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Processo n.º 655/03
2ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 2 de Outubro de 1995, A., S.G.P.S., S.A. (anteriormente designada “B. –
S.G.P.S., S.A.”) e C., S.A., melhor identificadas nos autos, intentaram, no
Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acção de indemnização contra o
Estado Português em que pediam a condenação deste, em montante a liquidar em
execução de sentença, numa indemnização por responsabilidade civil
extracontratual, resultante do comportamento do demandado no processo de
privatização do D..
Por despacho saneador-sentença, de 14 de Junho de 1996, o demandado foi
absolvido do pedido, com fundamento em que “todos os danos alegados se podem
imputar à falta de recurso contencioso do acto visado”.
Recorreram as demandantes para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por
acórdão de 30 de Abril de 1998, decidiu revogar “a decisão recorrida, devendo os
autos prosseguir os seus regulares e ulteriores [termos] no TAC do Porto, se
outros motivos processuais a tal não obstarem”.
No cumprimento desta decisão veio a ser proferida sentença, de 7 de Março de
2002, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, em que se entendeu,
nomeadamente, não estarem cumulativamente preenchidos os requisitos previstos no
artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, que regula a
responsabilidade civil do Estado por actos de gestão pública, desde logo por as
normas pretensamente violadas não se destinarem a proteger os interesses de um
cidadão ou grupo concreto de cidadãos e por da alegada violação de tais normas
não terem resultado perdas efectivas, antes ganhos avultados.
As autoras recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, formulando as
seguintes conclusões:
«1.ª – O Estado sabia que, com a sua participação no processo de reprivatização
do D., a B. não prosseguia objectivos meramente financeiros e antes encarava a
compra de acções do D. como meio de implementar determinado programa, endereçado
à realização de certo objectivo - alcançar influência nos destinos do D. e
assegurar por essa via uma ligação entre o GRUPO A. e um grupo financeiro
(resposta ao quesito 12.°) - assim como sabia que esse objectivo só seria
alcançável se o processo de reprivatização do D. se orientasse por um modelo de
dispersão do capital social, com preferência dos accionistas;
2.ª – Foi o próprio Estado que, através de diligências insistentes, sugeriu à B.
aquele programa (resposta ao quesito 9.°), cuja realização garantiu ser possível
através das prestações a que se obrigou;
3.ª – Por outro lado, os contactos entre o Estado e o GRUPO PORTUGUÊS
desembocaram, sem dúvida, na conclusão de “acordos simples”, de entendimentos,
quando não até na celebração de um contrato verdadeiro e próprio;
4.ª – O Estado e o GRUPO PORTUGUÊS (B. incluída) entraram numa relação
particular, por via da qual aquele pretendeu influenciar as decisões e os planos
de vida dos respectivos membros através de “declarações comprometedoras”
especificamente endereçadas ao mesmo GRUPO PORTUGUÊS, induzindo-os não só a não
alienarem as suas acções do D. como a reforçarem as suas participações no Banco,
através da “promessa” de que no processo de privatização do D. seria sempre dada
preferência aos accionistas e se prosseguiria um objecto de dispersão do capital
social.
5.ª – A mesma mensagem foi, de resto “irradiada” por outros actos (incluindo
actos legislativos) e declarações que, não tendo o GRUPO PORTUGUÊS como
destinatário particular, não deixaram, obviamente, pelo seu carácter público, de
chegar ao conhecimento da B. e dos demais membros do GRUPO PORTUGUÊS e de serem
por estes valorados como confirmação e validação das suas expectativas.
6.ª – Não pode seriamente questionar-se que a conduta do Estado tinha
objectivamente o significado de uma tomada de posição vinculante em relação aos
moldes da reprivatização do D., e que sobre ele pesavam particulares deveres de
cautela e de protecção, designadamente deveres de lealdade, que o obrigavam a
não frustrar os objectivos das aquisições prosseguidas pela B., a não diminuir
as vantagens alcançadas por esta, nem obstar à obtenção daquelas a que ela podia
razoavelmente aspirar;
7.ª – Os termos em que o Estado conformou a última fase do processo de
reprivatização do D. consubstanciam uma violação patente, grosseira e
injustificada dos seus compromissos e da confiança e dos deveres de cuidado
acima referidos, como aliás foi reconhecido pela Comissão Parlamentar que
investigou exaustivamente o dossier;
8.ª – O princípio da boa fé, na sua vertente de protecção de confiança,
constitui um princípio geral da actividade administrativa, que só foi consagrado
expressamente através do Dec-Lei n.° 6/96, de 31 de Janeiro, e da revisão
constitucional de 1997, mas que já era aplicável anteriormente por estar
implícito no princípio da justiça e no princípio da imparcialidade;
9.ª – Na hipótese em que o comportamento lesivo da boa fé se materializa ou
culmina na emanação de um acto administrativo, há ilegalidade desse acto, nada
distinguindo neste plano a boa fé, enquanto subprincípio concretizador da ideia
de justiça, dos demais princípios constitucionais e legais que presidem à
actividade administrativa, como a igualdade, a proporcionalidade, a
imparcialidade, etc., sendo que, de resto, o acto contido no art.º 1.º do
Dec-Lei n.° 20-A/95 também infringe os princípios da proporcionalidade e da
protecção de direitos e interesses legítimos;
10.ª – No mínimo, a violação da confiança cometida pelo Estado gera
responsabilidade civil da Administração Pública perante os particulares, visto
que estão presentes in specie todos os pressupostos exigíveis (situação de
confiança, justificação para essa situação, investimento de confiança, imputação
da situação de confiança);
11.ª – Por outra via, o acto administrativo de quo agitur viola o art.º 296.° da
Constituição e diversas regras da Lei-Quadro das Privatizações;
12.ª – De facto, a modalidade adoptada para a 4.ª fase não é a “venda directa,
antes constituindo uma modalidade atípica e híbrida (uma espécie de
auto-vinculação pública do Estado a aceitar uma OPA lançada no mercado) o que
consubstancia uma violação da regra da taxatividade das modalidades de
reprivatização;
13.ª – Mesmo que se tratasse de uma verdadeira “venda directa”, não estavam
verificados os pressupostos legais da sua adopção (pois de acordo com a
exigência do n.° 1 do art.º 13.° da LQP, se o Dec-Lei n.° 321-A/90 tivesse
efectivamente querido acolher essas modalidades de negociação excepcionais,
teria de ter previsto expressamente os respectivos fundamentos), e ainda que
estes se verificassem, não estariam já, de certo, reflectidos no conteúdo do
acto administrativo e do caderno de encargos que lhe vai anexo, nem sequer na
fundamentação que em preâmbulo é ensaiada;
14.ª – Ainda por outra via, mesmo que aquela especial modalidade adoptada fosse
em abstracto permitida, a verdade é que a sua adopção in casu seria sempre
contrária à Constituição (alínea a) do art.º 296.°) e à LQP (art.º 6.°, n.º 2),
pois estes normativos estabelecem o recurso preferencial às modalidades
regulares, sempre que estas garantam a obtenção de iguais ou melhores
resultados, avaliados estes do ponto de visto do Estado;
15.ª – Acresce que o quadro jurídico da operação de reprivatização assegurava em
abstracto e curou de assegurar em concreto uma posição jurídica e factualmente
mais vantajosa aos oferentes iniciais quando comparados com eventuais
concorrentes, em flagrante contradição com a garantia constitucional da
igualdade de tratamento, como também reconheceu a referida Comissão Parlamentar;
16.ª – Verifica-se, igualmente, incongruência entre a fundamentação e o conteúdo
do acto, pois o Governo invocou a necessidade de garantir a “estabilidade
accionista” mas essa não era, na verdade, uma sua autêntica e consistente
intenção, pois o conteúdo do acto nada se adequa à prossecução desse objectivo;
17.ª – Finalmente, a patente violação do dever de boa administração - que é uma
directa emanação do “princípio da prossecução do interesse público,
constitucionalmente consagrado” - constitui também fonte de responsabilidade
civil da Administração;
18.ª – Em matéria de actos jurídicos, o conceito de ilicitude a extrair da
interpretação do Dec-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem
necessariamente de ser um conceito alargado, face ao disposto no art.º 6.° desse
diploma, justificando-se a presunção de que os actos administrativos ilegais são
também actos ilícitos, podendo a presunção ser ilidida apenas se a ilegalidade
não gerar invalidade ou se a norma legal violada se orientar clara e
exclusivamente para a protecção do interesse geral, sem qualquer refracção nas
posições jurídicas dos particulares (direitos subjectivos, interesses legítimos,
interesses difusos ou expectativas jurídicas);
19.ª – Relativamente ao princípio da boa fé, na sua vertente de protecção da
confiança, é inquestionável que o princípio violado se destina à protecção da
esfera jurídica dos particulares, uma vez que a razão de ser do princípio em
causa é, precisamente, a de pôr os sujeitos a salvo de condutas lesivas dos seus
interesses e, em caso de violação, de lhes conferir meios para reagir
adequadamente em defesa desses mesmos interesses;
20.ª – O acto de privatização em crise, ao optar pela venda directa, ofende
direitos ou interesses legítimos consolidados durante o seu próprio
procedimento, quando a Administração foi reduzindo a sua discricionariedade;
21.ª – As regras sobre reprivatização não se destinam apenas a proteger o bem
comum, o interesse de todos os cidadãos. A sua observância é exigível em nome da
tutela dos interesses que já tenham tomado posições no âmbito de um concreto
processo de reprivatização. Para além disso, têm de respeitar-se os direitos já
constituídos, ao abrigo das fases anteriores ou de acordo conexos.
22.ª – A negação da tutela jurisdicional a estas situações subjectivas das
Recorrentes - que é o que a sentença do TAC na realidade faz - constitui, aliás,
uma violação do direito fundamental de tutela, uma interpretação
inconstitucional das regras sobre a privatização em geral e do D. em especial,
que, para os devidos efeitos, expressamente aqui se deixa arguida.
23.ª – Colocando-nos fora da perspectiva da responsabilidade pré‑contratual,
para analisarmos o problema na óptica dos vícios do acto (incluindo o que
decorre da violação da boa fé, ou da justiça ou da imparcialidade), e da sua
consequência necessária, a da ilegalidade/ilicitude do acto de reprivatização,
não há lugar a considerar a questão do dano negativo/dano positivo. Há já que
considerar, sim, se o acto de reprivatização provocou prejuízos e, em caso
afirmativo, reconhecer o direito à indemnização.
24.ª – Sempre que se aplique o regime do Dec.-Lei n.° 48 051, por outras
palavras, todos os prejuízos sofridos pelo lesado são indemnizáveis desde que
possam ser imputados ao facto lesivo nos termos da doutrina da causalidade
adequada;
25.ª – De qualquer forma, sempre se dirá que a ideia de limitar a
responsabilidade in contraendo ao chamado interesse negativo vem sendo
abandonada pela jurisprudência portuguesa e pela doutrina, maxime para o caso de
a conduta culposa consistir na violação do dever de conclusão do negócio, e que,
caso se responda afirmativamente ao quesito 143.°, como se impõe, o interesse
negativo acaba praticamente por coincidir com o interesse positivo, dada a
necessidade de indemnizar a “perda de oportunidade”.
26.ª – Ora ficou provado que, se o Estado tivesse realizado a última fase do
processo de reprivatização em conformidade com os compromissos assumidos e sem
infracção da Lei Quadro das Privatizações, a B., que encabeçava a corrida pelo
domínio do D., passaria a desfrutar de uma situação privilegiadíssima no plano
do controlo ou do co-controlo dessa instituição, em termos tais que a sua
participação de 25,2% seria de imediato vendável a um preço unitário superior a
2.800$00.
27.ª – Neste cenário, cada uma das acções valeriam, pois, mais de 2.800$00.
Acontece, porém, que dados os termos em que o Estado configurou a 4.ª fase, a B.
se viu forçada a não exercer as opções de compra e a vender as acções que
detinha a um preço de 2.800$00 (pois era seguro que a OPA não deixaria de ter
sucesso e que as acções depois da OPA passariam a valer muito menos do que
2.800$00).
28.ª – A existência de um prejuízo é indesmentível, pelo que o quesito 146.°
deve ser havido como provado;
29.ª – Além disso, face à prova produzida, tem de considerar-se como adquirido
ou pelo menos como muito provável que a B. teria chegado efectivamente ao
controlo do D. e implementado uma reestruturação desta instituição
incrementadora do respectivo valor (devendo alterar-se, em conformidade, as
respostas aos quesitos 152.°, 158.°, 172.°, 177.° e 178.°) e beneficiado da
notável evolução verificada no sector bancário depois de 1995.
30.ª – Conforme demonstrado no relatório do F. junto aos autos, o D., caso se
tivesse mantido independente e com uma equipa de gestão profissional, e tendo em
consideração o desenvolvimento verificado no sector bancário desde essa data,
teria hoje um valor, a preços de 1995, de cerca de 500 milhões de contos (cerca
de 4.500$00 por acção); ora as A/B., não fora o comportamento ilícito do Estado,
teriam podido chegar aos 50% do D. adquirindo as acções ao preço de
2.800$00/2.820$00 (ou eram, repete-se, pelo menos muito significativas as
probabilidades de que tal viesse a suceder), chamando-se a atenção para o facto
de o F. não considerar o valor das sinergias que decorreriam de uma ligação
entre o D. e o Grupo A..
31.ª – Se é indemnizável a perda de uma chance, entendida como um bem a se, com
muito mais fortes razões o será nos casos em que a mesma se repercute no valor
de um activo na titularidade do lesado (pois sendo a chance perdida um valor
conexo a um bem do lesado, ficam logo esvaziadas à partida quaisquer objecções
assentes no facto de a “chance” ser uma expectativa de facto e, como tal, não
autonomamente ressarcível);
32.ª – Não pode recusar-se a atendibilidade das chances na avaliação de
investimentos e designadamente, de empresas e de participações sociais, já que o
seu valor é precisamente função dos ganhos esperados, à luz dos diversos
cenários possíveis e das probabilidades respectivas.
33.ª – Como a reconstituição da situação hipotética em que as Autoras se
encontrariam, se não fosse a lesão, depende de muitos factores com uma
componente ineliminável de incerteza e de insegurança, o Tribunal deve proceder
à fixação da indemnização segundo um critério de equidade (ou remeter a
liquidação da mesma para execução da sentença, se não se sentir suficientemente
esclarecido sobre o que seriam os resultados de uma gestão do D. numa base stand
alone e sob o controlo das Autoras, ou melhor, sobre as diversas variáveis que a
propósito cobram relevo, e sobre qual o seu peso e impacto);
34.ª – Por mera cautela, sempre se dirá que o art.º 566.°, n.° 3, do C.Cv. é
aplicável aos próprios casos em que ao tribunal é impossível determinar se
existe um dano (e não apenas o seu montante);
35.ª – Entre o facto ilícito e os prejuízos sofridos pelas autoras intercede um
evidente nexo de causalidade e é também patente o carácter culposo do acto
praticado (sendo certo que a ilegalidade do acto administrativo dispensa o
requisito de culpa como um dos qualificativos necessários para efeitos de
responsabilidade);
36.ª – Não existem quaisquer vantagens de que as Autoras tenham beneficiado em
consequência do facto que determinou os prejuízos;
37.ª – Por Acórdão proferido em 3 de Abril de 1998, transitado em julgado, o
Supremo já decidiu que, para efeitos do art.º 7.° do Dec-Lei n.° 48 051, há que
atentar em que “o dano resulta sempre do acto ilícito, que não da negligência
processual do lesado não obstante pudesse ter evitado ou reduzido a extensão do
dano”, e que a “não utilização dos meios jurídicos aptos a evitar ou impedir o
agravamento dos danos decorrente do acto legal” relevará, havendo “negligência
processual do lesado”, em função da “aptidão/causalidade dos meios processuais”
ou “na medida em que o dano for agravado”, na determinação “do quantum
indemnizatório, em termos semelhantes ao que se dispõe no art.º 570.° do
C.Civil;
38.ª – Dadas as particularidades do acto administrativo constante do Dec.‑Lei
n.º 20-A/95, e a segura ou muito provável ineficiência dos meios processuais
abstractamente disponíveis para evitar ou reduzir os prejuízos, não é censurável
a não interposição de recurso daquele acto, acompanhado ou não de uma
providência cautelar de suspensão de eficácia;
39.ª – Não pode censurar-se às Autoras, de resto, nenhum comportamento positivo
ou negativo que tenha contribuído para a produção dos danos ou para o seu
agravamento;
40.ª – Se se admitisse, por hipótese, que a decisão administrativa de proceder à
última fase de reprivatização do D. se deveria considerar válida,
verificar-se-iam então os pressupostos da responsabilidade civil por factos
lícitos, nos termos do art.º 9.° do Dec.-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de
1967, por isso que aquela decisão foi fonte de prejuízos especiais e anormais
para as Autoras;
41.ª – Como não há nenhum preceito legal do qual decorra que a indemnização dos
danos decorrentes de actos ou actividades lícitas deve ser inferior à que
resulta dos princípios gerais da responsabilidade civil, todos os prejuízos
acima referidos deverão ser ressarcidos, sem qualquer excepção.
42.ª – A decisão do tribunal colectivo que considerou não provados os quesitos
143.°, 146.°, 152.°, 158.°, 172.°, 175.°, 177.° e 178.°, violou por errada
interpretação e aplicação o disposto no art.º 655.° do CPC;
43.ª – A sentença recorrida, por sua vez, violou, também por errada
interpretação e (des)aplicação, o disposto nos art.ºs 13.°, 22.°, 266.° e 268.°
da Constituição, nos art.ºs 2.°, 6.° e 9.° do Dec-Lei n.° 48 051, de 21 de
Novembro de 1967, nos art.ºs 6.°, 8.° e 13.°, n.° 1, da Lei n.° 11/90, de 5 de
Abril, nos art.ºs 4.°, 6.° e 124.°, n.° 2, alínea d), do Código do Procedimento
Administrativo, no art.º 514.° do CPC e nos art.ºs 227.° e 566.° do C. Cv.”.
Por sua vez, a entidade recorrida, nas suas contra-alegações, pugnou pela
manutenção da decisão recorrida, invocando: ausência de prejuízo das autoras; a
falta de verificação dos requisitos da responsabilidade civil do Estado –
citando designadamente um parecer do Prof. Gomes Canotilho segundo o qual “[t]em
de existir uma conexão de ilicitude entre a norma ou o princípio violado e a
posição juridicamente protegida do particular” e “[q]ualquer que seja a
formulação da teoria da protecção da norma e por mais abrangentes que sejam os
círculos dos interesses ou posições juridicamente protegidos, não se vislumbra
como é que as normas invocadas incluem no seu ‘fim de protecção’ o controle
accionista de uma sociedade financeira, legitimando a indemnização por perda da
oportunidade de obtenção desse controlo”; a inexistência de compromissos
assumidos pelo Estado com o “Grupo Português” e muito menos com as autoras, que
não se poderiam considerar suas sucessoras (atento até o facto de pretenderem
substitui-lo por um novo grupo que viabilizasse o seu pretendido domínio sobre o
D.); a corresponsabilização das próprias autoras no resultado; e a legalidade e
constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 20-A/95.
Por acórdão de 18 de Junho de 2003, a 1ª Subsecção da 1ª Secção do Supremo
Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso considerando,
designadamente:
- “a factualidade dada como provada não é valorizável em sede dos princípios da
boa fé e da protecção da confiança, não se pré-figurando a densidade factual
conducente à prova do incumprimento, por parte do Estado, dos deveres de conduta
exigíveis”;
- “no caso vertente, a existência, por parte das Recorrentes, de meras
expectativas de que a mencionada 4.ª fase viesse a decorrer em moldes que se
adequassem aos seus interesses não tem a consistência nem a dignidade jurídicas
para justificar, de per si, qualquer pretensão indemnizatória, não se deparando,
por isso, no caso em apreciação, com uma qualquer vinculatividade
jurídico-administrativa das referidas expectativas, tudo se reconduzindo a meras
expectativas fácticas, sendo que, como salienta De Cupis, estas não são
juridicamente tuteladas”;
- “‘o entendimento’ invocado pelas Recorrentes, se tivesse o sentido e alcance
que elas lhe atribuem, e já vimos que não tem, não deixaria de possibilitar o
equacionar da hipotética ilegalidade dos alegados ‘compromissos’ por parte do
Estado, na medida em que sempre se poderia pretender ver nos mesmos uma actuação
de favorecimento de um Grupo”;
- “a própria invocação de um hipotético comportamento contraditório da
Administração pressupõe, designadamente, que no momento em que se produza a
actuação tida por desconforme com um invocado comportamento anterior subsistam
as mesmas circunstâncias que ocorreram aquando do comportamento indicado como
vinculante, o que não sucederá se, entretanto, se alterar a situação fáctica”;
- “para a verificação do pressuposto atinente com a ilicitude, em sede de
responsabilidade civil extracontratual, não basta, sem mais, a ocorrência de uma
qualquer ilegalidade, antes se impondo que a ilegalidade consista na violação de
uma norma destinada a tutelar directamente direitos subjectivos ou outras
posições jurídicas subjectivas do Autor da acção (…) devendo, no fundo, existir
como que uma conexão de ilicitude entre a norma ou o princípio tido por violado
e a posição jurídica protegida do Particular”;
- [o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva] “não proclama
que os Particulares devam ter acesso à via indemnizatória quando, como no caso
em análise, a pretensão dos Recorrentes radique na violação de normas ou
princípios não destinados a tutelar as suas posições subjectivas, daí que o
Meritíssimo Sr. Juiz ‘a quo’ ao decidir como decidiu a questão agora em
apreciação, não tenha perfilhado uma interpretação inconstitucional das regras
sobre reprivatização indicadas pelos Recorrentes”;
- “não se verifica a apontada ‘inconstitucionalidade’ com referência à
modalidade de reprivatização (venda directa) escolhida pela Administração, sendo
que no conceito de venda directa acolhido na LQP se incluem os casos de venda de
acções pelo Estado ao oferente de uma oferta pública de aquisição e, isto,
fundamentalmente, devido ao facto de uma venda em OPA se consubstanciar numa
venda de acções a quem emitiu uma declaração negocial de compra de acções e a
dirigiu contemporaneamente a todos os titulares das acções em questão, destarte
não existindo inobservância da regra da taxatividade das modalidades de
reprivatização”;
- “não concorrem no caso em discussão os pressupostos da responsabilidade civil
extracontratual do Estado por actos lícitos”, designadamente “estar perante um
sacrifício especial e anormal não imposto à generalidade das pessoas e que não
seja inerente aos riscos da vida em sociedade”;
- “no caso em análise, não se pode concluir, à luz da matéria de facto dada como
provada, que o Réu Estado tenha infringido as já apontadas exigências da boa fé,
não tendo sido infringido o princípio da confiança, não sendo indemnizáveis as
suas meras expectativas também em sede da responsabilidade pré-contratual”.
2.Deste acórdão trouxeram “A. e B.” recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do
Tribunal Constitucional – LTC), para obter a apreciação da conformidade
constitucional de:
- “todas as normas do Dec.-Lei n.º 20-A/95, de 30 de Janeiro, em especial a do
seu art.º 1.º, n.º 2 (preceito em torno do qual todos os restantes – art.ºs
1.º-5.º - se organizam)”;
- das “normas constantes do art.º 6.º, n.º 3, do Dec.-Lei 321-A/90, dos art.ºs
6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs 1 e 2, da Lei-Quadro das Reprivatizações e dos
art.ºs 2.º e 3.º do Dec.-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, na exacta e
concreta interpretação perfilhada pelo Acórdão recorrendo (que não contempla a
protecção de situações jurídicas dignas de tutela)”.
Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal Constitucional foi
determinada a produção de alegações, vindo “A., S.G.P.S.”, e “B.” apresentar as
suas, com as seguintes conclusões:
«1.ª – Os preceitos constantes do Dec.-Lei n.º 20-A/95 consubstanciam normas
susceptíveis de controlo por corresponderem ao conceito funcional de norma,
desde há muito pacificamente sufragado pelo Tribunal Constitucional.
2.ª – O processo de reprivatização do D. foi escalonado em quatro fases,
obedecendo as primeiras três a um modelo de dispersão do capital social e de
garantia da estabilidade accionista e a quarta, em manifesta ruptura com as
restantes, a um modelo de estrita concentração sem qualquer garantia de
estabilidade.
3.ª – A modalidade de reprivatização prevista no n.º 2 do art.º 1.º do Dec.‑Lei
n.º 20-A/95 - justamente concernente à 4.ª fase - não constitui uma “venda
directa”, antes configura uma modalidade atípica e híbrida (uma espécie de
auto-vinculação pública do Estado a aceitar uma OPA lançada no mercado).
4.ª – Por ser uma modalidade sui generis e não prevista viola a regra da
taxatividade das modalidades de reprivatização, plasmada no art.º 296.º da
Constituição, no art.º 6.º da LQR e no art.º 13.º da LQR (na medida em que impõe
a primazia material do Dec.-Lei n.º 321/90 sobre o Dec.-Lei n.º 20‑A/95).
5.ª – O Dec.-Lei n.º 20-A/95 padece igualmente de inconstitucionalidade orgânica
e formal por violar a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia
da República, pois só o órgão parlamentar pode “criar” e “regular” modalidades
de reprivatização.
6.ª – Padece também de ilegalidade por violação de lei reforçada - mais
concretamente, do art.º 6.º da LQR -, na medida em que opta por uma modalidade
de reprivatização não prevenida no elenco legal.
7.ª – Por outro lado ainda, sofre de ilegalidade por violação de lei reforçada
(mais exactamente, do art.º 13.º da LQR), por isso que o Dec.-Lei n.º 20-A/95
elegeu uma modalidade não prefigurada (ou, no limite, não autorizada) no
decreto-lei que procedeu à transformação da empresa pública em sociedade anónima
(a saber, o Dec.-Lei n.º 321/90) - e isto, note-se, ainda que se tratasse de uma
autêntica “venda directa”.
8.ª – Mesmo que a modalidade adoptada fosse em abstracto permitida, a sua
adopção neste caso seria sempre contrária à Constituição (al. a) do art.º 296.º)
e à LQR (art.º 6.º, n.º 2), pois estes normativos estabelecem a regra do recurso
preferencial às modalidades regulares, sempre que estas garantam a obtenção de
iguais ou melhores resultados, avaliados estes do ponto de vista do Estado.
9.ª – A modalidade adoptada determina ainda uma crassa violação do princípio da
igualdade (art.º 13.º da CRP de 1976), em resultado dos especiais efeitos que a
aplicação do regime legal das OPA's, constante do Cód.MVM, tem sobre um processo
de privatização.
10.ª – A violação do princípio da igualdade traduziu-se (1) na possibilidade de
os oferentes determinarem e condicionarem o momento da reprivatização, a
modalidade adoptada e algumas das suas condições concretas; (2) na disposição de
um tempo não limitado para preparar a operação, enquanto que os seus
concorrentes dispuseram apenas de um prazo curto, pautado pelas conveniências
dos oferentes iniciais e (3) na garantia antecipada da preferência do Estado,
mesmo contra propostas concorrentes mais vantajosas do ponto de vista do
interesse público.
11.ª – O Estado sabia que, com a sua participação no processo de reprivatização
do D., a B. não prosseguia objectivos meramente financeiros e antes encarava a
compra de acções do D. como meio de implementar determinado programa, endereçado
à realização de certo objectivo - alcançar influência nos destinos do D. e
assegurar por essa via uma ligação entre o GRUPO A. e um grupo financeiro
(resposta ao quesito 12.º) - assim como sabia que esse objectivo só seria
alcançável se o processo de reprivatização do D. se orientasse por um modelo de
dispersão do capital social, com preferência dos accionistas.
12.ª – Foi o próprio Estado que, através de diligências insistentes, sugeriu à
B. aquele programa (resposta ao quesito 9.º), cuja realização garantiu ser
possível através das prestações a que se obrigou.
13.ª – Por outro lado, os contactos entre o Estado e o GRUPO PORTUGUÊS
desembocaram, sem dúvida, na conclusão de “acordos simples”, de entendimentos,
quando não até na celebração de um contrato verdadeiro e próprio.
14.ª – O Estado e o GRUPO PORTUGUÊS (B. incluída) entraram numa relação
particular, por via da qual aquele pretendeu influenciar as decisões e os planos
de vida dos respectivos membros através de “declarações comprometedoras”
especificamente endereçadas ao mesmo GRUPO PORTUGUÊS, induzindo-os não só a não
alienarem das suas acções do D. como a reforçarem mesmo as suas participações no
Banco, através da “promessa” de que no processo de privatização do D. seria
sempre dada preferência aos accionistas e se prosseguiria um objecto de
dispersão do capital social.
15.ª – A mesma mensagem foi, de resto, “irradiada” por outros actos (incluindo
actos legislativos) e declarações que, não tendo o GRUPO PORTUGUÊS como
destinatário particular, não deixaram, obviamente, pelo seu carácter público, de
chegar ao conhecimento da B. e dos demais membros do GRUPO PORTUGUÊS e de serem
por estes valorados como confirmação e validação plenas das suas expectativas.
16.ª – Não pode seriamente questionar-se que a conduta do Estado tinha
objectivamente o significado de uma tomada de posição vinculante em relação aos
moldes da reprivatização do D., e que sobre ele pesavam particulares deveres de
cautela e de protecção, designadamente deveres de lealdade, que o obrigavam a
não frustrar os objectivos das aquisições prosseguidos pela B., a não diminuir
as vantagens alcançadas por esta, nem a obstar à obtenção daquelas a que ela
podia razoavelmente aspirar.
17.ª – Isso mesmo decorria do conteúdo dos três diplomas legislativos que
conformaram as três primeiras fases de reprivatização do D., em termos tais, que
não era razoável admitir qualquer inflexão da estratégia prosseguida.
18.ª – Todavia, os termos em que o Estado conformou a última fase do processo de
reprivatização do D. consubstanciam uma violação patente, grosseira e
injustificada dos seus compromissos e da confiança e dos deveres de cuidado
acima referida, como aliás foi reconhecido pela Comissão Parlamentar que
investigou exaustivamente o dossier.
19.ª – O princípio da boa fé, na sua vertente de protecção da confiança,
enquanto decorrência do princípio do Estado de Direito, constitui um princípio
constitucional que vincula todas as entidades públicas, designadamente o
legislador e o administrador (art.º 2.º e art.º 266.º, n.º 2, da CRP de 1976)
20.ª – O Dec.-Lei n.º 20-A/95 não só ofende o princípio da boa fé como
identicamente infringe os princípios da proporcionalidade e da protecção de
direitos e interesses legítimos.
21.ª – Em matéria de actos jurídicos, o conceito de ilicitude a extrair da
interpretação do Dec.‑Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, tem
necessariamente de ser um conceito alargado, face ao disposto no art.º 6.º desse
diploma, justificando-se a presunção de que os actos administrativos ilegais são
também actos ilícitos, podendo a presunção ser ilidida apenas se a ilegalidade
não gerar invalidade ou se a norma legal violada se orientar clara e
exclusivamente para a protecção do interesse geral, sem qualquer refracção nas
posições jurídicas dos particulares (direitos subjectivos, interesses legítimos,
interesses difusos ou expectativas jurídicas);
22.ª – Relativamente ao princípio da boa fé, na sua vertente de protecção da
confiança, é inquestionável que o princípio violado se destina à protecção da
esfera jurídica dos particulares, uma vez que a razão de ser do princípio em
causa é, precisamente, a de pôr os sujeitos a salvo de condutas lesivas dos seus
interesses e, em caso de violação, de lhes conferir meios para reagir
adequadamente em defesa desses mesmos interesses.
23.ª – O mesmo vale, quiçá por maioria de razão, para o princípio da igualdade
de tratamento e pode ser estendido ao critério constitucional de opção
legislativa pelas chamadas “modalidades preferenciais” ou outras regras
constitucionais e legais relativas às reprivatizações.
24.ª – As regras sobre reprivatização não se destinam apenas a proteger o bem
comum, o interesse de todos os cidadãos. A sua observância é exigível em nome da
tutela dos interessados que já tenham tomado posições no âmbito de um concreto
processo de reprivatização. Para além disso, têm de respeitar‑se os direitos já
constituídos, ao abrigo das fases anteriores ou de acordos conexos.
25.ª – A negação da tutela jurisdicional a estas situações subjectivas das
Recorrentes constitui, aliás, uma violação do direito fundamental de tutela, uma
interpretação inconstitucional das regras sobre a privatização em geral e do D.
em especial, que, para os devidos efeitos, expressamente aqui se deixa arguida.»
Por sua vez, o Ministério Público, em representação do Estado, encerrou assim as
suas contra-alegações:
«1.º – A norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 20-A/95, ao instituir
como forma de reprivatização do D. a “venda directa”, aí regulamentada, não
viola directamente o artigo 296.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, não sendo,
pois, orgânica ou formalmente inconstitucional.
2.º – Não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, sindicável pelo
Tribunal Constitucional, a que se traduz em pretender aferir, sob o prisma da
tutela de boa fé, da actuação global dos órgãos do Estado que intervieram na
privatização do D., em termos de determinar – em concretização de tal cláusula
geral – se tal actuação, concreta e casuística, lesou ou não expectativas
fundadas da entidade recorrente.
3.º – Não é identicamente sindicável, no âmbito do controlo normativo da
constitucionalidade, a questão que se traduz em saber se a opção do Estado pela
peculiar modalidade de “venda directa”, regulada naquele diploma legal, em
detrimento das outras modalidades possíveis de reprivatização, garante ou não a
obtenção de iguais ou melhores resultados, avaliados do ponto de vista do
interesse do Estado.
4.º – Não implica violação relevante do princípio da “igualdade de
oportunidades” de entidades privadas no processo de reprivatização a
possibilidade – constitucionalmente tutelada – de o legislador poder optar por
modalidades diversas do concurso público, comportando, em maior ou menor grau,
uma escolha relativamente discricionária da entidade a que irá ser adjudicado o
capital a alienar com a reprivatização.
5.º – A norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 20-A/95, ao regular a
“venda directa”, aí prevista, através de – no dizer do recorrente – uma “espécie
de prévia vinculação pública do Estado a aceitar uma OPA lançada no mercado”,
não padece de ilegalidade por violação da lei com valor reforçado, já que o
artigo 8.º da Lei Quadro das Privatizações assenta numa definição
suficientemente ampla do conceito legal de “venda directa”, de modo a abarcar
situações diversas da mera – e discricionária – adjudicação directa e imediata
do capital a uma entidade pré-determinada.
6.º – Não havendo qualquer precedência hierárquica entre o Decreto-Lei n.º
321/90 e o Decreto-Lei n.º 20-A/95, carece de fundamento o alegado “valor
preclusivo” do primeiro de tais diplomas legais sobre o segundo, no que toca às
modalidades possíveis de reprivatização a adoptar nas fases subsequentes.
7.º – Não viola o princípio constitucional da responsabilidade de entidades
públicas, consagrado no artigo 22.º da Constituição, a interpretação normativa
que – cindindo os conceitos de “ilegalidade” e “ilicitude” do acto
administrativo – exige que os direitos e interesses do particular, pretensamente
lesados, se situem no círculo de interesses tutelados pela disposição legal
infringida, aplicando e adaptando ao domínio do direito administrativo a teoria
do “fim protegido”, consagrada no artigo 483.º do Código Civil.
8.º – Incumbe aos tribunais, na interpretação e aplicação do direito
infraconstitucional, identificar o bem jurídico protegido pela disposição legal
desrespeitada pela conduta da Administração, de modo a determinar se certo vício
do acto deve implicar, no circunstancialismo do caso concreto, ilicitude
material, traduzida na violação de direitos ou interesses contidos no horizonte
de responsabilização da norma.
9.º – Face ao elenco dos interesses tutelados com as reprivatizações – definidos
em função dos “objectivos essenciais”, tipificados no artigo 3.º da Lei n.º
11/90 – é correcta e adequada a valoração realizada pelo acórdão recorrido, em
termos de excluir de tal círculo o interesse na obtenção de um controlo
accionista da sociedade financeira, justificador de pretensão indemnizatória
pelos “lucros cessantes”, decorrentes de perda de oportunidade na obtenção desse
controlo.»
Entretanto vieram “a. S.G.P.S., S.A.”, e “C., S.A.”, pedir a junção aos autos de
pareceres jurídicos que, por extemporâneos, tinham sido recusados no Supremo
Tribunal Administrativo, o que foi deferido por despacho do relator no Tribunal
Constitucional.
3.Em 15 de Julho de 2004, o relator no Tribunal Constitucional proferiu o
seguinte despacho, prevenindo a “eventual delimitação do objecto do presente
recurso de constitucionalidade” de acordo com as questões prévias suscitadas
pelo Ministério Público:
«1. A fls. 3530 e segs. dos presentes autos, A. e B. vieram interpor recurso
para o Tribunal Constitucional do acórdão de 18 de Junho de 2003, da 1.ª
Subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação de “todas as normas
do Dec.-Lei n.º 20-A/95, de 30 de Janeiro, em especial a do seu art. 1.º, n.º 2
(preceito em torno do qual todos os restantes – arts. 1.º a 5.º – se
organizam)”, bem como “das normas constantes do art. 6.º, n.º 3, do Dec.-Lei n.º
321-A/90, dos arts. 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs 1 e 2, da Lei-Quadro das
Reprivatizações e dos arts. 2.º e 3.º do Dec.-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro
de 1967”, às primeiras imputando várias inconstitucionalidades e ilegalidades
(por violação de lei reforçada), e às últimas imputando “unicamente uma
inconstitucionalidade, a saber, a violação do direito à tutela judicial
efectiva”.
2. Notificadas para apresentarem as suas alegações, as recorrentes vieram
expressamente “desenvolver um esforço de ‘redução da complexidade’”, concluindo
a pedir que fossem “consideradas inconstitucionais e ilegais (violação de lei
reforçada)” “as normas constantes do Dec.-Lei n.º 20-A/95”, e “considerada
inconstitucional” “a interpretação perfilhada pelo acórdão sob recurso dos arts.
2.º e 3.º do Dec.-Lei n.º 48051”.
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público veio notar que as recorrentes
haviam abandonado parte das questões que tinham enunciado no requerimento de
interposição de recurso (as referentes ao artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º
321-A/90, e aos artigos 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 11/90),
e que o acórdão recorrido não havia aplicado a interpretação normativa
contestada pelas recorrentes: a de que a modalidade de reprivatização do D. (D.)
adoptada no Decreto‑Lei n.º 321-A/90 “não constitui uma ‘venda directa’, mas
antes uma ‘modalidade atípica e híbrida’ que violaria a ‘regra da taxatividade’
das modalidades de reprivatização, plasmada no artigo 296.º da Constituição da
República Portuguesa”, concluindo que
“não sendo o referido conceito de ‘venda directa’ um conceito constitucional, já
que o artigo 296.º se lhe não refere expressamente – estando a sua
admissibilidade apenas coberta pela previsão de excepções possíveis à regra do
concurso, proclamada pela alínea a) do n.º 1 do tal preceito constitucional –,
entendemos que não compete ao Tribunal Constitucional, no âmbito de um recurso
de constitucionalidade, sindicar da correcção e adequação substantivas e
materiais de interpretação do referido conceito.”
3. A acompanhar-se o argumento transcrito, conclui-se que, a mais de terem de
ficar de fora da apreciação deste Tribunal as normas anteriormente impugnadas do
Decreto-Lei n.º 321-A/90 e da Lei n.º 11/90, mas abandonadas nas alegações do
recurso de constitucionalidade, fica igualmente subtraída ao controlo de
constitucionalidade a qualificação da operação de reprivatização operada pelo
Decreto-Lei n.º 20-A/95, adoptada pelo Tribunal Administrativo do Círculo do
Porto e mantida pelo Supremo Tribunal Administrativo – ficando,
consequentemente, prejudicadas as consequências que daí as recorrentes faziam
derivar, em termos de desconformidade com uma “regra da taxatividade das
modalidades de reprivatização, plasmada no art. 296.º da Constituição [e] no
art. 6.º da LQR [Lei n.º 11/90]”, em termos de inconstitucionalidade orgânica e
formal (“por violar a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia
da República, pois só o órgão parlamentar pode ‘criar’ e ‘regular’ modalidades
de reprivatização”), e em termos de ilegalidade por violação de lei reforçada
(“mais concretamente, do art. 6.º da LQR – na medida em que opta por uma
modalidade de reprivatização não prevenida no elenco legal”).
Por outro lado, nota igualmente o Ministério Público que são ainda insindicáveis
no presente recurso de constitucionalidade:
- a suposta violação do princípio do recurso preferencial às modalidades‑regra
de reprivatização, enunciadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 296.º da
Constituição, por não caber ao Tribunal Constitucional “determinar, no plano
prático e económico, que modalidade de reprivatização seria, em concreto, mais
adequada e eficaz, sendo, naturalmente, o juízo formulado pelo legislador
infraconstitucional, no uso da sua discricionaridade legislativa legítima,
insindicável no plano do controlo normativo da constitucionalidade”;
- a suposta violação dos princípios da boa fé e da confiança na actuação dos
órgãos do Estado no processo e reprivatização do D., desde logo, porque tal
matéria está «indissociavelmente conexionada com a própria matéria de facto tida
por relevante e decisiva, assentando a conclusão do Supremo Tribunal
Administrativo de que não houve frustração ilegítima de expectativas fundadas na
“factualidade dada como provada”». E também, em segundo lugar, por não se
afigurar «admissível sindicar, num recurso de constitucionalidade, o
preenchimento e densificação de cláusulas gerais de “segundo grau”, como o abuso
do direito ou a boa fé, já que o juízo aplicativo do critério sindicante de tais
cláusulas, concretizado numa específica decisão judicial em função de um
peculiar e particular conjunto concreto de circunstância, é destituído de
sentido “normativo”», relevando antes da decisão concreta do caso, “como se
decidiu nos Acórdãos n.ºs 655/99 e 246/2000” (publicados, respectivamente, no
Diário da República, II série, de 16 de Março de 2000 e de 3 de Novembro de
2000).
4. Restarão, assim, para conhecer no presente recurso, as questões da eventual
desconformidade das regras do Decreto-Lei n.º 20-A/95 com as do Decreto-Lei n.º
321/90 (e, por essa via, com as do artigo 13.º da Lei n.º 11/90), que poderiam
originar ilegalidade, e com o princípio da igualdade (que poderiam gerar
inconstitucionalidade), bem como a questão da eventual desconformidade das
regras impugnadas do Decreto-Lei n.º 48051, «com o princípio da
“responsabilidade das entidades públicas”, afirmado pelo artigo 22.º da
Constituição», já que, como também notou o Ministério Público neste Tribunal, “a
questão suscitada pela[s] recorrente[s] não se situa no domínio procedimental,
mas no substantivo, ligando-se à definição dos pressupostos da responsabilidade
civil do Estado” e não propriamente à tutela judicial efectiva que as
recorrentes invocam.
5. Notifique as recorrentes e o recorrido desta eventual delimitação do objecto
do presente recurso de constitucionalidade, a fim de, querendo, sobre ela se
pronunciarem, no prazo de 10 (dez) dias.»
A este despacho responderam “A., S.G.P.S. e B.”, dizendo, em síntese:
- não terem “abandonado a questão respeitante à constitucionalidade do artigo
6.º, n.º 3, do Dec.-Lei n.º 321-A/90, dos artigos 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs
1 e 2, da Lei Quadro das Reprivatizações” como se comprovaria pelas “páginas 90
e segs. das alegações e [pel]o ponto 24.º das respectivas conclusões”; embora
reconheçam que tais preceitos não eram aí individualizados, entendem, porém, que
“esses preceitos se encontravam rigorosamente delimitados pelo requerimento de
interposição do recurso, e que a interpretação dos mesmos constante do acórdão
recorrido é aí expressamente enunciada”;
- ser “inequívoco que cabe na competência do Tribunal Constitucional verificar
se a modalidade concreta de reprivatização inscrita no Dec.-Lei n.º 20-A/95
respeitou ou não aquele princípio [o da taxatividade das formas de
reprivatização] – o que só poderá fazer após ter analisado a correspondência da
operação ali prevista com alguma das modalidades previstas na Lei-Quadro das
Reprivatizações”;
- que, “[s]e não restam dúvidas que o juízo formulado pelo legislador é
susceptível de controlo por parte do Tribunal Constitucional no que toca à
constitucionalidade dos preceitos em causa (os constantes do Dec.-Lei n.º
20‑A/95), muito menos restarão sobre a possibilidade de o Tribunal apreciar a
legalidade desses preceitos em face do art.º 6.º da Lei-Quadro das
Reprivatizações”, com base no argumento de que “a ‘liberdade’ de que o
legislador infraconstitucional dispõe na formulação daquele juízo (na
possibilidade de adopção de uma outra modalidade de reprivatização que não as
modalidades preferenciais aí previstas) é muito menor quando o legislador está
vinculado não só à Constituição, como também a uma lei de valor reforçado, como
é o caso das Leis de Enquadramento, ou Leis-Quadro, como aqui sucede com a
Lei-Quadro das Reprivatizações”;
- que a “inconstitucionalidade normativa (…) prende-se com o facto de saber se
as normas constantes do Dec.-Lei n.º 20-A/95, nomeadamente o seu art.º 1.º, n.º
2, são, ou não, compatíveis com os princípios da boa fé (…) e da protecção da
confiança – está-se aqui, assim, perante a questão de uma inconstitucionalidade
normativa, o domínio por excelência de atribuições do Tribunal Constitucional”.
4.Considerando a flutuação registada na identificação das entidades recorrentes,
foi proferido novo despacho do relator, com o seguinte teor:
«Considerando que a acção de que emergem as questões de constitucionalidade
submetidas à apreciação deste Tribunal foi intentada pelas sociedades então
designadas “A., S.G.P.S., S.A.”, e “C., S.A.” (fls. 1 dos autos), sendo que a
primeira destas sociedades era anteriormente designada “B. – S.G.P.S., S.A.” e
era integralmente detida pela segunda (como resulta da especificação);
Considerando que, no requerimento de recurso interposto para o Tribunal
Constitucional em 4 de Julho de 2003 (fls. 3530 dos autos), as recorrentes
aparecem identificadas apenas como “A. e B.” – o que ainda poderia entender-se
como identificação das duas referidas sociedades autoras, as quais no posterior
pedido de junção de pareceres ao recurso de constitucionalidade (fls. 3661) se
identificaram também como na petição inicial (“A., S.G.P.S., S.A., e C., S.A..”)
–, mas que, posteriormente, nas alegações apresentadas e na resposta ao despacho
do relator (fls. 3538 e 3841, respectivamente) no Tribunal Constitucional, as
recorrentes vêm, diversamente, identificadas como “A., S.G.P.S. e B.” (ou seja,
duas designações de uma mesma entidade);
Notifique as recorrentes, “A. e B.” (ou “C., S.A.” e “A., S.G.P.S., S.A.”),
para, no prazo de 10 (dez) dias, virem aos autos esclarecer quem é recorrente no
presente recurso de constitucionalidade e ratificar, se for caso disso, as peças
processuais apresentadas.»
As recorrentes vieram esclarecer que “a acção de que emergem as questões de
constitucionalidade submetidas à apreciação deste Tribunal foi intentada pela A.
SGPS, S.A., e E. SGPS, S.A., então designadas, respectivamente, C., S.A., e A.
S.G.P.S., S.A.”, ficando a dever-se a designação B. a que, à “data dos factos
que integram a causa de pedir, a A., S.G.P.S., S.A. girava sob a firma B.
S.G.P.S., S.A.”, “daí que, frequentemente, as partes e o próprio tribunal de 1.ª
instância utilizem a designação B. para se lhe referirem”, pelo que as
“designações de A. e B. usadas no requerimento de recurso referem-se a primeira
à A. SGPS, S.A., e a segunda à E. SGPS, S.A.”, ratificando-se, em nome destas,
as peças processuais apresentadas.
Cumpre agora apreciar e decidir, começando pela delimitação do objecto do
recurso.
II. Fundamentos
A) Questões prévias
5.Como se referiu, o Ministério Público suscitou questões prévias ao
conhecimento das questões de constitucionalidade, quanto às normas dos artigos
6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 321-A/90, e 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs 1 e 2,
da Lei Quadro das Privatizações (Lei n.º 11/90, de 5 de Abril), afirmando que
tais normas não foram impugnadas nas alegações do recurso de
constitucionalidade, ao que as recorrentes responderam invocando o que tinham
escrito a págs. 90 e segs. das suas alegações e na conclusão 24.º, esta última
acima transcrita e com o seguinte teor:
“As regras sobre reprivatização não se destinam apenas a proteger o bem comum, o
interesse de todos os cidadãos. A sua observância é exigível em nome da tutela
dos interessados que já tenham tomado posições no âmbito de um concreto processo
de reprivatização. Para além disso, têm de respeitar-se os direitos já
constituídos, ao abrigo das fases anteriores ou de acordos conexos”.
Como, porém, facilmente se compreende – e resulta da consulta do que nas
referidas páginas das alegações se escreve, sob a epígrafe “O princípio da
igualdade, o princípio da boa fé, o critério das modalidades preferenciais, as
exigências do art.º 296.º da CRP de 1976 e as normas da LQR como disposições
destinadas a proteger interesses alheios para efeitos do art.º 2.º do Dec.-Lei
n.º 48 051” –, a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada
com estas alegações é distinta da questão da conformidade constitucional das
normas do artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 321‑A/90 (“As segunda e terceira
fases serão ulteriormente estabelecidas mediante diplomas próprios, em condições
e segundo qualquer das modalidades admitidas pela Lei n.º 11/90, de 5 de Abril”)
e dos artigos 6.º, n.º 1 (“A reprivatização da titularidade realizar-se-á,
alternativa ou cumulativamente, pelos seguintes processos: a) alienação das
acções representativas do capital social; b) aumento do capital social”) e n.º 2
(“Os processos previstos no número anterior realizar-se-ão, em regra e
preferencialmente, através de concurso público, oferta na bolsa de valores ou
subscrição pública.”), e 13.º, n.º 1 (“O decreto-lei referido no n.º 1 do artigo
4.º aprovará o processo, as modalidades de cada operação de reprivatização,
designadamente os fundamentos da adopção das modalidades de negociação previstos
nos n.ºs 3 e 4 do artigo 6.º, as condições especiais de aquisição de acções e o
período de indisponibilidade a que se referem os artigos 11.º, n.º 1, e 12.º,
n.º 2.”) e n.º 2 da Lei n.º 11/90 (“Nas reprivatizações realizadas através de
concurso público, oferta na bolsa de valores ou subscrição pública, nenhuma
entidade singular ou colectiva poderá adquirir ou subscrever mais do que uma
determinada percentagem do capital a reprivatizar, a definir também no diploma a
que se refere o n.º 1 do artigo 4.º, sob pena, consoante for determinado, de
venda coerciva das acções que excedam tal limite, perda do direito de voto
conferido por essas acções, ou ainda de nulidade de tais aquisições ou
subscrições nos termos que forem determinados.”).
Na verdade, o que as recorrentes pretendem não é um confronto do regime em geral
previsto nestas normas com as exigências constitucionais, em termos de se
concluir pela eventual desconformidade desse regime, mas antes o confronto da
situação concreta dos autos com tais normas, em termos de se concluir pela
eventual desconformidade dos factos ocorridos com um tal regime legal. Em suma:
o que está em causa não é a eventual inconstitucionalidade das normas dos
artigos 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 321-A/90, e 6.º, n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs
1 e 2, da Lei n.º 11/90. É antes, nos próprios termos do requerimento de
interposição do recurso, “a interpretação concreta dessas normas [que] não
reconhece, nem tutela as posições jurídicas subjectivas das Recorrentes
constituídas no procedimento, isto é, as posições subjectivas criadas e
sedimentadas pela ‘auto-vinculação da Administração Pública’ ao longo das várias
fases do processo de reprivatização e pela expectativa de que na última fase da
reprivatização seriam respeitadas as regras legais aplicadas” (itálico aditado).
Ou seja: o que está em causa não são estas normas como objecto de controlo de
constitucionalidade, mas sim como parâmetro da situação ou do resultado cujo
controlo é requerido. Essa situação ou resultado concretos, insindicáveis por
este Tribunal em si mesmos, são, porém, recondutíveis também a outros dos
problemas de que adiante se cuidará: o da aferição das normas do Decreto-Lei n.º
20-A/95 e o da apreciação das normas dos artigos 2.º, 3.º e 6.º do Decreto-Lei
n.º 48 051, na medida em que não permitam tutelar as expectativas de um certo
núcleo de accionistas do D.. Quer isto dizer que, só por si, um afastamento
daquelas outras normas do círculo das que irão ser sujeitas ao controle de
constitucionalidade em nada estreita as questões que as recorrentes dirigiram a
este Tribunal, uma vez que estas últimas serão objecto de apreciação e decisão,
a propósito embora de outras normas.
Assim, as normas dos artigos 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 321-A/90, e 6.º,
n.ºs 1 e 2, e 13.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 11/90 não serão objecto de
fiscalização no presente recurso por este Tribunal, não por não terem sido
mencionadas nas alegações de recurso (como não foram), mas porque a questão de
constitucionalidade para que são relevantes supõe que tais normas sejam
convocadas como argumentos da questão, não como objecto de apreciação.
Embora restringido o objecto do recurso, em termos de número de normas a
apreciar, não há encurtamento das questões de constitucionalidade a decidir.
Pelo contrário: como referiu o Ministério Público nas suas contra-alegações e se
adiantou no despacho de 15 de Julho de 2004, a questão ligada pelas recorrentes
à tutela judicial efectiva transcende essa dimensão apenas procedimental,
situando-se no plano substantivo, ligado à definição dos pressupostos da
responsabilidade civil do Estado.
6.Entendeu, também, o Ministério Público que “não compete ao Tribunal
Constitucional, no âmbito do recurso de constitucionalidade, sindicar da
correcção e adequação substantivas e materiais da interpretação normativa” do
conceito de “venda directa”, uma vez que o artigo 296.º da Constituição
“claramente permite outras modalidades, para além do ‘normal’ e ‘preferencial’
concurso público, oferta na bolsa ou subscrição pública”, não se referindo
expressamente à venda directa. Em consequência, ficaria prejudicado o
conhecimento da argumentação das recorrentes quanto à violação do princípio da
taxatividade das formas de reprivatização, decorrente da desconformidade da
modalidade de venda prevista no Decreto-Lei n.º 20-A/95 com o tipo,
constitucionalmente omisso, de venda directa.
Responderam as recorrentes “que se é certo que o conceito de venda directa não
se encontra previsto no art.º 296.º da C.R.P., não o é menos que ele consta
expressamente do art.º 6.º, n.º 3, da Lei-Quadro das Reprivatizações, pelo que o
preenchimento e interpretação deste conceito está claramente dentro das
competências jurisdicionais do Tribunal Constitucional.”
Afigura-se que recorrido e recorrentes têm ambos razão, reportando-se a recursos
distintos.
A inexistência de um conceito constitucional, expresso ou implícito, de “venda
directa” impede que, no quadro de um recurso de constitucionalidade, o Tribunal
Constitucional censure, em termos de constitucionalidade, a qualificação operada
pelas instâncias – e pelo legislador – no sentido de considerar “venda directa”
a modalidade de reprivatização do D. adoptada no Decreto-Lei n.º 20-A/95. Mas a
sua definição no artigo 8.º - e não 6.º, n.º 3 – da Lei n.º 11/90 permite que
essa qualificação seja aferida num recurso de legalidade. Tendo este sido
interposto em paralelo, e sendo a Lei-Quadro das Reprivatizações uma lei com
valor reforçado, caberá ao Tribunal Constitucional sindicar a correspondência da
modalidade de venda prevista no Decreto-Lei n.º 20-A/95 ao parâmetro constituído
pelo artigo 8.º daquela lei, que concretiza a modalidade de venda directa a que
alude a alínea c) do n.º 3 do seu artigo 6.º.
Que dessa eventual incompatibilidade da modalidade de venda directa prevista no
Decreto-Lei n.º 20-A/95 com o tipo de venda directa previsto no artigo 8.º da
Lei n.º 11/90 – e portanto, de uma sua eventual ilegalidade por violação de lei
com valor reforçado – possa decorrer, em consequência, uma questão de
constitucionalidade orgânica e formal, é coisa diversa, que só terá de ser
ponderada na eventualidade de vir a ser esse, efectivamente, o juízo do
Tribunal.
7.Defendeu, ainda, o Ministério Público que “não compete a este Tribunal
Constitucional determinar, no plano prático e económico, que modalidade de
reprivatização seria, em concreto, mais adequada e eficaz, sendo, naturalmente,
o juízo formulado pelo legislador infraconstitucional, no exercício da sua
discricionariedade legislativa legítima, insindicável no plano do controle
normativo da constitucionalidade” (itálico aditado). Responderam as recorrentes
que a violação do princípio constitucional do recurso preferencial às
modalidades-regra de privatização, constante do n.º 2 do artigo 296.º da
Constituição, tal como a violação do princípio legal do recurso preferencial às
modalidades-regra de privatização, constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º
11/90, tem de ser sindicável pelo Tribunal Constitucional já que só este “poderá
apurar se foi ou não no âmbito da margem legítima de descricionariedade que o
legislador infraconstitucional formulou o seu juízo”.
De novo se afigura que recorrido e recorrentes têm ambos razão, porque o que
ambos afirmam se não contradiz.
O Tribunal Constitucional deve poder avaliar se é, pelo menos, plausível (ou se
não é manifestamente inexistente) que “o interesse nacional ou a estratégia
definida para o sector” exijam o afastamento do recurso preferencial às
modalidades-regra de privatização, ou se “a situação económica ou financeira da
empresa o recomend[a]”, ou se tal afastamento implicou uma violação dos limites
da discricionariedade consentida ao legislador. Mas parece igualmente claro que
não cabe a este Tribunal sindicar especificamente o tipo de modalidade de
reprivatização escolhido pelo legislador. A divergência entre recorrido e
recorrente é, pois, puramente de grau: as recorrentes têm razão ao pretender que
o Tribunal Constitucional verifique os limites da discricionariedade do
legislador; o recorrido tem razão a notar que não cabe ao Tribunal
Constitucional ir mais além e sindicar pela positiva a própria modalidade de
privatização escolhida.
8.Resta a invocação, pelo Ministério Público, da impossibilidade de o Tribunal
Constitucional apreciar uma suposta violação dos princípios da boa fé e da
confiança na actuação dos órgãos do Estado no processo de reprivatização do D..
Ora, enquanto essa actuação concreta dos órgãos do Estado se não traduza em
normas (legais) trazidas à apreciação deste Tribunal, é evidente a razão do
Ministério Público, face à natureza, de controlo estritamente normativo, das
competências do Tribunal Constitucional em sede de recurso de
constitucionalidade. Discordando, as recorrentes circunscrevem a actuação dos
órgãos do Estado que pretendem sindicar à emissão das “normas constantes do
Dec.-Lei n.º 20-A/95, nomeadamente o seu art. 1.º, n.º 2”, por confronto com os
princípios da boa fé e da confiança, no fundo indo ao encontro da posição do
Ministério Público. Reconhecem, aliás, que o princípio da boa fé – e tal vale
também para o princípio da confiança – constitui, no caso sub iudicio, um
parâmetro de controlo apenas de normas e não o seu objecto, ou um parâmetro de
controlo de toda uma concreta actuação negocial, administrativa, ou política
(lato sensu), que não cabe a este Tribunal apreciar.
Isto acertado, pode então passar-se ao conhecimento do objecto do recurso.
B) Questões de constitucionalidade
9.As primeiras questões a resolver prendem-se com a modalidade de “venda
directa” prevista no Decreto-Lei n.º 20-A/95. Afastada a questão de
constitucionalidade decorrente da desconformidade com um conceito constitucional
de “venda directa” (por inexistência deste), subsistem outras questões, que se
podem enumerar deste modo:
a) eventual desconformidade da modalidade de reprivatização prevista nesse
diploma com o conceito de “venda directa” constante da Lei n.º 11/90;
b) eventual desconformidade dessa modalidade de venda directa com as
circunstâncias tipificadas na Lei n.º 11/90 para afastar o recurso preferencial
às modalidades-regra de reprivatização;
c) eventual desconformidade dessa modalidade de privatização com o anterior
modelo constante do Decreto-Lei n.º 321-A/90;
d) eventual desconformidade dessa modalidade de privatização com o princípio da
igualdade de oportunidades;
e) eventual desconformidade dessa modalidade de venda directa com os princípios
da confiança e da boa fé.
Vejamos então.
10.O artigo 8.º da Lei n.º 11/90 dispõe que “[a] venda directa de capital da
empresa consiste na adjudicação sem concurso a um ou mais adquirentes do capital
a alienar”. Do Decreto-Lei n.º 20-A/95 e do respectivo caderno de encargos
resultou a venda de 26 830 691 acções detidas pelo Estado, sem concurso, às
entidades que tinham lançado uma oferta pública de aquisição sobre a totalidade
do capital social do D..
Ora, é certo que não compete a este Tribunal apreciar se o processo de alienação
seguido foi, ou não, o melhor, designadamente, do ponto de vista do interesse
público e, também, do da protecção dos interesses de outros eventuais
adquirentes, ou, mesmo, da interpretação (designadamente histórica) da “vontade
do legislador”. Cabe-lhe apenas apurar se esse processo podia ou não
enquadrar-se ainda nas modalidades de privatização legalmente previstas. Podendo
admitir-se que a alienação numa oferta pública de aquisição não corresponderá ao
sentido mais natural (ou, mesmo – poderá conjecturar-se – ao sentido querido
pelo legislador histórico) a atribuir a “venda directa”, não se detectam, porém,
argumentos que imponham que o Tribunal Constitucional, face àquele conceito e às
características da 4.ª fase do processo de reprivatização do D., ponha em causa
a qualificação operada (implicitamente) pelo legislador e (de modo expresso)
pelas instâncias, no sentido de que esta modalidade de venda realmente adoptada
caberia ainda nos sentidos possíveis de “venda directa”, enquanto “adjudicação
sem concurso a um ou mais adquirentes do capital a alienar” (adjudicação
traduzida na aceitação da oferta de aquisição).
Nesta perspectiva, não existindo violação de lei com valor reforçado (a Lei n.º
11/90) pelo Decreto-Lei n.º 20-A/95, não se suscitará também, por conseguinte, a
questão de inconstitucionalidade orgânica ou formal deste último diploma.
Concluindo-se, como o legislador e os tribunais comuns, que a modalidade de
privatização adoptada no Decreto-Lei n.º 20‑A/95 podia ainda caber nos sentidos
possíveis (sendo ou não o sentido mais natural) do conceito legal – e com valor
de lei reforçada – de “venda directa”, importa, porém, verificar se o
afastamento, pela norma em causa, dos regimes-regra consagrados
constitucionalmente implicou violação dos parâmetros de lei com valor reforçado.
Não estando em causa “a situação económica ou financeira da empresa”, tal
afastamento depende, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 11/90, do
“interesse nacional” ou da “estratégia definida para o sector”.
Ora, e desde logo, tais elementos foram invocados pelo legislador do Decreto-Lei
n.º 20-A/95 no preâmbulo do diploma, mas não é inadequado obter elementos no
sentido da sua confirmação de outro modo. Pode até notar‑se que o legislador do
Decreto-Lei n.º 20-A/95 foi particularmente cuidadoso, visto que, como foi
invocado pelo recorrido, e transcrito na decisão recorrida (fls. 3431 e 3432),
tal diploma foi precedido “de consulta, por parte do Ministro das Finanças, a
dois conceituados constitucionalistas portugueses – Gomes Canotilho e Jorge
Miranda – que foram da opinião que o Estado poderia vender a participação que
lhe restava no capital social do D. desde que o decreto-lei obedecesse a
determinados requisitos, o que sucedeu” –, a mais do legalmente exigido parecer
da Comissão de Acompanhamento das Reprivatizações, que igualmente manifestou “o
acordo da Comissão à venda das acções na OPA”. Mesmo deixando de lado estes
depoimentos, resulta, também, dos autos – e mesmo admitindo o recurso a uma
“hindsight” qualificada do momento presente –, que o “interesse nacional” acabou
por ser servido pela aceitação da oferta pública de aquisição, pelo menos na
medida em que o Estado obteve um encaixe financeiro superior ao da cotação das
acções no mercado antes do lançamento da oferta pública de aquisição, mantendo,
ao mesmo tempo, “a titularidade nacional que o Governo desejava a todo o custo
preservar” (fls. 3461 dos autos, em que o Supremo Tribunal Administrativo, após
reapreciação da matéria de facto estabelecida pelo tribunal de 1ª instância, a
confirma e transcreve). E também a estratégia definida para o sector (bancário,
neste caso) foi servida na medida em que - como se escreveu no preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 321-A/90, que transformou o D., E.P., em D., S.A., e delineou o
processo de reprivatização -, se conseguiu o “fortalecimento das empresas e dos
sectores da economia nacional” (em que se inserem as empresas reprivatizadas)
“por forma a enfrentar com êxito os desafios de maior competitividade e
concorrência da Europa comunitária”. Independentemente de qualquer juízo sobre a
melhor interpretação da lei aplicável ao caso e sobre a evolução do sistema
financeiro português em geral, até à actualidade, é facto notório que o grupo
económico que adquiriu o D. através da oferta pública de aquisição lançada em
conjunto com a companhia de seguros Império a 9 de Janeiro de 1995, e que
posteriormente o integrou totalmente através de uma troca de activos com aquela
seguradora, constitui hoje o maior grupo financeiro português privado e uma das
maiores empresas portuguesas em capitalização bolsista.
Tem de concluir-se, portanto, que as declarações incluídas no preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 20-A/95 – v.g.: “Considerando a estratégia definida para o
sector, o interesse nacional envolvido na estabilidade accionista das principais
instituições do sistema financeiro nacional e a grande importância relativa do
D. no mesmo, justifica-se que a 4.ª e última fase de reprivatização do D. se
faça por recurso à venda directa, prevista na Lei Quadro das Privatizações para
casos em que estes pressupostos se verificam” – correspondem a um retrato que os
elementos disponíveis não infirmam de modo evidente ou manifesto, das razões de
interesse público subjacentes, no juízo do legislador, à opção pelo afastamento
das modalidades-regra de reprivatização no caso concreto. E uma vez que tais
razões são enquadráveis nas que o corpo do n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 11/90
previa como excepção à regra da adopção de uma das modalidades preferenciais de
reprivatização previstas no seu n.º 2, tem de decidir-se no sentido da
inexistência de ilegalidade (ou de inconstitucionalidade) nas normas do
Decreto-Lei n.º 20-A/95, por violação do princípio de preferência por ditas
“modalidades regulares” de privatização.
Acrescente-se, apenas, que não podem considerar-se decisivas as hipóteses
alternativas figuradas pelas recorrentes para, dentro dessas modalidades,
imaginarem outras possíveis formas de, no seu entender, satisfazer, de igual ou
melhor maneira, os objectivos visados pelo legislador (como o “lançamento de uma
oferta pública de venda, por leilão competitivo, ao preço mínimo de 2 730$00, e
cuja eficácia fosse condicionada à colocação de todas as 26 830 691 acções então
na posse do Estado – mas sem que aos potenciais adquirentes fosse imposto o
lançamento de uma qualquer OPA geral”). É que, como se deixou atrás explicado a
propósito da ponderação das razões do recorrido e das recorrentes quanto à
extensão dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, não cabe a este
sindicar o tipo específico de modalidade de reprivatização adoptado, nem
substituir o seu juízo ao efectuado pelo legislador, quanto às vantagens ou
inconvenientes de cada uma das modalidades, no sentido de determinar o melhor
processo de privatização. Cabe-lhe, apenas, apreciar se o legislador excedeu
manifestamente os limites de discricionaridade na escolha do processo de
privatização que lhe foram traçados por lei. E, para tal, entende-se que a
indagação a que se procedeu é a necessária e suficiente.
11.O que se disse não prejudica necessariamente a aferição da modalidade de
privatização adoptada face aos princípios da confiança, da boa fé e da
igualdade. Mas antes de a fazer, resta ainda averiguar a alegada eventual
desconformidade da modalidade de reprivatização prevista no Decreto-Lei n.º
20-A/95 com o anterior modelo de privatização, constante do Decreto-Lei n.º
321-A/90.
Tal não exige, porém, grande esforço. Na verdade, aquele modelo era totalmente
omisso quanto à existência de uma 4.ª fase de privatização, pressupondo-se
completo com apenas três (“A reprivatização decorrente da alienação referida no
número anterior será concretizada em três fases,” escrevia-se no n.º 2 do artigo
6.º), e mesmo a configuração das 2.ª e a 3.ª fases era, nos termos do n.º 3 do
mesmo artigo 6.º, remetida para “diplomas próprios, em condições e segundo
qualquer das modalidades admitidas pela Lei n.º 11/90, de 5 de Abril”. Não
existia, portanto, qualquer pretensão paramétrica do Decreto-Lei n.º 321-A/90 em
relação aos subsequentes diplomas, nem tal pretensão poderia juridicamente
valer, na medida em que se previa expressamente que os diplomas reguladores das
fases seguintes de reprivatização gozariam de igual valor hierárquico.
12.Pode, assim, passar-se ao apuramento da alegada desconformidade da modalidade
de reprivatização adoptada com os princípios da confiança, boa fé e igualdade de
oportunidades.
Destes parâmetros, pode afastar-se logo a relevância da invocada violação do
princípio da igualdade, que as recorrentes traduzem “(1) na possibilidade de os
oferentes determinarem e condicionarem o momento da reprivatização, a modalidade
adoptada e algumas das suas condições concretas; (2) na disposição de um tempo
não limitado para preparar a operação, enquanto que os seus concorrentes
dispuseram apenas de um prazo curto, pautado pelas conveniências dos oferentes
iniciais e (3) na garantia antecipada da preferência do Estado, mesmo contra
propostas concorrentes mais vantajosas do ponto de vista do interesse público”.
Na verdade, estes argumentos não procedem, ou estão já contidos na resposta a
dar à questão da admissibilidade do processo de privatização adoptado.
Quanto ao momento da operação de reprivatização, este não foi determinado pelos
oferentes, mas pelo legislador do Decreto-Lei n.º 321-A/90 (quanto à 1.ª e 2.ª
fases), pelo legislador do Decreto-Lei n.º 169/93, de 11 de Maio (quanto à 3.ª
fase), e pelo legislador do Decreto-Lei n.º 20-A/95 (quanto à 4.ª fase). É
verdade que, contrariamente ao modelo inicialmente previsto, houve uma 4.ª fase
de privatização, mas tal resultou das vicissitudes do processo de privatização
do D. e da existência, na altura, de 24,4% do seu capital social ainda na posse
do Estado, o que tornava inevitável, face à intenção de reprivatização total,
mais essa fase, pelo menos.
Mas também não pode dizer-se, por outro lado, que o momento da concretização da
4.ª fase de reprivatização tenha sido inteiramente decidido pelos oferentes,
tendo em conta, desde logo, que já em 26 de Junho de 1994 estes tinham feito o
anúncio preliminar de uma outra oferta pública de aquisição (de 41,8 milhões de
acções) que fora inviabilizada pelo Ministro das Finanças. O Estado vendeu,
pois, quando quis – e como quis, já que, como as recorrentes não deixaram de
invocar, havia outras formas possíveis de alienação das acções representativas
do capital social do D. detidas pelo Estado.
É verdade, porém, que o preço foi fixado a partir de uma iniciativa dos
oferentes, e que foram estes que tomaram a iniciativa que culminou com a
concretização dessa 4.ª fase da reprivatização.
Mas, quanto ao preço, bastaria ter aparecido uma outra oferta pública
concorrente para que tivesse sido outro (ainda que, evidentemente, igualmente
fixado pelo então oferente). Aliás, o preço oferecido era superior à cotação de
mercado e valia para todo e qualquer detentor de acções, sendo que o facto de
terem sido transaccionadas 108 647 742 acções das 110 000 000 existentes (e
considerando ainda as que ambas as entidades oferentes já detinham) – e de não
ter surgido nenhuma oferta concorrente – revela que o preço fixado pelos
oferentes acabou por ser aceite pela grande maioria dos accionistas.
Por outro lado, quanto ao tempo de preparação da operação, pode notar-se que as
recorrentes participavam no processo de privatização do D. desde 1990 e que o
grupo em que se integravam tinha a maioria dos membros do conselho de
administração do D. desde 28 de Junho de 1993 (5 em 7). Quaisquer problemas de
assimetria de informação eventualmente existentes, considerando a diferença
entre quem conhece, por dentro, uma instituição em processo de venda e quem só a
pode conhecer de fora, não depunham contra si. Aliás, e como se disse,
considerando a possibilidade de surgimento de ofertas concorrentes, a violação
do princípio da igualdade imputada à solução normativa em causa deveria,
igualmente, estender-se às regras (artigos 561.º e segs.) do Código de Mercado
de Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, de 10 de Abril)
então em vigor que regiam o lançamento de ofertas públicas de aquisição
concorrentes. Mas tais normas não foram indicadas como normas a apreciar, nem
foram alvo de qualquer imputação de inconstitucionalidade durante o processo.
Não pode, por outro lado, afirmar-se que, caso se tivesse verificado a
iniciativa de lançamento de outra oferta pública de aquisição, anteriormente
àquela que veio a ter sucesso – e mesmo depois da já referida, de Junho de 1994,
que não veio a prosseguir por não ter sido autorizada pelo Ministério das
Finanças – e por parte de outros oferentes, o Estado não avaliaria a operação e
a aceitação dessa oferta em condições de igualdade com a avaliação que realizou
em relação à oferta que veio a ter sucesso, tendo em conta os objectivos de
interesse público que prosseguia. O recurso a uma possível iniciativa de oferta
pública de aquisição como forma de desencadear a 4.ª fase de reprivatização do
capital do D. era, aliás, já conhecido em geral do público, pelo menos, desde o
lançamento (e o fracasso) da anterior oferta.
Finalmente, a acusação de existência de uma “garantia antecipada da preferência
do Estado, mesmo contra propostas concorrentes mais vantajosas do ponto de vista
do interesse público” (e mesmo ressalvando que essas propostas mais vantajosas
não redundassem em prejuízo de accionistas alheios ao negócio, caso o objectivo
de controle do D. se lograsse com a mera transacção das acções do Estado, fora
da bolsa, e, portanto, com lesão da igualdade entre todos os accionistas), essa
acusação, dizíamos, é indemonstrável, como o é a referida “garantia” (não sendo,
sequer, concretizada pelas recorrentes) e afigura-se contrariada pelo próprio
Decreto‑Lei n.º 20-A/95, que admitiu expressamente que à oferta pública de
aquisição se poderia “opor outra – igualmente legítima e igualmente vantajosa
face aos mesmos parâmetros de avaliação” (preâmbulo), prevendo também no
articulado, expressamente, a existência de quaisquer “ofertas públicas de
aquisição sobre a totalidade do capital social do D.”, desde que - o que resulta
necessariamente das regras sobre ofertas concorrentes - de preço superior ao da
oferta inicial.
Não procede portanto, a invocada violação do princípio da igualdade entre
oferentes (mesmo hipotéticos, como as requerentes seriam), podendo, aliás,
discutir-se se a igualdade relevante se deveria então aferir, na lógica deste
parâmetro, apenas na relação entre todos os hipotéticos oferentes, ou, antes de
mais, na comparação entre os diversos adquirentes de acções do D. ao longo de
várias fases de privatização.
13.Resta apurar se a modalidade de reprivatização adoptada pelo legislador do
Decreto-Lei n.º 20-A/95 satisfez as exigências constitucionais dos princípios da
confiança e da boa fé.
A primeira consideração a introduzir é a de que, em relação aos efeitos
eventualmente resultantes do comportamento assumido pelo Estado, não se vê como
se possa pretender que existem destinatários privilegiados para a aferição da
legitimidade das expectativas em questão. Não podem, pois, invocar as
recorrentes com procedência que as suas expectativas ou interesses mereceriam
maior consideração ou tutela do que, por exemplo, as dos restantes
trabalhadores, accionistas, pequenos investidores, clientes e investidores em
geral, que participaram também em anteriores fases de privatização do D. E
também não é legítimo pretender que a aferição dos seus interesses e
expectativas seja feita independentemente – muito menos contra – a aferição dos
interesses e expectativas desses outros sujeitos, ainda quando invoquem que
assim aconteceu anteriormente, aspecto que não interessa na presente sede, de
controlo, não de qualquer eventual desvio de poder, mas apenas da conformidade
constitucional de normas.
Ora, o que resulta dos factos provados é que “os títulos que se cotam em bolsas
são apenas as acções de poupança” e as “acções de controlo, essas, valem, por
definição, mais do que a contrapartida prevista no quadro de uma OPA Geral”,
porque “numa OPA geral o oferente distribui o valor equivalente às sinergias
esperadas por todos os accionistas”. Quer isto dizer que ao aceitar vender as
suas acções – 24,4% do capital social do D. – no quadro de uma qualquer oferta
pública sobre a totalidade desse capital social, o Estado-legislador estava
verdadeiramente a vincular o Estado‑accionista ao exacto tratamento que o
mercado concedesse a qualquer outro accionista do D. e, mais, a permitir que o
prémio de controlo envolvido na oferta fosse distribuído por todos esses
accionistas (objectivo, este, que, aliás, só no quadro de uma oferta pública de
aquisição geral poderia ser conseguido, já que de outro modo tal prémio ficaria
concentrado nos alienantes das participações necessárias à obtenção do
controlo). O Decreto-Lei n.º 20-A/95 pode, assim, ser também visto como forma de
o Estado-legislador se “auto-disciplinar” enquanto accionista.
Ora, uma tal actuação, instrumental para o tratamento equitativo e igualitário
de todos os accionistas, não pode ser tida como violadora do princípio da
igualdade, nem como manifestamente desconforme com as exigências dos princípios
da confiança e da boa fé, desde que a operação assim viabilizada não constitua
expropriação do valor anteriormente adquirido. Sobre a alienação de acções, nos
termos do artigo 490.º do Código das Sociedades Comerciais, já, aliás, este
Tribunal teve ocasião de se pronunciar (acórdão n.º 491/02, publicado no Diário
da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003), mas no caso não é sequer isso
que está em causa. Neste caso, o preço de mercado do D. (a sua capitalização
bolsista previamente ao anúncio da oferta pública de aquisição) era inferior ao
valor da oferta pública de aquisição (preço por acção [2 800$00] multiplicado
pelo montante de acções [110 000 000]), descredibilizando a hipótese de uma
qualquer venda “forçada” das acções alvo, e há, aliás, outro índice objectivo de
aferição da vontade dos participantes no processo de privatização do D. quanto a
tal oferta pública de aquisição: o seu sucesso medido pelo volume de acções
transaccionado. De facto, verifica-se que todos os anteriores adquirentes de
acções do D., incluindo as recorrentes, não deixaram de vender as suas acções do
mesmo modo que o Estado vendeu as suas, realizando “uma importante mais-valia”.
Ora, o que todos os participantes num qualquer processo de privatização têm, em
primeiro lugar, o direito de esperar – e é conforme aos princípios da boa fé e
da protecção da confiança que esperem – é que o seu investimento seja fiável,
não no sentido de se não poder vir a depreciar futuramente, mas no sentido de
não se depreciar ou degradar por razões conhecidas, ou cognoscíveis, já antes da
venda. Se os adquirentes de acções adquirem com um risco, o que podem exigir é
que esse risco seja adequadamente avaliado à data da alienação. Daí que a Lei
n.º 11/90 imponha a realização de avaliações feitas, “pelo menos, por duas
entidades independentes” (artigo 5.º), se bem que estas visem também a
salvaguarda dos interesses patrimoniais do Estado e a transparência dos
processos de reprivatização.
O que todos os participantes num qualquer processo de privatização têm, em
segundo lugar, o direito de esperar – e é conforme aos princípios da boa fé e da
protecção da confiança que esperem – é que, salvo razões ponderosas, no que
dependa do Estado (legislador e accionista), sejam tratados de forma idêntica.
Na Lei-Quadro das Privatizações, a existência de condições especiais na
aquisição ou subscrição de acções por parte dos trabalhadores das empresas a
reprivatizar está expressamente prevista (artigo 12.º, n.º 2) e a existência de
regimes favoráveis para pequenos subscritores e accionistas encontra cobertura
(artigo 3.º, alíneas e) e d)). Tal ocorre, porém, apenas na primeira transmissão
– na venda de acções do Estado a essas especiais categorias de accionistas –,
passando tais acções a valer exactamente o mesmo nas transacções subsequentes
(logo que pudessem ter lugar, face à indisponibilidade temporária prevista no
artigo 12.º, n.º 2, da Lei n.º 11/90).
É verdade que o valor bolsista das acções não incorpora o valor de controlo,
excepto quando este está em jogo – como é o caso de ofertas públicas de
aquisição, ou “corridas” à aquisição da maioria do capital, situações em que as
cotações sobem acentuadamente. E é também verdade que os interesses do
Estado-accionista, justamente porque detentor de uma percentagem do capital
social do D. que permitiria, eventualmente, a mais do que um interessado, obter
o controlo da instituição, poderiam, talvez, ser melhor servidos numa hipotética
operação “especulativa”. Detendo ainda uma posição qualificada, a tese das
recorrentes é a de que o Estado maximizaria o seu encaixe financeiro se a
negociasse, ou pusesse a leilão, entre os interessados, pretendendo mesmo que os
princípios da protecção da confiança e da boa fé lho imporiam, em obediência a
um tratamento privilegiado anterior, que invocam. A questão não está, porém, em
apreciar a conduta do Estado-accionista – por definição, este não é legislador e
o Tribunal Constitucional só afere da conformidade da actuação normativa do
Estado -, mas em apreciar a legislação produzida para a 4.ª fase de
reprivatização à luz, agora, dos princípios da protecção da confiança e da boa
fé. E, como se disse, o Decreto-Lei n.º 20-A/95 pode, assim, ser visto como uma
forma de o Estado-legislador se “auto-disciplinar” enquanto accionista,
considerando as restrições que entendia resultarem do interesse público (cf.
supra, o n.º 10).
Uma vez que foram os adquirentes que fixaram o preço da aquisição (primeiro em 2
730$00 por acção, valor ainda constante do caderno de encargos anexo ao
Decreto-Lei n.º 20-A/95, depois em 2 800$00 por acção, nos termos da revisão do
preço publicada na imprensa de 30 de Janeiro de 1995) e uma vez que
(praticamente) todos os potenciais vendedores aceitaram esse preço – incluindo o
Estado-accionista, obrigado pelo Estado-legislador a aceitar a melhor oferta
pública de aquisição sobre a totalidade do capital social do D. –, é de concluir
que tal preço distribuía adequadamente por todos os accionistas o valor esperado
da aquisição. Nessa medida – na medida em que permitiu diluir por todos os
accionistas do D. um valor que, sem a abstenção do Estado-accionista (vinculado
pelo Decreto-Lei n.º 20-A/95 a aceitar o melhor preço pago no mercado), poderia
ter sido transferido dos adquirentes de uma posição de controlo para apenas
alguns dos accionistas do D., como pretendem as recorrentes –, o referido
diploma não viola manifestamente (e, numa certa perspectiva, antes serve) os
princípios da protecção da confiança e da boa fé que tutelam de igual modo todos
os adquirentes de acções ao longo desse processo de privatização.
Improcedem, portanto, as conclusões 3.ª a 10.ª, 18.ª a 20.ª, 22.ª e 23.ª das
recorrentes, enquanto relevantes em termos de apuramento de
inconstitucionalidades ou ilegalidades por violação de lei com valor reforçado,
sendo a conclusão 1.ª incontroversa e as 2.ª e 11.ª a 17.ª irrelevantes para a
actividade judicativa deste Tribunal.
Importa, aliás, reiterar que a violação do princípio da confiança ou do
princípio da boa fé (constitucionalmente consagrados) enquanto alegadamente
resultante do comportamento concreto do Estado no decurso do processo de
reprivatização do D. – e não da norma em questão –, susceptível de alegadamente
se traduzir numa responsabilidade pré-contratual ou noutra forma de
“responsabilidade pela confiança” (e é apenas esta questão a abordada, pelo
menos, num dos pareceres juntos aos autos já no Tribunal Constitucional), não é
já susceptível de ser apreciada por este Tribunal, limitado que está ao controlo
da conformidade constitucional de normas.
14.Percorrido o elenco de questões de inconstitucionalidade ou de ilegalidade
referentes à forma de venda directa da acções em causa, resta agora considerar
as que se suscitam a propósito daquilo que as recorrentes consideram uma
“violação do direito fundamental à tutela jurídica efectiva”, mas melhor seriam
enquadradas como de “definição dos pressupostos da responsabilidade civil do
Estado”, conforme refere o Ministério Público:
“Na verdade, a questão suscitada pela recorrente não se situa no domínio
procedimental, mas no substantivo, ligando-se à definição dos pressupostos da
responsabilidade civil do Estado, tal como decorre, em primeira linha, da
referida norma constitucional” [o artigo 22.º da Constituição, que consagra o
princípio da “responsabilidade das entidades públicas”].
Como se sabe, apesar de alguma flutuação nas propostas doutrinárias (cuja
análise não cabe aqui aprofundar), costuma-se referir, como requisitos da
responsabilidade civil extracontratual, a existência de um facto, a sua
ilicitude, a existência de um dano, de um nexo de causalidade entre aquele facto
e este dano e de um nexo de imputação do facto ao agente. A ilicitude em direito
civil reveste, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, duas
modalidades: a violação de um direito subjectivo de outrem e a violação de lei
destinada a proteger interesses alheios. Nesta segunda variante da ilicitude, a
lesão dos interesses dos particulares corresponde a ofensa de uma norma legal,
tratando-se de interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos por essa
norma (cuja protecção ela “visa”, não sendo simples interesses por ela
reflexamente protegidos) e havendo a lesão de efectivar-se no próprio bem
jurídico ou interesse privado que a lei tutela.
Ora, no domínio da responsabilidade do Estado, o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º
48051, de 21 de Novembro de 1967, considera “ilícitos os actos administrativos
que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais de direito
aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios e ainda
as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em
consideração”, o que permitiu às recorrentes invocar que “a ilicitude para
efeitos da responsabilidade civil extra‑contratual da Administração não se pode
apurar nos mesmo termos em que é apurada no âmbito do direito civil.” Seja,
porém, como for, o que importa no presente recurso é o modo como essa norma foi
aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo. Ora, a decisão recorrida entendeu
que o disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48 051 tinha de ser conjugado
“com o [que] se dispõe nos artigos 2.º e 3.º do dito Diploma Legal, que fazem
depender a responsabilidade do Estado e demais Entes Públicos, bem como a
responsabilidade dos titulares dos órgãos, ‘da ofensa de direitos de terceiros
ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, com o que se
devem considerar ilícitos os actos que violem os direitos subjectivos ou as
estatuições destinadas a proteger interesses de terceiros, do que decorre que ‘a
ilicitude não se basta com a genérica antijuridicidade, uma vez que pressupõe a
violação de uma posição jurídica substantiva…do particular’ – apud Margarida
Cortez, in ‘Seminário permanente do direito constitucional e administrativo’,
vol. I, a págs. 72.
Daí que as normas tidas por violadas se não devam reconduzir em preceitos que
tutelem apenas o interesse comum, geral ou público, identificável com o simples
interesse na legalidade da acção administrativa, sem que, contudo, seja possível
extrair de tais normas a tutela das posições subjectivas de terceiros.”
Aqui chegados, há que concluir pela não inconstitucionalidade das normas assim
interpretadas, sendo certo que não compete a este Tribunal pronunciar-se,
independentemente da questão da conformidade com a Constituição, sobre o modo
como foram interpretadas, nem sobre qual a melhor interpretação que lhes
poderia, ou deveria, caber. E isto porque, tendo a decisão recorrida adoptado um
critério material de ilicitude “que se não confunde com a mera violação de
normas ou preceitos legais, exigindo identicamente que resultem violados os
interesses ou bens jurídicos tutelados pelo preceito ou disposição legal
infringida”, como bem refere o Ministério Público – a necessária “conexão de
ilicitude” (“Rechtswidrigkeitszusammenhang”) entre a norma ou princípio violado
e a posição jurídica do particular, referida por Gomes Canotilho e retomada pelo
acórdão impugnado, e tratada na doutrina germânica –, tal concepção, mesmo que
possa restringir o âmbito da ilicitude relevante (como também aconteceria,
segundo a concepção dominante, no direito privado), não deixa de ser ainda
compatível “com o princípio da responsabilidade extracontratual do Estado,
proclamado no artigo 22.º da Constituição”. É que, como se escreve nas
contra-alegações que o Ministério Público apresentou neste Tribunal, se tal
princípio:
«tem a natureza de direito fundamental, análogo aos direitos, liberdades e
garantias, exigindo efectivo respeito e protecção por parte do Estado e demais
poderes públicos, e sendo directamente aplicável às situações litigiosas, não
pode o mesmo ter o significado de, a tal propósito, resultar dispensado o regime
genérico da delimitação e definição dos pressupostos da responsabilidade civil
extra-contratual e da sua indispensável concretização em cada uma das situações
litigiosas em função da aplicação da teoria do “fim protegido” pela norma que
fundamente a responsabilidade.
Por outro lado, é matéria situada na competência das várias ordens
jurisdicionais a verificação de efectiva ocorrência de lesão do bem jurídico e
da definição – por interpretação das normas de direito infra-constitucional – de
qual o preciso “círculo de interesses” tutelado pela norma consagradora da
exigência formal ou procedimental prescrita, em termos de o dano produzido fora
do “horizonte de responsabilização da norma” implicar a quebra da indispensável
“conexão de ilicitude” entre a “ilegalidade” verificada e a lesão dos direitos
ou interesses do recorrente.
No caso dos autos, o círculo de interesses protegidos através dos processos de
reprivatização é o definido pelo artigo 3.º da Lei Quadro, que delimita os
“objectivos essenciais” da reprivatização: modernização das unidades económicas
e da sua competitividade e reestruturação, reforço da capacidade empresarial
nacional, promoção da redução do peso do Estado na economia, contribuição para o
desenvolvimento do mercado de capitais, possibilitação de ampla participação dos
cidadãos na titularidade do capital das empresas, com particular atenção aos
respectivos trabalhadores e aos pequenos subscritores, preservação dos
interesses patrimoniais do Estado e valorização de outros interesses nacionais,
promoção da redução do peso da dívida pública na economia.
Ora, perante tal elenco de “interesses tutelados” pelas normas legais reforçadas
que regem a matéria das reprivatizações parece-nos perfeitamente correcta e
adequada a conclusão a que chegou a decisão recorrida, ao excluir de tal
“círculo” o interesse da entidade recorrente na obtenção de um controlo
accionista da sociedade financeira, justificador da pretensão indemnizatória
deduzida pelos “lucros cessantes” decorrentes da perda da oportunidade na
obtenção desse controlo.»
Quer isto dizer que, mesmo que se admitisse como sindicável pelo Tribunal
Constitucional a actividade do tribunal recorrido ao subsumir a situação de
facto aos diferentes requisitos de aplicação das normas infra-constitucionais, e
ainda que se admitisse que tal teria algum sentido quando já se concluiu
previamente que se não detecta violação da Constituição, ou de lei com valor
reforçado, nas normas impugnadas do Decreto-Lei n.º 20-A/95, sempre teria de se
concluir, e logo apenas pela impostação do problema que é efectuada, que não
existe também inconstitucionalidade na delimitação do âmbito da responsabilidade
civil do Estado, por factos ilícitos, em termos idênticos aos que são aplicados
na responsabilidade civil dos particulares, por factos ilícitos. E isto, quer
quanto à ordem material do regime da responsabilidade, quer quanto à consequente
ordenação procedimental, na qual, naturalmente, não faria sentido reconhecer
tutela processual a uma situação que é desprovida de tutela material.
Improcede, assim, a conclusão 25.ª das alegações de recurso, sendo as conclusões
21.ª a 24.ª insindicáveis por este Tribunal.
E deve, pois, negar-se provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais os artigos 1.º a 5.º do Decreto‑Lei n.º 20‑A/95,
de 30 de Janeiro e os artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de
Novembro de 1967;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão
recorrida, no que diz respeito a estas questões de constitucionalidade;
c) Condenar as recorrentes em custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos