Imprimir acórdão
Processo n.º 777/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
(Cons. Mário Torres)
Acordam na 2.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa
interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), do acórdão daquele Tribunal, de
11 de Maio de 2004, que recusou a aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, por violação do princípio da dignidade humana, da norma
do artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código de Processo Civil, enquanto
permite “a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando tal
salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o
remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário
mínimo nacional”. Pode ler-se nesse aresto:
«(…)
No presente recurso, a questão que fundamentalmente se coloca, face ao quadro
conclusivo da alegação do agravante, é a de saber se o despacho recorrido, ao
decidir que não pode proceder-se à penhora de 1/3, ou até mesmo de 1/6, do
salário auferido por qualquer dos executados, deve ser revogado, por pôr em
causa o despacho de fls. 51, que determinou a penhora de 1/3 de tais vencimentos
e constitui caso julgado.
Com efeito, no entender do agravante, estas penhoras de 1/3 dos vencimentos dos
executados não constituem actos inconstitucionais, em virtude de, mesmo perante
as declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, terem de
ser ressalvados os casos julgados, por razões de segurança, equidade e interesse
público.
Cremos, porém, que não lhe assiste razão.
A penhora de direitos de crédito do executado (como são os salários), contra a
respectiva entidade devedora (empregador), está sujeita à forma de notificação
ao terceiro devedor, prevista no artigo 856.º, n.º 1, do CPC, assim como ao
regime previsto nos n.ºs 2 a 6 deste mesmo artigo 856.º, e nos artigos 858.º a
860.º do mesmo Código.
Tal penhora de créditos só se considera efectuada no momento em que a entidade
devedora é notificada de que o crédito do executado fica à ordem do tribunal da
execução, sendo que, após esta notificação, não só o crédito fica à ordem do
tribunal, como o devedor do executado deixa de poder pagar a este.
Pelo que, chegado o momento do vencimento da obrigação, o terceiro devedor só se
liberta pagando de modo que a quantia seja afectada aos fins da execução, nos
termos do artigo 860.º, n.º 1, do CPC.
Assim, tratando-se, como se trata, no caso em apreço, de penhora de rendimentos
periódicos, é no momento em que cada uma dessas prestações periódicas se vence
que se tem de proceder ao apuramento da dedução a fazer‑lhes e que, se for caso
disso, se tem de respeitar os limites do artigo 824.º do CPC, destinados a
proporcionar a satisfação das necessidades dos executados.
O Tribunal Constitucional, pelo Acórdão n.º 177/2002, publicado no Diário da
República, I Série-A, de 2 de Julho de 2002, julgou inconstitucional, com
fundamento na violação do princípio da dignidade humana, a norma que resulta da
conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do CPC,
na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao
executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para
satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo
valor não seja superior ao salário mínimo nacional.
Por outro lado, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 824.º do CPC, na
redacção do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e aqui aplicável, pode o
juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º 1 do
mesmo artigo, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar.
Ora, em face da factualidade apurada nos autos (e supra descrita em III),
verificamos que o valor dos vencimentos mensais líquidos dos executados
corresponde, sensivelmente, ao do salário mínimo nacional.
Por outro lado, também não nos podemos olvidar que faz parte do agregado
familiar dos executados uma filha menor destes, com a qual suportam as inerentes
despesas, ficando os seus salários, se divididos pelos três, muito abaixo do
salário mínimo nacional.
Aliás, foram as reconhecidas dificuldades económicas do agregado familiar dos
executados, constituído por três pessoas, que levaram a que beneficiassem do
apoio judiciário que lhes foi concedido, gozando mesmo de presunção de
insuficiência económica, que não foi ilidida.
Nesta circunstância, e de acordo com a argumentação desenvolvida no citado
acórdão do Tribunal Constitucional, entendemos que é inconstitucional, com
fundamento na violação do princípio da dignidade humana, a penhora de qualquer
percentagem no salário dos executados, por qualquer deles ser de considerar
inferior ao salário mínimo nacional (disposições conjugadas do artigo 1.º, da
alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da
Constituição).
Assim sendo, não só não se pode proceder à penhora de qualquer percentagem do
salário auferido pelo executado, como também não se pode manter a penhora de
qualquer percentagem do salário auferido pela executada, sendo de autorizar o
levantamento dos depósitos correspondentes aos descontos efectuados nos
vencimentos desta, nos termos referidos no douto despacho recorrido.
Contrariamente ao alegado pelo recorrente, não se pôs em causa, no despacho
recorrido, o despacho exarado a fls. 51, que apenas tinha determinado a penhora
de 1/3 dos vencimentos dos executados, pois, como já supra se disse, tratando-se
de uma penhora de rendimentos periódicos, o terceiro devedor só se liberta
quando é chegado o momento do vencimento da obrigação, pagando, então, de modo
que a quantia seja afectada aos fins da execução (artigo 860.º, n.º 1, do CPC).
Mesmo perante o conceito de caso julgado – designando as situações que, de forma
definitiva e irretractável, foram fixadas por sentença judicial –, anotam os
Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira que a solução já será diferente se as
relações não estiverem ainda completamente exauridas.
Não se vislumbra, no douto despacho recorrido, violação dos princípios da
igualdade, segurança jurídica, protecção da confiança e estabilidade da
instância, invocados pelo agravante, nem de qualquer dispositivo legal ou
constitucional.
E improcedem, portanto, sem necessidade de mais considerações, todas as
conclusões da alegação do presente recurso.»
Já no Tribunal Constitucional o representante do Ministério Público apresentou
alegações em que concluiu:
«1 – Não é materialmente inconstitucional o regime constante do artigo 824.°,
n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à
emergente do Decreto-Lei n.º 38/2003) que se traduz em não considerar
estabelecida a impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do
trabalho, auferidos pelo executado que não disponha de outros bens penhoráveis,
e que não excedam o montante do salário mínimo nacional.
2 – O interesse na sobrevivência condigna do executado é, neste caso,
assegurado, em termos bastantes, pela possibilidade, outorgada ao juiz pelo n.º
3 de tal preceito legal, de realizar um juízo de ponderação casuístico e
prudencial, articulando os interesses do exequente e executado, de acordo com a
natureza do débito (que pode ser proveniente de uma obrigação alimentar ou
radicar na aquisição de bens ou serviços destinados precisamente a salvaguardar
a sobrevivência do executado, satisfazendo as suas necessidades básicas de
alimentação e habitação) e as necessidades do devedor e seu agregado familiar.
3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – quanto a pensões ou
regalias sociais de valor não superior ao salário mínimo – vigorar (por
imposição da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional) um regime de
impenhorabilidade total e “automática”, já que tais rendimentos assentam ou
pressupõem uma situação de particular debilidade, incapacidade ou fragilidade
económica do executado, que se não verifica necessariamente quando estiverem em
causa rendimentos profissionais, mesmo que de montante reduzido.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Após inscrição do processo em tabela e mudança do relator por vencimento, cumpre
elaborar a decisão.
II. Fundamentos
2.O artigo 824.º do Código de Processo Civil (CPC), na redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, dispunha:
“1. Não podem ser penhorados:
a) Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de
outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda
vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo
juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em
atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
3. Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o
n.º 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar.”
No presente processo, está em causa, nos termos do requerimento de recurso, a
apreciação da constitucionalidade deste artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do
Código de Processo Civil, na medida em que permite “a penhora de qualquer
percentagem no salário de executados quando tal salário é inferior ao salário
mínimo nacional ou quando, sendo superior, o remanescente disponível para os
mesmos, após a penhora, fique aquém do salário mínimo nacional” – ou, por outras
palavras, enquanto não prevê uma impenhorabilidade, total e automática, dos
rendimentos do trabalho auferidos pelo executado na medida em que este não fique
com um montante igual ao do salário mínimo nacional.
Recorde-se, ainda, que o artigo 824.º do Código de Processo Civil foi alterado,
entretanto, pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março (reforma da acção
executiva), com incidência sobre o regime ora em apreço. Segundo tal nova
redacção (que é irrelevante para o presente recurso de constitucionalidade, por
não ter sido aplicada pelo tribunal recorrido, sendo apenas aplicável a
processos instaurados a partir do dia 15 de Setembro de 2005), passou a ser
impenhorável o montante equivalente a um salário mínimo nacional dos
rendimentos, quer sejam vencimentos, salários, prestações de natureza
semelhante, pensões de aposentação ou em geral prestações sociais (artigo 824.º,
n.ºs 1 e 2). Todavia, além de se manter a possibilidade de o juiz “[p]onderados
o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do
executado e do seu agregado familiar”, excepcionalmente, reduzir, por período
que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo isentá-los de
penhora (“por período não superior a um ano”), previu-se, na mesma linha de uma
maior consideração das circunstâncias concretas do caso, que pode igualmente o
juiz, a requerimento do exequente e “ponderados o montante e a natureza do
crédito exequendo, bem como o estilo de vida e as necessidades do executado e do
seu agregado familiar”, reduzir o limite mínimo impenhorável, correspondente ao
salário mínimo nacional, “salvo no caso de pensão ou regalia social” (n.ºs 4 e 5
do artigo 824.º, na redacção dada pelo citado Decreto-Lei n.º 38/2003).
É, porém, ainda a redacção anterior do artigo 824.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do
Código de Processo Civil, na interpretação referida, que compete apreciar no
presente caso.
3.A questão da imposição constitucional de uma impenhorabilidade total, e em
abstracto, de rendimentos que não excedam, ou não deixem ao devedor, um montante
correspondente ao salário mínimo nacional foi objecto de várias decisões deste
Tribunal, e, mesmo de uma declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral.
Assim, pelo Acórdão n.º 177/2002 (Diário da República [DR], I Série‑A, n.º 150,
de 2 de Julho de 2004, p. 5158), proferido na sequência de outras decisões (v.
logo o Acórdão n.º 318/99, in DR, II série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1999)
foi declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da “norma
que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo
824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3
das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia
social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo
nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do
Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1.º, da
alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da
Constituição”.
Por sua vez, o Acórdão n.º 62/2002 (in DR, II série, n.º 59, de 11 de Março de
2002) julgou inconstitucionais, por violação dos mesmos princípios
constitucionais, as normas dos artigos 821º, n.º 1, e 824º, n.º 1, alínea b), e
n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são
penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido.
Ambas estas decisões foram proferidas por maioria, com votos de vencido.
4.No presente caso, está em causa, porém, não a norma da alínea b), relativa a
pensões e outras prestações periódicas de natureza similar, que esteve em foco
no Acórdão n.º 177/2002, do plenário deste Tribunal (ou a quantias recebidas a
título de rendimento mínimo garantido, como no citado Acórdão n.º 62/2002), mas
antes a norma da alínea a), relativa a vencimentos e salários, ambas do n.º 1
do citado artigo 824.º, conjugadas com o n.º 2, na redacção deste preceito
introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 180/96. Foi, na verdade, a penhora de uma parte
do salário dos recorridos que se discutiu na decisão recorrida.
Também sobre a norma da referida alínea a) já existe, entretanto, jurisprudência
no Tribunal Constitucional. Na verdade, o Acórdão n.º 96/2004, da 3.ª Secção
deste Tribunal (Diário da República, II Série, n.º 78, de 1 de Abril de 2004,
pág. 5228), “julg[ou] inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições
conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do
disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo
Civil (na redacção emergente da reforma de 1995‑1996), na parte em que permite a
penhora de uma parcela do salário do executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que
priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao
salário mínimo nacional” (itálico aditado).
Este Acórdão assentou o seu juízo de inconstitucionalidade na adesão à
fundamentação do referido Acórdão n.º 177/2002, considerada transponível para
os casos em que a penhora recai sobre salários, e não sobre pensões. Também esta
decisão foi proferida por maioria, tendo existido dois votos de vencido.
5.Importa, justamente, começar por salientar que o tratamento diferenciado, para
efeitos de penhorabilidade e por razões de protecção do devedor, de prestações
como pensões, por um lado, e dos vencimentos e salários, por outro, não é
inédito entre nós, e antes correspondeu a solução frequente, que se reflectiu,
mesmo, em várias decisões sobre questões de constitucionalidade. A
impenhorabilidade de prestações devidas pelas instituições de segurança social,
em particular, foi, na verdade, por várias vezes objecto de análise pela nossa
jurisprudência constitucional. Como se recordou no citado Acórdão n.º 62/2002,
logo no
«Acórdão da Comissão Constitucional n.º 479 [de 25 de Março de 1983, in Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 327, Junho de 1983, pp. 424-426] decidiu‑se que as
normas contidas na Base XXVI da Lei n.º 2115, de 18 de Junho de 1962, e no
artigo 30.º do Decreto n.º 45266, de 23 de Setembro de 1963, que estabeleciam a
impenhorabilidade das prestações devidas aos beneficiários e seus familiares ou
sócios das instituições de previdência social não eram inconstitucionais, não
violando, designadamente, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da
Constituição. Salientou-se, então, que “a exclusão da penhorabilidade das
pensões pagas aos beneficiários do regime geral de previdência (...) não decorre
de um puro capricho ou do arbítrio do legislador, reflectindo antes a
preocupação de conferir uma garantia absoluta a percepção de um rendimento
mínimo de subsistência”.
Tal solução de impenhorabilidade (e intransmissibilidade) das prestações devidas
pelas instituições de segurança social ficou, posteriormente, consagrada no
artigo 45º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto.
Esta norma veio, porém, a ser julgada inconstitucional, por violação do
preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1,
da Constituição, “na medida em que isenta de penhora a parte das prestações
devidas pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e
necessário a uma sobrevivência condigna”, pelo Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 411/93 (Diário da República [DR], II série, de 19 de Janeiro
de 1994), na sequência, aliás, da fundamentação do Acórdão n.º 349/91 (Diário da
República, II série, de 2 de Dezembro de 1991).
Reconheceu-se neste último aresto que
“a conclusão de não inconstitucionalidade a que chegou a Comissão Constitucional
quanto às normas constantes da Base XXVI da Lei nº 2115 e do artigo 30.º do
Decreto n.º 45 266 é válida na sua ideia essencial para a norma do n.º 1 do
artigo 45.º da Lei n.º 28/84, desde que a pensão auferida pelo beneficiário da
segurança social, tendo em conta o seu montante, reportado a um determinado
momento histórico, cumpra efectivamente a função inilidível de garantia de uma
sobrevivência minimamente condigna do pensionista.”
Sendo este o caso dos autos (pois tendo em conta o montante da pensão e o
período histórico em que estava a ser paga, ela cumpria efectivamente a função
inilidível de garantia de uma sobrevivência minimamente digna do beneficiário),
a impenhorabilidade não surgia como algo materialmente infundado, irrazoável ou
arbitrário, nem desproporcionado, pelo que a norma em causa não foi julgada
inconstitucional. Na fundamentação, afirmou-se, porém, a inconstitucionalidade
do citado artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 24/84, ao considerar abrangidas pelo
princípio da impenhorabilidade total prestações devidas por instituições de
segurança social de montante superior ao mínimo de sobrevivência condigna, quer
por encerrar um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do credor,
quer por atribuir aos pensionistas da segurança social um privilégio ou um
benefício materialmente injustificado, em comparação com os pensionistas de
outras instituições – designadamente da Caixa Geral de Aposentações.
Já no referido Acórdão n.º 411/93 a norma do artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º
28/84, de 14 de Agosto, foi julgada inconstitucional, por violação das
disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Lei
Fundamental, na medida em que isentava de penhora a parte das prestações devidas
pelas instituições de segurança social que excede o mínimo adequado e necessário
a uma sobrevivência condigna.
Foi justamente para salvaguardar tais princípio constitucionais, que, invocando
as citadas decisões, o legislador veio, no Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de
Dezembro – além de atribuir ao juiz amplos poderes para, em concreto, determinar
a parte penhorável das quantias e pensões de índole social percebidas adequadas
à real situação económica do executado e seu agregado familiar, e para
determinar a isenção total de penhora quando o considere justificado – prever
(artigo 12.º) que “as disposições constantes de legislação especial que
estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos,
independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artigo 824.º do
Código de Processo Civil”, não são invocáveis em processo civil.
É, assim, por virtude de tal norma que a impenhorabilidade prevista no referido
artigo 45.º, n.º 1, da Lei n.º 24/84 não é invocável em processo civil. E,
conforme resulta dos citados Acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93, o que é relevante,
no confronto com os artigos 13.º e 62.º da Constituição, para concluir pela
legitimidade constitucional da impenhorabilidade é a circunstância de a
prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e
necessário a uma sobrevivência condigna.
(…)»
A própria previsão da possibilidade de o juiz isentar totalmente de penhora o
executado, tendo em conta “a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar”, começou por ser prevista, no artigo 824.º,
n.º 3, apenas para as prestações a que aludia a alínea b) do n.º 1 do artigo
824.º, com exclusão dos vencimentos e salários, tendo sido estendida a estes
últimos pelo Decreto‑Lei n.º 180/96. E esse mesmo tratamento diferenciado é o
que se encontra previsto hoje, no artigo 824.º, n.º 5, do Código de Processo
Civil, que apenas veda no caso de pensão ou regalia social a possibilidade de o
juiz, tendo em conta as circunstâncias concretas, reduzir o limite mínimo
impenhorável, correspondente ao salário mínimo nacional.
Este tratamento distinto das pensões e outras regalias sociais, por um lado, e
dos vencimentos e salários – isto é, de retribuição do trabalho – , por outro,
fundamenta-se na sua diferente função e natureza. Nesta perspectiva, importa
salientar que não só a decisão proferida no citado Acórdão n.º 177/2002, que
declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da penhora até um
terço das prestações periódicas, pagas ao executado a título de regalia social
ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao “salário mínimo nacional”,
não inclui, como vimos, a dimensão normativa em causa no presente recurso, como
não impõe só por si uma solução para a apreciação da constitucionalidade desta
última, na medida em que um dos fundamentos para uma solução diversa seja,
justamente, a diferente natureza e função de uma prestação remuneratória ou
retributiva e das pensões ou regalias sociais.
6.Importa justamente averiguar em que medida podem ser consideradas procedentes,
para a penhora de vencimentos e de salários, as considerações que este Tribunal
teceu no sentido de uma impenhorabilidade absoluta de montantes inferiores (ou
que privem o executado de um montante pelo menos igual) ao salário mínimo
nacional. Trata-se de averiguar se são procedentes os argumentos apresentados, a
tal respeito, no Acórdão n.º 177/2002, e, designadamente (pois que se pronunciou
especificamente sobre a penhora de salários) no Acórdão n.º 96/2004. Ambos os
arestos fundaram-se na violação do “princípio da dignidade humana, contido no
princípio do Estado de Direito”, e que se disse resultar das disposições
conjugadas do artigo 1.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59.º e dos n.ºs 1 e 3
do artigo 63.º da Constituição (isto, apesar de no segundo caso não estar
propriamente em causa o direito a uma prestação de segurança social, mas antes a
penhora de uma parcela do salário).
Para tanto, considerou-se, por um lado, que era insuficiente para satisfazer as
exigências constitucionais a possibilidade excepcional do juiz de, tendo em
conta as circunstâncias do caso concreto, e mais precisamente “a natureza da
dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar”,
isentar de penhora o executado. E considerou-se, por outro lado, que o salário
mínimo nacional constituía um referente adequado – e dir-se-á mesmo, para
efeitos constitucionais, um referente mínimo necessário – para definir o limiar
abaixo do qual a possibilidade de privação de rendimentos por uma penhora
conduzia a violação do “princípio da dignidade humana, decorrente do princípio
do Estado de direito”.
Importa analisar estes dois aspectos, sobre os quais também incidiram os votos
de vencido apostos aos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004.
7.Os dois aspectos referidos estão, naturalmente, em íntima ligação entre si. A
insuficiência de uma intervenção casuística do juiz, em cada caso concreto, no
sentido de isentar de penhora o executado – quando entendesse que, tendo em
conta as circunstâncias previstas no artigo 824.º, n.º 3, e, também (até por
imposição constitucional), quando considerasse que uma penhora mais ampla
afectaria a dignidade humana – foi sustentada com a qualificação do salário
mínimo como o limiar mínimo para uma existência condigna, logo desde o Acórdão
n.º 318/99. Assim, nas hipóteses em que o executado aufere uma pensão de
montante não superior ao salário mínimo nacional, “o encurtamento, através da
penhora, mesmo de uma parte dessas pensões – parte essa que em outras
circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no caso de pensões de valor
bem acima do salário mínimo nacional –, constitui um sacrifício excessivo e
desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o
seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário
para uma existência com a dignidade humana que a Constituição garante.”
E o Acórdão n.º 96/2004 disse-se:
«A qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação de
debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma
regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência
digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode
manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado
outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e,
por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante
equivalente ao salário mínimo nacional.
Por isso, não se vê fundamento para, no caso da penhora de salário, se admitir
um juízo de ponderação casuística do juiz, nos termos do n.º 3 do artigo 824º do
Código de Processo Civil, sendo certo que o Tribunal Constitucional admitiu a
exclusão de tal juízo de ponderação no caso da penhora de pensão de aposentação.
Em ambos os casos – porque se trata sempre de assegurar o mínimo necessário a
uma subsistência digna – valem os motivos justificativos da exclusão da
ponderação do juiz, a que se aludiu no mencionado Acórdão n.º 177/02.»
Por outro lado, salientou-se também a insuficiência dos elementos de ponderação
a considerar, nos termos legais, e disse-se que a solução de uma
impenhorabilidade total, e em abstracto, não era desnecessariamente rígida, como
se pode ler no Acórdão n.º 177/2002 (n.º 7):
«Em segundo lugar, é incontestável que o n.º 3 do artigo 824.º confere ao
tribunal o poder de, tomando em conta 'as necessidades do executado e seu
agregado familiar', isentar totalmente de penhora a pensão em causa.
Há, todavia, que não esquecer, desde logo, que estas necessidades não são o
único elemento a ponderar pelo tribunal, que tem que as considerar conjuntamente
com “a natureza da dívida exequenda”, factor que pode impedir que o tribunal
opte pela impenhorabilidade total.
Para além disso, não é exacto que o julgamento de inconstitucionalidade venha
substituir, utilizando um critério “desnecessariamente rígido e inflexível”, uma
mais adequada forma de protecção do executado. Com efeito, e não esquecendo que
o preceito continua a valer para o caso de penhora de pensões de valor mais
elevado, a verdade é que o efeito do julgamento de inconstitucionalidade se
traduz, apenas, em excluir a ponderação do tribunal sobre a admissibilidade da
penhora nos casos em que o montante da pensão abrangida não é superior ao
salário mínimo, por se entender que, em tais casos, a penhora afecta sempre de
forma inaceitável a satisfação das “necessidades do executado e seu agregado
familiar”».
Diversamente, nos votos de vencido apostos aos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004
considerou-se suficiente a possibilidade de ponderação casuística do juiz, no
caso concreto.
Parte da divergência em causa assenta, evidentemente, na diversa apreciação
sobre a natureza do limiar do salário mínimo – isto é, o problema de saber se,
quando o montante da pensão abrangida não é superior ao salário mínimo, ou
quando a penhora não deixa ao executado rendimentos superiores a este, ela
«afecta sempre de forma inaceitável a satisfação das “necessidades do executado
e seu agregado familiar”».
Deixando para já este aspecto (a análise do sentido do limiar do salário mínimo,
em comparação com o chamado “mínimo de sobrevivência”, ou “mínimo de existência”
condigna) de remissa, notar-se-á que não é esta a única razão da divergência
(cf., aliás, o voto de vencido, com fundamento no artigo 824.º, n.º 3, aposto ao
Acórdão n.º 62/2002, isto é, mesmo a propósito da penhora do “rendimento mínimo
garantido”). Antes se pode dizer que um critério que permite uma ponderação no
caso concreto é, naturalmente, menos rígido e mais flexível do que um critério
abstracto, permitindo tomar em conta várias circunstâncias do caso. E isto, sem
que valha responder a tal rigidez e inflexibilidade com o facto de a
possibilidade do artigo 824.º, n.º 3, continuar a valer para rendimentos de
montante mais elevado (nunca esteve em causa a extensão a estes da
impenhorabilidade) ou de o seu único efeito ser “excluir a ponderação do
tribunal sobre a admissibilidade da penhora”, por quando esta privar o executado
de rendimentos superiores ao salário mínimo afectar sempre a dignidade humana. É
que a rigidez e inflexibilidade em causa estão, justamente, na exclusão dessa
ponderação – que, aliás, o legislador actualmente continua a admitir, para os
rendimentos de vencimentos e salários (no já citado artigo 824.º, n.º 5, na sua
redacção actual).
A verdade é que o Código de Processo Civil previa (e continuar a prever hoje)
que o juiz pode isentar totalmente de penhora prestações como as que estavam em
causa, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do
executado e seu agregado familiar. E a previsão desta possibilidade tem de ser
considerada, na medida em que permita evitar a ofensa aos princípios
constitucionais invocados, na apreciação da constitucionalidade da norma em
apreço. É improcedente o argumento segundo o qual apenas há que tomar em
consideração, isolada do resto do sistema e das possibilidades de protecção da
dignidade humana conferidas (e impostas) ao juiz, a norma em apreço, em nome da
finalidade do recurso de constitucionalidade de eliminação de normas violadoras
da Constituição. Pois o problema está antes, e justamente em saber se, tendo em
conta a possibilidade de intervenção casuística do juiz, ponderando as
circunstâncias do caso concreto (a natureza da dívida do exequente e as
necessidade do executado) à luz das exigências constitucionais, incluindo a
dignidade humana – intervenção, essa, que não pode ser vista como mera ou vã
esperança, pois que corresponde a um verdadeiro poder-dever (e recorde-se o
artigo 204.º da Constituição) –, a norma em causa é uma norma inconstitucional.
Ora, a remissão para o poder-dever de ponderação em concreto sobre a isenção de
penhora afigura‑se claramente de preferir ao estabelecimento de um limite rígido
e abstracto de impenhorabilidade, desde logo, por permitir tomar em conta
circunstâncias do caso concreto que podem não ser despiciendas.
As dificuldades “na articulação de um controlo que deve ser apenas normativo com
uma valoração de circunstâncias fácticas e peculiares do caso concreto” foram,
aliás, salientadas pelo Ministério Público na alegação apresentada no presente
recurso.
Desde logo, o juízo de inconstitucionalidade da solução legal na medida em que
não prevê, em abstracto, uma impenhorabilidade total, que deixe intocados
rendimentos do trabalho iguais ao salário mínimo nacional, não foi levado tão
longe que não pressupusesse sempre uma consideração casuística da natureza do
débito. Assim, o Acórdão n.º 96/2004 (n.º 8) deixa em aberto a solução de
questões como a da penhora com vista à satisfação de créditos alimentares sobre
o executado, ou de créditos que são consequência directa da satisfação das
necessidades básicas de habitação e alimentação do executado. E num caso em
que estava justamente em causa a prestação de alimentos a filho menor, o Acórdão
n.º 306/2005 julgou inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3
do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da
Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de
Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de
prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez
do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas
necessidades essenciais – e considerou que o referencial de isenção de
penhorabilidade não devia ser o critério do “salário mínimo nacional” mas o
critério do “rendimento social de inserção”
E entre as ressalvas do juízo de inconstitucionalidade que obrigam a uma
ponderação casuística refere-se igualmente a da possível existência de outros
bens penhoráveis. No caso, não resulta, porém (pelo menos explicitamente) da
decisão recorrida, que o executado não seja titular de outros bens penhoráveis
suficientes para satisfazer a dívida exequenda (o que é diverso de saber, por
exemplo para efeitos de apoio judiciário, se a única fonte de rendimento dos
executados consiste nos respectivos salários).
Seja como for – para além de (como nota o Ministério Público), na própria lógica
dos Acórdãos n.ºs 177/2002 e 96/2004, a solução no caso de esta última ressalva
(inexistência de bens penhoráveis) se não verificar dever ser a penhora desses
bens, e não a admissibilidade da privação do executado de rendimentos iguais ao
salário mínimo – tal condicionamento a ressalvas carecidas de apreciação
casuística apenas pode apontar no sentido de que a solução mais adequada será
aquela que permita a consideração, justamente, dos casos concretos – e não
apenas deste concreto caso presente (pelo que o facto de se estar perante um
recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, e de neste se poder
apurar que não se verificam circunstâncias concretas que obstassem à
impenhorabilidade não contradiz o argumento, o qual se situa no plano da
apreciação da adequação de uma resposta à questão de constitucionalidade que é
aparentemente geral, e rígida, mas que, a final, se vê obrigada a abrir algumas
ressalvas casuística).
E como se disse numa das declarações de voto apostas ao Acórdão n.º 177/2002, à
«vantagem da ponderação, no caso concreto, do critério do n.º 3 do artigo 824º
do Código de Processo Civil acresce, aliás, que as situações de
impenhorabilidade (por exemplo, de dois terços dos vencimentos ou das prestações
em causa) devem já ser consideradas em geral absolutamente excepcionais, quer
por poderem originar um “'amolecimento ósseo” das obrigações civis, quer por
serem possíveis fontes de flagrante injustiça relativa (basta, para o concluir,
ter presente que, perante um critério abstracto de impenhorabilidade, uma
eventualmente idêntica situação financeira do credor não pode ser considerada),
e que ainda mais excepcionais terão de ser os casos em que a garantia da
dignidade humana, como valor no qual se funda a República Portuguesa, inscrito
logo no “pórtico” da Lei Fundamental, impõe a consagração de uma
impenhorabilidade».
É certo que, como também salienta, o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto em funções
neste Tribunal, “é inquestionável a prevalência do princípio da dignidade humana
sobre o direito do credor”, quando aquele imponha uma solução que conflitue com
este.
Todavia, não se vê que a Constituição obste a que possam ser as instâncias a
realizar um juízo casuístico de ponderação e adequação das posições e
interesses de exequente e executado, devendo naturalmente fazê-lo em
conformidade com as exigências constitucionais, e, em particular, com o
princípio da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República Portuguesa
(artigo 1.º da Constituição). A Constituição não impõe, pois, um regime de
fixação, rigidamente e em abstracto, da impenhorabilidade de rendimentos
laborais do executado, na medida em que este fique privado do montante
correspondente ao salário mínimo nacional, permitindo antes que seja cometida ao
juiz a decisão sobre a penhorabilidade concreta, com uma de todas as
circunstâncias do caso, incluindo a situação económica global do executado e a
natureza, montante e origem da dívida exequenda.
Como também se diz na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 177/2002 que se
citou,
«[s]ó não seria assim se pudesse entender-se que a penhora de qualquer parte de
prestações inferiores ao salário mínimo (como se diz no acórdão) “afecta sempre
de forma inaceitável a satisfação das ‘necessidades do executado e seu agregado
familiar’” – ou seja, que põe sempre em causa a garantia de um “mínimo de
existência”, não devendo, por isso, nunca ser ponderada no caso concreto com
quaisquer outros elementos.”
Esta questão remete já para o segundo aspecto referido no final do ponto
anterior: o de saber se o que o salário mínimo nacional se impõe
constitucionalmente como referente para definir o limiar abaixo do qual a
possibilidade de privação de rendimentos por uma penhora viola o princípio da
dignidade da pessoa humana.
8.Admite-se que existe um limiar de rendimentos abaixo do qual a penhora do
executado (que não disponha de outros bens, bem entendido) que os atinja
afectará sempre a dignidade humana do executado. É o que se poderá ainda
entender para as prestações – de que não cumpre agora tratar (cfr. o citado
Acórdão n.º 62/02) – recebidas a título de “rendimento mínimo garantido”, de
“rendimento social de inserção”, ou, mais claramente, para o chamado “mínimo de
existência” ou “mínimo de sobrevivência condigna”. Considerando, por exemplo, os
pressupostos e forma de fixação do “rendimento mínimo garantido” –
designadamente, a indexação ao montante legalmente fixado para a pensão social
do regime não contributivo e a variação da prestação segundo a composição do
agregado familiar dos titulares do direito à prestação –, pode dizer-se que só a
salvaguarda da totalidade dessas prestações poderá proteger o “mínimo de
existência” do devedor e seu agregado, cuja garantia decorre do valor da
dignidade humana.
Importa, porém, distinguir estas prestações do salário mínimo – ou, actualmente,
“retribuição mínima mensal garantida” (artigo 266.º do Código do Trabalho),
actualizada para 2006 pelo Decreto‑Lei n.º 238/2005, de 30 de Dezembro. Com
efeito, a afirmação de uma impenhorabilidade total de prestações recebidas “a
título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao
salário mínimo”, em nome do princípio da dignidade humana só pode fundar-se numa
aproximação entre o critério do mínimo necessário para uma sobrevivência
condigna do devedor e seu agregado – esse sim, imposto pela dignidade humana – e
o salário mínimo. Estas prestações não devem, porém, ser confundidas – sendo
certo que, quando coincidirem no seu montante, já a aplicação do primeiro
conduzirá a afirmar a impenhorabilidade.
O salário mínimo representa a remuneração mínima garantida pela prestação
laboral, imposta por um princípio de justiça comutativa e pela própria ideia de
dignidade do trabalho – ou da pessoa enquanto trabalhador –, e determinado
também por outras razões sociais e económicas.
É, na verdade, o que resultava da sua forma de fixação nos termos do Decreto-Lei
n.º 69-A/87, de 9 de Fevereiro – fixação, essa, que podia ser mensal ou horária
(para trabalho a tempo parcial ou com pagamento à quinzena, semana ou dia) e
comportava diversas modulações (por exemplo, reduções nos serviços doméstico e
nas actividades de natureza artesanal, relacionadas com o trabalhador, relativas
à dimensão da entidade patronal e ao aumento de encargos para esta, e adaptações
às Regiões Autónomas).
Mas é também o que resulta, actualmente, do Código do Trabalho – nos termos do
qual (artigo 266.º, n.º 2) na “definição dos valores da retribuição mínima
mensal garantida são ponderados, entre outros factores, as necessidades dos
trabalhadores, o aumento de custo de vida e a evolução da produtividade” – e da
Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, que regulamentou o Código do Trabalho. Nos
termos dos artigos 207.º e segs. desta última, incluem-se, por exemplo, na
“retribuição mínima mensal garantida” (RMMG) o valor de prestações em espécie,
calculado segundo os preços correntes na região, é objecto de reduções
relacionadas com o trabalhador (para praticantes, aprendizes e estagiários que
se encontrem numa situação caracterizável como de formação certificada, ou para
trabalhadores com capacidade de trabalho reduzida), e a sua actualização em
vista à sua “adequação aos critérios da política de rendimentos e preços”.
E é, ainda, o que resulta da própria Constituição da República. Segundo o seu
artigo 55.º, n.º 2, alínea a), incumbe ao Estado assegurar as condições de
trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito,
estabelecendo e actualizando o salário mínimo nacional, “tendo em conta, entre
outros factores”, não só as “necessidades dos trabalhadores” e “o aumento do
custo de vida”, como “o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as
exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o
desenvolvimento”.
Assim, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 325/2001, de 17 de Dezembro, referiu-se
uma “especial atenção relativamente aos valores de actualização em causa,
nomeadamente recorrendo a critérios de racionalidade económica e social que, não
contrariando os níveis desejáveis de crescimento do emprego, permitam, em
simultâneo, uma elevação sustentada do poder de compra dos trabalhadores e da
competitividade das empresas nacionais” (itálicos aditados). No citado
Decreto‑Lei n.º 238/2005, de 30 de Dezembro (que por último actualizou os seus
valores), reconhece‑se, é certo que a RMMG “beneficia o conjunto de
trabalhadores que auferem retribuições mais baixas, visando a melhoria das suas
condições de vida e assegurando-lhes, nos termos constitucionais, o direito a
uma existência condigna”, mas logo se diz que se ponderou, na sua fixação,
factores como “a evolução da produtividade e a competitividade das empresas e da
economia, bem como a sustentabilidade das finanças públicas”.
Esses critérios constitucionais e legais explícitos contrariam a qualificação do
salário mínimo como garantia indispensável de um “mínimo de subsistência”,
implicado pelo valor da dignidade humana, cumprindo notar, aliás, que o que está
aqui em causa não é a existência de outras referências possíveis para definir o
limiar em causa, mas a inadequação do salário mínimo para tanto. E diga-se que,
por outro lado, tal inadequação se não prende com a possibilidade, ou não, de
afirmar qualquer presunção, relativa ou absoluta, de debilidade económica ou
social do trabalhador que aufere apenas o salário mínimo – muito menos um juízo
comparativo sobre tal debilidade económica ou social em relação aos titulares de
pensões sociais.
O salário mínimo é uma prestação retributiva do trabalho equivalente ao mínimo
que a ideia de dignidade e valor do trabalho (e não da pessoa humana) implicam –
ou, se se quiser, repete-se, da pessoa enquanto trabalhador –, e que outras
razões sociais e económicas condicionam, mas não é o critério adequado, e muito
menos constitucionalmente imposto, para uma abstracta impenhorabilidade total,
fundada na protecção da dignidade da pessoa humana. Tal função não poderia
explicar, aliás, as reduções do salário mínimo para certas situações laborais,
já referidas, ou as possibilidades de modulações (como a existência, até 1990,
de um salário mínimo agrícola e doméstico, ou a presença deste último, ao lado
do geral, até 2003). Sendo certo que é mesmo desejável que o montante do salário
mínimo se afaste, cada vez mais, do valor do “mínimo de sobrevivência condigna”,
este mínimo pode, porém, por outro lado, ser mesmo ser superior ao salário
mínimo – e muitas vezes sê‑lo-á sem dúvida (por exemplo, em agregados familiares
numerosos).
Pode, pois, dizer-se que a RMMG não é o valor referencial adequado para a
imposição de uma impenhorabilidade em abstracto, em nome do princípio da
dignidade da pessoa humana. Antes, consoante as circunstâncias, pode ser
insuficiente, ou pode, pelo contrário, ser excessivo. De acordo com as
exigências constitucionais, e quando o valor dos rendimentos do executado for
superior ao “mínimo de existência”, é aceitável, pois, a possibilidade, que
estava prevista no artigo 824.º, de, sem uma impenhorabilidade absoluta do valor
correspondente ao salário mínimo, o juiz fixar o montante penhorável entre um
terço e um sexto, ou isentar mesmo totalmente de penhora, considerando a
natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado
familiar (possibilidade, esta, de ponderação que, salvo para pensões ou regalias
sociais se encontra hoje também prevista).
9.As considerações que antecedem tornam desnecessária a apreciação da correcção
da transposição da fundamentação carreada ao Acórdão n.º 177/2002 (aceite no
Acórdão n.º 96/2004) para os rendimentos laborais do executado – vencimentos e
salários – como os que estão agora em questão.
Apenas cumpre salientar que, como se disse, a diferenciação entre estes
rendimentos e outros, como os rendimentos provenientes de prestações sociais,
para efeitos de penhorabilidade, existiu entre nós, e hoje existe novamente. Tal
compreende-se, na óptica das considerações expendidas no ponto anterior, à luz
da diferente função e natureza das prestações em causa, e designadamente da sua
natureza retributiva, ligada ao valor da prestação laboral, ou não (e não
necessariamente – repete‑se – de qualquer “presunção de debilidade, incapacidade
laboral ou desprotecção do respectivo titular”).
Pelo que, evidentemente, mesmo quem tenha aceite a exigência constitucional de
uma impenhorabilidade de rendimentos provenientes de prestações sociais como
pensões, na medida em que não deixem ao executado um montante igual ao do
salário mínimo nacional não é necessariamente levado a estender tal juízo de
inconstitucionalidade aos rendimentos laborais. E, acompanhando a diferença de
natureza destes rendimentos, será, mesmo, levado a adoptar uma conclusão
contrária.
III. Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto na
alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na
redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), na interpretação
de que permite a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando
tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o
remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário
mínimo nacional;
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão
recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres (Vencido, nos termos da declaração
de voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida, no essencial,
pelas razões constantes da declaração de voto do
Excelentíssimo Senhor Conselheiro Mário Torres)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por, pelas razões expendidas no projecto de
acórdão que apresentei, entender que a decisão recorrida devia ser confirmada,
na parte impugnada, por reputar inconstitucional – como já o fizera, em situação
idêntica, o Acórdão n.º 96/2004 –, por violação do princípio da dignidade
humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições
conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma que resulta da conjugação
do disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Código de
Processo Civil (CPC), na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 180/96, de 25 de
Setembro, na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do
executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para
satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da
disponibilidade de rendimento mensal correspondente à retribuição mínima
mensal garantida.
Nesse projecto de acórdão, após reproduzir a fundamentação
do Acórdão n.º 177/2002 (que a decisão judicial objecto do presente recurso
considerara – a meu ver, bem – aplicável ao caso dos presentes autos, apesar de
agora estar em causa a penhora de vencimentos), a argumentação do recorrente
Ministério Público já esgrimida no recurso onde foi proferido o Acórdão n.º
96/2004, a resposta que a essa argumentação foi dada nesse Acórdão e a
reiteração da tese do Ministério Público produzida nestes autos, consignei o
seguinte:
“2.6. Expostos os argumentos e contra‑argumentos das duas teses em
presença, cumpre decidir.
Mas, antes de mais, importa salientar que, apesar de estar obviamente em
causa uma questão de inconstitucionalidade normativa, não se pode olvidar que
esta surge em sede de fiscalização concreta, e não de fiscalização abstracta, de
constitucionalidade, pelo que, para o juízo a emitir, serão irrelevantes
considerações que seriam pertinentes para situações diversas da ora em causa.
No presente caso, a execução funda‑se num contrato de mútuo, celebrado em 28 de
Junho de 1994 (fls. 14 e 15), pelo qual o exequente emprestou aos executados a
quantia de 920 911$50, pelo prazo de três anos e um mês, a ser pago em 37
prestações mensais, sem indicação da finalidade do empréstimo, tendo os
executados pago apenas o total de 105 500$00. Por outro lado, tendo
inicialmente, por despacho judicial de 8 de Fevereiro de 2002 (fls. 16), sido
determinada a penhora de uma quota de que o executado marido seria titular e de
1/3 do vencimento líquido mensal de cada um dos executados, veio a constatar‑se
que a sociedade em causa cessara a actividade em 30 de Junho de 2001 (fls. 36 a
39) e, por despacho judicial de 19 de Fevereiro de 2003 (fls. 17 a 19),
confirmado pelo acórdão ora recorrido, foi revogada a determinação da penhora
dos vencimentos, com fundamento em inconstitucionalidade. Por último, resulta
abundantemente dos autos, designadamente da prova produzida no incidente de
apoio judiciário e da decisão judicial que o concedeu, que a única fonte de
rendimento dos executados consiste nos respectivos salários. Assim, pode
concluir‑se que, no presente caso, não está em causa uma execução por obrigação
de alimentos nem resulta dos autos que a execução se funde em dívida contraída
para assegurar as necessidades básicas de habitação e sustento dos executados
ou que estes tenham outras fontes de rendimentos. Neste contexto, surge como
improcedente o argumento – constante da alegação do Ministério Público – de que
não se justificaria a emissão de um juízo de inconstitucionalidade da norma
questionada, abstractamente considerada, por esse juízo pretensamente se
mostrar carecido de fundamento quando esteja em causa execução fundada em
obrigação de alimentos ou em dívida contraída para assegurar as necessidades
básicas de habitação e sustento dos executados ou quando os executados tenham
outras fontes de rendimentos para além do seu salário. [Incidindo num caso em
que estava justamente em causa a prestação de alimentos a filho menor, o Acórdão
n.º 306/2005 julgou inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3
do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da
Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 314/78, de 27 de
Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de
prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez
do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas
necessidades essenciais – considerando, porém, que, para essa específica
situação, o referencial de isenção de penhorabilidade não devia ser o critério
do «salário mínimo nacional» (válido para a generalidade dos casos), mas o
critério do «rendimento social de inserção»].
Também não procede a tese da eventual inutilidade do conhecimento do
presente recurso por pretensamente resultar de considerações constantes do
acórdão recorrido que, mesmo que não considerasse inconstitucional a norma
desaplicada, a situação concreta justificaria a emissão de juízo prudencial
denegatório da penhora. Não foi esse, manifestamente, o caminho seguido pelo
acórdão recorrido, que explicitamente recusou, com fundamento em
inconstitucionalidade, a aplicação da dimensão normativa em causa e, assim, não
enfrentou – nem tinha de enfrentar – que decisão tomaria na hipótese de não
considerar inconstitucionalmente vedada a possibilidade de determinação da
penhora do vencimento dos executados.
Isto posto, entende‑se que o juízo de inconstitucionalidade constante do
acórdão recorrido merece ser confirmado, não se afigurando procedentes os dois
argumentos esgrimidos pelo recorrente, fundados, um, na diferente natureza dos
rendimentos (pensões e salários) e, o outro, na possibilidade de intervenção
casuística do juiz.
Quanto ao primeiro argumento, cumpre, desde logo, salientar que do
confronto entre titulares de pensões e titulares de vencimentos não resulta
necessariamente uma maior debilidade social e económica dos primeiros, bastando
recordar os elevados montantes que podem assumir pensões de reforma ou de
aposentação. Como se sublinhou no Acórdão n.º 96/2004, o fundamento do juízo de
inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 177/2002 «não radicou em
qualquer presunção de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção do
respectivo titular», pois «radicou, tão‑somente, na consideração de que a
penhora deveria salvaguardar o ‘montante mínimo considerado necessário para uma
subsistência digna do respectivo beneficiário’, sendo adequado tomar como
referência de tal montante o salário mínimo nacional», prosseguindo:
«A qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação
de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma
regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência
digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode
manifestamente considerar‑se assegurado nos casos em que, não tendo o executado
outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e,
por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante
equivalente ao salário mínimo nacional.»
Nesta perspectiva, importa salientar que mesmo quem discorde da
fundamentação do Acórdão n.º 177/2002 não pode ignorar que, na sequência da
declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade nele contida,
deixou de ser juridicamente admissível a penhora até um terço das prestações
periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis
suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou
de pensão, cujo valor global não seja superior ao «salário mínimo nacional»
[actualmente designado «retribuição mínima mensal garantida» (artigo 266.º do
Código do Trabalho) e actualizada, por último, pelo Decreto‑Lei n.º 238/2005, de
30 de Dezembro)]. Perante esta constatação, surge como destituída de fundamento
razoável, e por isso violadora do princípio da igualdade, a admissibilidade de
penhora que coloque o executado na mesma situação de privação que o Acórdão n.º
177/2002 considerou intolerável, só porque aqui a fonte do rendimento é o
salário e ali era uma pensão.
Quanto ao segundo argumento, há que salientar que o juízo de
inconstitucionalidade visa afastar a aplicação de normas jurídicas que se
mostrem desconformes com normas ou princípios constitucionais. Pretende‑se a
eliminação de normas violadoras da Constituição e esse objectivo não é
assegurado se se permite a persistência na ordem jurídica de normas
inconstitucionais com a mera esperança de que uma intervenção casuística de um
juiz mais sensível ou atento venha a evitar a produção do resultado tido por
constitucionalmente intolerável: a privação dos rendimentos estritamente
necessários a uma vida minimamente condigna do executado e do seu agregado
familiar. Como se salientou no Acórdão n.º 177/2002, «o efeito do julgamento de
inconstitucionalidade [traduz‑se], apenas, em excluir a ponderação do tribunal
sobre a admissibilidade da penhora nos casos em que o montante da pensão
abrangida não é superior ao salário mínimo, por se entender que, em tais casos,
a penhora afecta sempre de forma inaceitável a satisfação das ‘necessidades do
executado e seu agregado familiar’».
Improcedendo, assim, as críticas endereçadas pelo recorrente ao Acórdão
n.º 96/2004, há que reiterar o juízo de inconstitucionalidade dele constante.”
Em conformidade com esse entendimento, votei no sentido de
que o Tribunal julgasse inconstitucional, por violação do princípio da dignidade
humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das
disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e
3, da CRP, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e
do n.º 2 do artigo 824.º do CPC (na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 180/96,
de 25 de Setembro), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário
do executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para
satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da
disponibilidade de rendimento mensal correspondente à retribuição mínima
mensal garantida; assim se negando provimento ao recurso e confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada – tal como, em situação idêntica, o fizera o
Acórdão n.º 96/2004.
Mário José de Araújo Torres