para
comunicar intactas e completas as gravações efectuadas, de modo a permitir um
possível controlo pelo juiz e pela defesa.
Assim sendo, verifica‑se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional atrás
referida, que, como se salientou já, mantém inteira validade e a que aqui
integralmente se adere, conduz a que, também no caso dos autos, tenha de
considerar‑se inconstitucional a interpretação do n.º 1 do artigo 188.º do
Código de Processo Penal, na redacção anterior à que lhe foi dada pelo
Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, que foi acolhida pela decisão
recorrida. Com efeito, entender que situações como as que ocorreram no presente
processo – em que os autos de intercepção e gravação de conversações
telefónicas que tinham sido entretanto autorizadas só foram levados ao
conhecimento do juiz que as ordenou 38 dias depois de elas terem tido início –
são ainda abrangidas pela expressão imediatamente colide frontalmente com os
interesses que se pretendem acautelar com aquela exigência, na medida em que
impede o seu acompanhamento próximo pelo juiz.
Resta apenas acrescentar, de modo semelhante ao que se fez nos acórdãos deste
Tribunal citados supra, que o Tribunal Constitucional somente tem poderes para
verificar a constitucionalidade de normas, situando‑se já fora do âmbito da sua
intervenção retirar as consequências da interpretação da norma com o sentido
apontado. Isto significa que é ao tribunal recorrido que compete reformar a sua
decisão em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade, extraindo
dele as consequências pertinentes ao nível do direito infraconstitucional e do
concreto processo crime em causa.”
Por seu turno, o Acórdão n.º 379/2004 – que julgou inconstitucional, por
violação das disposições conjugadas dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4,
e 18.º, n.º 2, da CRP, a norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, quer na
redacção anterior quer na posterior à que foi dada pelo Decreto‑Lei n.º
320‑C/2000, de 15 de Dezembro, quer quando interpretada no sentido de uma
intercepção telefónica, inicialmente autorizada por 60 dias, poder continuar a
processar‑se, sendo prorrogada por novos períodos, ainda que de menor duração,
sem que previamente o juiz de instrução tome conhecimento do conteúdo das
conversações, quer na interpretação segundo a qual a primeira audição, pelo juiz
de instrução criminal, das gravações efectuadas pode ocorrer mais de três meses
após o início da intercepção e gravação das comunicações telefónicas –, após
sumariar as três decisões anteriormente referidas, acrescentou:
“Ora, verifica‑se que esta jurisprudência do Tribunal Constitucional, para cuja
fundamentação se remete e se dá aqui por reproduzida, mantém inteira validade
para o caso em apreço, o que leva a que se considere inconstitucional a norma
constante do artigo 188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no
sentido de a intercepção telefónica, inicialmente autorizada por 60 dias, poder
continuar a processar‑se, sendo prorrogada por dois novos períodos (de 30 dias
cada um), sem que previamente o juiz de instrução controle e tome conhecimento
do conteúdo das conversações, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, 34.º, n.ºs 1
e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição, bem como a mesma norma, na interpretação
segundo a qual a primeira audição da gravação das escutas telefónicas pelo juiz
de instrução pode ocorrer durante o aludido segundo período de prorrogação.”
Foi a jurisprudência delineada nos Acórdãos n.ºs 407/97, 347/2001, 528/2003, e
379/2004 que a Decisão Sumária n.º 324/2004, sem considerações complementares,
invocou para julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas
dos artigos 32.º, n.º 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da CRP, a norma
constante do n.º 1 do artigo 188.º do CPP, na redacção que lhe foi dada pelo
Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, quando interpretada no sentido
de que a primeira audição, pelo juiz de instrução criminal, das gravações
efectuadas pode ocorrer seis meses após o início da intercepção e gravação das
comunicações telefónicas.
Da explanação da jurisprudência do Tribunal Constitucional (o texto integral dos
Acórdãos e Decisão Sumária anteriormente citados está disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), cujos traços essenciais foram logo desenhados
pelo Acórdão n.º 407/97, resulta que se entendeu constitucionalmente
justificado que a admissibilidade da intromissão nas comunicações telefónicas
fosse não só alvo de prévia autorização judicial, mas também objecto de
acompanhamento judicial ao longo da sua execução. O que se exige é, pois, um
“acompanhamento próximo” e um “controlo do conteúdo” das conversações, com uma
dupla finalidade: (i) fazer cessar, tão depressa quanto possível, escutas que se
venham a revelar injustificadas ou desnecessárias; e (ii) submeter a um “crivo”
judicial prévio a aquisição processual das provas obtidas por esse meio (cf.
José Manuel Damião da Cunha, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional em
matéria de escutas telefónicas”, Jurisprudência Constitucional, n.º 1,
Janeiro‑Março 2004, pp. 50‑56). Mas – repete‑se – o exigente critério assumido
não significa “que toda a operação de escuta tenha de ser materialmente
realizada pelo juiz”, posição que corresponderia a uma “visão maximalista”, que
o Tribunal não subscreveu.
2.6. Da exposição precedente já resultam claramente evidenciadas as dúvidas e
perplexidades que o regime legal das escutas telefónicas tem suscitado. Mas se,
ao nível da jurisprudência constitucional, elas incidiram quase exclusivamente
sobre o tempo de acompanhamento judicial da execução da operação (sobre o modo
desse acompanhamento apenas incidiu o citado Acórdão n.º 426/2005, que não
julgou inconstitucional a norma do artigo 188.º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPP,
“interpretado no sentido de que são válidas as provas obtidas por escutas
telefónicas cuja transcrição foi, em parte, determinada pelo juiz de instrução,
não com base em prévia audição pessoal das mesmas, mas por leitura de textos
contendo a sua reprodução, que lhe foram espontaneamente apresentados pela
Polícia Judiciária, acompanhados das fitas gravadas ou elementos análogos”),
já a nível da doutrina e da prática judiciária elas têm também incidido sobre
os requisitos da autorização da operação, reportados ao artigo 187.º do CPP,
quer na perspectiva da adequação do “catálogo” de crimes enunciado no seu n.º 2,
quer no que concerne a uma clara definição das pessoas cujas conversações podem
ser colocadas sob escuta, quer quanto à ausência de uma definição legal da
duração das escutas. Designadamente no que respeita à execução da operação, é
indefinida a forma de articulação entre órgão de polícia criminal, Ministério
Público e juiz, registam‑se oscilações quanto à definição do conteúdo do auto
(ou dos autos) a elaborar e tem sido salientado o inconveniente da imediata
destruição das gravações que o juiz reputou irrelevantes, por assim se eliminar
irreversivelmente o aproveitamento de passagens que eventualmente seriam
consideradas importantes quer pela acusação, quer pela defesa (cf. indicações
bibliográficas constantes do n.º 2.9. do Acórdão n.º 426/2005).
Em resultado dessas perplexidades e reflexões, as iniciativas legislativas
relativas à revisão do Código de Processo Penal apresentadas na última
Legislatura – Projecto de Lei n.º 424/IX, apresentado pelo Bloco de Esquerda,
Proposta de Lei n.º 149/IX e Projecto de Lei n.º 519/IX, apresentado pelo
Partido Socialista (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, IX
Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, n.º 50, de 3 de Abril de 2004, pp.
2214‑2219, e 3.ª Sessão Legislativa, n.º 17, de 20 de Novembro de 2004, pp.
21‑40, e n.º 20, de 3 de Dezembro de 2004, pp. 6‑118, respectivamente) –
propugnam, designadamente: (i) a elevação de 3 para 5 anos do máximo da pena de
prisão aplicável aos crimes que consentem a autorização de escutas; (ii) a
restrição da admissibilidade destas apenas quando não existir outro meio lícito
para atingir a descoberta da verdade ou se revelar de superior interesse, face
aos demais meios de prova, para esse objectivo; (iii) a definição das pessoas
cujas conversações podem ser interceptadas; (iv) a instauração de regimes
especiais atenta a qualidade dos escutados; (v) a exigência de especial
fundamentação do despacho autorizador das escutas; (vi) o estabelecimento de
limites temporais para a execução das escutas e respectivas prorrogações; (vii)
o alargamento dos casos de proibição de transcrições. Quanto aos limites
temporais, a Projecto de Lei n.º 519/IX (PS) propugnava que o despacho judicial
que autorizasse ou ordenasse a intercepção fixasse “o prazo máximo da sua
duração, que, com dilação de cinco dias após a data da prolação, não pode
ultrapassar trinta dias, prorrogáveis no limite até cinco vezes, reconhecida em
cada caso essa necessidade, e desde que cumpridas, em cada período autorizado,
as formalidades exigíveis para a operação”, não podendo o tempo da intercepção
ultrapassar, “em nenhum caso, o prazo máximo em concreto admitido para a
duração do inquérito ou da instrução” (artigo 187.º, n.º 3); enquanto a Proposta
de Lei n.º 150/IX previa que o referido despacho, além de fundamentado, fixasse
“o prazo de duração máxima das operações, por um período não superior a três
meses a contar da sua prolação, sendo renovável por períodos idênticos até ao
encerramento do inquérito, desde que se mantenham os respectivos pressupostos de
admissibilidade” (artigo 187.º, n.º 5).
No que especificamente respeita ao acompanhamento judicial da operação, o
Projecto de Lei n.º 424/IX (BE) propõe: (i) a fixação do prazo máximo de 24
horas para ser levado ao conhecimento do juiz o auto de intercepção e gravação,
com as fitas gravadas e a indicação das passagens consideradas relevantes para a
prova; (ii) a supervisão de todo o processo, especialmente a transcrição em
auto, pelo Ministério Público; (iii) a conservação das gravações não transcritas
até ao trânsito em julgado da decisão final, podendo o arguido requerer a sua
audição em sede de julgamento ou de recurso para contextualizar as conversações
transcritas. A Proposta de Lei n.º 150/IX estabelece, designadamente, que: (i)
os autos de intercepção e gravação, com as fitas, são levados ao conhecimento do
juiz, de 15 em 15 dias, com indicação por parte do Ministério Público das
passagens consideradas relevantes para a prova; (ii) o Ministério Público é
ouvido pelo juiz antes de este seleccionar os elementos a consignar em suporte
autónomo e a transcrever em auto; (iii) as fitas e elementos análogos são
conservados até ao trânsito em julgado da decisão final, tendo a eles acesso o
arguido para efeitos de selecção de mais excertos que entenda relevantes. Por
último, o Projecto de Lei n.º 519/IX (PS) prevê que seja o juiz o fixar o
período findo o qual o auto com as fitas é levado ao seu conhecimento,
acompanhado ou da indicação das passagens e dos dados considerados relevantes
para a prova ou mesmo da respectiva transcrição provisória, cabendo ao juiz
determinar a transformação desta transcrição provisória em definitiva ou, se
não considerar os elementos nela contidos como relevantes, determinar a sua
eliminação.
2.7. Grande parte das questões referenciadas no precedente número têm por
suporte a apreciação da adequação do sistema legal actualmente vigente entre nós
com as exigências que nesta matéria têm sido estabelecidas pela jurisprudência
do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, face ao disposto no artigo 8.º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que proclama o direito de qualquer
pessoa ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua
correspondência (n.º 1) e proíbe ingerências da autoridade pública no exercício
desse direito, excepto se essa exigência estiver prevista na lei e constituir
uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a
segurança nacional, para a segurança pública, para o bem‑estar económico do
país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da
saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades dos outros (n.º
2).
Na síntese apresentada por Ireneu Cabral Barreto (“A Investigação criminal e os
direitos humanos”, Polícia e Justiça – Revista do Instituto Superior de Polícia
Judiciária e Ciências Criminais, III Série, n.º 1, Janeiro‑Junho de 2003, pp.
43‑85, em especial pp. 57‑63; e “A jurisprudência do novo Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem”, Sub Judice – Justiça e Sociedade, n.º 28, Abril‑Setembro
2004, pp. 9‑32, em especial pp. 20‑21; cf. ainda, do mesmo autor, A Convenção
Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 2005, anotações
I-3.3 e II‑4. e 6.4. ao artigo 8.º, a pp. 184, 196 e 199; e João Ramos de Sousa,
“Escutas telefónicas em Estrasburgo: O activismo jurisprudencial do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem”, Sub Judice, citada, pp. 47‑55 ):
“A jurisprudência de Estrasburgo, tendo em conta a gravidade da ingerência na
vida das pessoas que representa a escuta telefónica, precisou que não basta uma
lei a prever essa possibilidade.
Para prevenir o risco de arbítrio que o uso desta medida poderia acarretar,
entende‑se que uma tal lei deve conter uma série de garantias mínimas:
– definir as categorias de pessoas susceptíveis de serem colocadas em escutas
telefónicas;
– a natureza das infracções que podem permitir essa escuta;
– a fixação de um limite de duração dessa medida;
– as condições do estabelecimento de processos verbais de síntese consignando
as conversas interceptadas;
– as precauções a tomar para comunicar, intactos e completos, os registos
realizados, para o controlo do juiz e da defesa;
– as circunstâncias nas quais pode e deve proceder‑se ao apagamento ou
destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após uma absolvição ou o
arquivamento do processo.”
Como refere Gérard Cohen‑Jonathan (“La Cour européenne des droits de l’homme et
les écoutes téléphoniques”, Revue Universelle des Droits de l’Homme, vol. 2, n.º
5, 31 de Maio de 1990, pp. 185–191), impõe‑se a existência de uma lei que
preveja a possibilidade de autorização de escutas, lei que deve ser acessível e
precisa, e que se estabeleçam garantias adequadas, desde logo definindo com
precisão quais as autoridades competentes para ordenar ou autorizar as escutas,
quais os crimes cuja gravidade justifica o uso deste meio de produção de prova e
o grau de suspeita exigível, não podendo a ingerência ser meramente
exploratória. Depois, o acompanhamento da operação há‑de ocorrer em três
estádios: no momento da ordem ou da autorização, no decurso da operação e após
o seu termo, possibilitando às pessoas colocadas sob escuta o direito de acesso
às gravações e respectivas transcrições, o direito à eliminação das passagens
irrelevantes ou interditas e o direito à destruição ou restituição dos
respectivos suportes.
Mas para além das “escutas judiciárias”, são ainda admissíveis “escutas
administrativas”, determinadas pelo poder executivo visando objectivos de
segurança interna e externa, as quais devem oferecer igualmente garantias
adequadas que afastem o risco de utilização abusiva, garantias que serão
naturalmente diferentes das previstas para as “escutas judiciárias”, mas que
sempre exigirão a possibilidade de recurso aos tribunais, embora apenas a
posteriori. Essas garantias passam, nalguns países, pela intervenção de
entidades independentes, por vezes de origem parlamentar, que acompanham a
actuação do executivo (cf. o Acórdão Klass, de 1978, em que o Tribunal Europeu
considerou suficientes os recursos judiciais a posteriori previstos no direito
alemão em caso de intercepção de conversações determinada pelo Governo alemão,
para defesa da ordem e segurança numa sociedade democrática e para evitar
infracções, sem controlo judicial prévio, e a decisão da Comissão Europeia dos
Direitos do Homem, de 10 de Maio de 1985, relativa ao Luxemburgo, ambos citados
no artigo de Gérard Cohen‑Jonathan).
De particular relevância para o presente recurso (em que, como se verá, a
recorrente reclama a imediata destruição das gravações tidas por irrelevantes
pelo juiz de instrução) reveste‑se a constante chamada de atenção, por parte do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, para a necessidade de as legislações
nacionais tomarem precauções no sentido de assegurar “a comunicação intacta e
completa das gravações efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela
defesa” e estabelecerem as circunstâncias em que se pode operar o apagamento
ou a destruição das gravações, designadamente após o arquivamento definitivo do
processo ou o trânsito em julgado da condenação final (cf. n.º 34 do Acórdão
Huvig, de 24 de Abril de 1990; n.º 35 do Acórdão Kruslin, da mesma data; n.º 59
do Acórdão Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998; e n.º 30 do Acórdão
Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003).
2.8. A análise de ordenamentos jurídicos de países cujas normas constitucionais
relevantes na matéria são similares às portuguesas revela que o legislador
ordinário tem moldado de modo diversificado o regime das escutas telefónicas,
designadamente no que respeita à intervenção do juiz, quer na fase de
autorização, quer na fase de acompanhamento da operação (cf. Mario Chiavario e
outros, Procedure Penali d’Europa, 2.ª edição, Milão, 2001).
Na Bélgica, de acordo com as Leis de 10 de Junho de 1998 e de 10 de Janeiro de
1999, a regra é a da autorização pelo juiz de instrução, mas, em casos de
urgência, a escuta pode ser determinada pelo Ministério Público, embora sujeita
a validação judicial. Só se procede à transcrição das passagens consideradas
relevantes, mas mantêm‑se intactas as gravações, podendo as partes consultá‑las
e requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes (ob.
cit., pp. 75‑76).
Na França, segundo os artigos 100.º e seguintes do Código de Processo Penal,
alterados pela Lei de 10 de Julho de 1991, a ordem de intercepção é dada pelo
juiz de instrução, o qual, porém, pode delegar num oficial de polícia
judiciária o acompanhamento da operação. As gravações só são destruídas no
termo de prescrição do procedimento criminal (ob. cit., pp. 139‑140).
Na Alemanha também é de regra a autorização pelo juiz, mas, em caso de
urgência, a intercepção pode ser determinada pelo Ministério Público, sujeita a
validação judicial. A ordem de intercepção implica o poder de registo. No
julgamento, o juiz pode optar entre a audição das gravações ou a leitura das
transcrições (ob. cit., p. 204).
Diversamente, na Inglaterra, as escutas são determinadas pelo Ministro do
Interior ou pelas autoridades policiais, com mandado ministerial, não tendo o
juiz qualquer poder de controlo sobre as intercepções, existindo possibilidade
de recurso para uma comissão integrada por advogados nomeados pelo Governo, que
verifica o cumprimento das condições legais da intercepção (ob. cit., pp.
258‑259).
Na Itália, a regra é a de que compete ao juiz de instrução autorizar as
intercepções, mas em caso de urgência elas podem ser ordenadas pelo Ministério
Público, com subsequente validação judicial (ob. cit., pp. 321‑322). As
comunicações interceptadas são registadas em acta, aí sendo transcrito, ainda
que sumariamente, o conteúdo da comunicação interceptada (artigo 268.º do
Código de Processo Penal italiano). O registo da intercepção e a acta são
transmitidos imediatamente ao Ministério Público, que os deposita na secretaria,
sendo de seguida dado conhecimento ao defensor, que pode escutar os registos e
examinar os actos, e só então, face às posições assumidas pelas partes
interessadas quanto à admissibilidade e relevância das comunicações
interceptadas, é que o juiz de instrução manda suprimir os registos cuja
utilização é legalmente vedada e admite os que não são manifestamente
irrelevantes (artigo 268.º, n.º 6, do mesmo Código) – cf. J. A. Mouraz Lopes,
A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português, Coimbra,
2005, pp. 145‑146, nota 388.
Em Espanha, face à natureza genérica que, mesmo após a modificação introduzida
pela Lei Orgânica n.º 4/1998, de 25 de Maio de 1988, aos artigos 553.º e 559.º
da Ley de Enjuiciamiento Criminal – que se limitam a permitir que o juiz
autorize, por decisão fundamentada, pelo prazo máximo de três meses,
susceptível de prorrogação por períodos similares, a vigilância de comunicações
telefónicas de pessoas relativamente às quais existam indícios de
responsabilidade criminal –, tem sido sobretudo obra da jurisprudência a
definição das condições de admissibilidade das interferências nas comunicações.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, para utilizar a síntese
feita no fundamento jurídico 5.º da Sentença n.º 171/99, tem consignado que
“uma medida restritiva do direito ao segredo das comunicações só pode
considerar‑se constitucionalmente legítima na perspectiva deste direito
fundamental se, em primeiro lugar, está legalmente prevista com suficiente
precisão – princípio da legalidade formal e material (...); se, em segundo
lugar, é autorizada por autoridade judicial no âmbito de um processo (...); e,
em terceiro lugar, se se realiza com estrita observância do princípio da
proporcionalidade; é dizer, se a medida é autorizada por ser necessária para
alcançar um fim constitucionalmente legítimo, como – entre outros –, para a
defesa da ordem e prevenção de delitos qualificáveis como infracções puníveis
graves, e é idónea e imprescindível para a investigação dos mesmos (...), e
existem indícios sobre o facto constitutivo do delito e sobre a conexão com o
mesmo por parte das pessoas investigadas. (...) A execução da intervenção
telefónica deve ater‑se aos estritos termos da autorização tanto quanto aos
limites materiais da mesma como às condições da sua autorização (...) e,
finalmente, deve levar‑se a cabo sob controlo judicial”.
(…)»
11.Adiantando a resposta à questão de constitucionalidade em causa no presente
recurso, entende-se resultar destes arestos (cf., sobre eles, José Manuel Damião
da Cunha, “A mais recente jurisprudência constitucional em matéria de escutas
telefónicas – mero aprofundamento de jurisprudência? Anotação aos Acórdãos do
Tribunal Constitucional n.ºs 426/2005 e 4/2006”, in Jurisprudência
Constitucional, n.º 8, 2005, pp. 46-55) que a dimensão normativa em causa nos
presentes autos não pode deixar de ser considerada inconstitucional. É logo o
que decorre da afirmação, contida no Acórdão n.º 426/2005 para justificar a
possibilidade de a selecção das passagens a transcrever ser determinada pelo
juiz de instrução com base, não em prévia audição pessoal das mesmas, mas por
leitura de textos contendo a sua reprodução que lhe foram espontaneamente
apresentados pela Polícia Judiciária, de que se trata apenas de uma “primeira
selecção, dotada de provisoriedade, podendo vir a ser reduzida ou ampliada”,
pois deve “ser facultado à defesa (e também à acusação) a possibilidade de
requerer a transcrição de mais passagens do que as inicialmente seleccionadas
pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer
por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens
anteriormente seleccionadas”. Mas é também o que se disse – embora sem tomar
posição definitiva, pois era outra a questão que havia então que decidir – no
citado Acórdão n.º 4/2006, com apoio em abundante fundamentação na qual já se
notou, designadamente: que se exige, de acordo com a jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, que a lei que prevê a possibilidade de realização
de escutas telefónicas deve definir “as precauções a tomar para comunicar,
intactos e completos, os registos realizados, para o controlo do juiz e da
defesa”, possibilitando às pessoas colocadas sob escuta o direito de acesso às
gravações e respectivas transcrições, e “as circunstâncias nas quais pode e deve
proceder‑se ao apagamento ou destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após
uma absolvição ou o arquivamento do processo”; e que o nosso sistema, na medida
em que permite a destruição dos registos das comunicações sem conhecimento da
defesa, mas apenas do Ministério Público, e segundo a apreciação da sua
relevância pelo juiz, se encontra isolado no contexto das ordens jurídicas mais
próximas.
Vejamos estes dois pontos mais em pormenor.
12.A afirmação de que as legislações nacionais devem tomar precauções para
assegurar “a comunicação intacta e completa das gravações efectuadas, para
efeito de controlo pelo juiz e pela defesa” e estabelecerem as circunstâncias em
que se pode operar o apagamento ou a destruição das gravações, designadamente
após o arquivamento definitivo do processo ou o trânsito em julgado da
condenação final, encontra-se em várias decisões do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem.
Assim, esse Tribunal disse nos n.ºs 34 e 35 dos Acórdãos Huvig e Kruslin, de 24
de Abril de 1990, sobre legislação francesa em matéria de escutas, que
“o sistema não oferece de momento as garantias adequadas contra diversos abusos
a recear. Por exemplo, nada define as categorias de pessoas susceptíveis de
serem colocadas sob escuta judiciária, nem a natureza das infracções que podem
dar lugar a elas; nada vincula o juiz a fixar um limite à duração da execução da
medida; e também nada precisa as condiçõe s de realização de procedimentos
verbais de síntese consignando as conversações interceptadas, nem as precauções
a tomar para comunicar intactas e completas as gravações realizadas, com o fim
de controlo eventual pelo juiz – que não pode de todo deslocar-se ao local para
verificar o número e a duração das fitas magnéticas originais – e pela defesa,
nem as circunstâncias em que pode ou deve realizar-se o apagamento ou a
destruição das ditas fitas”, designadamente após absolvição ou trânsito em
julgado. (itálico aditado)
Tais “garantias mínimas, necessárias para evitar abusos, que devem figurar na
lei”, mencionadas no Acórdãos Kruslin e Huvig e que incluem as “precauções a
tomar para comunicar, intactas e completas, as gravações realizadas, com o fim
de controlo eventual pelo juiz e pela defesa”, foram recordadas também no
Acórdão Valenzuela Contreras, de 30 de Julho de 1998 (n.ºs 46, IV, e 59) e no
Acórdão Prado Bugallo, de 18 de Fevereiro de 2003. Neste último pode ler-se, a
propósito de legislação espanhola sobre escutas telefónicas, que o Tribunal
entende
“que a garantias introduzidas pela lei de 1988 não respondem a todas as
condições exigidas pela jurisprudência do Tribunal, nomeadamente nos acórdãos
Kruslin c. França e Huvig c. França, para evitar os abusos. É o caso da natureza
das infracções que podem dar lugar às escutas, da fixação de um limite para a
duração da execução da medida e das condições de realização dos procedimentos
verbais de síntese consignando as conversações interceptadas, tarefa que é
deixada à competência exclusiva do funcionário do tribunal. Estas insuficiências
dizem igualmente respeito às precauções a tomar para comunicar intactas e
completas as gravações realizadas, com o fim de um controlo eventual pelo juiz e
pela defesa. A lei não contém qualquer disposição a este respeito.” (itálico
aditado)
Resulta desta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, referida
já nos Acórdãos n.ºs 528/2003, 426/2005 e 4/2006, que a privação da
possibilidade, pela imediata destruição da gravação que o juiz entende
irrelevante (aliás, segundo o referido Acórdão n.º 426/2005, possivelmente sem a
ouvir, e apenas com base em transcrições), de a defesa requerer a transcrição de
passagens não seleccionadas pelo juiz, e que não foram objecto de uma
comunicação intacta e completa para controlo pela defesa, corresponde a uma
diminuição das garantias da defesa – o que também já se consignou nos referidos
Acórdãos n.º 426/2005 e 4/2006. Também por isso (como se nota neste último
aresto) se disse no citado Acórdão n.º 426/2005 que “deve ser facultado à defesa
(e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais
passagens do que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem
que as mesmas assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para
esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens anteriormente
seleccionadas”.
13.Quanto à comparação da solução que está em apreciação – repete-se: a da
destruição imediata dos suportes das escutas com base na apreciação da sua
relevância pelo juiz, sem que o arguido se possa pronunciar sobre ela – com o
regime vigente em outras ordens jurídicas europeias mais próximas da nossa, pode
igualmente remeter-se para o Acórdão n.º 4/2006 (n.º 2.8), para se verificar que
aquela solução se encontra isolada (v. também, para o que se segue, Mireille
Delmas-Marty e Mário Chiavario, Procedure penali d’Europa, 2.ª ed., CEDAM,
Padova, 2001).
Assim, recorde-se que, como se disse no Acórdão n.º 4/2006, na Bélgica, as
gravações são mantidas intactas a fim de as partes as poderem consultar e
requerer a transcrição de passagens inicialmente tidas por irrelevantes; em
França, as gravações só são destruídas no termo do prazo de prescrição do
procedimento criminal; em Itália, só após audição das gravações (cuja guarda
compete ao Ministério Público) pela defesa e pronúncia dos diversos
intervenientes é que o juiz manda suprimir os registos cuja utilização é
legalmente vedada e admite os que não são manifestamente irrelevantes (artigo
268.º, n.º 6, do Código de Processo Penal), sendo os registos conservados até ao
trânsito em julgado da sentença final, a menos que, a requerimento dos
interessados, com fundamento em tutela da privacidade, o juiz autorize a
destruição antecipada (artigo 269.º, n.º 2, do mesmo Código); em Espanha, atenta
a exiguidade da regulamentação legal, a jurisprudência do Tribunal
Constitucional e do Tribunal Supremo têm insistido na necessidade de serem os
originais das fitas de gravação ou elementos análogos a serem remetidos ao
tribunal, ficando à guarda do secretário judicial, que facultará o seu acesso às
partes (e ao Ministério Público) e dirigirá a tarefa de transcrição das partes
tidas por relevantes”.
Também na Alemanha os limites da possibilidade da destruição são discutidos,
apesar de o § 100b, n.º 6, da Strafprozessordnung mandar destruir imediatamente,
sob fiscalização do Ministério Público, os elementos [Unterlagen] que já não
sejam necessários para a perseguição penal (v. Gerhard Schäfer, em
Löwe/Rosenberg, Die Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz –
Grosskommentar, 25.ª ed., Berlin, W. de Gruyter, 2003, anot. 38 ao §100b e
anots. 103 e seg. ao § 100c, dizendo que só pode destruir-se o material de prova
seguramente já desnecessário, porque o seu conteúdo está entretanto confirmado
por outros meios de prova, pelo que se o material for ainda possivelmente
utilizado como meio de prova na audiência de julgamento nunca é de considerar
uma destruição, antes deve ser guardado juntamente com os meios de prova). O
Tribunal Constitucional Federal alemão já declarou, mesmo (na decisão de 3 de
Março de 2004, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 109, pp.
279 e ss.), a inconstitucionalidade desse § 100b, n.º 6, embora apenas em
conjugação com a remissão que para ele fazia o § 100d, n.º 4, frase 3, que o
mandava aplicar à destruição dos registos de vigilância acústica em espaços
habitacionais (o chamado “grosser Lauschangriff”), por violação da garantia do
acesso à via judiciária, que a destruição dificultava ou tornava mesmo
impossível. Salientou-se, nessa decisão, que “pode surgir uma situação
específica de conflito por, de uma parte, corresponder à protecção de dados o
apagamento de dados já não necessários, e, por outra, com o apagamento se
dificultar, quando não mesmo impossibilitar, uma protecção jurídica efectiva,
porque um controlo dos actos só é em limitada medida possível depois do
apagamento dos elementos” (v. também, já antes, a decisão de 14 de Julho de
1999, in Entscheidungen…, cit., vol. 100, pp. 313 e ss., 400, onde se considerou
condição do respeito pela garantia do acesso à via judiciária o facto de os
registos serem conservados até seis meses depois da notificação dos actos ao
atingido). Na sequência da citada decisão de 2004, foi aprovada uma “Lei de
Aplicação da Decisão do Tribunal Constitucional Federal de 3 de Março de 2004”,
que alterou o referido §100d, passando a prever que os dados são destruídos se
não forem necessários “para a prossecução da acção penal e para uma eventual
comprovação judicial”, e que, na medida em que a destruição seja adiada por esta
última razão, “os dados devem ser encerrados e só podem ser utilizados para esse
fim”.
Aliás, também entre nós têm sido propostas várias soluções no sentido de evitar
que os registos das conversações possam ser logo destruídos, antes sendo
assegurada a possibilidade de controlo (incluindo a “contextualização” e a
descoberta de novos elementos) também pela defesa (cf. as propostas legislativas
referidas no n.º 2.6 do citado Acórdão n.º 4/2006). E refira-se, aliás, como
mera nota marginal, que é também diferente da que está em apreciação a solução
prevista no anteprojecto de revisão do Código de Processo Penal que foi tornado
público pelo Ministério da Justiça já em 2006. Segundo o seu artigo 188.º, n.º
6, a destruição imediata apenas é determinada pelo juiz em relação a “suportes
técnicos e relatórios manifestamente estranhos ao processo” e que: disserem
respeito a conversações em que não intervenham o suspeito ou arguido, pessoa
“relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite
mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido ou vítima de crime,
mediante o respectivo consentimento, efectivo ou presumido”; abranjam matérias
cobertas pelo segredo profissional, de funcionário ou de Estado; ou cuja
“divulgação possa afectar gravemente direitos, liberdades e garantias”. Fora
desses casos, prevê-se que, a partir do encerramento do inquérito, o assistente
e o arguido possam “examinar os suportes técnicos das conversações ou
comunicações e obter, à sua custa, cópia das partes que pretendam transcrever
para juntar ao processo”, sendo os suportes técnicos referentes a conversações
ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova
“guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o
trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo” (artigo 188.º, n.ºs
8 e 12, do citado anteprojecto).
14.Poderia – é certo – defender-se que estas soluções legislativas se enquadram
dentro da liberdade de conformação do legislador, sendo possíveis várias
soluções no plano infra-constitucional. Dir-se-ia, neste sentido, que bastaria o
controlo da relevância dos elementos de prova pelo juiz de instrução, procedendo
ao controlo da legalidade, da necessidade e da relevância desses elementos.
Estes argumentos não podem, porém, considerar-se procedentes.
Na verdade, a destruição (permitida pela norma em apreço) de elementos de prova
obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o arguido poderia
pretender utilizar em seu benefício e que apenas foram conhecidos pelo órgão de
polícia criminal e pelo Ministério Público, com base na apreciação da sua
relevância, e na consequente ordem de destruição, apenas pelo juiz de instrução,
sem conhecimento pelo arguido, constitui logo, só por si, uma compressão
inaceitável, e desnecessária, das garantias de defesa do arguido,
particularmente notória na comparação da sua posição com a da acusação. Com
efeito, o arguido, que já sofreu uma intervenção restritiva –determinada e
justificada apenas por razões de necessidade – nos seus direitos fundamentais ao
ser objecto de escutas telefónicas, vê destruídos os registos dessas
comunicações, de cujo conteúdo não chega a tomar conhecimento, e não pode sequer
pronunciar-se sobre a sua relevância, enquanto a acusação (rectius, o órgão de
polícia criminal e o Ministério Público) teve acesso ao conteúdo integral e
completo das comunicações e pode (deve mesmo) seleccionar e indicar as partes
que considera relevantes (artigo 188.º, n.º 1, parte final), tendo uma
intervenção substancial anterior à apreciação do juiz e à sua decisão sobre a
relevância, que pode influenciar.
Contra isto não basta argumentar, nem com o facto de a destruição dos registos
inúteis visar ela própria a protecção de direitos fundamentais de terceiros ou
do próprio arguido, nem com as garantias resultantes da intervenção do juiz de
instrução, como “juiz das garantias” do arguido, ou com uma alegada
possibilidade de contraditar a prova no momento do julgamento.
Quanto a esta última possibilidade, ela torna-se evidentemente ilusória, quanto
ao que pudesse depender das conversações cujo conteúdo o arguido não conheceu, a
partir do momento da destruição dos respectivos registos. Aliás, repete-se que
não está apenas em causa a utilização das comunicações para enquadrar os
elementos transcritos, mas igualmente com relevo autónomo.
Quanto ao primeiro ponto, recorda-se que está apenas em causa, na dimensão
normativa em apreço, a ordem de destruição dos registos com base exclusivamente
na apreciação da relevância das conversações para a prova, por parte do juiz, e
não na ilegalidade das escutas ou na protecção dos direitos de terceiros ou do
arguido (aliás, quanto a este último, sempre poderia duvidar-se da
indisponibilidade de uma tal “protecção contra si próprio”). A invocação da
protecção de terceiros – aliás, não concretizada no caso em apreço – contra
intromissão na vida privada apenas poderia, pois, situar-se no plano abstracto,
da presunção de que todas e quaisquer escutas podem (criam o risco de) pôr em
causa esses direitos de terceiros. Sem deixar de sublinhar a importância das
garantias contra a indevida circulação do conteúdo das conversações
interceptadas, ou, até, do estabelecimento de mecanismos que tutelem o risco da
violação de direitos fundamentais como o segredo das comunicações, a alegação de
um tal risco não pode, porém, sobrepor-se aos concretos direitos do arguido, de
organizar a sua defesa controlando o conteúdo das conversações e utilizando-as
em sua defesa, seja enquadrando as transcrições existentes, seja com relevância
autónoma.
15.No que toca à intervenção do juiz, para apreciar a relevância das
comunicações interceptadas “em lugar” da apreciação que o arguido poderia
pretender efectuar, é certo que ela representa uma garantia suplementar em
relação a um sistema que deixasse a apreciação da relevância e a selecção
exclusivamente na dependência da acusação (cf., aliás, concedendo especial
importância ao parâmetro da “reserva do juiz”, e ao artigo 32.º, n.º 4, da
Constituição no regime das escutas telefónicas, J. M. Damião da Cunha, “A mais
recente jurisprudência…”, cit., pp. 51 e ss.).
Todavia, tal garantia não pode considerar-se suficiente sob dois pontos de
vista: por um lado, e como se referiu, enquanto o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público podem influenciar a decisão do juiz sobre a relevância,
devendo mesmo indicar as passagens das comunicações que consideram relevantes
antes de aquele tomar uma decisão (que, recorda-se, pode, sem
inconstitucionalidade, ser tomada sem audição da integralidade das conversações,
e apenas com base em partes transcritas que lhe são facultadas, como se decidiu
no Acórdão n.º 426/2005), o arguido não chega sequer a ter conhecimento do
conteúdo das comunicações antes da sua destruição, muito menos podendo fazer
valer, ou fundamentar, a sua apreciação sobre a sua relevância, ficando, por
isso, colocado numa posição de inferioridade, ou desigualdade, que
objectivamente põe em causa as suas garantias de defesa; por outro lado, sendo
ao arguido que compete organizar a sua defesa, contraditando os elementos
invocados pela acusação e utilizando-os para se defender, tem de lhe ser deixada
a possibilidade de ser ele a ajuizar, com base no conteúdo das conversações em
causa, sobre a sua relevância, para, pelo menos, a poder justificar (por
exemplo, porque entende que dela resulta um atenuação da sua culpa, ou até uma
causa de justificação), sem que esse juízo possa ser antecipadamente
inviabilizado pela destruição dos suportes magnéticos com base numa apreciação
alheia (ainda que do juiz de instrução). Aliás, não está apenas em causa a
possibilidade de conhecimento pelo arguido do conteúdo das comunicações, para
efectuar e fundamentar a sua apreciação sobre a sua relevância, mas também a
própria possibilidade de um controlo judicial da decisão de destruir os registos
das conversações, ou, mesmo, da própria realização das escutas (em relação ao
material destruído).
Sob este aspecto, a consideração de que a norma em causa apenas faz sentido no
pressuposto de uma total irrelevância dos registos, com possibilidade (ou mesmo
dever) de o juiz realizar esta avaliação, falha o alvo, justamente porque o que
está em causa é esta possibilidade de avaliação e a intervenção nela do arguido
– ou seja, saber se o arguido também há-de poder, pelo menos, influenciar com
devido conhecimento a apreciação da relevância das conversações.
Não pode, aliás, excluir-se em absoluto que a apreciação pelo juiz de instrução,
na sequência dos elementos que lhe são facultados pelo órgão de polícia
criminal, e ainda que apenas de uma irrelevância clara, ou manifesta, dos
elementos em questão, possa não estar objectivamente correcta, podendo vir a ser
posta em causa pelo desenrolar futuro do processo ou por outros acontecimentos
(sendo que a destruição dos registos inviabiliza, porém, a comprovação). E, de
todo o modo, pelo menos quando não estejam em causa situações de ilegalidade das
escutas ou de outras qualificadas afectações de direitos fundamentais
justificadas em concreto, é ao arguido que tem de competir a possibilidade de
controlar essa correcção e de fundamentar a sua própria apreciação sobre a
relevância dos elementos em causa, o que só pode ser conseguido, como tem
salientado o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mediante precauções no
sentido da comunicação integral e completa das conversações interceptadas ao
arguido, as quais são radicalmente postergadas pela imediata destruição dos
registos.
16.Em suma, conclui-se que é inconstitucional, por violação das garantias de
defesa do arguido, asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, e em
particular da garantia de um processo leal e do princípio do contraditório, a
interpretação do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que permite
que sejam destruídos elementos de prova obtidos mediante intercepção de
telecomunicações, que o órgão de polícia criminal conheceu, com base na
apreciação da sua relevância efectuada e na consequente ordem dada pelo juiz de
instrução, e de cujo conteúdo o arguido não chega a tomar conhecimento, sem
poder, pois, pronunciar-se sobre a sua relevância.
Há, assim, que conceder provimento ao presente recurso, determinando-se a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de
inconstitucionalidade. Sublinhar-se-á apenas, como nota final, que as
consequências a retirar do presente juízo de inconstitucionalidade para os
elementos de prova constantes dos autos, incluindo as comunicações interceptadas
aí transcritas, se encontram já fora do âmbito da intervenção do Tribunal
Constitucional, situando-se claramente no domínio de intervenção do Tribunal
recorrido.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto à norma do artigo 180.º, n.º 1,
do Código de Processo Penal;
b) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, a norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na
interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos
mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o
Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de
instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa
pronunciar sobre a sua relevância;
c) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma
da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (Vencido de acordo com a declaração
de voto anexa)
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de
voto junta).
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de Voto
1 – Votei vencido quanto ao conhecimento da questão de constitucionalidade e
quanto à decisão de mérito.
2 – Na parte que concerne ao conhecimento, porque entendo que o
recorrente não suscitou, nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de
Guimarães, a questão de constitucionalidade da dimensão normativa do art. 188.º,
n.º 3, do Código de Processo Penal, de que o acórdão conheceu, pelo que este
Tribunal não curou, nem teria de curar dela, nem, tão pouco, esse preceito foi
aplicado para decidir qualquer questão concreta relativa ao seu sentido, que o
recorrente houvesse colocado ao tribunal de recurso, concernente às escutas
concretamente não destruídas, constantes dos autos, ou a concretas escutas que
houvessem sido efectivamente destruídas, donde resulta que o juízo de
inconstitucionalidade poderá ser irrelevante para o resultado do juízo
probatório a fazer pelo tribunal sobre as escutas que não foram apagadas, após a
contradita do recorrente a efectuar com base em outros instrumentos de prova.
3 – No que importa à não suscitação.
Nas alegações para a Relação, o recorrente alegou,
relativamente, à questão de constitucionalidade, apenas o seguinte:
“[…]
7 – Acresce que, sem prescindir, o art. 32.º, n.º 5 da
Constituição da República Portuguesa, confere ao arguido A. o direito
fundamental ao contraditório relativamente aos meios de prova de que o
Ministério Público se socorre para estribar a sua acusação e para a sustentar em
audiência de julgamento.
8 – A conservação das gravações não transcritas até ao trânsito
em julgado da decisão final, podendo o arguido requerer a audição em sede de
julgamento ou de recurso para contextualizar as conversações transcritas,
constitui um direito fundamental do arguido que neste caso se encontra
irremediavelmente precludido, afectando a totalidade da prova colhida com
violação daquela norma constitucional.
[…]”.
Ora, o acórdão conheceu, segundo a sua própria formulação, da
questão de “constitucionalidade da norma do artigo 188.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal, no entendimento de que permite a destruição de elementos de
prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações e que o órgão de polícia
criminal conheceu, com base numa apreciação da sua relevância efectuada, e na
consequente ordem dada, pelo juiz de instrução, sem que o arguido chegue a tomar
conhecimento do seu conteúdo e sem poder, pois, pronunciar-se sobre a sua
relevância”.
Como se constata, perante a alegação transcrita, o recorrente
não suscitou a questão de constitucionalidade de que se conheceu. E a
entender-se haver alguma alegação de uma questão de constitucionalidade, ela
mostrar-se-ia feita, relativamente ao preceito do art. 188.º, n.º 3 do CPP, em
termos abstractos, ou seja, independentemente de uma sua aplicação como ratio
decidendi de uma questão concreta relativa às escutas cuja resolução houvesse
sido pedida ao tribunal de recurso.
4 – No que tange à não aplicação da dimensão normativa
conhecida.
O recorrente não colocou ao tribunal de recurso qualquer
questão concreta relativa à relevância probatória a conferir – no sentido de
poder fundar ou de não poder fundar, na elaboração do juízo judicial, um
resultado de convincência concernente a concretos e específicos factos – a
determinadas e identificadas escutas transcritas. Nomeadamente, o recorrente não
questionou perante o tribunal de recurso que as escutas transcritas, constantes
dos autos, não pudessem fundar qualquer juízo de convincência acerca da
existência dos factos afirmados com base nelas, porque o sentido com que
haveriam de ser entendidas era não aquele que lhe foi atribuído pelo juiz de
instrução, mas um outro diferente. Mais, o recorrente não alega, sequer, que a
destruição das escutas o impedisse de fazer prova destes ou daqueles factos em
sede de julgamento, mas apenas que a conservação das gravações não transcritas
até ao trânsito em julgado da decisão final constitui um direito fundamental,
“podendo o arguido requerer a sua audição em sede de julgamento ou de recurso
para contextualizar as conversações transcritas” (itálico aditado). Ou seja, o
recorrente alega a contextualização das escutas transcritas como necessidade
eventual da defesa no acto de julgamento ou no recurso, ou seja, em nome de um
direito geral de defesa que poderá, então, hipoteticamente, traduzir-se em actos
de defesa concreta, relacionados com as escutas ou não. Isto equivale por dizer
que o recorrente se apoia num princípio de que tudo o que vai sendo adquirido
pelo processo, no seu decurso, tem de permanecer nele até ao trânsito em julgado
da decisão definitiva, porque o arguido poderá, eventualmente, detectar, nesses
meios de prova, elementos factuais relativos aos próprios meios de prova ou à
realidade cuja existência os mesmos tendem a demonstrar de que poderá beneficiar
na sua defesa.
Ora, o nosso processo penal não está estruturado sobre esse
princípio, nem decorre da Constituição penal e processual penal essa exigência
de acautelar uma hipotética, eventual e indeterminada estratégia de defesa no
exercício do direito de defesa.
A questão relativa à destruição das escutas, cuja colocação se
entende que o arguido deveria colocar para se ver nela uma aplicação do critério
normativo de cuja constitucionalidade se conheceu, não é, como se deixa entrever
do acórdão, que o «arguido justificasse a “contextualização” que pretendia
realizar» em termos equivalentes ao “exigir-lhe que avançasse hipóteses ou que
fizesse conjecturas, baseadas no conteúdo de comunicações a que não pode
aceder”, mas que, com referência às escutas transcritas, pusesse em crise o
concreto sentido com que as mesmas foram entendidas pelo tribunal, dentro da sua
liberdade de convincência e de apreciação, com base em outros elementos de prova
ou até – na total ausência de outras provas – com base em outras leituras,
racionalmente, possíveis da linguagem transcrita.
O teste de que a dimensão normativa, de cuja
constitucionalidade se conheceu, não constituiu ratio decidendi de qualquer
questão concreta, relativa à validade de uma ponderação probatória das concretas
escutas transcritas, está no facto, admitido implicitamente no final do acórdão,
de que as escutas transcritas poderão, ainda, ser objecto de alguma valoração ou
ponderação probatórias, a concretizar pelo tribunal depois do contraditório
efectuado sobre elas.
5 – No que importa ao fundo, revejo-me na fundamentação do voto
de vencido da Senhora Conselheira Fernanda Palma.
Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
1. Votei vencida a presente decisão, pois entendo que a norma contida no artigo
188º, nº 3, do Código de Processo Penal, nos termos da qual o juiz de instrução
pode ordenar a destruição das fitas gravadas ou de materiais similares de
conversas telefónicas interceptadas consideradas irrelevantes, não deve ser
julgada inconstitucional. Em minha opinião, tal norma consagra, em termos
constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de correcção pelo tribunal de
uma intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada do
arguido ou de terceiros (artigo 26º, nº 2, da Constituição).
A argumentação do Acórdão parte da ideia de que, uma vez realizada a
intercepção, se tornará secundário assegurar os valores e interesses cuja
restrição foi afectada, por as garantias de defesa e o contraditório (artigo
32º, nºs 1 e 5, da Constituição) se terem tornado prevalecentes relativamente à
reserva da intimidade da vida privada do próprio arguido ou de terceiro. Em
termos simples, subjaz ao Acórdão este raciocínio: uma vez realizada a escuta,
ainda que desnecessária ou irrelevante, o eventual prejuízo que provocou já não
deve ser valorizado: por um lado, porque a reserva da intimidade da vida privada
já foi prejudicada pela intercepção e subsequente audição; por outro lado,
porque o prejuízo para a reserva da intimidade da vida privada é superado pelo
eventual benefício obtido pela defesa mediante a utilização dos respectivos
elementos probatórios.
Nesta perspectiva, seria um mal maior – e intolerável segundo a Constituição - a
devassa da reserva da intimidade da vida privada de qualquer pessoa não poder
ser usada em benefício do arguido. Porém, esta linha de orientação, levada ao
extremo, transfiguraria actos ilegítimos a priori em actos legítimos a
posteriori. Numa aplicação sui generis do chamado teorema de Thomas, o que é
errado (ilegítimo) na sua génese passaria a ser certo e legítimo nas suas
consequências, desde que não invalidado. Assim, o arguido disporia, em última
análise, de escutas ilegítimas de terceiros para sua defesa.
Acresce que o facto de uma intercepção ter sido já realizada e de a
correspondente conversação ter sido ouvida por órgãos de polícia criminal e
autoridades judiciárias não torna irrelevante o prejuízo para a reserva da
intimidade da vida privada que pode advir da conservação dos respectivos
suportes. Com efeito, essa conservação gera sempre um perigo acrescido de
reprodução e de devassa, como tem revelado a experiência recente em sede de
violação do segredo de justiça.
Uma outra ordem de considerações, que excede a esfera estrita do direito à
reserva da intimidade da vida privada, aponta para a possibilidade de as fitas
gravadas ou os materiais similares conterem elementos irrelevantes para o
processo que estejam cobertos pelo segredo de Estado ou pelo segredo
profissional. Nesta hipótese, acautelada pela proposta de revisão do Código de
Processo Penal aprovada pelo Governo em 16 de Novembro de 2006 (artigo 188º, nº
6), há outros interesses constitucionalmente tutelados (artigos 35º, nº 1, e
26º, nº 1, parte final, da Constituição), que devem também ser ponderados em
confronto com as garantias de defesa e o contraditório (artigo 18º, nº 2, da
Constituição).
2. O legislador ordinário poderia solucionar o conflito de interesses dando
sempre preponderância às garantias de defesa e ao contraditório, desde que a
intercepção fosse legítima. Todavia, entender que o juiz de instrução está
proibido de ordenar a destruição de quaisquer gravações de escutas que
considere, segundo a sua análise e ponderação, manifestamente irrelevantes
constitui uma interpretação desproporcionada das exigências constitucionais no
Processo Penal.
Não se infere da Constituição que o legislador ordinário esteja impedido, nesta
situação, de procurar salvaguardar outros interesses – que também têm, de resto,
a dignidade de direitos fundamentais. Além disso, o contraditório vale na
audiência de julgamento e noutros actos que a lei determinar (artigo 32º, nº 5,
da Constituição), mas não forçosa e ilimitadamente no debate, em sede de
inquérito, de todos os meios de investigação e de obtenção de prova na fase de
inquérito.
Aliás, não está em causa, como parece transparecer do Acórdão, uma delimitação
“paternalista” dos interesses do arguido, quando se atribui ao juiz de instrução
a competência para decidir se uma gravação é irrelevante. O juiz de instrução
tem precisamente por função assegurar os direitos, liberdades e garantias – do
arguido, de outros sujeitos processuais e de quaisquer terceiros - , como
decorre do nº 4 do artigo 32º da Constituição. O Processo Penal não é um domínio
em que, por exemplo, os direitos de terceiros se tornem livremente disponíveis
pelo arguido e por outros sujeitos.
Se assim sucedesse, a pretexto do “garantismo”, estaria aberto o caminho para
que todas as violações de direitos fundamentais (mesmo envolvendo só terceiros)
e as correspondentes actividades de investigação e de obtenção de prova
(intercepção de comunicações e até outras) se viessem a consolidar na Ordem
Jurídica para ulterior satisfação de uma arbitrária vontade do arguido. A
efectividade da proibição dependeria sempre do arguido e a actividade proibida
tornar-se-ia processualmente vantajosa, atraiçoando-se, desse modo, o sentido da
nulidade (absoluta) cominada no nº 8 do artigo 32º da Constituição e da
“inutilizabilidade” da prova decretada no artigo 126º do Código de Processo
Penal.
É constitucionalmente aceitável que o legislador queira impedir as violações de
direitos fundamentais e acautelar interesses constitucionalmente tutelados
(artigo 18º, nº 2, da Constituição), permitindo a selecção das gravações
efectivamente relevantes, promovendo a reversibilidade de excessos cometidos e
submetendo a prova disponível pelo Tribunal a um princípio de auto-contenção do
“poder probatório” (ou de investigação) do Estado no Processo Penal.
Pretender que, uma vez realizada, a escuta irrelevante passe a poder servir a
defesa, segundo a vontade arbitrária do arguido, implica concluir que a
Constituição impõe uma dissolução dos limites de actuação da autoridade pública,
que são limites do Estado de Direito, na recolha da prova em função de um
hipotético e não necessariamente demonstrado interesse da defesa.
3. O argumento de que a qualificação de irrelevante pelo juiz de instrução tem
de ser sempre, segundo a Constituição, sujeita a contraditório ou até, mais
radicalmente, nunca pode ser formulada, corresponde a uma leitura excessiva do
contraditório em face da estrutura acusatória “mitigada” do Processo Penal
português.
Na fase do inquérito, o juiz intervém para garantir a não violação dos direitos
fundamentais e a não ultrapassagem dos limites autorizados aos órgãos que actuam
na recolha e produção da prova (artigo 32º, nº 4, da Constituição). A atribuição
de competência para decidir da ilegitimidade ou da irrelevância de uma escuta é,
a esta luz, uma decorrência normal da estrutura acusatória mitigada pelo
princípio da investigação, que vigora no Processo Penal português.
É claro que pode haver situações em que o arguido venha sustentar uma
necessidade concreta de contextualização ou de narrativa para a qual
necessitaria de escutas consideradas irrelevantes entretanto destruídas.
Estaremos, então, perante uma questão diversa da que os autos configuram. Nessa
outra hipótese, uma necessidade de contextualização plausível em função das
insuficiências dos suportes não destruídos pode demonstrar que o juízo de
irrelevância do julgador foi duvidoso ou errado. O julgador pode ter utilizado
até um critério inconstitucional, na destruição das fitas gravadas ou de
materiais similares, tornando a matéria recolhida insuficiente ou incorrecta a
sua interpretação.
Mas esta questão excede o terreno da constitucionalidade normativa da destruição
de gravações de escutas irrelevantes. Ela pode referir-se à constitucionalidade
ou à legalidade da própria decisão de destruição, em si, ou ao seu critério
normativo, que assentará então numa interpretação ilegítima do conceito de
“irrelevância”. Uma tal interpretação normativa pode ser inconstitucional e,
caso afecte a validade de uma prova por a descontextualizar, é passível de
censura pelo Tribunal Constitucional nos termos gerais.
Em todo o caso, a argumentação do recorrente confronta o Tribunal Constitucional
com a norma que permite a destruição de escutas irrelevantes sem mais, mesmo que
tais escutas sejam manifestamente irrelevantes para qualquer observador – isto
é, abstraindo de qualquer fundamentação do interesse concreto da defesa.
As escutas manifestamente irrelevantes, que ponham em causa direitos ou
interesses constitucionalmente tutelados ou que abranjam só terceiros sem
qualquer conexão com o processo passam, nesta interpretação do Tribunal
Constitucional, a ter de estar integradas no processo para que a defesa (ou,
quiçá, a acusação também, em nome do contraditório) decida, em última instância,
sobre a sua relevância.
Ora, um tal critério normativo não resulta de exigências constitucionais do
artigo 32º, nºs 1, 4 e 5. Esse critério é antes enformado por um modo de
configuração do Processo Penal radicalmente acusatório, que desvaloriza o papel
do “juiz das liberdades” e em que o princípio contraditório domina todo o
inquérito - e não apenas os “actos instrutórios que a lei determinar”, como
prescreve o artigo 32º, nº 5, da Constituição.
4. Por seu turno, os argumentos retirados do Direito Comparado não têm em conta
a estrutura global do Processo Penal nos Ordens Jurídicas invocadas.
No caso da Alemanha, vigora uma orientação próxima do artigo 188º, nº 3, do
nosso Código. Com efeito, o § 100 b, nº 6, do Código de Processo Penal alemão,
prevê que: “Não sendo os documentos obtidos já necessários para a prossecução da
acção penal, devem ser destruídos imediatamente sob fiscalização do Ministério
Público. Da destruição deve fazer‑se acta”. A ponderação feita pelo legislador
alemão dá, como se vê, prevalência a um autêntico dever de destruição dos dados
desnecessários, em função de uma estrita contenção da intervenção da autoridade
pública no círculo da esfera privada dos cidadãos.
Por seu lado, a sentença citada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
refere‑se apenas à comunicação integral e completa das conversações
interceptadas ao arguido. Ainda assim, esse aresto pressupõe um nível de
relevância delimitado, pelo menos, em função do âmbito subjectivo das escutas,
não se opondo à destruição dos materiais irrelevantes referentes a conversações
em que o arguido não intervenha.
5. Por todas as razões expostas, não pude acompanhar o juízo de
inconstitucionalidade contido no Acórdão.
No plano das consequências, importa observar ainda que a única ilação a extrair
da decisão do Tribunal Constitucional seria a invalidade de todas as provas
recolhidas através das escutas, sempre que qualquer fita gravada ou material
similar fossem destruídos. Não faz qualquer sentido (e, a meu ver, será até
contraditório) que um juízo de inconstitucionalidade que radica na violação das
garantias de defesa devido à falta de oportunidade de contextualização das
transcrições (por terem sido destruídas gravações consideradas irrelevantes)
implique apenas a invalidade do despacho que ordenou essa destruição. Dessa
forma, a função do juízo de inconstitucionalidade seria totalmente defraudada, o
julgamento de inconstitucionalidade seria tendencialmente ineficaz e o requisito
processual do interesse em agir nem sequer seria tido em conta no recurso de
constitucionalidade.
Assim, também não acompanho o distanciamento preconizado no presente Acórdão
quanto às possíveis consequências do juízo de inconstitucionalidade. Esse
“distanciamento” tem uma outra sede própria que é a admissibilidade
constitucional de destruição de fitas gravadas ou de materiais similares
manifestamente irrelevantes e cuja conservação pode afectar direitos ou
interesses constitucionalmente tutelados
Maria Fernanda Palma