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Processo nº 509/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que
figura como recorrente o Ministério Público e como recorrido A., o Tribunal da
Relação de Coimbra proferiu o seguinte acórdão, com data de 21 de Março de 2006:
I)- A COMPANHIA DE SEGUROS B., S.A. instaurou, no Tribunal Judicial de Pombal,
no dia 09.09.2003, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra
A., com vista a exercer o direito de regresso contra o Réu, pedindo a condenação
deste ao pagamento da quantia de € 12.557,62, acrescida de juros de mora, à taxa
legal, a contar da citação.
Alegou, em resumo, ser o Réu o único culpado num acidente de viação, quando
conduzia um veículo automóvel sob a influência do álcool, estado este causador
do acidente. Por virtude do contrato de seguro, a Autora estava vinculada a
indemnizar terceiros em que interviesse o veículo conduzido pelo Réu, tendo já
satisfeito as indemnizações devidas.
Foi expedida carta registada com A/R para citação do Réu, tendo em conta a
morada indicada na petição inicial, carta essa devolvida com as indicações de
“não atendeu” e “não reclamada”.
Frustrada a citação por via postal, a secretaria solicitou informação sobre a
residência do Réu, junto das bases de dados dos serviços de identificação civil,
da segurança social, da Direcção Geral de Viação e da Direcção Geral dos
Impostos.
Obtida tal informação, e não coincidindo a residência indicada na petição com as
várias residências constantes da base de dados daqueles serviços, foi expedida
carta simples para cada um desses locais, tendo os distribuidores depositado, no
dia 01.06.2004, as cartas nas caixas postais indicadas nas bases de dados
daqueles serviços e indicado, nas declarações remetidas ao Tribunal, o depósito
naquele dia.
No dia 13.10.2004, o Réu contestou e arguiu a falta de citação, dizendo que não
reside na morada indicada na petição, e desde Dezembro de 2001 que reside no
Bairro …, em Várzea, Marinha Grande, e só no dia 29 de Setembro de 2004 tomou
conhecimento da carta para citação.
Foi proferido despacho a julgar válida a citação por depósito da carta na caixa
do correio do Réu, por via postal simples, remetida que foi a carta para uma das
caixas postais que correspondia à residência indicada pelo Réu, ou seja, o
Bairro Gustavo de Carvalho, n.º8, Várzea, Marinha Grande. Foi, ainda, julgada
extemporânea a contestação, ordenando-se o seu desentranhamento e dos demais
articulados posteriores apresentados pela Autora e Réu. De seguida, e como
efeito da revelia do Réu, foi proferida sentença condenatória.
Irresignado com a sentença, apelou o Réu, pugnando pela sua revogação, e
rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª-O art. 238º do CPC, na redacção dada pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, é
materialmente inconstitucional e ilegal, por violação dos arts. 13º, 20º e 2º da
Constituição da República Portuguesa e viola o art. 10º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem - que garantem o direito de acesso ao direito e à tutela
jurisdicional efectiva, na vertente do direito de defesa em processo e direito
ao contraditório, e um desrespeito do princípio da igualdades (processual),
plasmado de forma genérica no art. 13º, ambos com expressão mais ampla no art.
2º da Lei Fundamental e o direito em plena igualdade, a que a sua causa seja
equitativa e publicamente julgada, nos termos do art. 10º da DUDH;
2ª-O art. 238º do CPC, na redacção dada pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, é também
organicamente inconstitucional, por violação dos arts. 168º, n.º1, alínea b) da
CRP, que estabelece que é da competência exclusiva da Assembleia da República
legislar sobre direitos, liberdades e garantias (logo, também sobre direitos a
estes análogos), só podendo o Governo legislar sobre tal matéria com precedência
de autorização legislativa conferida pela AR- arts. 168º, n.º1, alínea b) e
201º, n.º1, alínea b) da CRP- mediante invocação expressa da respectiva lei de
autorização legislativa art. 201º, n.º3 da CRP;
3ª- Face à inconstitucionalidade do referido art. 238º do CPC, na redacção dada
pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, a pretensa citação postal simples do ora
Apelante, ao abrigo desse regime, deve considerar-se nula, ilegal, ineficaz e
inexistente, não podendo ser-lhe oposta (nem podendo, naturalmente, funcionar a
presunção da sua citação na data em que foi depositada em caixa de correio a
respectiva nota de citação);
4ª- A citação só deve considerar-se validamente efectuada com a intervenção
processual do Apelante e sanação, por esta forma, da falta da sua válida citação
anterior, devendo, por isso, considerar-se válida e tempestiva a contestação e
tréplica dirigidas ao Tribunal a quo e ser repetido todo o processado
subsequente.
A Autora contra-alegou em defesa do julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II- Sendo o objecto do recurso delimitado, em princípio, pelas conclusões da
alegação (arts. 690º, n.º e 684º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC), a única
questão decidenda consiste em saber se o art. 238º do CPC, na redacção
introduzida pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, está ferido de inconstitucionalidade
material e orgânica.
Vejamos.
O art. 1º do DL n.º 183/2000, de 10 de Agosto, deu a seguinte redacção ao art.
238º do CPC:
“1- No caso de se frustrar a citação por via postal, a secretaria obterá
informação sobre a residência, local de trabalho ou, tratando-se de pessoa
colectiva ou sociedade, sobre a sede ou local onde funciona normalmente a
administração do citando, nas bases de dados dos serviços de identificação
civil, da segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral
de Viação.
2- Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a
administração do citando, para o qual se endereçou a carta registada com aviso
de recepção, coincidir com o local obtido junto de todos os serviços enumerados
no número anterior, procede-se a citação por via postal por meio de carta
simples, dirigida ao citando e endereçada para esse local, aplicando-se o
disposto nos n.ºs 5 a 7 do art. 236º-A.
3-Se a residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a
administrarão do citando, para o qual se endereçou a carta registada com aviso
de recepção ou a carta simples, não coincidir, não coincidir com o local obtido
nas bases de dados de todos os serviços enumerados no n.º1, ou se nestas
constarem várias residências, locais de trabalho ou sedes, será expedida uma
carta simples para cada um desses locais.”
Nos n.ºs 5 a 6 do art. 236º-A, aditado ao CPC pelo citado DL 183/2000,
prescreve-se o seguinte:
“5- O funcionário judicial deve lavrar uma cota no processo com indicação
expressa da data da expedição da carta simples ao citando e do domicílio ou sede
para a qual foi enviada.
6- O distribuidor do serviço postal procede ao depósito da referida carta na
caixa do correio do citando e lavra uma declaração indicando a data e
confirmando o local exacto desse depósito, remetendo-a de imediato ao tribunal.
7-Se não for possível proceder ao depósito da carta na caixa do correio do
citando, o distribuidor do serviço postal lavrará nota do incidente, datando-a e
remetendo-a de imediato ao tribunal, excepto no caso do depósito ser inviável em
virtude das dimensões da carta, caso em que deixará um aviso nos termos do n.º5
do artigo anterior.”
O art. 233º, na redacção introduzida pelo DL 183/2000, na alínea b) do n.º2,
passou a contemplar uma nova modalidade da citação mediante depósito da carta na
caixa do correio do citando, nos casos de citação por via postal simples. O n.º2
do também aditado art. 238º-A, determinava o momento em que se considerava
efectuada a citação por via postal simples, realizada ao abrigo do disposto no
n.º 2 do art. 238º. O art. 252º-A, também alterado, fixou a dilação em 30 dias
quando o réu haja sido citado por via postal simples ao abrigo do disposto no
art. 236º-A.
Na decisão impugnada julgou-se, e bem, ser aplicável aos autos o regime
adjectivo introduzido no CPC pelo DL n.º 183/2000, de 10 de Agosto, que entrou
em vigor no dia 1 de Janeiro de 2001, contemplando uma nova modalidade de
citação pessoal mediante depósito da carta na caixa do correio do citando, nos
casos de citação por via postal simples. Modalidade essa que o DL n.º 38/2003,
de 8 de Março, ao modificar o regime do CPC, fez cessar. Mas inaplicável tal
disciplina ao presente processo instaurado no dia 09.09.2003, em virtude de tal
diploma ter entrado em vigor no dia 15 de Setembro de 2003 e, no âmbito da
citação, apenas ser aplicável aos processos instaurados a partir daquele dia
(art. 21º do citado diploma). E aplicado à citação o regime do DL n.º 183/2000,
foi a citação por via postal simples julgada validamente efectuada, uma vez
frustrada a citação por via postal registada. Tão pouco o Apelante diverge da
correcção do julgamento, por aplicação do regime introduzido no CPC pelo DL n.º
183/2000.
Como vem salientado no preâmbulo do DL. n.º 183/2000, foi propósito do
legislador combater a morosidade processual, reconhecendo-se que uma das fases
mais demoradas do processo civil é a da citação, não sendo raro esperar-se meses
ou mais de um ano até à sua realização, e urgindo enquadrar o regime da citação
na sociedade actual, adequando-o aos problemas de morosidade processual que o
sistema enfrenta, abriu-se a possibilidade da citação por via postal simples em
duas situações, sendo uma delas, nos casos de frustração da citação por via
postal, se a residência, local de trabalho ou, tratando-se de pessoa colectiva,
sede ou local onde funciona normalmente a administração do citando constar das
bases de dados dos serviços de identificação civil, segurança social,
Direcção-Geral dos Impostos e Direcção-Geral de Viação. Mais se salienta que a
introdução da citação por via postal simples, para os casos de frustração por
via postal, torna residual o recurso à citação por funcionário judicial,
passando esta a ser efectuada se consubstanciar o meio mais célere de a
realizar.
Mas o art. 238º do CPC, na redacção dada pelo DL n.º 183/2000, aplicado à
citação a que se procedeu nos presentes autos, está, afinal, ferido de
inconstitucionalidade material?
Alega o Apelante, tal como se infere da conclusão 1ª, que tal norma, ao prever a
citação por via postal simples, viola os arts. 13º, 20º e 2º da Constituição da
República Portuguesa e até o art.10º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem.
Será assim?
Na definição do art. 228º, n.º1 do CPC, “a citação é o acto pelo qual se dá
conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama
ao processo para se defender. Emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez,
ao processo alguma pessoa interessada na causa.” E como flui do n.º1 do art. 3º
do mesmo diploma, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a
acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra
seja devidamente chamada para deduzir oposição. E o n.º2 prescreve que só em
casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra
determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. É a afirmação do
princípio do contraditório, que, nos termos do n.º3, o juiz deve observar e
fazer cumprir, ao longo de todo o processo.
Tal princípio também expressamente consagrado no art. 32º, n.º5, in fine, da Lei
Fundamental, tal como o princípio da igualdade das partes, imposto pelo art.
3º-A, consagra o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no
art. 20º daquele diploma, na vertente em que todos têm direito a que uma causa
em que intervenham decorra mediante um processo equitativo (parte final do
n.º4). É o direito fundamental de qualquer pessoa a um processo justo, a um
processo que apresente garantias de justiça, no que concerne à sua estrutura, e
que o art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagra, ao
consignar que “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa
seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial
que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em
matéria penal que contra ela seja deduzida”. Direito a um processo equitativo -
ou nas expressões inglesas due process of law ou fair trial -fair hearing -
também consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no
art. 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Na
lição do Prof. Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da
Constituição”, 7ª edição, p. 274, do princípio do Estado de Direito, previsto no
art. 2º da Lei Fundamental, “deduz-se sem dúvida, a exigência de um procedimento
justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a
realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e
do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por
garantias gerais de procedimento e de processo”.
O acto da citação, sempre que ela seja possível, deve, pois, garantir um
efectivo ou eficaz chamamento à acção ou um efectivo conhecimento por parte do
réu de que foi proposta contra ele determinada acção, sem o qual acaba
postergado o direito fundamental de qualquer cidadão a um processo equitativo.
Deve tal acto processual fornecer garantias de efectivo conhecimento por parte
do Réu da acção contra ele instaurada. Tais garantias não podem ser
subalternizadas face a plausíveis razões de celeridade processual, sabido que
frequentemente o demandado tudo faz para dificultar a citação, e sendo certo que
o n.º4, 1ª parte, do art. 20º da Lei Fundamental também consagra o direito a uma
decisão jurisdicional em prazo razoável. Como vem sublinhado no acórdão do
Tribunal Constitucional - Acórdão n.º 678/98, publicado no DR, II Série, de
04.03.1999, “a celeridade processual, conquanto sendo um valor que deve presidir
à administração da justiça, não poderá, claramente, ser erigida a um tal ponto
que, em seu nome, vá sacrificar aqueles outros valores que, afinal, são
componentes de direitos fundamentais, tais como os do acesso aos tribunais em
condições de igualdade e de uma efectividade de defesa”.
Ora, o recurso à citação por via postal simples, ao abrigo do art. 238º do CPC,
na redacção conferida pelo DL n.º 180/2000, aplicável no caso de frustração da
citação por via postal registada, não garante, a nosso ver, um eficaz chamamento
do réu à demanda ou uma rigorosa observância do princípio do contraditório e da
igualdade armas ou igualdade processual. São exigíveis rigorosas garantias da
eficácia do acto da citação, tendo designadamente em conta as gravosas
consequências ligadas à falta de contestação. Na esteira da fundamentação
expendida no acórdão do STJ, publicado no BMJ n.º 457, p. 292, a citação “é o
acto mais relevante para efeitos da realização do princípio do contraditório,
sem o qual não há transparência nem garantias de defesa”. Assim se compreende
que o legislador, através do DL n.º 38/2003, de 8 de Março, face aos riscos que
representava para a defesa do réu a citação por via postal simples, se
apressasse a fazer cessar tal citação.
Como acertadamente afirma o Apelante, “o mecanismo da citação por via postal
simples, tal como o estabeleceu o art. 238º, na redacção dada pelo Dec.Lei n.º
183/2000, de 01/08, é assim materialmente inconstitucional na medida em que pode
inviabilizar o conhecimento por parte do cidadão, pelo mesmo em tempo útil para
a efectivação de uma defesa cabal, de que foi contra si proposta uma acção e
“aquele regime da citação por via postal simples consubstancia um desequilíbrio
inadmissível no campo dos princípios do contraditório e da igualdade,
constituindo uma violação do direito de acesso à justiça, consagrado no art. 20º
da Constituição, na vertente do direito de defesa e de garantia do princípio do
contraditório, e um desrespeito do princípio da igualdade, plasmado de forma
genérica no art. 13º, ambos com expressão ampla no art. 2º da Lei Fundamental”,
acrescentando nós, também, que viola o princípio do contraditório expressamente
previsto no art. 32º, n.º5, in fine, da CRP, formulado a propósito do processo
penal, mas extensivo, por paridade de razão, a todas as formas de processo.
Procede, pois, a argumentação vertida pelo Apelante na conclusão 1ª, atinente à
defesa da inconstitucionalidade material do art. 238º do CPC, na redacção dada
pelo DL n.º 183/2000, de 10/08, sendo inaplicável à citação, ficando, em
consequência, prejudicada a questão da invocada inconstitucionalidade orgânica
de tal norma a que alude a 2ª conclusão.
Nas conclusões 3ª e 4ª, o Apelante é de opinião que a citação a que se procedeu
por via postal simples é nula, ilegal, ineficaz e inexistente, mas face à
contestação espontaneamente apresentada, no dia 13.10.2004, deve manter-se tal
contestação como acto válido, assim como os articulados subsequentes cujo
desentranhamento foi ordenado. Justifica-se por razões de economia processual,
apesar da falta de citação e porque é essa a pretensão do Réu, que tais peças
processuais se mantenham validamente nos autos, ficando sanada tal nulidade.
Obviamente, apenas não pode ser mantida a sentença impugnada que julgou
extemporânea a contestação e, na sequência, condenou o Réu, ora Apelante, a
pagar à Autora a quantia peticionada, devendo, assim, os autos seguir os seus
trâmites normais.
III)- Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em:
1-Conceder provimento ao recurso.
2-Revogar a sentença impugnada, julgando válida a contestação apresentada e
articulados subsequentes, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais.
2-As custas do recurso serão pagas pela parte vencida a final.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do
artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação
da norma do artigo 238º do Código de Processo Civil.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu
do seguinte modo:
1 – A norma constante do artigo 238° do Código de Processo Civil, na redacção
emergente do Decreto-Lei n° 183/00, ao estabelecer que se presume, em termos
absolutos e irremediáveis, que o citando reside ou trabalha em algum dos locais
referenciados nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da
segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação,
ficcionando-se que o demandado teve oportuna cognoscibilidade da pretensão
contra ele formulada através do simples depósito de carta nos respectivos
receptáculos postais, ficando sujeito ao consequente efeito cominatório da
revelia e ao caso julgado, formado no caso de procedência da pretensão, qualquer
que seja o montante desta, viola desproporcionadamente os princípios da
proibição da defesa e do processo equitativo.
2 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade
formulado pela decisão recorrida.
O recorrido não contra‑alegou.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
2. O presente recurso de constitucionalidade tem por objecto a norma do artigo
238º do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei nº 183/2000, de 1
de Agosto, interpretada no sentido de presumir, nos casos em que se frustra a
citação por via postal registada, que o citando reside em algum dos locais
referenciados nas bases de dados dos serviços públicos indicados no preceito,
consumando‑se a citação (independentemente do valor da acção) com o mero
depósito de carta simples no receptáculo postal das residências presumidas,
independentemente de o citando ter ou não efectivo e oportuno conhecimento da
existência do acto e do respectivo conteúdo.
O regime de citação por via postal simples consagrado pelo Decreto-Lei nº
183/2000, de 10 de Agosto, entretanto revogado pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8
de Março, procedeu à desformalização do acto de citação, através da ampla
admissibilidade da citação por via postal simples, presumindo‑se a citação
pessoal quando se deposita a carta no receptáculo postal de um dos domicílios
constantes das bases de dados de certas entidades legalmente referidas. Subjaz,
naturalmente, a tal solução o valor da celeridade processual.
Contudo, a celeridade processual tem de ser conjugada com outros valores,
nomeadamente com o direito de acesso à justiça e aos tribunais e com a
possibilidade de contraditório, numa lógica de proporcionalidade que impede uma
absolutização das opções legislativas.
Nos presentes autos, a dimensão normativa em causa é aplicada estando em causa a
efectivação de responsabilidade civil extra‑contratual, o que exclui a
existência de um domicílio convencional ou electivo. Por outro lado, o valor da
pretensão é de € 12.557,62. Se o demandado não contestar fica sujeito ao efeito
cominatório semi‑pleno (confissão dos factos alegados pelo autor) e caso os
autos prossigam, ao efeito do caso julgado. Por último, e as várias bases de
dados consultadas revelaram residências não coincidentes.
Não está, pois, em causa uma situação equiparável àquelas para as quais o
Decreto-Lei nº 383/99, de 23 de Setembro, admitiu, como “última ratio”, a
citação por via postal simples, situações que se traduziam em “acções de massa”
e de reduzido valor, com consequências na esfera do demandado de diminuta
importância.
O Tribunal Constitucional já apreciou dimensões normativas do regime de citação
em questão, formulando juízos que ponderaram as particularidades de cada
situação processual concreta.
Assim, no Acórdão nº 287/2003 (www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional o artigo 238º, nº 2, do Código de
Processo Civil, segundo o qual se deve proceder à imediata citação do réu por
via postal simples, nos casos de frustração de citação por via postal registada,
sem que o tribunal deva averiguar, por consulta das bases de dados referidas no
nº 1 do preceito, se a residência indicada pelo credor (em acção subsequente ao
procedimento de injunção) coincidia ou não com o teor dos registos públicos
constantes daquelas bases.
Já no Acórdão nº 104/2006 (www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal
Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20º,
nºs 1 e 4, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do
artigo 238º-A, nº 4, do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei nº
183/2000, de 10 de Agosto, quando aplicada em casos de intervenção provocada em
que a não intervenção do chamado no processo não impeça que se constitua, quanto
a ele, caso julgado”.
Este Acórdão convoca os princípios da proibição da indefesa e da
proporcionalidade (assim como os sub‑princípios da adequação e da necessidade),
ponderando os interesses em jogo, a possibilidade de formação de caso julgado
contra o requerido e a inexistência de domicílio convencional ou electivo.
Não se afigura procedente afirmar que a necessidade de conciliar “lógicas e
princípios diversos”, articula, na concreta tramitação do processo civil, a
regra do contraditório com as exigências de celeridade e eficácia que não se
compadecem com “investigações exaustivas e infindáveis” sobre o paradeiro do
réu, como entendeu o Tribunal Constitucional nos Acórdãos nºs 91/2004 e
243/2005, ainda que em situações também diversas da dos autos.
Não se preconiza, evidentemente, a paralisação do processo quando não se consiga
localizar o réu. O que está em causa nos presentes autos é saber se o regime em
apreciação não origina uma ponderação desproporcionada do valor celeridade e dos
interesses da administração judiciária numa simplificação e numa desformalização
processuais sobre o direito de defesa do demandado.
A resposta do tribunal a esta inquirição não pode deixar de ser afirmativa. Com
efeito, afigura‑se desproporcionado, em face das respectivas consequências
referidas supra, considerar definitivamente como actual, isto é, sem qualquer
possibilidade de infirmação, a morada que consta das bases de dados indicadas
nos autos em questão e presumir que a citação por via postal simples é
suficiente para assegurar a cognoscibilidade da pretensão do demandante e para
assegurar o direito de defesa, mesmo nos casos em que foi alegado e demonstrado
que,
à data do depósito da carta no receptáculo postal, o demandado já não residia
no local.
Não procede contra este entendimento o argumento segundo o qual impende sobre os
sujeitos o ónus de manter actualizadas as informações constantes dessas bases de
dados. De facto, não está em causa um litígio que oponha o sujeito e uma das
instituições que detêm as bases de dados (o que poderia merecer uma ponderação
diversa), mas sim um litígio entre particulares surgindo um contexto
(responsabilidade civil extracontratual) no qual não faz sequer sentido invocar
um domicílio electivo ou convencional.
A norma em apreciação viola, pois, os princípios da proporcionalidade, da
proibição de indefesa e do processo equitativo (artigo 20º da Constituição).
III
Decisão
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º da Constituição, a norma
constante do artigo 238° do Código de Processo Civil, na redacção emergente do
Decreto-Lei n° 183/00, ao estabelecer que se presume, em termos absolutos e
irremediáveis, que o citando reside ou trabalha em algum dos locais
referenciados nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da
Segurança Social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação,
ficcionando-se que o demandado teve oportuna cognoscibilidade da pretensão
contra ele formulada através do simples depósito de carta nos respectivos
receptáculos postais – e quando foi demonstrado pelo réu que, à data do
depósito da carta na caixa do correio, já não residia no local – ficando sujeito
ao consequente efeito cominatório da revelia e ao caso julgado, formado no caso
de procedência da pretensão, qualquer que seja o montante desta;
b) Confirmar, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade
constante da decisão recorrida.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos