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Processo n.º 755/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por decisão de 5 de Maio de 2006 do Juiz do 5.º
Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, foi declarada a
insolvência de A., L.da, que se apresentara à insolvência, e designado como
administrador da insolvência B..
No decurso da assembleia de credores, realizada
em 17 de Agosto de 2006, foi submetida à votação uma proposta de substituição do
administrador anteriormente nomeado, proposta que foi aprovada por credores que
representavam 63,25% dos créditos reclamados, na sequência do que foi proferido
o seguinte despacho judicial:
“Do resultado da votação extrai‑se que a Assembleia de Credores votou
maioritariamente pela substituição do Senhor Administrador.
Nos termos do disposto no artigo 53.º, n.º 3, o Juiz só pode deixar de nomear
como administrador da insolvência a pessoa eleita pelos credores quando a mesma
não esteja inscrita na lista oficial ou quando careça de idoneidade ou aptidão
para o exercício do cargo.
Nos termos do disposto no artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa, é aos tribunais que compete administrar a justiça em nome do povo,
aqui se incluindo obviamente, nos termos das leis processuais, a tramitação dos
vários processos e o respectivo julgamento.
Ora, face às competências previstas no CIRE para o administrador da insolvência,
crê‑se que o conteúdo das normas previstas no artigo 53.º do CIRE padecem de
inconstitucionalidade por manifesta violação do conteúdo essencial da função
jurisdicional. Com efeito, é ao juiz que incumbe a nomeação do administrador de
insolvência, bem como a fiscalização do exercício das respectivas funções,
sendo essa nomeação um acto de relevante importância no desenvolvimento de todo
o processo.
Assim, é nosso modesto entendimento que viola frontalmente a CRP a atribuição de
poderes à Assembleia de Credores para alterar, sem qualquer fundamentação
mínima, sem qualquer justificação válida, a nomeação feita pelo juiz do
processo.
Assim, por considerar inconstitucionais, in casu, as normas do artigo 53.º do
CIRE e nos termos do disposto no artigo 204.º da CRP, decido desaplicar, por
violação do disposto no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, as referidas normas e,
em consequência, mantenho em funções o Senhor Administrador já nomeado.”
É deste despacho que vem interposto recurso
pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º,
n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo‑se ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação do artigo 202.º da Constituição
da República Portuguesa (CRP), da norma constante do artigo 53.º, n.º 3, do
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
Neste Tribunal Constitucional, o representante
do Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
“1.º – Não se situa no âmbito da função jurisdicional a escolha ou designação,
em processo de natureza executiva, singular ou universal, da pessoa ou entidade
a quem está cometida uma função de gestão material do processo, realizando
todos os actos que não dependam de actuação ou decisão do juiz.
2.º – Mesmo que se considere que, em tais processos, o princípio constitucional
da «reserva do juiz» implica que – apesar da desjudicialização parcial
prosseguida pelo legislador – ao juiz deve estar cometido um poder geral de
controlo do processo, adequando‑o aos seus fins e sindicando a actuação dos
intervenientes processuais que cooperam com o tribunal, a norma constante do
artigo 53.º do CIRE, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, não
afronta tal princípio.
3.º – Na verdade, face ao regime legal estabelecido, incumbe ao juiz valorar a
nomeação feita pela assembleia de credores, rejeitando‑a quando formule um juízo
negativo acerca das capacidades e idoneidade do eleito, bem como sindicar a sua
actuação processual, destituindo‑o quando ocorra justa causa.
4.º – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com um
juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.”
Os recorridos não apresentaram
contra‑alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. A decisão recorrida recusou a aplicação da norma do artigo
53.º, n.º 3, do CIRE, por a reputar violadora do artigo 202.º, n.ºs 1 (“Os
tribunais são os órgãos de soberania com competência para aplicar a justiça em
nome do povo”) e 2 (“Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar
a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir
a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses
públicos e privados”), da CRP, já que desrespeitaria o “conteúdo essencial da
função jurisdicional”, por ser “ao juiz que incumbe a nomeação do administrador
de insolvência, bem como a fiscalização do exercício das respectivas funções,
sendo essa nomeação um acto de relevante importância no desenvolvimento de todo
o processo”.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de, por várias
vezes, densificar o conceito constitucionalmente relevante de função
jurisdicional, cujo exercício incumbe aos tribunais, mas tem‑no feito, na
maioria das vezes, em contraposição à noção de função administrativa. A função
jurisdicional tem sido caracterizada por se consubstanciar numa composição de
conflitos de interesses, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de
harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim
específico a realização do direito e da justiça, enquanto a função
administrativa é, ao invés, uma actividade que, partindo de uma situação de
facto traduzida numa “questão de direito”, visa a prossecução do interesse
público que a lei põe a cargo da Administração e não a paz jurídica que decorre
da resolução dessa questão (cf. a síntese das posições mais relevantes constante
do Acórdão n.º 80/2003).
No presente caso, porém, não está tanto em
causa a diferenciação material daquelas duas funções, mas antes o entendimento,
subjacente à decisão ora recorrida, de que a reserva da função jurisdicional
implica não apenas a exigência de que seja um juiz a dirimir o conflito de
interesses em presença, mas também que seja o juiz a deter a direcção do
respectivo processo.
No entanto, mesmo que se admita que aquela
reserva comporta esta extensão, é patente que, no caso, os termos em que está
legalmente regulada a intervenção da assembleia de credores na designação do
administrador da insolvência não permite concluir que seja posto em causa o
domínio do processo pelo juiz.
Para fundamentar esta asserção, importa
descrever os traços mais salientes do regime instituído pelo CIRE.
2.2. Conforme se explicita na exposição de
motivos do Decreto‑Lei n.º 53/2004, a aprovação do CIRE, em substituição do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
(CPEREF), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, teve por
preocupação fundamental a “agilização” desse procedimento, proporcionando a
“resolução célere e eficaz dos processos judiciais decorrentes da situação de
insolvência das empresas”, por se reconhecer que “a manutenção do regime actual
por mais tempo resultaria em agravados prejuízos para o tecido económico e para
os trabalhadores”. Porém, “a reforma (...) empreendida não se limit[ou] (...) à
colmatação pontual das deficiências da legislação em vigor, antes assent[ou] no
que se julg[ou] ser uma mais correcta perspectivação e delineação das
finalidades e da estrutura do processo, a que preside uma filosofia autónoma e
distinta”. Reconhecendo que “o objectivo precípuo de qualquer processo de
insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos
credores”, considerou‑se ser a estes “que cumpre decidir quanto à melhor
efectivação dessa garantia”, sendo “por essa via que, seguramente, melhor se
satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado”.
Nesta perspectiva, “ao direito da insolvência compete a tarefa de regular
juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo
uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por
força da insolvência, em proprietários económicos da empresa”.
Salientando as principais inovações
introduzidas pelo CIRE, de acordo com a enunciada filosofia de privilegiamento
da posição dos credores, na referida exposição de motivos pode ler‑se, com
especial interesse para a apreciação do presente recurso:
“6 – (...)
Fugindo da errónea ideia afirmada na actual lei, quanto à
suposta prevalência da via da recuperação da empresa, o modelo adoptado pelo
novo Código explicita, assim, desde o seu início, que é sempre a vontade dos
credores a que comanda todo o processo. A opção que a lei lhes dá é a de se
acolherem ao abrigo do regime supletivamente disposto no Código – o qual não
poderia deixar de ser o do imediato ressarcimento dos credores mediante a
liquidação do património do insolvente ou de se afastarem dele, provendo por sua
iniciativa a um diferente tratamento do pagamento dos seus créditos. Aos
credores compete decidir se o pagamento se obterá por meio de liquidação
integral do património do devedor, nos termos do regime disposto no Código ou
nos de que constem de um plano de insolvência que venham a aprovar, ou através
da manutenção em actividade e reestruturação da empresa, na titularidade do
devedor ou de terceiros, nos moldes também constantes de um plano.
(...)
8 – Elimina-se, igualmente, a distinção entre a figura do gestor judicial
(designado no âmbito do processo de recuperação) e a do liquidatário judicial
(incumbido de proceder à liquidação do património do falido, uma vez decretada
a sua falência), passando a existir a figura única do administrador da
insolvência. Também aqui a vontade dos credores prepondera, pois que lhes é
devolvida a faculdade – prevista na versão original do CPEREF, mas suprimida com
a revisão de 1998 – de nomearem eles próprios o administrador da insolvência,
em substituição do que tenha sido designado pelo Juiz, e, bem assim, a de
indicar com carácter vinculativo um administrador para ocupar o cargo de outro
que haja sido destituído das suas funções.
Por outro lado, passando a comissão de credores a ser um órgão eventual no
processo de insolvência, também quanto à sua existência e composição impera a
vontade da assembleia de credores, que pode prescindir da comissão que o Juiz
haja nomeado, ou nomear uma caso o Juiz não o tenha feito, e, em qualquer dos
casos, alterar a respectiva composição.
(...)
10 – A afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é
acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo.
Por toda a parte se reconhece a indispensabilidade da intervenção do Juiz no
processo concursal, tendo fracassado os intentos de o desjudicializar por
completo. Tal indispensabilidade é compatível, todavia, com a redução da
intervenção do Juiz ao que estritamente releva do exercício da função
jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela
não colida aos demais sujeitos processuais.
É assim que, por um lado, ao Juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência,
sem que para tal tenha de se pronunciar quanto à recuperabilidade financeira da
empresa (como actualmente sucede para efeitos do despacho de prosseguimento da
acção). A desnecessidade de proceder a tal apreciação permite obter ganhos do
ponto de vista da celeridade do processo, justificando a previsão de que a
declaração de insolvência deva ter lugar, no caso de apresentação à insolvência
ou de não oposição do devedor a pedido formulado por terceiro, no próprio dia da
distribuição ou nos três dias úteis subsequentes, ou no dia seguinte ao termo do
prazo para a oposição, respectivamente.
Ainda na vertente da desjudicialização, há também que mencionar o
desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do Juiz tanto as
deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas
pela assembleia de credores), como os actos do administrador da insolvência (sem
prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa).
11 – A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos
poderes que ao Juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma‑se
expressamente, no artigo 11.º do diploma, a vigência no processo de insolvência
do princípio do inquisitório, que permite ao Juiz fundar a decisão em factos que
não tenham sido alegados pelas partes.”
Em concretização destes propósitos, o CIRE
reservou ao juiz, além do mais, as seguintes intervenções, na sequência da
apresentação do pedido de insolvência, pelo próprio devedor (artigo 18.º) ou por
terceiro (pelo responsável por dívidas do devedor, por qualquer credor ou pelo
Ministério Público em representação das entidades cujos interesses lhe estão
confiados – artigo 20.º): (i) indeferir liminarmente o pedido por manifestamente
improcedente ou evidente ocorrência de excepções dilatórias insupríveis de
conhecimento oficioso (artigo 27.º, n.º 1, alínea a)); (ii) conceder ao
requerente, sob pena de indeferimento, prazo para corrigir vícios sanáveis da
petição (artigo 27.º, n.º 1, alínea a)); (iii) declarar imediatamente a
insolvência requerida pelo próprio devedor (artigo 28.º); (iv) mandar citar o
devedor se a insolvência não tiver sido requerida pelo próprio (artigo 29.º; (v)
se o devedor não deduzir oposição, considerando-se confessados os factos
alegados na petição inicial, declarar a insolvência, se tais factos preencherem
os respectivos pressupostos (artigo 30.º, n.º 5); (vi) havendo justificado
receio da prática de actos de má gestão, ordenar, oficiosamente ou a pedido do
requerente, as medidas cautelares que se mostrem necessárias ou convenientes
para impedir o agravamento da situação patrimonial do devedor, até que seja
proferida sentença, medidas que podem designadamente consistir na nomeação de um
administrador judicial provisório (artigo 31.º), com poderes exclusivos para a
administração do património do devedor (hipótese em que deve providenciar pela
manutenção e preservação desse património, e pela continuidade da exploração da
empresa, salvo se considerar que a suspensão da actividade é mais vantajosa para
os interesses dos credores e tal medida for autorizada pelo juiz – artigo 33.º,
n.º 1), ou para assistir o devedor nessa administração (hipótese em que o juiz
deve especificar os deveres e as competências do administrador judicial
provisório – artigo 33.º, n.º 2).
Tendo havido oposição do devedor, o juiz
designa dia para audiência de discussão e julgamento, competindo‑lhe: (i) ditar
logo para a acta sentença de declaração de insolvência, se não comparecerem o
devedor nem um seu representante e se os factos alegados na petição inicial,
que se têm por confessados, preencherem os requisitos legais dessa declaração,
ou sentença homologatória da desistência do pedido, se não comparecer o
requerente ou seu representante, já que esta ausência vale como desistência
(artigo 35.º, n.º 4); (ii) se o julgamento houver de prosseguir, seleccionar a
matéria de facto relevante que considere assente e a que constitui a base
instrutória, decidir logo as respectivas alegações, presidir à produção das
provas, e, após alegações, decidir a matéria de facto e proferir a sentença
(artigo 35.º, n.ºs 5 a 7).
Na sentença que declarar a insolvência, deve o
juiz, além do mais, nomear o administrador da insolvência (artigo 36.º, alínea
d)), designar prazo para a reclamação de créditos (artigo 36.º, alínea j)) e
designar dia e hora para a realização da reunião da assembleia de credores
(artigo 36.º, alínea n)).
A nomeação do administrador da insolvência é,
assim, da competência do juiz (artigo 52.º, n.º 1), devendo recair em entidade
inscrita na lista oficial de administradores da insolvência e devendo o juiz
atender igualmente às indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela
comissão de credores, se existir, e cabendo a preferência, na primeira
designação, ao administrador judicial provisório em exercício de funções à data
da declaração da insolvência (artigo 52.º, n.º 2). É neste contexto que surge o
artigo 53.º, cuja aplicação foi recusada pela decisão ora recorrida, e que
dispõe:
“Artigo 53.º
Escolha de outro administrador pelos credores
1 – Sob condição de que previamente à votação se junte aos
autos a aceitação do proposto, os credores podem, na primeira assembleia
realizada após a designação do administrador da insolvência, eleger para exercer
o cargo outra pessoa, inscrita ou não na lista oficial, e prover sobre a
remuneração respectiva, por deliberação que obtenha a aprovação da maioria dos
votantes e dos votos emitidos, não sendo consideradas as abstenções.
2 – A eleição de pessoa não inscrita na lista oficial apenas
pode ocorrer em casos devidamente justificados pelas especiais dimensão da
empresa compreendida na massa insolvente, pela especificidade do ramo de
actividade da mesma ou pela complexidade do processo.
3 – O juiz só pode deixar de nomear como administrador da
insolvência a pessoa eleita pelos credores, em substituição do administrador em
funções, se considerar que a mesma não tem idoneidade ou aptidão para o
exercício do cargo, que é manifestamente excessiva a retribuição aprovada pelos
credores ou, quando se trate de pessoa não inscrita na lista oficial, que não se
verifica nenhuma das circunstâncias previstas no número anterior.”
O administrador da insolvência só assume a sua
função após ser notificado da sua nomeação pelo juiz (artigo 54.º),
incumbindo‑lhe, além das demais tarefas que lhe são cometidas, preparar o
pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes
na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que
lhe incumbe promover, dos bens que a integram, e prover, no entretanto, à
conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da
exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da
sua situação económica (artigo 55.º, n.º 1). O administrador da insolvência
exerce a sua actividade sob a fiscalização do juiz, que pode, a todo o tempo,
exigir‑lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um
relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da
liquidação (artigo 58.º), bem como determinar‑lhe que preste contas em qualquer
altura do processo (artigo 62.º, n.º 2), e, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, o
juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e
substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o
devedor e o próprio administrador da insolvência, fundadamente considerar
existir justa causa. Nos termos do artigo 169.º, o juiz pode, a requerimento de
qualquer interessado, decretar a destituição, com justa causa, do administrador
da insolvência, caso o processo de insolvência não seja encerrado no prazo de um
ano contado da data da assembleia de apreciação do relatório, ou no final de
cada período de seis meses subsequente, salvo havendo razões que justifiquem o
prolongamento.
É ao juiz que cabe convocar (artigo 75.º) e
presidir (artigo 74.º) à assembleia de credores, conferir votos a créditos
impugnados (artigo 73.º, n.º 3), e decidir as reclamações contra as deliberações
da assembleia (artigo 78.º, n.º 2), bem como as impugnações dos credores
reconhecidos (artigo 130.º, n.º 1), proferir sentença de verificação e graduação
de créditos não impugnados (artigo 130.º, n.º 3), presidir a tentativa de
conciliação e proferir despacho saneador se o processo houver de prosseguir
(artigo 136.º), ordenar diligências instrutórias (artigo 137.º), designar e
presidir à audiência de discussão e julgamento (artigos 138.º e 139.º), e,
finalmente, proferir sentença de verificação e graduação dos créditos (artigo
140.º).
Se a assembleia de credores optar pela
aprovação de um plano de insolvência, cabe ao juiz homologá‑lo (artigo 214.º),
podendo recusar essa homologação quer oficiosamente (no caso de “violação não
negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu
conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável
que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam
praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação” –
artigo 215.º), quer a solicitação do devedor ou de algum credor ou sócio,
associado ou membro do devedor, nas condições elencadas no artigo 216.º).
2.3. Da sumária descrição do regime legal em
que se insere a norma desaplicada resulta que está reservada ao juiz a decisão
dos momentos cruciais do conflito de interesses presentes neste tipo de
processos: decretar, ou não, a insolvência; reconhecer e graduar os créditos;
homologar, ou não, o plano de insolvência. Está‑lhe também assegurado o efectivo
domínio do processo, em todas as suas fases, e, designadamente, um apertado
controlo da actuação do administrador de insolvência, que pode mesmo resultar na
sua destituição.
É ao juiz que compete a nomeação do
administrador da insolvência, e mesmo a admissibilidade – pela norma reputada
inconstitucional pela decisão recorrida – de a assembleia de credores eleger
para exercer o cargo pessoa diversa da inicialmente indigitada pelo juiz
(prerrogativa inteiramente compreensível tendo em linha de conta que o processo
em causa visa primacialmente proteger os interesses dos credores, considerados
como sendo “por força da insolvência, os proprietários económicos da empresa”)
não retira ao juiz a última palavra na questão, pois ele pode recusar a nomeação
do administrador escolhido pela assembleia de credores se entender que o mesmo
não tem idoneidade ou aptidão para o exercício do cargo, que é manifestamente
excessiva a retribuição aprovada pelos credores ou, quando se trate de pessoa
não inscrita na lista oficial, que não se verificam as circunstâncias relativas
à especial dimensão da empresa compreendida na massa insolvente, à
especificidade do ramo de actividade da mesma ou à complexidade do processo que
foram invocadas para justificar a escolha de pessoa não inscrita na lista
oficial.
Neste contexto, não é de manter o juízo de
inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. Como se assinala na
contra‑alegação do Ministério Público, não está em causa a outorga a uma
entidade administrativa da competência para dirimir litígios entre
particulares, não se reportando o regime legal questionado ao exercício
substantivo da função jurisdicional, mas tão‑somente a uma determinada limitação
à discricionariedade judicial na escolha ou manutenção em funções de certo
interveniente processual, que cooperará com o tribunal no desenrolar do processo
de insolvência. Ora, “não está compreendido no âmbito da reserva do juiz um
poder irrestrito de escolha dos intervenientes processuais em causas de natureza
executiva, aos quais está cometida uma essencial tarefa de gestão, impulso e
realização material e prática dos actos processuais cuja natureza não imponha
uma actuação ou valoração jurisdicional”. A este propósito, recorda‑se que, no
âmbito da execução singular, também não é ao juiz que incumbe designar o
“solicitador de execução”, cabendo tal nomeação ao exequente ou à secretaria,
nos termos do artigo 808.º do CPC.
No entanto, mesmo considerando, com o
representante do Ministério Público neste Tribunal, que “em processos de cariz
executório, a «desjudicialização parcial», recentemente prosseguida pelo
legislador, não pode aniquilar de todo o «poder geral de controlo e direcção do
processo pelo juiz», – adequando a tramitação da causa aos seus fins últimos,
garantindo os direitos e interesses legítimos nela envolvidos e sindicando a
actividade desenvolvida pelo «gestor material do processo» – (…) a norma em
causa no presente recurso não afronta tal «reserva mínima» da função
jurisdicional: é que, como se viu, a escolha e deliberação da assembleia de
credores não se impõe, em termos absolutos, ao juiz, permitindo‑lhe rejeitar
fundadamente uma eleição que considere manifestamente inadequada e
inconveniente para o fim e eficácia do processo, tal como lhe permite o artigo
56.º destituir o administrador em funções quando ocorra «justa causa»”. Na
verdade, “tais formas de controlo jurisdicional da nomeação e actuação do
administrador asseguram, (…) em termos bastantes, o poder geral de fiscalização
e direcção do processo pelo juiz, não afrontando o «núcleo essencial» da função
jurisdicional a possibilidade de as próprias «partes» – no caso, os credores,
reunidos em assembleia – preferirem que exerça a função de administrador da
insolvência pessoa diversa da originariamente designada, desde que tal
indicação não colida – atenta a capacidade e idoneidade do indicado – com o
interesse público na boa administração da justiça, naturalmente tutelado, em
todos os processos jurisdicionais, em última análise, pelo juiz”.
3. Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do
artigo 53.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 53/2004, de 18 de Março; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos