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Processo n.º 828/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 587 foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. Por acórdão da 6.ª Vara Criminal de Lisboa de 14 de Março de 2003, de fls.
436, a arguida A., LDA., foi condenada pela prática de um crime de abuso de
confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 7.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, 4
e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º
15/2001, de 5 de Junho, na pena de 400 dias de multa, à razão diária de € 30,
perfazendo o total de € 12.000. Foram ainda condenados cada um dos arguidos B. e
C., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido
pelos artigos 6.º, 7.º, n.º 3, e 105.º, n.º 1, 4 e 5, do mesmo RGIT, na pena de
3 anos de prisão suspensa na execução pelo período de 3 anos, com condição de
pagarem solidariamente à Administração Fiscal, no prazo de 18 meses, o montante
de € 314.242,67.
Na parte que agora releva, afirmou-se o seguinte no referido acórdão:
«Em síntese, dizem os arguidos, na sua contestação (…) que essas disposições» as
constantes dos artigos 6.º, 24.º e 25.º do Regime Jurídico das Infracções
Fiscais Não Aduaneiras, a que correspondem as normas do RGIT ao abrigo das quais
os arguidos vieram a ser condenados]«estabelecem uma manifesta possibilidade de
prisão por dívidas, violando particularmente o disposto no artº 1º do protocolo
n.º 4 adicional à Convenção europeia dos Direitos do Homem e nos artº 8.º, n.º
2, e 27.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa; que o bem
jurídico subjacente à criminalização fiscal é o pagamento de uma dívida ao
Estado; que o referido regime permite a punição simultânea de pessoas singulares
que actuam como órgãos e representantes da pessoa colectiva e da própria pessoa
colectiva, em violação dos princípios “ne bis in idem” e da culpa.
Juntaram ainda, para sua apreciação, o documento de fls. 392 a 418 – consulta ao
Prof. Manuel da Costa Andrade.
Tais questões já haviam sido colocadas pelos arguidos aquando do seu julgamento
em processo anterior que correu termos no 2.º Juízo doTribunal Judicial de
Lamego, a propósito das quais se pronunciaram as várias instâncias, como decorre
da certidão junta aos presentes autos, de fls. 223 a 258.
Concretamente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se aí pela ausência de
fundamento de inconstitucionalidade e acertadamente, na esteira do já decidido
no acórdão do mesmo Tribunal, com o n.º 312/2000, publicado no DR, II Série, de
17.10.2000, a págs. 16.728 e segs., sem que se requeiram acrescidas explicações.
(…)
Em resumo, a ausência de razão dos arguidos prende-se com as seguintes
considerações:
- o bem jurídico protegido pela incriminação no regime referido –
aprovado pelo Dec. Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com as alterações do Dec.
Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro –, é constituído, no seu conjunto, pelo
património fiscal do Estado, como instrumento de política financeira e
distributiva – e não só como mero meio de recebimento de impostos –, com
dignidade constitucional – v. arts. 103.º e 104.º da Constituição – no sentido
de promoção da diminuição das desigualdades, da igualdade dos cidadãos e da
justiça social;
- o que se proíbe no art. 29.º, n.º 5, da Constituição, é a punição da
mesma pessoa pelos mesmos factos e não de pessoas diversas, como juridicamente
são as pessoas singulares e as pessoas colectivas;
- a causa primeira da punição é a prática de um facto punível e não o
incumprimento de uma obrigação contratual;
- a obrigação em causa é uma obrigação fundada na lei, pelo que não
contende com a referida previsão adicional à Convenção Europeia dos Direitos do
Homem segundo a qual “ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão
de não poder cumprir uma obrigação contratual”, nem com o direito à liberdade e
segurança;
- entre a pessoa singular, como representante da pessoa colectiva, e a
própria pessoa colectiva existe uma diferente culpa e uma diferente igualdade
fáctica;
- nada impede do ponto de vista constitucional a aplicação de sanções
não civis às pessoas colectivas;
Os fundamentos invocados não podem pois proceder, falecendo o juízo de
inconstitucionalidade sufragado pelos arguidos.
Outras considerações não se justificam, remetendo-se para anteriores decisões
mencionadas, assim se concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade que
obste à subsunção jurídica e nos moldes descritos dos factos assentes.»
2. Inconformados, os arguidos interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, recurso que, todavia veio a ser julgado improcedente por acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Julho de 2006, de fls. 527.
Sobre a alegada violação do princípio da proibição da prisão por dívidas, o
Tribunal da Relação de Lisboa observou, nomeadamente, que «sobre esta questão e
no mesmo sentido se pronunciou já o tribunal Constitucional, pelo menos nos
Acórdãos n.º 312/00, DR, II, de 17/10/00, e 516/00, processo n.º 80/00, pelo
que, sem necessidade de mais considerações, em face dos valores em causa, não
pode falar-se em prisão por dívidas nem, consequentemente, na violação da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, nomeadamente, dos artigos 8.º, n.º
2, 27.º, n.º 1 e 2, e 13.º, n.º 2, da CRP».
Quanto à questão de saber se o RJIFNA, ao permitir, nos termos dos artigos 6.º e
7º, a punição simultânea de pessoas singulares que actuam como órgãos e
representantes da pessoa colectiva e a própria pessoa colectiva, viola o
princípio constitucional ne bis in idem, afirma-se no mencionado acórdão da
Relação o seguinte: «Para além do que já se explanou na decisão recorrida, com a
qual se concorda de todo, também a resposta já está contida em parte na resposta
à questão (..) [anterior] 'e considerando a posição de não inconstitucionalidade
que tem vindo a ser assumida pelo TC e cujos argumentos não temos de momento
razão válida para contradizer.
Em síntese, é também evidente para nós que não constitui dupla punição da mesma
pessoa pelo mesmo facto. Até porque se trata de pessoas jurídicas distintas com
nível de responsabilidade legal bem diferenciada. E no RJIFNA a opção feita
foi-o no sentido da punição, nas condições aí enunciadas, da pessoa colectiva e
dos seus agentes. Perante o mesmo facto'.
3. Ainda inconformados, os arguidos vieram, «nos termos da alínea b) do
n.º 1 do artº 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, recorrer do douto Acórdão [do Tribunal da
Relação de Lisboa] para o Tribunal Constitucional» suscitando a questão da
constitucionalidade das seguintes normas:
«a) O artº 105.º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho,
anterior artº 24.º do RJIFNA que viola o disposto no artº 1.º do protocolo n.º 4
adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artº 8.º, n.º 2, e 27.º,
n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, por estabelecerem uma
possibilidade manifesta de prisão por dívidas.
b) Os artºs 6.º e 7.º do RGIT, anteriores artºs 6.º e 7.º do RJIFNA,
que permitem a punição simultânea de pessoas singulares que actuam como órgãos e
representantes da pessoa colectiva e a própria pessoa colectiva – o que
constitui flagrante violação do princípio constitucional “ne bis in idem”, artº
29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (na modalidade de dupla
punição indevida pelo mesmo facto).»
4. As questões de constitucionalidade suscitadas pelos
recorrentes foram já objecto de apreciação por este Tribunal.
Desde logo, no Acórdão n.º 389/2001, junto a fls. 251 e proferido num recurso
interposto pelos ora recorrentes, o Tribunal desatendeu as duas questões de
constitucionalidade que se colocam no presente recurso, embora então referidas
às normas dos artigos 24.º e 25º, por um lado, e 6.º e 7.º do RJIFNA, por outro,
mas sustentadas nos mesmos argumentos, todos analisados.
Note-se, aliás, que neste acórdão n.º 389/2001 se julgou de acordo com a
jurisprudência já então seguida no Tribunal Constitucional, como nele se afirma,
citando os acórdãos n.ºs 312/2000 (Diário da República, II série, de 17 de
Outubro de 2000), quanto à primeira questão, e os acórdãos n.ºs 212/95, 213/95 e
569/98 (publicados no Diário da República, II série, de 24 de Junho de 1995, de
26 de Junho de 1995 e de 26 de Novembro de 1999, respectivamente), relativamente
à segunda.
Já, aliás, tinha sido também proferido o acórdão n.º 516/2000 (Diário da
República, II série, de 31 de Janeiro de 2001), que considerara transponíveis os
fundamentos do acórdão n.º 312/2000 para a norma então em análise – 'a norma
constante do artigo 27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não
Aduaneiras' (crime de abuso de confiança em relação à segurança social).
Posteriormente, no acórdão n.º 54/2004 (disponível, tal como os outros acórdãos
citados, em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional, que
expressamente reiterou a jurisprudência anterior, decidiu-se 'não julgar
inconstitucional a norma do artigo 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções
Tributárias', que o então recorrente acusava igualmente de violar a proibição
constitucional de 'prisão por dívidas'.
É esta jurisprudência que novamente se reitera, relativamente a cada uma das
questões suscitadas no presente recurso.
5. Não se esquece que os recorrentes afirmam, no requerimento de interposição de
recurso, que «o Tribunal Constitucional ainda não se pronunciou sobre a questão
concretamente suscitada da prevalência do princípio constitucional da culpa
“quando pelo mesmo facto sc., pela mesma culpa, se punem dois agentes distintos
(a pessoa colectiva e as pessoas físicas dos seus órgãos ou representantes)”».
A verdade, todavia, é que o acórdão n.º 389/2001 se lhe refere; e que, como se
afirmou no Acórdão n.º 212/95 nele citado, o princípio non bis in idem «não vem
posto em causa, em qualquer das suas (…) dimensões, porquanto tal princípio não
obsta a que pelo mesmo facto objectivo venham a ser perseguidas penalmente duas
pessoas jurídicas diferentes, sendo também passíveis de sanções diferentes».
Para além disso, e como se disse no mesmo aresto, «a punição penal de quem age
em nome de outrem – entre nós expressamente prevista no artigo 12.º do Código
Penal – não pode dispensar a responsabilização directa da pessoa colectiva: as
pessoas colectivas são, actualmente, as entidades que cometem as maiores e mais
graves violações dos valores que o direito penal secundário deve proteger (…)
Por outro lado, como afirma Figueiredo Dias (…):
Acresce que a 'transferência' da responsabilidade, que verdadeiramente caiba à
pessoa colectiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão
ou representante conduziria muitas vezes – sobretudo nos delitos económicos de
grandes empresas, vg., multinacionais, com diversificadas esferas de
administração, donde deriva uma acentuada repartição de tarefas e de
competências – à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do
nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do
bem jurídico produzido ao nível da pessoa colectiva.
Se estes argumentos servem para demonstrar a necessidade da responsabilização
das pessoas colectivas, mostram também que a consagração legal da
responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente colectivo pelos
mesmos factos não viola o princípio do non bis in idem uma vez que não existe um
duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto, não se verificando, assim,
qualquer violação do artigo 29º, n.º 5, da Constituição.»
6. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão
sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Assim, pelos fundamentos constantes dos acórdãos n.ºs 212/95, 312/2000,
516/2000, 389/2001 e 54/2004, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o
acórdão recorrido no que respeita às questões de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. por cada um.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da
decisão sumária. Em síntese, sustentam que as questões que suscitaram 'são de
grande complexidade e relevância', devendo portanto o recurso ser julgado em
secção e não através de uma decisão sumária .
Em particular, os reclamantes observam que 'o Tribunal Constitucional ainda não
se pronunciou sobre a questão concretamente suscitada da prevalência do
princípio constitucional da culpa 'quando pelo mesmo facto sc., pela mesma
culpa, se punem dois agentes distintos (a pessoa colectiva e as pessoas físicas
dos seus órgãos ou representantes)'.
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de
ser 'manifestamente improcedente a reclamação', já que a decisão reclamada se
apoia em 'jurisprudência firme e reiterada do Tribunal Constitucional sobre as
questões de inconstitucionalidade colocadas', verificando-se assim um dos
pressupostos de julgamento do recurso de constitucionalidade através de decisão
sumária.
4. Com efeito, a reclamação é improcedente, desde logo porque os reclamantes não
apontam nenhum argumento que não tenha sido apreciado na decisão reclamada, que
fez seus os fundamentos constantes da jurisprudência constitucional nela citada
e, em parte, transcrita.
É essa jurisprudência que novamente se reitera.
Cumpre apenas acrescentar que não é exacto que tenha ficado por apreciar a
questão que os reclamantes sustentam não ter sido considerada, como se pode
verificar pelo texto da decisão reclamada. Não tendo sido aduzidos argumentos
novos, tem pleno cabimento remeter para a jurisprudência anterior, como ali se
fez.
5. Assim, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de negar provimento
ao recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs. por cada um.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício