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Processo n.º 854/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Inconformada com o acórdão da Relação de Lisboa que, confirmando a
sentença da 1ª instância, manteve a decisão de atribuição da casa de morada da
família ao seu ex-marido, A., B. dele interpôs recurso de revista para o Supremo
Tribunal de Justiça, tendo nas alegações respectivas (fls. 564 e seguintes)
concluído do seguinte modo:
“1. Na pendência da Acção de Divórcio, e em sequência do requerido pela ora
Recorrente nos termos do artº 1407° do Código Processo Civil, veio o Recorrido
com uns Autos de Atribuição da Casa de Morada de Família, pedindo que a mesma
lhe fosse atribuída definitivamente e vindo a utilização provisória da mesma, a
tornar-se efectiva no prazo de 6 meses.
2. A Recorrente opôs-se, alegando a sua situação de maior carência e fragilidade
do agregado familiar do Recorrido [assim, no original], composto por si e pela
filha menor do casal, o que veio a provar-se.
3. Na pendência do divórcio foi atribuído à Recorrente o direito à Utilização da
Casa de Morada de Família.
4. Decretado o divórcio e nele consignado a culpa do Recorrido, aqueles Autos de
Atribuição da Casa de Morada de Família entretanto sustados, prosseguiram.
5. Produzida a prova, sempre no sentido da maior carência económica da
Recorrente, veio o Tribunal «a quo» atribuir a Casa de Morada de Família ao
sócio do Cofre, porque adquirida na constância do casamento e no regime de
propriedade resolúvel àquele mesmo Cofre.
6. Utilizando o artº 50° n.º 1 dos Estatutos para uma interpretação desajustada
à defesa dos direitos da família, interpretação inconstitucional mesmo, já que
não teve em conta o disposto no artº 67° da Constituição da República
Portuguesa, interpretação, por demais, contrária ao próprio espírito dos
Estatutos e à missão socializante do Cofre de Previdência do Ministério das
Finanças;
Ora,
7. O Recorrido, aproveitando dessa interpretação, faz dela um aproveitamento em
total má fé e abuso do direito, como se contém nas presentes Alegações.
É que,
8. A Recorrente para pôr fim ao regime de propriedade resolúvel, liquidou em
Dezembro de 2004, as restantes prestações em dívida, ao Cofre de Previdência do
Ministério das Finanças, referidas ao empréstimo contraído em Junho de 1980, no
montante € 373,93;
9. O Recorrido na esteira da doutrina preconizada no Acórdão em Recurso, obteve
do Cofre de Previdência do Ministério das Finanças, a devolução daquela quantia,
devolução em numerário(!), alegando que o pagamento efectuado pela Recorrente, e
sem sua autorização, é «fraudulento».
Isto é,
10. Pretende o Recorrido manter as fracções em causa no regime de propriedade
resolúvel, aproveitando-se do entendimento – salvo o devido respeito – errado e
desfasado do contexto das normas contidas nos Estatutos do Cofre,
11. Contra a Lei e contra o disposto na Constituição como se alegou.
Acresce por demais que,
12. A decisão do Acórdão em recurso, ao atribuir ao sócio do Cofre a Casa de
Morada de Família, omite o condicionalismo em que essa atribuição se opera, isto
é, se gratuitamente, ou se passiva de compensação...
13. É que estão pendentes Autos de Inventário que correm seus termos sob o n.º
106-C/1999, da 3ª Secção do 4° Juízo do Tribunal de Família e Menores de Lisboa,
Ora,
14. As fracções identificadas foram adquiridas ao Cofre na constância do
casamento, – e não anteriormente ao casamento como se lê no Acórdão recorrido –
foram pagas por ambos os cônjuges na medida em que tais pagamentos foram
efectuados através da Conta Bancária aberta pelo Recorrido em seu exclusivo
nome, mas provisionada exclusivamente com o seu vencimento!
15. Constituindo bens comuns do casal, bens em compropriedade de ambos os
ex-cônjuges.
16. A verdade é que nestes Autos o Recorrido nunca se serviu do disposto no artº
1793° do Código Civil com vista à peticionada atribuição da Casa de Morada de
Família ou peticionou qualquer renda ou considerou a contrapartida da ocupação.
17. Antes e tão só está em causa a atribuição a um dos cônjuges da Casa de
Morada de Família, neste caso, e a pretexto dos Estatutos do Cofre, ao sócio
específico deste.
18. E porque […] nos Estatutos – artº 50º – se lê «O Cofre só poderá autorizar o
arrendamento de casas em regime de propriedade resolúvel...» em casos
específicos, mal andou o Tribunal ao decidir atribuir a casa ao sócio do Cofre,
mau grado a sua maior capacidade económica, como se um arrendamento estivesse
subjacente... face ao ex-cônjuge...
19. Actuando o Recorrido como se descreve, dúvidas não restam que tal actuação
carece do apoio da Lei para – pagas integralmente as prestações, o que ocorrerá
em Maio de 2005 – porque tem em vista tão só, e no seu exclusivo interesse,
obstar a que as fracções que constituem a Casa de Morada de Família, sejam
atribuídas, no regime do art° 1793° do Código Civil ao ex-cônjuge que mais delas
carece – a Recorrente e a filha.
20. O Tribunal decidindo, sem mais, atribuir a utilização da Casa de Morada de
Família ao Recorrido, não considerou que as fracções em causa de que os
ex-cônjuges são comproprietários podem vir a ser adjudicadas ou à Recorrente ou
ao Recorrido;
21. O Recorrido actua com abuso do direito ao inviabilizar a cessação do regime
de propriedade resolúvel, para impedir a aplicação da Lei.
Pelo que,
22. O Recorrido deverá ser condenado como Litigante de Má Fé, pela descrita
actuação com Abuso do Direito, e apoiado na doutrina do Acórdão recorrido de que
se requer a alteração, com vista a conseguir, contra a sua família em situação
de desfavor, decisão contrária à Lei, à Constituição... e aos bons costumes.
Pelo que,
23. O Acórdão em recurso deve ser revogado e substituído por outro que consinta
uma interpretação dos Estatutos como se vem peticionando, e que tenha em vista a
final decisão dos citados Autos de Inventário em curso,
24. Com vista a que se cumpra o disposto no artº 1793° do Código Civil a final,
depois de adjudicada em Inventário.
Já que,
25. Iniludivelmente a interpretação dada aos Estatutos pelo Acórdão recorrido,
viola o princípio da igualdade – artº 13° da Lei Fundamental.”.
O recorrido, A., também alegou (fls. 625 e seguintes).
2. Por acórdão de 29 de Junho de 2005 (fls. 647 e seguintes), o
Supremo Tribunal de Justiça negou a revista, remetendo para os fundamentos do
aresto então recorrido e acrescentando, para o que agora releva, o seguinte:
“[…]
Assim e por um lado, importará pôr em destaque que nas Instâncias se decidiu bem
a questão de direito, que se mostrava «essencial» para a boa solução a conferir
aos autos. E que era a de saber se «era possível que o sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças, que haja adquirido uma fracção em regime
de propriedade resolúvel, a possa dar de arrendamento, na sequência do seu
divórcio».
Na verdade, a «solução» havida nas Instâncias, em sentido negativo, traduz o
entendimento legítimo para tal «questão».
[…]
Por outro, importará «sobremaneira» pôr em «relevo» a necessidade, «in casu», de
contemplar a natureza «peculiar» da «morada de família», na conjugação dos
artigos 1793º do Código Civil e 27º, 50º e 51º do D.L. n.º 465/76, de 11 de
Junho.
Tal, no espírito do previsto, aliás, pelo Professor Leite de Campos, Lições, 305
e seguintes e, também, em consonância com o decidido no Ac. deste S.T.J., de 21
Maio 98, B.M.J. 477, 550, no tocante à consideração do «arrendamento» na sua
caracterização como «judicial» e não propriamente como contrato, portanto.
Observe-se, também, que ao invés do sustentado pela Recorrente com a «solução»
assumida nas Instâncias, e que, ora, se homologa também, não se nota a
«violação» constitucional do princípio da «igualdade», estatuído no artigo 13º
da Lei Fundamental.
Ou de outro qualquer, nessa sede, aliás.
Na verdade, nesse campo, o que importa sempre contemplar são as «razões» de
ordem garantística que estão na génese e presidem aos dispositivos de natureza
constitucional.
Nesse alcance, a lição do Professor Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª
ed. 379 e seguintes.
E entre outros o Ac. do Tribunal Constitucional de 19. Jun. 96, n.º 786/96,
publicado no DR II de 20. Agt. 96, a página 11.660.
Ora, «in casu», não se mostra que se tenha verificado a «quebra» das aludidas
«razões» e em qualquer vertente.
Nomeadamente, não se constata, porventura por banda do Recorrido, o
«ultrapassar» dos limites impostos pela boa fé, bons costumes ou fim social ou
económico do direito que lhe assistia na sua qualidade de «sócio» do Cofre de
Previdência em causa.
[…].”.
3. Deste acórdão interpôs B. recurso para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
nos seguintes termos (fls. 682 e seguinte):
“[…]
Advém o presente Recurso da violação do disposto nos artºs. 13º e 67° da
Constituição da República Portuguesa, pelo artigo 50° dos Estatutos do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças – Decreto-Lei n.º 465/76 de 11 de Junho
com a alteração do Decreto-Lei n.º 325/78 de 9 de Novembro, na interpretação
dada pelo STJ no Acórdão de que ora se recorre, contrária à atribuição da casa
de morada de família ao cônjuge nos termos do 1793° do Código Civil.
Norma cuja inconstitucionalidade foi já suscitada, nas alegações da ora
recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa e bem assim nas suas alegações
para o S.T.J.
[…].”.
O recurso para o Tribunal Constitucional foi admitido por
despacho de fls. 684 v.º.
4. Já no Tribunal Constitucional, produziu a recorrente as alegações
de fls. 691 e seguintes, que concluiu do seguinte modo:
“1º. A Recorrente e o Recorrido celebraram entre si casamento civil, sem
convenção antenupcial em 27/12/1975;
2°. Em 25/06/1980 o Cofre de Previdência do Ministério das Finanças transmitiu
ao Sócio aqui Recorrido a propriedade resolúvel da Casa de Morada de Família
sita na …, em Miraflores, Algés;
3°. O Cofre transmitiu a propriedade resolúvel ao Recorrido para habitação deste
e do seu agregado familiar, como se lê na escritura de 25.06.80 (fls. 19 a fls.
27),
4°. Por Sentença de 25/10/2002, foi decretado o divórcio entre Recorrente e
Recorrido, tendo este sido declarado principal culpado;
5°. Da resposta aos factos alegados pela Recorrente resulta provado a situação
de desfavor económica desta face ao Recorrido, e o facto de a filha, menor, ser
doente e sempre ter vivido no locado (fls. 443 a 444 vº.).
6°. Sem embargo do que, o Tribunal 'a quo' entendeu atribuir a Casa de Morada de
Família ao Recorrido, o Sócio efectivo do Cofre de Previdência do Ministério das
Finanças, na esteira do decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
13/01/87,
7°. Porque, conforme entendimento expresso no Sumário do mesmo Acórdão, os
Estatutos do Cofre impedem que, em consequência do divórcio se conceda o direito
ao arrendamento da Casa de Morada de Família ao cônjuge que não seja
concretamente o sócio daquele Cofre a quem a casa foi inicialmente atribuída em
regime de propriedade resolúvel;
8°. Mas nem o artº 50° dos Estatutos, nem qualquer outra disposição impedem a
Atribuição da Casa de Morada de Família ao agregado familiar do sócio.
9º. O Recorrido para obstar a que as fracções que constituem a Casa de Morada de
Família, sejam atribuídas, no regime do artº 1793° do Código Civil ao ex-cônjuge
que mais delas carece – a Recorrente e a filha.
10º. Utilizou o artº 50° n.º 1 dos Estatutos para uma interpretação desajustada
à defesa dos direitos da família, interpretação inconstitucional mesmo, já que
não teve em conta o disposto no art° 67° da Constituição da República
Portuguesa, interpretação, por demais, contrária ao próprio espírito dos
Estatutos e à missão socializante do Cofre de Previdência do Ministério das
Finanças;
11°. O Cofre, na prossecução dos seus fins sociais e de solidariedade, concede
condições favoráveis para aquisição de habitação dos sócios e suas famílias,
proíbe obviamente e tão só que o sócio arrende a casa a estranhos, com fins
meramente especulativos, já que assim se aproveitariam de uma situação
privilegiada de aquisição «bonificada», para daí tirar proventos em pura
especulação e em prejuízo doutros sócios carenciados;
12°. O Legislador não previu necessariamente todas as formas de aquisição da
Casa de Morada de Família, e assim não necessariamente o caso dos Autos em que a
propriedade da mesma é resolúvel.
13°. O Julgador terá, portanto, de interpretar a Lei nos casos nela não
previstos, acedendo-a à situação vertente, já que a Casa de Morada de Família, e
a Família exigem a tutela do mais carenciado;
14°. O caso em apreço será porventura omisso, e assim o M. Juiz no
desenvolvimento do n.º 1 do artº 67° da Constituição da República Portuguesa,
considerando que a família como elemento fundamental tem direito à protecção da
sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a
realização pessoal dos seus membros, teria de decidir a favor do ex-cônjuge mais
carenciado e a filha do ex-casal,
15°. E não desalojá-los, como aconteceu;
16°. A norma do artº 1793° do Código Civil estabelece mais que um contrato de
arrendamento em que a vontade da Tutela (neste caso se o Cofre o proibisse) será
substituída pela vontade do Juiz, e constitui um verdadeiro ónus ligado à casa
que desempenha a função de casa de morada de família, in Ac. 4 de Fev. 1992,
C.J. Ano XVII, 1992, Tomo I, pág. 230.
17º. Pretendeu o Recorrido manter as fracções em causa no regime de propriedade
resolúvel, aproveitando-se do entendimento – salvo o devido respeito – errado e
desfasado do contexto das normas contidas nos Estatutos do Cofre,
18º. A verdade é que nestes Autos o Recorrido nunca se serviu do disposto no
artº 1793° do Código Civil com vista à peticionada atribuição da Casa de Morada
de Família ou peticionou qualquer renda ou considerou a contrapartida da
ocupação, dado tratar-se de bem comum.
19º. E porque […] nos Estatutos – artº 50° – se lê «O Cofre só poderá autorizar
o arrendamento de casas em regime de propriedade resolúvel...» em casos
específicos,
20º. Iniludivelmente a interpretação dada aos Estatutos pelo Acórdão recorrido,
viola o princípio da igualdade – artº 13° da Lei Fundamental, porque arbitrária
e contrária a um tratamento de igualdade face a situações similares conforme já
decidido pelos Tribunais Superiores.
Nestes termos e nos de direito, sempre com o douto suprimento das deficiências
do Patrocínio, se espera ver revogado o Acórdão, e declarado inconstitucional o
Artigo 50° dos Estatutos do Cofre de Previdência do Ministério das Finanças –
Decreto-Lei n.º 465/76 de 11 de Junho com a alteração do Decreto-Lei n.º 325/78
de 9 de Novembro, na interpretação adoptada pelo STJ no Acórdão de que se
recorre, porque contrário aos artigos 13º e 67º da Constituição da República
Portuguesa com as legais consequências, porque só assim se fará Justiça!”.
O recorrido, A., também alegou (fls. 723 e seguintes),
sustentando que nenhuma inconstitucionalidade se verificava, essencialmente pelo
seguinte:
“[…]
A interpretação que os Tribunais fizeram do indicado artº 50º não viola, porém,
aquelas normas constitucionais. O Dec. Lei 465/76, de 11 de Junho, nem nega aos
sócios do Cofre o direito a uma habitação condigna nem põe em crise o direito
que aos cônjuges assiste de disporem da casa de morada de família.
A especificidade do regime da «propriedade resolúvel», contudo, impõe que não
seja possível a aplicação das normas civilistas, designadamente o que preceitua
o artº 1793°/1 do C. Cv.
De facto, a atribuição da casa de morada de família decorre da tutela dos
direitos privados de cada um dos cônjuges, individualmente considerados.
E são regras de natureza estritamente privada que devem ser observadas na
resolução desses litígios.
[…].”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. Constitui objecto do presente recurso – conforme a delimitação
feita pela recorrente – a norma do artigo 50º dos Estatutos do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças (adiante, Estatutos do Cofre), aprovados
pelo Decreto-Lei n.º 465/76, de 11 de Junho, com a alteração do Decreto-Lei n.º
325/78, de 9 de Novembro, interpretada no sentido de não ser possível, em caso
de divórcio, a atribuição da casa de morada da família, em regime de
arrendamento, nos termos do artigo 1793º do Código Civil, ao ex-cônjuge que não
seja o sócio do Cofre de Previdência do Ministério das Finanças a quem a
correspondente habitação foi inicialmente transmitida em regime de propriedade
resolúvel por aquele Cofre.
O referido artigo 50º dos Estatutos do Cofre é do seguinte
teor:
“Art. 50.º - 1. O Cofre só poderá autorizar o arrendamento de casas em regime de
propriedade resolúvel quando o sócio, por motivos de transferência ou outra
razão de serviço oficial, tiver de mudar o local da residência e não puder, por
isso, habitar a casa.
2. A casa, porém, só pode ser arrendada a estranhos quando não houver sócios que
a pretendam arrendar, devendo a renda ser fixada pela direcção, sob proposta dos
competentes serviços técnicos do Cofre.
3. O arrendamento caducará findo o prazo concedido pela direcção.”.
Por sua vez, o artigo 1793º do Código Civil dispõe como segue:
“Artigo 1793º
(Casa de morada da família)
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a
casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro,
considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o
interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do
arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do
contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do
senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem”.
Apenas pode estar em causa, no presente recurso, a apreciação
da conformidade constitucional da interpretação normativa que ficou explicitada
– designadamente à luz dos artigos 13º e 67º da Constituição, que são os
preceitos constitucionais invocados pela recorrente –, e não, obviamente, a
apreciação da bondade de tal interpretação à luz dos critérios gerais de
interpretação da lei. Na verdade, a competência do Tribunal Constitucional
limita-se à apreciação da conformidade constitucional de normas, tal como foram
aplicadas nas decisões judiciais que os recorrentes impugnam, não se estendendo
à determinação da melhor interpretação da lei (cfr. artigo 70º, n.º 1, alínea
b), da Lei do Tribunal Constitucional).
Assim, por exemplo, não pode o Tribunal Constitucional
pronunciar-se sobre a questão de saber se o artigo 50º dos Estatutos do Cofre
efectivamente veda a atribuição da casa de morada da família ao agregado
familiar do sócio (cfr. conclusão 8ª das alegações da recorrente: supra, 4.),
sobrepondo-se à regra geral do artigo 1793º do Código Civil – que, justamente,
permite que, na sequência de divórcio, a casa de morada da família possa ser
dada de arrendamento pelo tribunal a qualquer dos cônjuges, em função das
necessidades de cada um e dos interesses dos filhos –, pois que tal se prende
com a aferição da justeza da interpretação adoptada pelo tribunal recorrido à
luz do artigo 9º do Código Civil.
Por outro lado, e como a competência do Tribunal Constitucional
se cinge à apreciação da questão de constitucionalidade que ficou explicitada,
não cabe manifestamente no objecto do presente recurso a apreciação do pedido de
atribuição da casa de morada da família que o ora recorrido formulou nos autos:
nomeadamente não pode este Tribunal decidir se tal casa de morada da família
deve ser atribuída à recorrente ou ao recorrido e se as circunstâncias alegadas
pela recorrente (existência de uma filha a seu cargo e culpa do ex-cônjuge no
divórcio) justificam a improcedência do pedido formulado pelo recorrido.
6. Vejamos qual é o enquadramento sistemático da regra do artigo 50º
dos Estatutos do Cofre – a norma que, na interpretação acolhida pelo tribunal
ora recorrido, se sobrepõe à regra do artigo 1793º do Código Civil, na medida em
que veda, em caso de divórcio, a atribuição da casa de morada da família, em
regime de arrendamento, ao ex-cônjuge que não seja o sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças a quem a correspondente habitação foi
inicialmente transmitida em regime de propriedade resolúvel por aquele Cofre.
De acordo com o artigo 1º, n.º 1, dos Estatutos do Cofre, “o
Cofre de Previdência do Ministério das Finanças é uma instituição de previdência
social, de utilidade pública, dotada de personalidade jurídica e autonomia
administrativa e financeira”.
Uma das suas incumbências é, nos termos do artigo 3º, alínea
b), dos mesmos Estatutos, a de “adquirir ou construir casas destinadas à
exclusiva e permanente habitação dos seus sócios, em regime de propriedade
resolúvel ou de arrendamento”.
Em regra, qualquer trabalhador da função pública pode ser
admitido como sócio do Cofre (artigo 4º).
Uma das regalias dos sócios traduz-se na possibilidade de lhes
serem atribuídas, em regime de propriedade resolúvel ou de arrendamento, casas
de habitação adquiridas ou construídas com fundos capitalizáveis do Cofre (cfr.
artigo 27º, n.º 1).
A aquisição da propriedade resolúvel das casas ocorre com a
“celebração de contrato, por escritura pública, entre os interessados e o Cofre,
do qual deve constar o preço, que corresponderá ao capital investido, as
entregas iniciais, havendo-as, as condições de pagamento e ainda outras que se
considerem necessárias” (artigo 37º, n.º 1).
A atribuição de casas em regime de propriedade resolúvel
obedece a vários requisitos (cfr. artigo 30º, n.º 1): designadamente, a casa
deve destinar-se à exclusiva e permanente habitação do sócio e do seu agregado
familiar. Na atribuição de casas em regime de propriedade resolúvel terão
prioridade “os sócios cujo agregado familiar vença menor remuneração de trabalho
per capita e, de entre estes, os que tiverem maior número de filhos a seu cargo”
e, em igualdade de circunstâncias, terão preferência “os sócios de inscrição
obrigatória ainda em serviço na função pública, depois os sócios mais antigos,
seguindo-se os que tiverem maior número de pessoas a seu cargo e, por último, os
mais idosos” (cfr. artigo 35º).
Se o adquirente perder a qualidade de sócio, não observar os
preceitos estatutários ou faltar ao cumprimento de cláusulas do contrato, o
contrato considera-se, em regra, rescindido (artigo 51º, n.º 1); “em caso de
rescisão do contrato, a conservatória, a simples requerimento do Cofre,
cancelará o registo de transmissão a favor do sócio adquirente” (artigo 52º).
7. A interpretação normativa acolhida pelo tribunal recorrido tem
como imediata consequência a seguinte: a qualidade de sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças do proprietário (ou de um dos
proprietários) da casa de morada da família a quem a correspondente habitação
foi inicialmente transmitida em regime de propriedade resolúvel por aquele Cofre
constitui fundamento suficiente para o afastamento do regime geral do artigo
1793º do Código Civil e, nessa medida, para a criação de um regime especial de
atribuição da casa de morada da família.
Este regime especial, como é óbvio, implica um tratamento
desfavorável do ex-cônjuge de sócio do Cofre relativamente ao ex-cônjuge que
seja sócio do Cofre e também um tratamento desfavorável daquele relativamente a
qualquer ex-cônjuge: na verdade, ao ex-cônjuge de sócio do Cofre apenas poderá
vir a ser atribuída a casa de morada de família a título de arrendamento nas
condições previstas no artigo 50º, n.º 2, dos Estatutos do Cofre para o
arrendamento “a estranhos” (ainda que se trate, como no caso dos autos, de
imóvel adquirido na constância do matrimónio, sendo certo que o regime de bens
deste casal é o regime da comunhão de adquiridos); já ao ex-cônjuge que seja
sócio do Cofre e ao ex-cônjuge “comum” pode ser atribuída a casa de morada de
família (quer seja bem comum, quer seja bem próprio do outro cônjuge) a título
de arrendamento, verificados os requisitos gerais do artigo 1793º do Código
Civil.
Ora, o que cumpre perguntar é se tal tratamento desfavorável do
ex-cônjuge de sócio do Cofre de algum modo se justifica: dito de outro modo, o
que importa averiguar é se a qualidade de sócio do Cofre de Previdência do
Ministério das Finanças do proprietário (ou de um dos proprietários) da casa de
morada da família a quem a correspondente habitação foi inicialmente transmitida
em regime de propriedade resolúvel por aquele Cofre constitui fundamento
razoável para a impossibilidade de ponderação, nos termos gerais do artigo 1793º
do Código Civil, das necessidades do ex-cônjuge desse sócio para o efeito de a
casa de morada da família casa lhe ser atribuída a título de arrendamento.
8. Interessa pois verificar se a Constituição proíbe tal tratamento
desfavorável, desde logo face ao disposto no artigo 13º: com efeito, a
circunstância de o ex-cônjuge de sócio do Cofre não poder beneficiar do regime
do artigo 1793º do Código Civil, parece, numa primeira aproximação, ofender o
princípio da igualdade (entre ex-cônjuges).
O Tribunal Constitucional tem tido frequentemente ocasião de se
pronunciar sobre o sentido e o alcance do princípio constitucional da igualdade.
No Acórdão n.º 232/03 (Diário da República, I Série-A, n.º 138,
de 17 de Junho de 2003, p. 3514 ss), tirado em Plenário, em autos de
fiscalização preventiva, procedeu o Tribunal a uma síntese da abundante
jurisprudência constitucional nesta matéria. Dessa jurisprudência resulta que o
princípio da igualdade obriga que se trate como igual o que for essencialmente
igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a
diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a
irrazoabilidade, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham
justificação e fundamento material bastante.
Já no Acórdão n.º 187/01 (Diário da República, II Série, n.º
146, de 26 de Junho de 2001, p. 10492 ss) se afirmara que, “como princípio de
proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio
da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações
que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro
lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista
que possa ser considerado relevante”.
No caso destes autos, para decidir da violação do princípio da
igualdade é, então, necessário saber se o tratamento diferenciado, que decorre
da norma agora questionada, é arbitrário ou se, pelo contrário, tem fundamento
material bastante.
A questão pode assim equacionar-se: constituirá a qualidade de
sócio do Cofre de Previdência do Ministério das Finanças do proprietário (ou de
um dos proprietários) da casa de morada da família a quem a correspondente
habitação foi inicialmente transmitida em regime de propriedade resolúvel por
aquele Cofre – ou, perguntando de outro modo, constituirá o regime de
propriedade resolúvel que caracteriza o vínculo através do qual o imóvel foi
transmitido – uma razão justificativa desse tratamento diferenciado
(desfavorável), susceptível de afastar a existência de discriminação e, como
tal, a aparente violação do disposto no artigo 13º da Constituição?
Antes de responder a esta questão, convém sublinhar que, como
tem sido reiteradamente afirmado, na sequência do Parecer da Comissão
Constitucional n.º 458, de 25 de Novembro de 1982 (Apêndice ao Diário da
República, de 23 de Agosto de 1983), o Tribunal Constitucional, ao aferir a
compatibilidade de uma norma legislativa com o princípio da igualdade, não deve
pôr em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade
legislativa. Deve abster-se de se substituir ao legislador, ponderando a
situação como se estivesse no lugar deste e impondo a sua própria ideia do que
seria, no caso, a solução “razoável”, “justa” e “oportuna”. O seu controlo deve
ser tão-só de carácter negativo, consistindo este em saber se a opção do
legislador se apresenta intolerável ou inadmissível de uma perspectiva
jurídico-constitucional, por não se encontrar para ela qualquer fundamento
material. Em suma, uma norma (ou interpretação normativa) só pode ser
questionada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, por violar o
princípio da igualdade, se a distinção a que na mesma se procede for
absolutamente intolerável ou inadmissível, por não ser possível encontrar para a
mesma fundamento material bastante.
Como o Tribunal Constitucional disse no Acórdão n.º 422/04
(Diário da República, II Série, n.º 259, de 4 de Novembro de 2004, p. 16257 ss):
“[…]
O controlo judicial do comportamento do legislador, com o objectivo de
determinar se este, adoptando determinada solução normativa, se conteve dentro
dos parâmetros decorrentes do princípio constitucional da igualdade, expresso no
artigo 13.º da CRP, pressupõe uma compreensão aprofundada dos fins visados com
essa solução.
Significa isto que, estando nestes casos sempre em causa um juízo de comparação
entre duas realidades, só através da determinação dos objectivos visados é
possível compreender se esta ou aquela solução – quando implica, à luz dessa
comparação, um tratamento desigual – se configura como arbitrária, estando, em
função disso, constitucionalmente vedada.
É este critério, a que poderemos chamar de controlo da arbitrariedade, que vem
funcionando na nossa jurisdição constitucional, já desde a Comissão
Constitucional, como mecanismo de aferição do respeito pelo princípio da
igualdade [o primeiro Parecer da Comissão Constitucional, o Parecer n.º 1/76
(Pareceres da Comissão Constitucional, 1.º Vol., Lisboa, 1977, págs. 5/18),
lidou, desde logo, com uma «questão de desigualdade» e com o controlo dos
motivos do legislador; veja-se, como exemplo recente na jurisprudência deste
Tribunal, o Acórdão n.º 232/03 (Diário da República – I Série-A, de 17/6/03,
págs. 3514/3531)].
Este controlo dos motivos à luz do conceito de arbitrariedade, pesquisa a
existência de uma «razão suficiente» para a diferenciação, sendo que, como
refere Robert Alexy, «(...). Uma razão é suficiente para a permissão de um
tratamento desigual se, por força dessa mesma razão, esse tratamento desigual
não é arbitrário» (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, pág. 375). Ou, como
se diz no já indicado Acórdão n.º 232/03: «Assente a possibilidade de
estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao
controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz
do princípio da proibição do arbítrio (...) e, bem assim, de um critério de
razoabilidade».
[…].”.
9. Ora, há que reconhecer que a qualidade de sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças do proprietário – ou, noutra perspectiva,
o regime de propriedade resolúvel que caracteriza o vínculo através do qual o
imóvel foi transmitido – justifica indubitavelmente alguma contenção das normais
faculdades contidas no direito de propriedade.
Na verdade, é certamente merecedor de tutela o interesse em que
uma das regalias dos sócios do Cofre (precisamente, a de lhes serem atribuídas
casas de habitação adquiridas ou construídas com fundos capitalizáveis do Cofre)
não se converta em negócio para esses sócios – o que eventualmente poderia
ocorrer, se nenhuma restrição houvesse à possibilidade de arrendá-las. Assim se
explica, em geral, o regime restritivo contido no artigo 50º dos Estatutos do
Cofre.
Mas essa qualidade – ou esse regime – já não pode constituir
fundamento válido para justificar um tratamento de tal modo diferenciado entre
ex-cônjuges que legitime a absoluta não ponderação das necessidades do
ex-cônjuge de sócio do Cofre aquando da tomada da decisão judicial a que alude o
artigo 1793º, n.º 1, do Código Civil. É, como tal, de considerar excessivo e
desproporcionado o afastamento do regime geral consagrado no artigo 1793º, n.º
1, do Código Civil, a que conduz a interpretação normativa ora em apreciação.
Sublinhe-se, de resto, que em tal decisão judicial não se
coloca propriamente um problema de “reconhecimento de um direito” a um dos
ex-cônjuges, mas antes um problema de “atribuição de um dever” a um dos
ex-cônjuges – o dever de manter a casa de morada da família –, cumprindo ao
juiz, quando profere tal decisão, avaliar, nomeadamente, as necessidades de cada
um dos ex-cônjuges e o interesse dos filhos. De todo o modo, a protecção dos
interesses que se encontram subjacentes ao regime constante do artigo 50º dos
Estatutos do Cofre não pode considerar-se fundamento razoável para excluir a
ponderação das circunstâncias que, segundo a lei, hão-de motivar a decisão
judicial relativa à atribuição da casa de morada da família.
Mais uma vez se repete que não cabe ao Tribunal Constitucional
decidir se, na situação dos autos, a casa de morada da família devia ter sido
atribuída, em regime de arrendamento, à ora recorrente. Esta é uma decisão que
compete ao tribunal recorrido, sendo certo, aliás, que, no âmbito da aplicação
do regime contido no artigo 1793º, n.º 1, do Código Civil, ao tribunal recorrido
caberá, designadamente, definir as condições do contrato de arrendamento e,
inclusivamente, fazer cessar o arrendamento quando circunstâncias supervenientes
o justifiquem.
Mas já compete ao Tribunal Constitucional apreciar se, ao tomar
uma tal decisão, o tribunal recorrido pode prescindir completamente da
ponderação das necessidades de cada um dos ex-cônjuges, como sucedeu no caso dos
autos, em que se afastou liminarmente a aplicação do disposto no artigo 1793º do
Código Civil, por se considerar que o disposto no artigo 50º dos Estatutos do
Cofre se lhe sobrepunha.
Ora, face ao disposto no artigo 13º da Constituição, tal
possibilidade é de rejeitar.
Conclui-se, assim, que não é constitucionalmente conforme o
entendimento segundo o qual, em caso de divórcio, não é admissível ponderar a
atribuição da casa de morada da família, em regime de arrendamento, nos termos
do artigo 1793º do Código Civil, ao ex-cônjuge que não seja o sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças a quem a correspondente habitação foi
inicialmente transmitida em regime de propriedade resolúvel por aquele Cofre,
pois que tal entendimento não tem fundamento material bastante.
Atingida esta conclusão, desnecessário se torna analisar a
questão da eventual inconstitucionalidade por violação do artigo 67ºda
Constituição, também colocada pela recorrente.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto
no artigo 13º da Constituição, a norma do artigo 50º dos Estatutos do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 465/76,
de 11 de Junho, com a alteração do Decreto-Lei n.º 325/78, de 9 de Novembro,
interpretada no sentido de que, em caso de divórcio, não é admissível ponderar a
atribuição da casa de morada da família, em regime de arrendamento, nos termos
do artigo 1793º do Código Civil, ao ex-cônjuge que não seja o sócio do Cofre de
Previdência do Ministério das Finanças a quem a correspondente habitação foi
inicialmente transmitida em regime de propriedade resolúvel por aquele Cofre;
b) Conceder, consequentemente, provimento ao
recurso, determinando a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente
juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Novembro de 2006
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício