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Processo nº 765/2006.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Em 25 de Setembro de 2006 o relator proferiu a seguinte
decisão: –
“1. Tendo, pelo 4º Juízo Cível de Viseu, instaurado A. e
mulher, B., contra C. e mulher, D., acção, seguindo a forma de processo
ordinário – na qual peticionaram que os réus a fossem condenados a reconhecer
que os autores eram proprietários de um dado prédio rústico sito em Travela, da
freguesia da Lomba, concelho de Viseu, e do qual fazia parte uma faixa de
terreno que, segundo alegaram, teria sido ocupada pelos réus, solicitando ainda
que estes fossem condenados a entregar essa faixa aos autores e a pagar-lhes os
prejuízos ocorridos com a alegada ocupação –, veio, em 18 de Novembro de 2004, a
ser proferida sentença que condenou os réus a reconhecer que os autores eram
donos do indicado prédio, com excepção da referida faixa, absolvendo-os dos
restantes pedidos.
Dessa sentença apelaram os autores para o Tribunal da Relação
de Coimbra, com a apelação subindo um outro recurso de agravo, previamente
interposto pelos autores e atinente a um incidente sobre o valor da causa.
Por acórdão de 18 de Outubro de 2005, aquele Tribunal de 2ª
instância negou provimento ao agravo e revogou a sentença apelada, condenando os
réus a reconhecerem que os autores eram os únicos e exclusivos donos do terreno,
incluindo a referida faixa, mais os condenando a entregar essa faixa a estes
últimos e a indemnizá-los, em quantia a liquidar em execução de sentença, pelos
prejuízos e despesas causados.
Do assim decidido pediram os réus revista para o Supremo
Tribunal de Justiça, brandindo, inter alia, na alegação que apresentaram, que a
acção intentada pelos autores constituía um abuso de direito.
À alegação dos réus recorrentes não responderam os autores
recorridos.
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por aresto de 9 de Maio
de 2006, concedido a revista, por forma a «ficar a valer a decisão da 1ª
instância», embora por fundamentos diversos, vieram os autores solicitar a
reforma do acórdão, sendo que no requerimento consubstanciador dessa solicitação
não empregaram qualquer asserção de onde decorra, directa ou indirectamente,
explícita ou implicitamente, qualquer questão de inconstitucionalidade ou
ilegalidade, esta para os efeitos previstos na alínea f) do nº 1 do artº 70º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Por acórdão de 27 de Junho de 2006, o mais Alto Tribunal da
ordem dos tribunais judiciais desatendeu a pretendida reforma.
Fizeram então os autores juntar aos autos requerimento com o
seguinte teor: –
‘A. e mulher, Autores e Recorridos nos autos
cíveis suprareferenciados;
– Não se conformando com a decisão do ACÓRDÃO
PROFERIDO e da REFORMA DA SENTENÇA requerida, nos termos do artigo 669º, n.º 2,
alíneas a) e b);
– Dele, vêm interp[o]r RECURSO, para o TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL, ao abrigo da alínea c) do artigo 70º da Lei n.º 85/89, de 7 de
Setembro, com referência à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e Lei 13-A/98, de
26 de Fevereiro;
- Nos termos do artigo 75º-A da referida Lei n.º
85/89, com a seguinte
FUNDAMENTAÇÃO:
Porquanto, no entendimento dos ora Recorrentes,
foi cometida ilegalidade, no Acórdão proferido, pelo Supremo Tribunal de
Justiça;
ILEGALIDADE essa, que foi suscitada no pedido de
REFORMA DE SENTENÇA;
E que, apesar de tudo, foi mantida pelo mesmo
Supremo Tribunal;
Na verdade, no entendimento dos ora recorrentes,
e salvo, e sempre, o devido e máximo respeito, o Tribunal Supremo ofendeu,
frontalmente, as normas dos artigos 875º; 371º, n.º 1; 372º n.º 1; 393º, nº 1, e
394º, n.º 1, do Código Civil; com referência aos artigos 722º, n.º 2; e 729º,
n.º 2 – ambos do Código de Processo Civil;
E, em vez destas normas, aliás, de interesse
público, aplicou as normas dos artigos 236º e 238º do Código Civil;
Normas estas que, apenas e só, podem ser
aplicadas em sede de arguição da falsidade da respectiva escritura de compra e
venda, nos termos do artigo 371º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, em sede de
averiguação da VERDADE, na «culpa in. contraendo», com arguição de falsidade do
respectivo documento, e com a respectiva intervenção dos terceiros, vendedores,
por recibo, como, bem, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra.
ASSIM:
a) – Porque não se pode vender um imóvel por simples recibo;
b) – Porque não se pode fazer prova testemunhal, contra documento autêntico, sem
ser arguida a falsidade deste;
c) – Porque tais normas são de interesse público, pel[a] segurança do tráfico
jurídico, que visam assegurar;
Entendem os ora recorrentes existir fundamento
para o presente recurso.’
Por despacho lavrado em 5 de Setembro de 2006 pelo
Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça foi o recurso admitido.
2. Porque tal despacho não vincula este Tribunal (cfr. nº 3
do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não devia ter
sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente
decisão, por via da qual se não toma conhecimento do objecto da presente
impugnação.
Efectivamente, como resulta do transcrito requerimento, o
recurso intentado interpor esteia-se na alínea c) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82.
Ora, basta ler qualquer dos arestos prolatados pelo Supremo
Tribunal de Justiça para se concluir que neles não foi, minimamente, recusada a
aplicação de qualquer normativo constante de acto legislativo com fundamento na
sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
Logo por aí não é cabível o recurso em espécie.
E, ainda que se admitisse ter havido lapso dos impugnantes ao
reportarem-se, no requerimento de interposição de recurso, à aludida alínea c),
pois que pretenderiam escrever alínea f), mesmo assim não seria possível
conhecer-se do respectivo objecto.
Na verdade, precedentemente ao proferimento dos acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, os recorrentes não suscitaram qualquer questão de
ilegalidade de norma constante de acto legislativo ancorando-se na sua
contraditoriedade com lei de valor reforçado ou de violação de estatuto de
Região Autónoma, ou qualquer questão de ilegalidade referente a norma ínsita em
diploma regional, com base em violação de estatuto de Região Autónoma ou de lei
geral da República.
Não se congregando, desta sorte, os pressupostos do recurso
desejado interpor – recurso visando a apreciação de uma questão de ilegalidade –
do seu objecto se não toma conhecimento, condenando-se os impugnantes nas custas
processuais, fixando-se em sete unidades de conta a taxa de justiça.”
Da transcrita decisão vêm reclamar os autores, fazendo-o por
intermédio de requerimento em que se lê: –
“RECLAMAÇÃO DE INDEFERIMENTO DE RECURSO
EXM.S SRS. DRS. JU[Í]ZES DE DIREITO E VENERANDOS CONSELHEIROS
Por despacho de 5 de Setembro de 2006, pelo Sr.
Dr. Juiz Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, foi admitido
recurso, para este Venerando Tribunal Constitucional;
Porém, depois de enviadas as respectivas
alegações, com prova de pagamento de taxa de justiça, e notificação à parte
contrária, enviadas, por correio registado, com data de 25.09.2006, e remetidas,
para este Tribunal, onde deram entrada em 26.09.2006;
Por despacho do Sr. Dr. Juiz relator deste
Tribunal Constitucional, de 26 de Setembro de 2006, foi indeferido tal recurso,
com base no estipulado no n.º 3 do artigo 76º da Lei n.º 28/82, porque, no
entendimento do Sr. Juiz Conselheiro Relator deste Tribunal Constitucional, tal
recurso não deveria ter sido admitido, pelo Sr. Juiz Conselheiro e Relator do
Supremo Tribunal de Justiça;
E é, deste despacho do Sr. Dr. Juiz Conselheiro
e Relator deste Tribunal Constitucional, que os Recorrentes, A. e mulher, com
fundamento no estipulado no n.º 4 do artigo 76º da referida Lei n.º 28/82;
– VÊM RECLAMAR, para este Tribunal
Constitucional, pelas seguintes razões, ou,
F U N D A M E N T O S:
I PONTO: -- RECUSA DA APLICACÃO DA LEI:
Salvo, sempre, o máximo e devido respeito por outro e melhor entendimento,
parece-lhes, aos recorrentes, que, em qualquer dos arestos prolatados, pelo
Supremo Tribunal de Justiça, foi cometida ILEGALIDADE, por violação da Lei, com
valor reforçado;
Desde logo, ratificando o Supremo Tribunal de Justiça a venda dum imóvel, por
recibo, ofendeu uma norma imperativa de interesse público;
Que, não sendo respeitada, põe, em causa, a própria segurança do TRÁFEGO
JURÍDICO;
Pondo, mesmo, em causa, a ORDEM PÚBLICA, v.g. favorecendo intermediários
menos escrupulosos; não dando crédito a documentos notariais; enfim, minando e
destruindo os alicerces da estabilidade e segurança do Tráfego Jurídico, levando
a Sociedade a viver num estado de ansiedade e nervosismo, por falta dessa
estabilidade e segurança que devem existir nos negócios, abalando, pois, toda a
Estrutura Jurídica;
Afigurando-se-lhes, até, aos recorrentes, que tal ilegalidade deveria ser
fiscalizada, declarada, e corrigida, oficiosamente, por este Tribunal
Constitucional, pelos fundamentos, anteriormente, apontados;
E, ainda, para prestígio da JUSTICA e do próprio SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTICA;
Que, além, de ofender frontalmente a norma do artigo 875º do Código Civil,
norma imperativa e de interesse público;
Ofendeu, frontalmente, a norma imperativa e de interesse público do nº 1 do
artigo 372º, (com referência aos artigos 371º, n.º 1; 393º, n.º 2; 394º, nº 1 –
todos do Código Civil), e que estipula:
«A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na
sua falsidade»;
ORA, o Supremo Tribunal de Justiça, baseando-se no normativo dos artigos 236º
e 238º do Código Civil;
Normas estas, que só poderão ser aplicadas em sede de arguição de falsidade
do respectivo documento autêntico, v.g. escritura de compra e venda;
Obviamente, cometeu uma ilegalidade, ofendendo normas imperativas, e de
interesse público;
E, aos recorrentes, afigura-se-lhes que, tal ilegalidade é tão
chocante!...,.tão alarmante!...; tão inédita!...; tão insólita!..., e tão
desprestigiante para a Justiça e para o Supremo Tribunal de Justiça; e tão
demolidora da confiança da Sociedade, na Justiça, que, no entendimento dos
mesmos ora recorrentes, para além da oficiosidade de conhecimento dessa mesma
ilegalidade, por este Venerando Tribunal de Justiça;
O próprio Ministério Público, tendo vista aos autos, e tomando conhecimento
de tal ilegalidade, oficiosamente, se lhe imporia, pelo próprio conceito
intrínseco de Justiça, e pelo seu valor social, interpor o respectivo recurso,
para este Tribunal Constitucional, para correcção de tal ilegalidade;
DAÍ, a importância deste Tribunal Constitucional conhecer de tal ilegalidade.
II PONTO: – ALÍNEA c) ou ALÍNEA f) DO ARTIGO 70º, DA LEI N.º 28/82:
Salvo, sempre, o máximo e devido respeito por outro e melhor entendimento, aos
recorrentes, afigura-se-lhes que este caso cabe na alínea c) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 85/89 (com referência à alínea f) do mesmo diploma), obviamente,
conforme requerimento de recurso, junto aos autos;
PELO CONTRÁRIO, no entendimento do Sr. Dr. Juiz Conselheiro e Relator deste
Tribunal, tal recurso não se enquadra na alínea c) do artigo 70º da Lei n.º
18/82;
Mas, sim, e, eventualmente, na alínea f) da mesma Lei, n.º 18/82;
ORA, salvo, sempre, o máximo e devido respeito por outro e melhor entendimento,
parece-lhes, aos recorrentes, para efeitos de uma verdadeira e substancial
Justiça, a indicação correcta, ou não, da norma subjacente, um ponto de menor
relevância;
E que não deve constituir fundamento, para indeferimento do recurso.
III PONTO: – SUSCITADA A QUESTÃO DA ILEGALIDADE (Precedentemente):
Como é evidente, antes de ter sido proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, os recorrentes não podiam suscitar a questão da ilegalidade porquanto
ainda não tinha sido cometida;
E nem se adivinhava!..., ou sequer se suspeitava!..., que alguma ilegalidade
viesse a ser cometida;
Na verdade, o douto Acórdão da Relação de Coimbra era tão evidente, tão óbvio
e de orientação jurisprudencial tão conhecida, até, do VULGO;
Que, aos recorrentes, se lhes afigurou mais prudente, não fazer alegações,
por as considerar inúteis;
O que veio a confirmar-se, no mesmo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
que não se estribou nas as razões alegadas, mas «embora por fundamentos
diversos...» (sic), veio a cometer tal ILEGALIDADE;
a) - Ratificando uma venda, por recibo, como legal (artº. 875º);
b) - Aceitando prova testemunhal, contra documento autêntico, sem ser arguida
a falsidade deste (artº. 372º, n.º 1);
E esta ilegalidade foi suscitada, logo que foi conhecida, ou seja, logo no
pedido de REFORMA DE SENTENÇA, que se encontra nos autos, nos termos do artigo
669º, n.º2, alíneas a) e b), com referência ao artigo 722º, n.º 2 – ambos do
Código de Processo Civil;
Com fundamento na ofensa frontal das normas citadas do Código Civil;
Concluindo-se que, prevalecendo tal decisão do Supremo Tribunal de Justiça,
seria cometida uma ILEGALIDADE, v.g. «....sob pena de ser cometida uma
ilegalidade» - (sic) - ( confr .pedido de reforma);
E tal pedido de reforma não foi atendido.
ASSIM,
- Pelas razões expostas, em súmula, por tudo e muito mais que será
doutamente, suprido, para bem da JUSTICA, entendem os ora reclamantes que:
a) - Deverá esse Venerando Tribunal Constitucional atender a presente
reclamação;
b) - Admitindo, pois, o respectivo recurso;
e) - Tudo para bem da Justiça.”
C. e mulher, D. não efectuaram qualquer pronúncia.
Cumpre decidir.
2. Em primeiro lugar não se deixará de sublinhar que a
vertente reclamação nunca se poderia ancorar, como o fazem os impugnantes, no
disposto nº 4 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Na verdade, não estava em questão um despacho de não admissão
de recurso – que visasse a apreciação das inconstitucionalidade ou ilegalidade
normativas – operado num tribunal que se situe a quo referentemente a este órgão
de administração de justiça.
O «despacho» aludido pelos reclamantes e intentado reclamar
tratou-se, isso sim, de uma decisão prolatada por força do disposto no nº 1 do
artº 78º-A da indicada Lei, por via da qual se não tomou conhecimento do objecto
do recurso interposto do aresto proferido em 9 de Maio de 2006 pelo Supremo
Tribunal de Justiça e ali admitido, decisão essa que somente, em termos de sobre
ela se pronunciar colectivamente o Tribunal Constitucional, é impugnável por
intermédio da actuação processual a que se reporta o nº 3 desse mesmo artigo.
Aceitando que, com o requerimento acima extractado se quis,
afinal, lançar mão dessa actuação, irá este Tribunal curar dela.
Assim:
A decisão reclamada não é passível da menor censura.
Na realidade, quer os recursos esteados nas alíneas c), d) e
e), quer os baseados na alínea f), todas do nº 1 do artº 70º da referida Lei nº
28/82, visam a apreciação da ilegalidade das normas do ordenamento ordinário
pelos fundamentos explicitados nas três primeiras, como se deu conta na decisão
sub specie, o que, aliás, até resulta da Lei Fundamental [cfr. alíneas a), b),
c) e d) do nº 2 do seu artigo 280º].
E, identicamente como se vincou na decisão agora em apreço,
no caso em questão não se postava qualquer situação que pudesse ser reconduzida
a esses mesmos fundamentos, sendo de anotar que, como facilmente resulta dos
preceitos acima indicados, uma «dita ilegalidade» pretensamente cometida por uma
decisão judicial (no sentido de ser lavrada uma decisão que, em dada
perspectiva, seria contrária a um qualquer preceito da lei ordinária) nunca
poderá abrir a via do recurso a que respeita a alínea f) do nº 1 do mencionado
artº 70º.
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, condenando-se
os impugnantes nas custas processuais, fixando-se em vinte unidades de conta a
taxa de justiça.
Lisboa, 31 de Outubro de 2006
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício