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Processo nº 924/2006
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I
O pedido e a apresentação do problema
1. O Presidente da República, nos termos do artigo 115º, nº 8, da Constituição
e dos artigos 26º e 29º, nº 1, da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril, requereu a
fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de
referendo aprovada pela Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da República
(publicada no Diário da República, I Série, de 20 de Outubro de 2006).
A resolução em causa tem o seguinte teor:
Propõe a realização de um referendo sobre
a interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da mulher nas primeiras
10 semanas
A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos do artigo 115º e
da alínea j) do artigo 161º da Constituição da República Portuguesa, apresentar
a S. Ex.a o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em
que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a
pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
“Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se
realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado?”
Aprovada em 19 de Outubro de 2006.
O Presidente da Assembleia da República, Jaime Gama.
2. A Resolução nº 54‑A/2006 corresponde ao Projecto de Resolução apresentado
por Deputados do Partido Socialista, em 20 de Setembro de 2006, invocando “o
compromisso de suscitar um novo referendo sobre a despenalização da interrupção
voluntária da gravidez, nos termos anteriormente submetidos ao voto popular”.
Nesta mesma sessão legislativa, foram apresentados três projectos de lei
relativos a matéria de despenalização relativa da interrupção voluntária da
gravidez: os Projectos de Lei nº 308/X, do Partido Comunista Português, nº
309/X, do Partido Os Verdes (Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de
21 de Setembro de 2006); e o Projecto de Lei nº 317/X, do Bloco de Esquerda
(Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de 6 de Outubro de 2006).
Todos estes projectos prevêem a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez até um certo prazo, quando praticada por solicitação de mulher grávida.
Assim, diz‑se no projecto do Partido Comunista Português:
Artigo 1º
(Interrupção da gravidez não punível)
O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
«Artigo 142.º
(...)
1 – Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua
direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido,
quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez a pedido da mulher para
preservação do direito à maternidade consciente e responsável.
2 – De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico
ou sob a sua direcção em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente
reconhecido, com o consentimento da mulher quando, segundo o estado dos
conhecimentos e da experiência da medicina:
a) (actual alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º)
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível
lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher e for realizada
nas primeiras 16 semanas de gravidez;
c) (actual alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho)
d) Houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a
sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e
for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos
referidos na alínea anterior;
e) (actual alínea d) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho)
f) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou
incapaz por anomalia psíquica se a interrupção da gravidez for realizada nas
primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).
3 – Sempre que se trate de grávida toxicodependente não é punível a interrupção
da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no n.º 1 durante as
primeiras 16 semanas de gravidez.
4 – A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da
gravidez, referidas no n.º 2, é certificada em atestado de médico, escrito e
assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob
cuja direcção, a interrupção é realizada.
5 – (actual n.º 3)
6 – (actual n.º 4).
No projecto do Partido Os Verdes, lê‑se o seguinte:
Artigo 1.º
Alteração ao Código Penal
Os artigos 140.º e 142.º do Código Penal, com as alterações que lhe foram
introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e pela Lei n.º 90/97, de 30
de Julho, passam a ter a seguinte redacção:
Artigo 140.º
Aborto
1 – (…)
2 – (…)
3 – (eliminado)
Artigo 142.º
Interrupção da gravidez não punível
1 – Não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por médico, ou sob
a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido,
com o consentimento da mulher grávida, nas primeiras 12 semanas de gravidez para
preservação da sua integridade moral, dignidade social ou do seu direito à
maternidade responsável e consciente.
2 – Da mesma forma, não é punível a interrupção da gravidez quando efectuada por
médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo
o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) (actual alínea a))
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura
lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for
realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma
incurável, de grave doença, designadamente de HIV (vírus da imunodeficiência
humana) ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de
gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com
as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a
interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) (actual alínea d))
e) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou
incapaz por anomalia psíquica, se a interrupção da gravidez for realizada nas
primeiras 24 semanas comprovadas nos termos descritos na alínea c).
3 – A verificação das circunstâncias, previstas nas alíneas a) a e) do número
anterior, que tornam não punível a interrupção da gravidez, é certificada
através de atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico
diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
4 – (actual n.º 3)
5 – (actual n.º 4)
E, finalmente, o projecto do Bloco de Esquerda tem o seguinte teor:
Artigo 1.º
Direito de optar
Todas as mulheres têm o direito de controlar os aspectos relacionados com a sua
sexualidade, incluindo a sua saúde sexual e reprodutiva, e de decidir livre e
responsavelmente sobre estas questões, sem coacção, discriminação ou violência.
Artigo 2.º
Exclusão de ilicitude do aborto
O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 142.º
(…)
1 – Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua orientação, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, nas seguintes
situações:
a) A pedido da mulher, nas primeiras 12 semanas de gravidez;
b) No caso de existirem seguros motivos para crer que o nascituro virá a
sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação e for realizada nas
primeiras 24 semanas com consentimento da mulher;
c) Sempre que exista perigo de vida para a mulher grávida ou de grave e
irreversível lesão para a sua saúde física e psíquica e for realizado com o seu
consentimento até às 16 semanas de gravidez;
d) Sempre que existirem sérios indícios de que a gravidez resultou de crime
contra a liberdade e autodeterminação sexual e for realizado, com consentimento
da mulher grávida, nas primeiras 16 semanas, ou nas primeiras 24 semanas, no
caso da vítima ser menor ou ser incapaz por anomalia psíquica;
e) Quando se trate de grávida toxicodependente, desde que realizado, com o seu
consentimento, nas primeiras 16 semanas de gravidez;
f) No caso de mulheres grávidas portadoras de HIV (síndroma de
imunodeficiência adquirida) ou afectadas por este vírus, até às 24 semanas, se
for esse o consentimento da mulher;
g) No caso de fetos inviáveis, a interrupção de gravidez poderá ser feita em
qualquer idade gestacional;
h) Constituir o único meio de remover o perigo de morte ou de grave e
irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher
grávida.
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…)
O Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular formulou uma proposta
de substituição da pergunta apresentada pelos Deputados do Partido Socialista,
em que pretendia a alteração da redacção da pergunta, substituindo
“despenalização” por “liberalização” e “interrupção voluntária da gravidez” por
“aborto” (cf. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 14, de 20 de
Outubro de 2006).
Em Reunião Plenária de 19 de Outubro de 2006, a Assembleia da República aprovou,
após debate, o Projecto de Resolução nº 148/X, com votos a favor do Partido
Socialista, do Partido Social Democrata e do Bloco de Esquerda e votos contra do
Partido Comunista Português, do Partido Ecologista “Os Verdes”, de uma Deputada
do Partido Socialista e de um Deputado do Partido Social Democrata e abstenções
do Partido do Centro Democrático Social – Partido Popular, de duas Deputadas do
Partido Socialista e de um Deputado do Partido Social Democrata.
Após esta aprovação, a Assembleia da República considerou prejudicada a votação
da proposta de substituição da pergunta do Partido do Centro Democrático Social
– Partido Popular.
3. A pergunta que constitui objecto da presente proposta de referendo
corresponde, exactamente, à pergunta submetida à fiscalização de
constitucionalidade e legalidade no Acórdão nº 288/98 (D.R., I Série‑A, de 18 de
Abril de 1998), pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu ter por verificada a
constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução nº 16/98
da Assembleia da República.
Assim, em 1998, os portugueses foram já confrontados em referendo com a presente
pergunta, não tendo, porém, esse referendo, em que a resposta negativa foi
maioritária, sido vinculativo, nos termos do artigo 115º, nº 11, da
Constituição. A resposta negativa atingiu 50,9% dos votantes, a afirmativa 49,1%
e a abstenção 68,1% – cf. Mapa Oficial nº 3/98, D.R., I Série‑A, de 10 de Agosto
de 1998.
Em 2005, a mesma pergunta foi apresentada como objecto de uma proposta de
referendo. O Tribunal Constitucional, pelo Acórdão nº 578/2005, de 28 de Outubro
(D.R., I Série‑A, de 16 de Novembro de 2005), entendeu que não estavam cumpridas
as exigências constitucionais, em face do artigo 115º, nº 10, da Constituição,
sem ter apreciado a substância da pergunta.
4. A pergunta objecto da presente proposta de referendo é pois igual à pergunta
sobre a qual o Tribunal Constitucional já se pronunciou no Acórdão nº 288/98.
Algumas razões, porém, impõem que o Tribunal Constitucional não remeta, sem
mais, para os fundamentos daquele Acórdão.
Em primeiro lugar, existiu uma alteração parcial da composição do Tribunal, o
que justifica que as conclusões alcançadas naquele aresto, por maioria, na base
de um certo acordo em matéria tão complexa, tenham que ser necessariamente
debatidas de novo.
Em segundo lugar, entre 1998 e 2006 desenrolou‑se uma história legislativa,
política, social e de justiça penal que tem de ser considerada. E também no
plano internacional, do Direito Comparado e do Direito Europeu existem
contribuições relevantes para a ponderação.
Em terceiro lugar, no pensamento sobre as penas e sobre a política criminal há
dados novos a considerar. E esses dados podem contribuir para a conclusão acerca
da dignidade e da tutela penal da vida intra-uterina.
Em quarto lugar, no plano da discussão pública, não deixa de assumir particular
relevância a precedência de um referendo sobre a mesma questão, que foi
considerado constitucional e legalmente admissível.
Em quinto lugar, o estado da discussão política sobre a punição das mulheres que
pratiquem o crime de aborto evoluiu em aspectos cruciais, com o surgimento de
novas ideias e propostas.
Por último, o facto de o anterior Acórdão contar com desenvolvidos votos de
vencido justifica que alguns argumentos que não lograram vencimento mereçam ser
analisados de novo.
Não nos situamos assim, em 2006, no ponto de partida exacto do Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 288/98, mas num outro momento histórico‑jurídico, que
exigirá a consideração de elementos nessa altura não ponderados. Vejamos, então,
nesta perspectiva, quais as questões essenciais a debater, considerando os novos
elementos do debate.
Entende‑se que as questões fundamentais são três:
– A conformidade da pergunta aos requisitos constitucionais e legais, com
especial incidência na clareza e objectividade da sua formulação e no seu
carácter dilemático ou binário;
– A determinação do universo eleitoral;
– A verificação se o dilema suscitado pela pergunta pode suscitar, pelo
menos, uma resposta incompatível com a Constituição ou com a lei.
É sobre estas questões que se podem reflectir, igualmente, os novos dados da
presente situação histórica e social em matéria de interrupção voluntária da
gravidez que se passa a enunciar.
II
Enquadramento actual da questão
objecto da proposta de referendo
5. No plano do Direito Comparado, remetendo‑se para a extensa abordagem do
Acórdão nº 288/98, deverá salientar‑se que permanece uma tendência para a
consolidação de soluções legislativas descriminalizadoras ou que enunciam causas
de afastamento da responsabilidade segundo certas indicações. Não há
conhecimento, no grupo dos países com a estrutura de Estado de Direito
democrático, de um “retrocesso” no sentido criminalizador (cf. Bertrand Mathieu,
Le droit à la vie, Edições do Conselho da Europa, 2005). E esta tendência diz
respeito quer aos Estados que adoptaram a solução dos prazos quer aos Estados
que adoptaram o método das indicações.
Entre 1998 e 2006, registou‑se, no Direito francês, o alargamento do prazo em
que a mulher pode solicitar a interrupção voluntária da gravidez de dez para
doze semanas, alterando‑se, assim, a chamada Lei Veil que procedeu à
descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em
situações de angústia. Tal regime está contido no Code de la Santé Publique
(Ord. nº 2000‑548, de 15 de Junho de 2000), o qual prevê agora o seguinte (Art.
L. 2212‑1):
A mulher grávida que o seu estado coloca numa situação de angústia pode
solicitar a um médico a interrupção da gravidez. Esta interrupção da gravidez
não pode ser praticada senão antes da décima segunda semana de gravidez. [La
femme enceinte que son état place dans une situation de détresse peut demander a
un médecin l’interruption de sa grossesse. Cette interruption ne peut être
pratiquée qu’avant la fin de la douzième semaine de grossesse.]
No Art. L. 2212‑2, acrescenta‑se que a interrupção voluntária da gravidez só
pode ser realizada por um médico, num estabelecimento de saúde público ou
privado, satisfazendo as condições do artigo L. 2322 (Lei nº 2001‑588, de 4 de
Julho de 2001) e no “quadro de uma convenção” entre o médico e o estabelecimento
de saúde. A referida lei estabeleceu que os menores, em caso de recusa dos pais,
podem apelar a um adulto da sua escolha para os apoiar nas suas diligências. Por
outro lado, o aconselhamento prévio torna‑se facultativo e criminaliza‑se o
entrave à interrupção voluntária da gravidez. O Conselho Constitucional
pronunciou‑se sobre tal lei (Décision nº 2001‑446 DC – 27 Juin 2001, consultável
em www.conseil-constitutionnel.fr/decision/2001/20011446/20011446dc.htm),
considerando que “a lei não quebrou o equilíbrio que o respeito da Constituição
impõe entre, por um lado, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana contra
toda a forma de degradação e, por outro lado, a liberdade da mulher que decorre
do artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”.
Por outro lado, na Irlanda realizou‑se, em Março de 2002, novo referendo, em que
esteve em causa uma alteração da Constituição, visando consagrar uma emenda
segundo a qual a vida intra‑uterina deveria ser protegida de acordo com a
Protection of Human Life in Pregnant Act, de 2001, legislação que apenas
permitia a interrupção voluntária da gravidez no caso de perigo para a vida da
mulher diverso do risco de suicídio. Neste referendo, discutiu‑se a inversão ou
não da jurisprudência que considerou justificada a interrupção voluntária da
gravidez em caso de invocação do risco de suicídio da mulher – no caso de uma
jovem de 14 anos vítima de violação (cf. Lisa Smith, The Politics of
Reproduction in Contemporary Ireland, 2005, p. 17 e ss.). O resultado do
referendo foi, porém, negativo, tendo-se mantido a situação anterior.
Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, numa decisão de 8 de Julho de
2004, em que se pronunciou sobre um caso de negligência médica num aborto
terapêutico, teceu, entre outras, as seguintes considerações: “O Tribunal está
convencido de que não é desejável nem mesmo possível actualmente responder em
abstracto à questão de saber se o nascituro é uma pessoa no sentido do artigo 2º
da Convenção” embora, “na ausência de um estatuto jurídico claro do nascituro,
este não [esteja] privado de qualquer protecção no direito francês” (caso Vo c.
France – Application nº 53924/00 [2004] ECHR 326, consultável em
www.worldlii.org/eu/cases/ECHR/2004/326.html).
Por outro lado, o Parlamento Europeu, na sequência do Relatório de Anne E. M.
Van Lancker de 6 de Junho de 2002, aprovou uma resolução sobre a política a
seguir nos países integrantes da União Europeia quanto a “direitos em matéria de
saúde sexual e reprodutiva” (Resolução do Parlamento Europeu sobre Direitos em
Matéria de Saúde Sexual e Reprodutiva – JO C Nº 271 E, de 12 de Novembro de
2003). Nessa resolução recomenda-se aos governos dos Estados‑Membros e dos
países candidatos à adesão “que pugnem pela implementação de uma política de
saúde e social que permita uma diminuição do recurso ao aborto, nomeadamente
graças à disponibilização de serviços de planeamento familiar e de
aconselhamento e à prestação de assistência e apoio financeiro a grávidas em
dificuldade, e considerem o aborto de risco como tema fundamental de saúde
pública”. Mas recomenda-se ainda “que a interrupção voluntária da gravidez seja
legal, segura e universalmente acessível, a fim de salvaguardar a saúde
reprodutiva e os direitos das mulheres”, exortando-se “os governos dos
Estados‑Membros e dos países candidatos à adesão a absterem‑se, em quaisquer
circunstâncias, de agir judicialmente contra mulheres que tenham feito abortos
ilegais”.
Assume‑se, assim, no âmbito do Parlamento Europeu, uma perspectiva preventiva e
de saúde pública quanto ao aborto, com distanciamento das soluções punitivas.
Já em matéria de planeamento familiar, o Regulamento (CE) nº 1567/2003, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Julho de 2003 (JO L 224, de
06.09.2093), relativo à ajuda para políticas e acções em matéria de saúde
reprodutiva e sexual e direitos conexos nos países em desenvolvimento, estipula
que “A Comunidade e os Estados‑Membros reconhecem o direito de cada indivíduo
escolher livremente o número de filhos e o intervalo entre nascimentos, e
condenam todas as violações dos direitos humanos sob a forma de aborto
obrigatório, esterilização forçada, infanticídio, rejeição, abandono ou maus
tratos a crianças não desejadas como forma de reduzir o aumento demográfico”.
6. No terreno da discussão jurídico‑política, é certo que se mantiveram e
desenvolveram com firmeza as posições contra a despenalização do aborto (cf.,
por exemplo, no lado contrário à despenalização, entre nós, Paulo Ferreira da
Cunha, Constituição do crime, da substancial constitucionalidade do Direito
Penal, 1998, Bacelar Gouveia e Henrique Mota, Vida e Direito – Reflexões sobre
um referendo, 1998, e Paulo Otero, Direito da Vida, 2004).
Mas também é verdade que surgiram posições, ainda no quadro da actual solução
legislativa, que reconhecem as dificuldades morais em punir com justiça, nos
casos concretos, as mulheres que cometerem aborto ilegal. Para além de
pronunciamentos em vários órgãos de comunicação social, como a defesa da não
punição da mulher que aborte, numa lógica de desculpa, defendida por Freitas do
Amaral (cf. Visão de 12 de Fevereiro de 2004), veja-se o Projecto de Lei nº 20/X
(Diário da Assembleia da República, II Série‑A, de 2 de Abril de 2005),
apresentado pelas Deputadas do PS Maria do Rosário Carneiro e Teresa Venda, que
propugnou a “suspensão provisória do processo (contra a mulher que abortou) com
carácter obrigatório”, invocando a “não indiferença ao sofrimento, a ponderação
das circunstâncias individuais, a defesa da dignidade das mulheres e a
ponderação das alternativas inclusivas”.
7. Do lado favorável à despenalização, assistiu‑se à afirmação de uma
perspectiva preventiva, de saúde pública, que privilegia as dificuldades morais
e sociais da mulher que aborta. Assim, registou-se, por parte de alguns
intervenientes no debate público, uma tendência para situar a discussão num
nível não puramente ideológico e para basear a decisão em valorações apoiadas
nos projectos de vida de cada pessoa, nas concretas oportunidades sociais para
uma maternidade consciente e em emoções, como a angústia, que podem levar à
rejeição da maternidade (cf., já nessa linha, Ronald Dworkin, Life’s Dominion –
An Argument about Abortion and Euthanasia, 1993, e, em geral sobre o papel das
emoções – como a compaixão –, na base de julgamentos éticos razoáveis e das
próprias decisões políticas, Martha Nussbaum, Upheavals of Thought, The
Intelligence of Emotions, 2001, p. 441 e ss.).
No pólo oposto, em defesa do não alargamento da despenalização, vêm‑se
referindo, pragmaticamente, os efeitos criminógenos da despenalização e os seus
reflexos nas concepções sociais sobre o valor da vida, alertando-se para os
perigos de uma “cultura de morte”.
De todo o modo, tanto do lado das posições mais favoráveis à despenalização como
do lado contrário se verifica um movimento convergente para aproximar a
discussão sobre o aborto de perspectivas não absolutas, que reconhecem a
existência de conflito, e para utilizar argumentos próximos dos interesses
imediatamente perceptíveis por cada pessoa, que se reflectem na sua vida. Por
conseguinte, a discussão sobre a despenalização da interrupção voluntária da
gravidez dentro de certo prazo e em certas condições emergiu como questão
diversa da pura afirmação, em abstracto, de valores como a vida ou a liberdade
(valores absolutos como lhes chama Lawrence Tribe, em The Clash of Absolutes,
1990, para concluir que “muito do que cada um acredita sobre todos estes
assuntos diz mais sobre o que somos, de onde provimos do que sobre a nossa visão
ou sobre a última verdade” (p. 40).
8. A reflexão sobre valores numa sociedade democrática, pluralista e de matriz
liberal quanto aos direitos fundamentais tem sido objecto privilegiado do
pensamento filosófico contemporâneo. Tal reflexão exprime-se na ideia de um
“consenso de sobreposição” (overlapping consensus) desenvolvida por John Rawls,
em Political Liberalism, 1993, p. 133 e ss.. O autor concebe a possibilidade de
um consenso sobre valores políticos, como o respeito mútuo ou a liberdade, sem o
sacrifício de valores mais abrangentes e de visões particulares, mas a partir da
diversidade dos valores. Por exemplo, diferentes concepções religiosas podem
confluir, sem abandonar a respectiva matriz, num núcleo de valores estritamente
políticos.
Ora, independentemente de se aceitarem as teses resultantes da referida
orientação, não poderá deixar de se registar que a discussão sobre valores induz
a reconhecer que a possibilidade de um Estado de Direito democrático os impor é
problemática. Uma tal imposição não se legitima na mera evidência intuída pela
consciência individual, num mandato divino ou até na decisão discricionária do
poder político, ainda que legitimado pela maioria. A decisão sobre valores é
fundamentante do Estado de Direito e não está arredada da discussão democrática,
orientada por regras de liberdade, igualdade de oportunidades, participação
política efectiva e limites lógicos à autocontradição (cf. Arthur Kaufmann,
Rechtsphilosophie, 1997, p. 336 e ss., onde se lê que “só na livre discussão de
opiniões a verdade tem uma chance” e que “a indagação da verdade é um problema
de liberdade”).
Não pode, por conseguinte, o Tribunal Constitucional abordar os problemas
jurídico‑constitucionais suscitados pela pergunta, prescindindo de dar conta de
que há uma investigação jurídico-filosófica mantida, no nosso tempo, sobre a
fundamentação dos valores e a legitimidade da sua imposição. Dessa investigação
resulta que os valores não estão acima da discussão livre e que não é possível
impô‑los ao “outro”, sem cumprir um estrito dever de fundamentação sujeito a um
método argumentativo e participado.
9. Também no que se refere ao pensamento sobre o crime e a pena, têm sido
introduzidas perspectivas que aumentam a complexidade dos modelos puramente
preventivos ou retributivos de política criminal. A reflexão sobre a pena
orienta‑se para modalidades e funções compensadoras das vítimas e da sociedade.
Por outro lado, acentua‑se, por essa via, a ideia de que a pena não pode retirar
a sua legitimidade senão do bem que possa gerar na vítima, na sociedade e no
próprio condenado (quer a partir de perspectivas de prevenção quer na linha de
um modelo de justiça reparadora dos danos do crime). Recusa-se, desde logo, que
a pena constitua apenas o mal que corresponde (e acresce) ao mal do crime.
Tal ideia repercute‑se, necessariamente, no conteúdo e no sentido da pena, mas
também na conveniência e na necessidade de solucionar o conflito entre o agente
e o Estado através da pena. Em confluência com esta perspectiva, faz sentido
distinguir entre merecimento e necessidade da pena como dois patamares
diferenciados de justificação da tutela penal (cf. Figueiredo Dias, Direito
Penal, Parte Geral, 2004, p. 120 e ss.).
A ideia de pena não deixa de ser, para um certo pensamento filosófico, um
conceito em crise. Já Paul Ricoeur sugeria, em “Interprétation du mythe de la
peine” (Le conflit des interprétations, 1969, p. 348 e ss.), que a crise reside
na duvidosa racionalidade da equivalência entre o crime e a pena (como
sofrimento moral) e na (duvidosa) capacidade de esta apagar o mal do crime ou
solucionar o seu problema.
A perspectiva de que o crime reclama sempre a punição e não outra forma de
superação é algo cuja racionalidade não está, nesta linha de pensamento, acima
de qualquer dúvida. E não está isenta de dúvida mesmo para quem, como Paul
Ricoeur, se posicione dentro da cultura bíblica, na qual o mal do pecado – que é
a separação de Deus – é superado pelo perdão e pela graça.
Em sentido idêntico, mas a partir de outras raízes culturais, tem-se sustentado
a racionalidade da ultrapassagem de uma protecção neutral (e igual) dos bens e
direitos pela compreensão “ do significado humano e do impacto das leis”,
preferindo-se a compaixão na vida pública à punição retributiva (cf. Martha
Nussbaum, ob. cit., p. 443).
Assim, no pensamento jurídico-filosófico sobre a pena, não só a sua finalidade e
justificação como também a sua adequação ao crime têm sido objecto de discussão,
tanto por quem não duvida que certos comportamentos (incluindo a interrupção
voluntária da gravidez) merecem reprovação ética como por quem, partindo do
debate político-criminal, rejeita uma função meramente retributiva da pena e lhe
atribui uma função preventiva baseada no princípio da necessidade e da
intervenção mínima do jus puniendi.
10. As manifestações da crise da ideia de pena e de uma insatisfação cultural
quanto a ela revelam‑se, nos sistemas jurídicos contemporâneos, na adopção de
medidas paralisadoras da punição. Assim, no terreno processual penal,
consagra-se a suspensão provisória do processo e o arquivamento em caso de
dispensa de pena. No quadro de uma desjudicialização, aceita-se a figura da
mediação penal (cf., sobre esta figura e sobre a justiça restaurativa em geral,
Anabela Rodrigues, “Mediação Penal: a propósito da introdução do regime de
mediação no processo penal”, Revista do Ministério Público, ano 27, 2006, nº
105, p. 127 e ss., Francisco Amado Ferreira, Justiça Restaurativa, natureza,
finalidades e instrumentos, 2006, e Cândido da Agra e Josefina Castro, “Mediação
e Justiça Restaurativa: esquema para uma lógica do conhecimento e da
experimentação”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano
II, 2005, p. 95 e ss.). Por fim, no âmbito do Direito Penal material, prevê-se,
desde 1982, o expressivo instituto da dispensa da pena, que implica condenação
sem punição (artigo 74º do Código Penal).
Em suma, o pensamento sobre o crime e a pena, quer na sua expressão filosófica
quer na sua expressão jurídica, sugere que, sendo pacífica a proposição de que
não há pena sem crime, não é verdadeira a proposição inversa. E, no plano do
conceito material de crime, reflecte‑se tal entendimento na acentuação da
“carência da tutela penal” como modo de justificação da criminalização fora de
uma lógica retributiva.
Por outro lado, também é verdade que, numa outra óptica de pensamento, se tem
intensificado o apelo à pena para reprimir a violação de direitos humanos e o
Direito Penal ressurgiu, no plano internacional, como um instrumento de
protecção das pessoas em situação de fraqueza contra diversas manifestações de
domínio ilegítimo proveniente de fontes formais ou informais de poder, incluindo
os Estados. Assim, o Direito Penal surge como âncora dos fracos e juiz da
História, assumindo‑se como instrumento de defesa de causas humanitárias e de
luta contra a prepotência.
É num horizonte cultural complexo que as várias questões suscitadas pela
pergunta objecto da proposta de referendo se colocam. O Tribunal analisará tais
questões, a fim de verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo
proposto, não se alheando da situação histórica e do ambiente de pensamento
envolvente. Deste enquadramento retiram-se, no essencial, três linhas de
orientação: a relação entre a ideia de Estado de Direito democrático (artigo 2º
da Constituição) e a necessidade de discutir valores; a crise da pena como
solução do problema do crime; e a justificação da criminalização numa lógica da
necessidade da pena.
III
Fundamentação
11. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115º, nº 8, e 223º, nº 2,
alínea f), da Constituição, 26º da Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei nº
15‑A/98, de 3 de Abril) e 11º da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre a este
Tribunal proceder à prévia verificação da constitucionalidade e da legalidade da
proposta de referendo, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao
respectivo universo eleitoral.
Nessa conformidade, deve assinalar‑se, em primeiro lugar, que a proposta de
referendo foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, ao abrigo do artigo
115º, nº 1, da Constituição, ou seja, a Assembleia da República.
Na verdade, sendo a Assembleia da República um dos dois órgãos de soberania
constitucionalmente autorizados (conjuntamente com o Governo), a propor ao
Presidente da República a realização de referendos, no presente caso só ela
poderia fazê‑lo, tal como refere o Acórdão nº 288/98, “pois que a matéria sobre
que incide a pergunta – despenalização em certas circunstâncias da interrupção
voluntária da gravidez – se insere na sua esfera de competência legislativa
reservada e, de acordo com o estabelecido no citado artigo 115º, nº 1, a
proposta há‑de respeitar a matéria da competência do órgão competente”.
Trata‑se de matéria de competência da Assembleia da República não só porque se
enquadra no artigo 165º, nº 1, c), mas também porque surge em volta da eventual
violação dos artigos 24º, nº1, e 26º, sendo pois abrangida pelo artigo 165º, nº
1, alínea b), da Constituição (vide o Acórdão nº 288/98 e já também o Parecer nº
21/82 da Comissão Constitucional, em Pareceres da Comissão Constitucional, 20º
vol., pp. 92-3).
12. Também se verifica o requisito exigido pelo artigo 115º, nº 3, da
Constituição, na medida em que estamos perante questão de relevante interesse
nacional, que deve ser decidida pela Assembleia da República ou pelo Governo
através da aprovação de acto legislativo.
Tal afirmação fundamenta‑se no facto de a matéria se incluir na reserva relativa
de competência da Assembleia da República e de se tratar de uma questão tida
como central no debate político dos últimos anos. Dada a evidência do relevante
interesse nacional da matéria, prescinde‑se de encarar o problema de saber se se
encontra na margem de livre decisão do órgão proponente e do Presidente da
República ou se tal requisito deve constituir objecto de apreciação pelo
Tribunal Constitucional (no mesmo sentido, o Acórdão nº 288/98).
13. A presente proposta de referendo não integra, igualmente, as situações
excluídas do âmbito do referendo pelo nº 4 do artigo 115º da Constituição.
Com efeito, a matéria em causa não reveste conteúdo orçamental, tributário ou
financeiro nem se enquadra na reserva absoluta da competência da Assembleia da
República, integrando, como se disse, a reserva relativa.
O objecto do presente referendo também não se integra no elenco das matérias
previstas no artigo 161º, nem na alínea c) do referido artigo 161º como se
evidenciou no Acórdão nº 288/98, em que se disse que “também a matéria em causa
se não encontra prevista no artigo 161º, pois que, de entre as aí mencionadas,
apenas poderia ser abrangida pela alínea c), onde se atribui à Assembleia da
República competência para ‘fazer leis sobre todas as matérias’. Só que a
referência à exclusão das matérias do artigo 161º não pode obviamente aplicar‑se
em tal caso, pois que, então, se entraria em contradição com o nº 1 e o nº 3 do
artigo 115º, porque nenhuma matéria que devesse ser tratada por via legislativa
– salvo se da reserva do Governo – poderia ser o objecto do referendo”.
E, finalmente, a presente proposta de referendo não visa alterar a Constituição,
já que a legislação a aprovar na sequência do referendo não pretende assumir
valor constitucional.
14. Como ficou esclarecido no Acórdão nº 288/98, não é de confundir a questão
anterior com a de saber se é vedado pela Constituição o referendo sobre uma
matéria por ela extravasar o âmbito de discricionariedade legislativa “a
resolver através de uma opção política devolvida ao eleitorado” (Acórdão nº
288/98) ou por o legislador estar constitucionalmente vinculado a uma opção e
ser vedada a opção resultante de um dos sentidos de resposta à questão objecto
do referendo.
Questão que tem outra natureza, embora a resposta dada à anterior se projecte
nela inevitavelmente, é ainda a de saber se, no caso sub judicio, a pergunta se
encontra formulada de modo a que uma das possíveis respostas implica uma solução
inconstitucional, independentemente de uma vinculação constitucional a uma
determinada opção legislativa.
15. Mas, deixando para mais tarde esta última questão, há‑de concluir‑se, tal
como no Acórdão nº 288/98, que a matéria em análise é enquanto tal passível de
referendo, na medida em que está ainda na margem de discricionariedade do
legislador criar ou não criar áreas de despenalização da interrupção voluntária
da gravidez dentro dos limites constitucionais.
Afasta‑se, portanto, a perspectiva segundo a qual, em nome do direito à vida do
feto, o legislador não poderia nunca subtrair ao Direito Penal condutas de
interrupção voluntária da gravidez ou a perspectiva inversa de que toda a
punição da interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo seria
constitucionalmente inviável.
Diferentemente, entende o Tribunal Constitucional que o legislador, dentro de
limites constitucionalmente definidos, mantém uma margem de liberdade de decisão
quanto ao âmbito da criminalização, da justificação e do afastamento da
punibilidade da interrupção voluntária da gravidez. E mantém essa margem de
liberdade porque o Direito Penal não é conformado constitucionalmente como um
imperativo categórico imposto ao legislador ordinário, regulando‑se antes por
ponderações de valores e de interesses situadas num contexto histórico e por uma
justificação derivada de necessidades político‑criminais e da realização da
justiça em função do modo como, em cada momento, os problemas criminais se
colocam.
Por outro lado, essa margem de liberdade também não está vedada em nome do
reconhecimento de direitos insusceptíveis de ser objecto de referendo. Com
efeito, não seriam esses direitos, em si, o objecto do referendo, mas antes uma
ponderação sobre um conflito de direitos e valores ou a possível solução para um
tal conflito em conexão com a intervenção do Direito Penal.
16. Finalmente, a possibilidade de ponderação de direitos e valores
constitucionalmente tutelados ser sujeita a referendo não é impedida pelo facto
de ser essa a tarefa normal do julgador. É certo que o próprio legislador
realiza essa tarefa de ponderação, à luz da Constituição, sendo ele também, como
refere o Acórdão nº 288/98, “um aplicador da Constituição”. E onde o legislador
possa intervir não há razões, em geral, para subtrair ao âmbito do referendo uma
dada matéria.
Assim, na linha do citado aresto, continua este Tribunal a entender que nada
impede que uma matéria de conflito de direitos e valores constitucionalmente
protegidos – ou até mesmo de concretização de limites imanentes, que implique a
realização de uma concordância prática dos mesmos direitos e valores – possa ser
devolvida por um dos seus intérpretes – o legislador da Assembleia da República
– para o voto dos cidadãos, em certas circunstâncias. E essa conclusão vale
desde que as soluções possíveis não impliquem alteração ou violação da
Constituição, situando‑se, ainda, naquele plano das interpretações possíveis
sobre o modo de desenvolvimento dos valores constitucionais.
Mesmo para quem entenda que, perante uma dúvida sobre a solução a dar a um
conflito de valores, só há uma interpretação possível da Constituição, será
ainda admissível – no caso de dificuldade profunda em atingir uma solução
aceitável por todos como válida – trocar a pura investigação (limitada pela
subjectividade do intérprete) pela discussão democrática e pelo voto, como
método de determinar a boa solução (assim, Ronald Dworkin, Life’s Dominion – An
Argument about Abortion and Euthanasia, 1993, p. 157).
17. Confrontando agora a pergunta objecto da proposta de referendo com os
artigos 115º, nº 6, da Constituição, e 7º da Lei Orgânica do Regime do
Referendo, verifica‑se, desde logo, que ela recai sobre uma só matéria – a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez dentro de certo prazo –
existindo, aliás, uma só pergunta, formal e materialmente –, sem qualquer
intróito.
Em segundo lugar, a pergunta é formulada para uma resposta de “sim” ou “não”,
segundo uma lógica “que é necessariamente dilemática, bipolar ou binária, ou
seja, que pressupõe uma definição maioritariamente unívoca da vontade popular,
num ou noutro dos sentidos possíveis de resposta à questão cuja resolução é
devolvida directamente aos cidadãos” (Acórdão nº 360/91, em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 19º vol., p. 701). Com efeito, a pergunta interroga os eleitores
sobre se concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez
realizada, por opção da mulher grávida, dentro de um certo prazo determinado e
em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Trata‑se, pois, de uma opção
entre despenalização e penalização da prática de uma conduta bem identificada,
em circunstâncias indicadas com precisão.
18. O facto de poderem existir outras posições que a pergunta não consagra –
tal como a aceitabilidade de uma justificação da interrupção voluntária da
gravidez segundo o método das indicações, acrescentando‑se, por exemplo, novas
indicações às legalmente previstas, alargando-se o prazo para tal ou
prescindindo-se da realização da interrupção voluntária da gravidez em
estabelecimento de saúde – não retira à presente pergunta o carácter dilemático.
Os eleitores deverão decidir, em face da única opção que lhes é proposta, se a
consideram aceitável ou rejeitável, mesmo que preferissem outras opções (que não
estão em causa). São confrontados apenas com um e não com todos os dilemas,
devendo os dilemas que não estão em causa ser por eles ponderados e resolvidos
numa perspectiva pessoal, de consciência ou de opção política, para efeito de
resposta à (única) questão suscitada. Os dilemas morais, políticos e jurídicos
sobre as condições preferíveis de despenalização situam‑se a montante do que é
expresso na pergunta, a qual revela que o legislador apenas pretende averiguar a
opção dos eleitores quanto a uma certa solução.
19. Esta análise prende‑se, aliás, com a questão da clareza, objectividade e
precisão da pergunta. Poderia objectar‑se que a pergunta não seria clara,
objectiva e precisa porque seria possível que os eleitores entendessem que se
encontravam confrontados com uma opção entre penalização absoluta e
despenalização e não com uma escolha entre a solução actual (que não corresponde
a uma penalização absoluta) e uma despenalização até às dez semanas de gravidez.
Nesse caso, estaria em causa uma opção entre a incriminação pura e simples e a
despenalização proposta.
A ser assim, a pergunta não exprimiria o que efectivamente está presente no
debate político que justifica o referendo. No entanto, tal objecção não pode
resultar da mera interpretação do texto da pergunta, que interpela os eleitores
quanto a uma certa solução inexistente na ordem jurídica portuguesa, não pondo
em causa a subsistência do regime actual como alternativa.
Aliás, se o problema ainda poderia, eventualmente, ter sentido em 1998, no
contexto do primeiro referendo realizado sobre esta matéria, em que a pergunta
era exactamente a mesma, agora não tem pertinência. Nesta fase, já foi feito um
debate público em campanhas eleitorais para eleições legislativas, e os diversos
partidos políticos tiveram oportunidade de esclarecer os eleitores sobre a sua
posição acerca do tema.
20. Por outro lado, entender‑se que a pergunta não patenteia o que está em
causa no debate político – que se pressupõe claro e não viciado –, por não
veicular informação densificada sobre a manutenção do sistema actual como um dos
pólos do dilema, equivale a concluir que o próprio debate político não é um
elemento imprescindível na interpretação do texto da pergunta pelos eleitores.
Uma pergunta que retratasse de forma esgotante o debate político poderia ser
outra, porventura mais complexa. Todavia, não é razoável atribuir falta de
clareza, objectividade e precisão a uma pergunta que confronta os eleitores com
uma única solução sem equacionar outras. No plano lógico, o significado mais
razoável de uma tal redução é encarar como alternativa à mudança a persistência
da solução já consagrada.
21. Não pode deixar de se considerar que uma pergunta com informação
pormenorizada poderia até ser menos clara, porque iria utilizar termos técnicos,
uma linguagem especializada ou transmitir excesso de informação (cf., no sentido
destas preocupações, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 704/2004, D.R., I
Série‑A, de 30 de Dezembro de 2004). Por isso, tal pergunta seria até,
presumivelmente, mais difícil de apreender com rapidez.
Estando em causa a opção entre a solução actual de não punição no caso de se
verificarem certas indicações (terapêutica, ética e eugénica) e (com excepção do
aborto em defesa da vida da mãe) dentro de certos prazos, por um lado, e, por
outro lado, uma solução de ausência das referidas indicações dentro de um certo
prazo, um dos modos possíveis de fazer a pergunta com clareza lógica é
questionar os eleitores sobre se concordam com uma despenalização sem mencionar
aquelas indicações – referindo apenas um prazo, com a condição de a interrupção
voluntária da gravidez ser realizada em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado.
A menção das indicações legalmente previstas e dos prazos que lhes correspondem
seria porventura compatível com uma pergunta ainda clara, mas sem dúvida mais
complexa, e criaria o risco de submeter as indicações da actual lei que valem
para além do prazo de 10 semanas (artigo 142º, nº 1, do Código Penal) a uma
resposta de sim ou de não. Segue‑se portanto, também neste ponto, a lógica
argumentativa do Acórdão nº 288/98, em que se disse:
E, do mesmo modo, também se não aceita a crítica tendente a considerar que a
pergunta se encontra mal formulada, porquanto não permite uma opção clara entre
o «sim» e o «não» a quem entenda que a solução mais conveniente na matéria
consiste em despenalizar apenas a mulher que aborta. É que a solução em causa
não se encontra colocada na pergunta em análise, bem podendo dizer‑se que
constituiria objecto para uma outra pergunta. E quanto à pergunta em apreço,
devendo ser respondida, nos termos constitucionais e legais, por uma afirmativa
ou uma negativa, não pode necessariamente abrir espaço para soluções matizadas.
22. Numa outra perspectiva, a falta de clareza pode ser invocada ante a
utilização de expressões ou vocábulos como “despenalização” e “interrupção
voluntária da gravidez” ou até mesmo “opção”, que são pouco frequentes na
linguagem comum.
A essas objecções se responderá com a argumentação expendida no Acórdão nº
288/98, no qual se refere:
A esta objecção, contudo, se responderá de duas formas.
Em primeiro lugar, dir‑se‑á que o risco derivado de um deficiente entendimento
da pergunta, que pode decorrer do nível de instrução de uma parte do eleitorado,
é inerente à utilização do processo referendário, em que os boletins de voto se
não podem revestir da simplicidade que caracteriza os utilizados nos actos
eleitorais, designadamente através do recurso aos símbolos partidários.
Em segundo lugar, sublinhar‑se‑á que a clareza da pergunta se há‑de conjugar com
a sua objectividade e precisão, o que implica uma maior complexidade na
formulação e a utilização de terminologia rigorosa, para se evitar
posteriormente a existência de equívocos quanto às soluções propugnadas, por a
pergunta abranger situações não pretendidas ou consentir leituras ambíguas. Face
a uma pergunta rigorosamente formulada, embora de difícil entendimento para uma
importante parte do eleitorado, sempre se poderá obter uma resposta consciente,
caso exista um esforço de esclarecimento da opinião pública – e para isso serve
a campanha regulada na lei. Mas, pelo contrário, face a uma pergunta
aparentemente simples, mas recheada de ambiguidades ou imprecisões, nunca se
poderá conhecer o verdadeiro sentido da resposta. E isto, até porque se a
pergunta se encontrar deficientemente formulada do ponto de vista técnico,
utilizando conceitos pouco rigorosos, não disporá sequer da clareza necessária
para aqueles que, afinal, terão necessariamente de proceder a uma mediação
explicativa perante a opinião pública.
Ora, no caso em apreciação, algumas hipóteses de simplificação da pergunta
teriam como consequência uma indesejável imprecisão, já que se afigura
importante – até para que a pergunta possa ter uma mínima correspondência com o
objecto da iniciativa legislativa – que dela constem, por exemplo, referências à
iniciativa da mulher e ao facto de a interrupção da gravidez se efectuar em
estabelecimento de saúde. E se é possível sustentar que esses elementos da
pergunta poderiam ter sido enunciados de forma mais acessível, embora
tecnicamente menos perfeita, a verdade é que ao Tribunal Constitucional não cabe
averiguar se a pergunta se encontra formulada da melhor maneira, mas tão‑só
certificar‑se que ela ainda satisfaz adequadamente as exigências constitucionais
e legais, o que se afigura ocorrer no caso sub judicio.
Por outro lado, assinale‑se que, não permitindo a Constituição e a lei que se
proceda a um referendo sobre um concreto projecto de lei, daí resulta que – por
razões de necessária limitação da dimensão da pergunta, já que cada novo
elemento pode contribuir para atentar contra a sua clareza – nem todos os
aspectos do regime que se pretenda estabelecer têm obrigatoriamente de constar
da pergunta formulada. É o que acontece, por exemplo, no caso dos autos, com a
consulta em centro de aconselhamento familiar, prevista no projecto de lei nº
451/VII, que não ficará afastada pelo facto de não se encontrar mencionada na
pergunta.
23. Também não procede a objecção de que a falta de clareza, objectividade e
precisão decorreria da referência a estabelecimento de saúde legalmente
autorizado, na medida em que a condição contida na parte final da pergunta
pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a
interrupção da gravidez por opção da mulher, que só existirão no futuro, na
hipótese de resposta positiva à própria pergunta.
Com efeito, tal como o Acórdão nº 288/98 afirmou, para que um estabelecimento de
saúde possa ser legalmente autorizado para efeitos da pergunta não é necessário
que aquela autorização decorra de uma lei aprovada na sequência de maioritária
resposta afirmativa no referendo, tendo em conta o seguinte:
(…) a definição das condições indispensáveis à atribuição de uma tal autorização
poderá constar de lei autónoma e, mesmo, preexistente, até porque já hoje é
possível efectuar, em certas circunstâncias, a interrupção voluntária da
gravidez em «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido».
24. De todo o modo, a referência a estabelecimento de saúde legalmente
autorizado não predispõe para uma resposta afirmativa, nem transmite a ideia de
que seria absurda a penalização por os estabelecimentos de saúde já estarem
legalmente autorizados a realizar tais intervenções. Na realidade, tal condição
apenas exclui da despenalização o aborto realizado por instituição (ou pessoa)
que não reúna as condições de um estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
A não referência a tal condição é que poderia modificar o objecto da pergunta,
transfigurando‑a numa outra, em que estaria em causa uma “liberalização” da
interrupção voluntária da gravidez realizada em quaisquer condições sem
exigência de protecção da saúde da mulher grávida (sendo realizada por qualquer
pessoa, sem a formação profissional e ética que é exigida a quem exerça funções
e possa vir a praticar tal intervenção num estabelecimento de saúde legalmente
autorizado).
Estaria então em causa a despenalização até às 10 semanas da interrupção
voluntária da gravidez, incluindo o chamado “aborto clandestino”. Mas, por não
ser esse o objecto da pergunta, a referência em causa não lhe retira a
objectividade.
Assim, em face de tudo quanto foi exposto, o Tribunal Constitucional considera
que a pergunta objecto do referendo respeita as exigências de clareza,
objectividade e precisão constantes da Constituição e da lei.
25. Assinale‑se, igualmente, que a presente proposta de referendo respeitou as
exigências constantes dos artigos 10º a 14º da Lei nº 15‑A/98, de 3 de Abril,
bem como a que resulta do artigo 15º do mesmo diploma legal. Com efeito, a
proposta de referendo coube a Deputados à Assembleia da República (artigo 10º,
nº 1) e assumiu a forma de projecto de resolução (artigo10º, nº 2), o qual foi
devidamente aprovado (artigo 13º) e posteriormente publicado na 1ª Série do
Diário da República (artigo 14º).
Por outro lado, esta proposta de resolução de referendo não envolve, no ano
económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado
previstas no Orçamento (artigo 11º). E também são respeitadas as exigências do
artigo 8º da Lei nº 15‑A/98, na redacção dada pela Lei Orgânica nº 4/2005, de 8
de Setembro.
26. Compete ainda ao Tribunal verificar o requisito relativo ao universo
eleitoral previsto nos artigos 115º, nº 12, e 223º, nº 1, alínea f), da
Constituição.
A proposta de referendo apenas prevê a participação dos cidadãos eleitores
recenseados no território nacional, colocando‑se, portanto, a pergunta sobre se
um referendo com este objecto poderá restringir desta forma o universo
eleitoral.
Há razões para uma resposta afirmativa relacionadas com o âmbito de validade
espacial do Direito Penal, conforme se concluiu no Acórdão nº 288/98. Com
efeito, os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro não estão, em regra
sujeitos, à aplicação da lei penal portuguesa senão nas condições limitadas do
artigo 5º, nº 1, alínea c), do Código Penal.
Assim, a aplicação da lei penal portuguesa depende da própria solução da lei
penal do local em que residem e de serem encontrados em território nacional. O
facto de o princípio geral da aplicação da lei penal ser o princípio da
territorialidade (artigo 4º do Código Penal) torna a aplicação da lei penal
portuguesa a cidadãos residentes no estrangeiro relativamente excepcional e
condicionada.
Acresce que esta matéria não tem a ver especificamente com a particular situação
dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, na sua condição de
emigrantes, razão que justificaria o alargamento do universo eleitoral a que se
refere o artigo 115º, nº 12, da Constituição. E, finalmente, o problema que o
referendo visa decidir tem especial relevância na perspectiva das condições
sociais e das instituições de saúde do local em que a gravidez e a maternidade
futura se desenrolam.
27. Por fim, o Tribunal Constitucional deverá analisar a conformidade material
do objecto do referendo com a Constituição, ao abrigo da competência emanada do
artigo 223º, nº 2, alínea f): “verificar previamente a constitucionalidade e
legalidade dos referendos nacionais”.
Tal como o Acórdão nº 288/98 explicitou, entende‑se que no âmbito do controlo da
constitucionalidade do referendo se integra tal competência, até porque “seria
absurdo que, apesar de a Constituição estabelecer uma fiscalização preventiva
obrigatória da constitucionalidade do referendo, o povo pudesse ser chamado a
pronunciar‑se directamente sobre certa questão, quando o Tribunal
Constitucional, à partida, havia detectado a sua inutilidade, porquanto sempre
uma das possíveis respostas, a ser adoptada, determinaria a aprovação de
legislação que não poderia vir a ser aplicada, por inconstitucional”.
E esta razão inscreve‑se numa exigível harmonização do princípio maioritário com
o princípio da constitucionalidade, em que o conflito entre ambos só pode ser
superado maximizando ambos os princípios, com a compressão das possibilidades de
expressão da vontade popular ab initio e não a posteriori. Reduzir‑se-á, assim,
como afirmou o Acórdão nº 288/98, o risco da ocorrência de um conflito aberto
entre os dois princípios.
De qualquer modo, a superação do conflito é sempre realizada nos termos do
Estado de Direito democrático que vive no cerne do princípio da
constitucionalidade – isto é, atendendo ao conteúdo de direitos, liberdades e
garantias fundamentais que dão pleno sentido ao princípio maioritário enquanto
princípio democrático.
Seguindo, pois, a orientação do Acórdão nº 288/98, o Tribunal Constitucional
apreciará, em concreto, a constitucionalidade do objecto da pergunta, no sentido
de verificar se qualquer das respostas possíveis implica a adopção de normas
legais inconstitucionais.
28. A verificação da constitucionalidade da pergunta objecto do referendo impõe
que se confrontem as respostas afirmativa e negativa com os princípios e as
normas constitucionais.
Analisar‑se‑á, consequentemente, se uma concordância com a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas, por opção da mulher, em
estabelecimento de saúde legalmente autorizado, implica uma solução
inconstitucional e, inversamente, se de uma resposta negativa resulta também uma
tal solução.
O âmbito da análise não deverá abranger a apreciação de todas as soluções
legislativas concretas que uma resposta afirmativa ou negativa possa sustentar.
Apenas pode estar em causa a verificação ou controlo sobre se uma das respostas
(ou até as duas) do dilema subjacente à pergunta determina uma violação da
Constituição, inquinando todas as soluções legislativas concretas que se apoiem
nessa mesma resposta.
Não terá, assim, o Tribunal Constitucional de equacionar todo o universo de
soluções legislativas presentes ou futuras concebíveis que dêem cumprimento às
respostas, mas apenas de analisar se, na essência ou raiz das respostas, se
detecta uma violação da Constituição, que se projectará, enquanto tal, nas
soluções legislativas.
29. Começando por analisar a resposta afirmativa, coloca-se o problema de saber
se a despenalização referida na pergunta viola a protecção consagrada no artigo
24º, nº 1, da Constituição, segundo o qual a vida humana é inviolável.
No plano da discussão jurídico‑constitucional, a tese a favor da
inconstitucionalidade assume mais do que uma configuração. Segundo uma
configuração mais radical, decorre da protecção da inviolabilidade da vida
humana que todas as suas fases devem ser protegidas de igual modo, existindo
verdadeiramente um direito subjectivo à vida de que o feto seria titular. O
pressuposto da essencial igualdade entre todas as fases da vida levaria a
considerar que uma despenalização da interrupção voluntária da gravidez implica
a violabilidade da vida humana através de um tratamento do feto diverso do que
se concede à pessoa já nascida.
Esta apresentação da tese da inconstitucionalidade é, no entanto, rejeitável por
várias considerações.
Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva,
desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do
feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma protecção
objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional
portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome
da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao
reconhecido a partir do nascimento.
Na verdade, constata-se que na generalidade dos sistemas jurídicos o feto não é
considerado uma pessoa titular de direitos (veja-se a distinção entre “ser
humano” e “pessoa humana” constante da Convenção de Oviedo do Conselho da Europa
– Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano
face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada para ratificação pela
Resolução da Assembleia da República nº 1/2001 e ratificada pelo Decreto do
Presidente da República nº 2/2002 – cf. D.R., I Série A, de 3 de Janeiro de
2001). Esta perspectiva insere-se num contexto histórico, cultural e ético que
recolhe informação da Ciência mas não extrai dela, por mera dedução lógica, o
conceito de pessoa. Os dados resultantes da observação dos processos naturais
relativos a funções vitais não determinam, como condição necessária e
suficiente, as valorações próprias do Direito. Por exemplo, os critérios sobre o
início das funções cerebrais ou da actividade cerebral superior (cuja
determinação não é, aliás, indiscutível) não dão, em si mesmos, solução aos
conflitos de valores.
Por outro lado, nem a inviolabilidade da vida humana nem sequer a necessidade de
protecção da vida intra‑uterina impõem especificamente uma tutela penal idêntica
em todas as fases da vida, tal como concluiu o Acórdão nº 288/98. A própria
história do Direito Penal revela-o, ao ter feito quase sempre a distinção entre
homicídio e aborto (cf. Glanville Williams, The Sanctity of Life and Criminal
Law, 1957, e para a história do Direito Penal português, Rui Pereira, O crime de
aborto e a reforma penal, 1995).
Além disso, entre a definição do princípio da inviolabilidade da vida humana e a
intervenção penal não há uma linha recta ou uma relação de necessidade lógica,
nomeadamente pela interferência de perspectivas de exclusão da ilicitude, de
desculpa ou ainda de afastamento da responsabilidade devido à “necessidade da
pena”, cuja relevância varia conforme se trate da vida intra-uterina ou de
pessoa já nascida.
Ainda no plano da interpretação da Constituição, há quem entenda, segundo a
linha de orientação de um Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria‑Geral
da República, que o artigo 24º, nº 1, na mente dos constituintes, não pretendeu
abranger a protecção da vida intra‑uterina, afastando também, por aí, a
necessidade de uma referência a esse preceito e ao princípio da inviolabilidade
da vida humana do problema da despenalização da interrupção voluntária da
gravidez (cf. Acórdão nº 288/98, em que, na mesma perspectiva, se refere o
Parecer da Procuradoria‑Geral da República nº 31/82, Boletim do Ministério da
Justiça nº 320, Novembro de 1982, p. 224 e ss.; ver ainda, como referência
paralela sobre a interpretação do artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem, a decisão da CEDH de 13 de Maio de 1980, no caso X c. Reino Unido –
Décisions et Rapports, vol. 19, Outubro de 1980, p. 244).
Deste modo, a partir de qualquer uma destas considerações – mesmo que não se
concorde com todas –, a perspectiva de inconstitucionalidade não encontra
fundamento no artigo 24º da Constituição.
30. Note‑se que uma linha de argumentação a favor da inconstitucionalidade que
nivele a vida em todos os seus estádios poderia levar, no limite, a considerar
inconstitucional a solução do actual Código Penal, que admite a não punibilidade
de certas situações de interrupção voluntária da gravidez, segundo uma lógica de
ponderação de valores baseada no método das indicações. De acordo com tal
perspectiva poderia ser, na verdade, inconstitucional qualquer uma das respostas
(o sim e o não), porque a manutenção da actual situação legislativa já conduzirá
a uma sub‑protecção da vida intra‑uterina.
Mas, em suma, não poderá aceitar‑se esta perspectiva não só porque ela não
decorre do artigo 24º, nº 1, da Constituição, mas também por partir de
pressupostos inaceitáveis, que levariam, em última análise, a negar a relevância
de uma específica ponderação de valores em matéria de interrupção voluntária da
gravidez relativamente ao crime de homicídio.
Ora, a negação da possibilidade de uma específica ponderação de valores na
interrupção voluntária da gravidez levaria, em total coerência, a soluções
inconstitucionais como seria, por exemplo, a rejeição de uma causa de exclusão
da ilicitude ou de não punibilidade no chamado aborto terapêutico, impondo à
mulher grávida, mesmo que não fosse essa a sua vontade, uma grave lesão do corpo
ou da saúde ou o sacrifício da própria vida.
31. Porém, uma perspectiva que parta da não inconstitucionalidade de causas de
exclusão da ilicitude ou mesmo do mero afastamento da punibilidade a partir de
uma ponderação de valores, como sucede no actual artigo 142º, nº 1, do Código
Penal, pode alegar ainda que o método dos prazos ínsito na pergunta conduz a uma
total desprotecção jurídica da vida intra‑uterina nas dez primeiras semanas de
gravidez, em nome da liberdade da mulher grávida. Seria, por isso,
inconstitucional a despenalização da interrupção voluntária da gravidez naqueles
termos.
O Acórdão nº 288/98 respondeu directamente a essa argumentação, não a aceitando
e sustentando que o método dos prazos, tal como surge na pergunta, realiza uma
harmonização ou concordância prática entre os valores conflituantes, pois que
tal harmonização ou concordância prática «se faz entre bens jurídicos,
implicando normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por
prevalecer e outro por ser sacrificado. Quer isto dizer que, sempre dentro da
perspectiva que agora se explicita, o legislador não poderia estabelecer, por
exemplo, que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher era
hierarquicamente superior ao bem jurídico “vida humana intra‑uterina” e,
consequentemente, reconhecer um genérico direito a abortar, independentemente de
quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já pode determinar que,
para harmonizar ambos os interesses, se terão em conta prazos e circunstâncias,
ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente apenas da opção da
mulher nas primeiras dez semanas, condicionada a certas indicações em fases
subsequentes e, em princípio, proibida a partir do último estádio de
desenvolvimento do feto».
E acrescenta o mesmo aresto: “Assim, neste último caso, procura‑se regular a
interrupção voluntária da gravidez, ainda de acordo com uma certa ponderação de
interesses que tem também como critério o tempo de gestação, pelo que a referida
ponderação se há‑de efectuar, tendo em conta os direitos da mulher e a protecção
do feto, em função de todo o tempo de gravidez, não sendo, portanto, exacto
considerar isoladamente que, durante as primeiras dez semanas, não existe
qualquer valoração da vida intra‑uterina; num contexto global, esta será quase
sempre prevalecente nas últimas semanas, enquanto nas primeiras se dará maior
relevo à autonomia da mulher (uma vez respeitadas certas tramitações legais que,
aliás, podem traduzir uma preocupação de defesa da vida intra‑uterina)”.
32. Adoptando o ponto de vista do aresto citado, ainda se acrescentará que a
perspectiva de que o método dos prazos, tal como está inscrita na pergunta, só
exprimiria uma absoluta rejeição da protecção jurídica da vida intra‑uterina se
não existissem, mesmo nessa fase, meios legais de protecção da maternidade na
Ordem Jurídica portuguesa, que deverão actuar no sentido de dar a oportunidade à
mulher grávida de se decidir pela maternidade.
A criminalização da interrupção voluntária da gravidez é, aliás, apenas um modo
sancionatório de tutela da vida intra‑uterina e nunca o meio preferencial de
protecção jurídica, dada a natureza do conflito vivido pela mulher grávida e o
sentido comum da maternidade (na gravidez, estabelece‑se, em princípio, uma
forte relação emocional, de proximidade e de amor pelo ser em gestação e não
meramente uma “relação de respeito” por um bem alheio).
Assim, existem, na Ordem Jurídica portuguesa, vários regimes de protecção da
maternidade, nomeadamente os previstos nos artigos 33º a 52º do Código do
Trabalho, 66º a 113º da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho, a Lei nº 3/84, de 24 de
Março, relativa à educação sexual e ao planeamento familiar, a Lei nº 120/99, de
11 de Agosto, que reforça as garantias do direito à saúde reprodutiva, a Lei nº
90/2001, de 20 de Agosto, que toma medidas de apoio social a pais e mães
estudantes, o Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril, relativo à protecção da
maternidade, paternidade e adopção no âmbito da Segurança Social, e o
Decreto-Lei nº 77/2005, de 13 de Abril.
33. Dir‑se‑á ainda que a argumentação que considera existir uma total
desprotecção da vida intra‑uterina na possibilidade de opção pela interrupção
voluntária da gravidez nas primeiras dez semanas, negando existir qualquer
ponderação de valores no método dos prazos, rejeita que a liberdade de
desenvolver um projecto de vida pela mulher (artigo 26º da Constituição), como
expressão do desenvolvimento da personalidade, possa ser um dos valores a
harmonizar com a vida intra‑uterina. No entanto, a discordância quanto ao modo
como se faz a ponderação ou a harmonização não justifica a afirmação da
inexistência de ponderação ou harmonização.
E não se trata de admitir que uma “privacy”, como direito constitucional a
abortar livremente, prevaleça sobre a vida do feto, mas antes reconhecer que,
para efeitos de punição, num tempo delimitado, a liberdade de opção da mulher
possa impedir a intervenção do Direito Penal.
Desta forma, sem divergir, no essencial, da linha de orientação dos Acórdãos nºs
25/84 e 85/85 quanto à dignidade da vida intra‑uterina como bem jurídico
protegido pela Constituição, independentemente do momento em que se entenda que
esta tem início, sempre se reconhecerá – tal como fez o Acórdão nº 288/98 – que
a presente pergunta não pressupõe o abandono da protecção jurídica da vida
intra‑uterina e se coloca no plano de uma ponderação de valores e mesmo de uma
harmonização, concordância prática, coordenação e combinação dos bens jurídicos
em conflito, de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação a outros.
Apenas se terá de concluir que à liberdade de manter um projecto de vida é dada
uma superior valoração, nesta primeira fase, para efeitos de não‑punição, sem
que isso queira e possa implicar “abandono jurídico” da vida intra‑uterina.
34. Tal como já resultava do Acórdão nº 288/98, deverá salientar‑se que estamos
no terreno da responsabilidade penal, onde prevalece o princípio da necessidade
da pena e não perante uma mera discussão sobre o reconhecimento de valores ou
meras lógicas de merecimento de protecção jurídica.
Nesse patamar, não só grande parte da doutrina nega a existência de
incriminações (implícitas) obrigatórias (cf. Costa Andrade, “O aborto como
problema de política criminal”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 39,
Maio‑Agosto, 1979, p. 293 e ss., Rui Pereira, O crime de aborto e a reforma
penal, ob.cit., p. 75 e ss., Claus Roxin, Strafrecht Allgemeiner Teil, I,
Grundlagen, Aufbau der Verbrechenslehre, 3ª ed., 1997, p. 25 e ss., Figueiredo
Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2004, p. 122 e ss., e, entre outros, Fernanda
Palma, Direito Constitucional Penal, 2006, p. 100 e ss.), mas também existe a
necessidade de avaliação político‑criminal das incriminações, do seu efeito
preventivo, de efeitos criminógenos associados, do afrontamento de outros
valores, avaliação essa que incumbirá ao legislador realizar (cf. Fernanda
Palma, ob.cit., p. 54 e ss.). E ainda se dirá, tal como o Acórdão nº 288/98,
que:
A admissibilidade constitucional do reconhecimento da licitude da interrupção
voluntária da gravidez realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez
semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, ou, pelo menos, da
renúncia à utilização de sanções penais, nessas circunstâncias, não pode, porém,
ser interpretada como aceitação de que a Lei Fundamental consagra o aborto como
método de planeamento familiar ou de controlo da natalidade.
A isso se opõe o entendimento de que a vida humana intra‑uterina constitui um
bem jurídico protegido, independentemente do título a que deva tal protecção.
Nesta conformidade, afiguram‑se particularmente importantes, por poderem vir a
revelar‑se bem mais eficazes que a própria repressão penal, medidas comuns à
generalidade das legislações europeias sobre a matéria, como sejam a
obrigatoriedade de uma prévia consulta de aconselhamento, em que possa ser dada
à mulher a informação necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que
poderia beneficiar no caso de levar a termo a gravidez, bem como o
estabelecimento de um período de reflexão entre essa consulta e a intervenção
abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua decisão de forma livre,
informada e não precipitada, evitando‑se a interrupção da gravidez motivada por
súbito desespero.
É bem verdade que estes elementos não constam da pergunta formulada. Todavia,
como já se referiu, não seria possível integrá‑los a todos na mencionada
pergunta sem que esta assumisse proporções inadmissíveis. E nada permite
concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo, não possam vir a
constar da legislação aprovada na sua sequência.
Por tudo isto, a resposta afirmativa à pergunta não será inconstitucional.
35. Caberá igualmente ao Tribunal Constitucional questionar se uma resposta
negativa, que impedisse a modificação legislativa do sistema actual, no sentido
da despenalização nas primeiras dez semanas nas condições apontadas pela
pergunta (é este o único sentido de uma tal resposta), seria inconstitucional.
A resposta a esta última questão é também negativa. E é negativa, por variadas
razões.
A não despenalização não implica qualquer alteração do sistema vigente. E este,
tal como está configurado no artigo 142º, nº 1, do Código Penal, permite uma
ponderação de valores que exclui a incriminação em situações de grave lesão de
direitos da mulher grávida, como a sua vida e saúde, a sua dignidade pessoal
(aborto ético) ou mesmo as suas condições psíquicas e materiais de maternidade
(aborto eugénico), cuja não relevância excludente da responsabilidade poderia
afrontar princípios constitucionais, como os princípios da culpa e da
necessidade da pena. A isto acresce que o sistema penal contém, nomeadamente,
causas de desculpa que sempre deverão impedir a punição, em situações de não
censurabilidade devido a grave conflito existencial.
Aliás, a resposta negativa não impedirá, ainda assim, uma solução mais
abrangente no sentido da exclusão de responsabilidade pela qual o legislador
poderia optar de acordo com os princípios constitucionais.
36. E mesmo para quem não considere suficiente, na perspectiva do princípio de
necessidade da pena, um sistema de ponderação com os critérios actuais e entenda
que deveriam estar consagrados outros critérios, entre os quais o da relevância
da livre opção em certo prazo inicial da gravidez, será admissível sujeitar a
referendo a alternativa entre uma ponderação limitada, através do método
restrito das indicações como o actual, e a solução da despenalização nas
primeiras dez semanas.
De facto, reconhecer-se-á, nesse caso, que estamos perante matéria controversa
na sociedade, em que se atingem perspectivas sobre valores que reflectem visões
da vida muito íntimas e enraizadas. Com efeito, sendo necessário resolver o
dilema pela imposição a uma parte dos cidadãos de uma solução que afecta as suas
concepções de vida, em aspectos existenciais de que podem discordar
profundamente, é constitucionalmente justificável devolver ao voto directo a
solução de tal dilema, concedendo uma oportunidade alargada de discussão e de
pronúncia.
37. Estaremos ante uma situação em que tem todo o sentido afirmar, como Tribe,
que “numa democracia, votar e persuadir é tudo o que temos. Nem sequer a
Constituição está para além de uma revisão. E desde que nós tenhamos de nos
persuadir uns aos outros mesmo acerca de que direitos a Constituição deve
colocar fora do alcance do voto da maioria, nada, nem a vida nem a liberdade,
pode ser olhada como imune à política com letras grandes” (The Clash of
Absolutes, ob.cit., p. 240).
Poder‑se‑á, na realidade, pugnar pela não discutibilidade de certos valores, mas
está para além de um modo cooperativo de decisão sobre valores entender que a
própria discutibilidade ou indiscutibilidade de alguns valores seja, ela
própria, indiscutível. Como, neste caso, não estaremos sequer perante matéria
subtraída pela Constituição à possibilidade de ser objecto de referendo ou que
seja insusceptível de revisão constitucional, nada impede o legislador de dar
lugar a uma discussão alargada e directa antes de optar por uma solução, apesar
de não estar obrigado a fazê‑lo.
Por último, mesmo que se entenda que não estão directamente em causa a aceitação
e a rejeição do valor da vida intra‑uterina, mas apenas se verifica um problema
de política criminal – e, nesse sentido, não haverá sequer necessidade de
discutir a colocação em crise do direito à vida ou da protecção da vida
intra‑uterina –, também não viola a Constituição eleger a presente pergunta como
objecto de um referendo. Nada impede o legislador de apurar se dispõe de
condições para fazer uma ponderação de necessidade aceitável por uma vasta
maioria.
Em suma, como foi afirmado no Acórdão nº 288/98, entende‑se que “não havendo uma
imposição constitucional de criminalização na situação em apreço, cabe na
liberdade de conformação legislativa a opção entre punir criminalmente ou
despenalizar a interrupção voluntária da gravidez efectuada nas condições
referidas na pergunta constante da proposta de referendo aprovada pela Resolução
nº 16/98 da Assembleia da República”.
Concluindo este ponto, o Tribunal Constitucional reafirma a solução do Acórdão
nº 288/98, considerando que nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à
pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com
a Constituição.
IV
Decisão
38. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
1º Considerar que
a) A proposta de referendo constante da Resolução nº 54‑A/2006 da Assembleia da
República foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, nos termos do
disposto no nº 1 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa;
b) O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional
que deve ser decidida pela Assembleia da República através de acto legislativo,
conforme se preceitua no nº 3 do mesmo artigo;
c) A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito
referendário, de acordo com o estabelecido no nº 4 do mencionado artigo 115º;
d) O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta,
sem quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão
formulada para uma resposta de sim ou não e cumprindo, nestes aspectos, as
exigências constantes do nº 6 do artigo 115º da Constituição e do artigo 7º da
Lei Orgânica do Regime do Referendo;
e) A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e
precisão, enunciados nas mesmas disposições;
f) A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos
10º a 14º da Lei Orgânica do Regime do Referendo;
g) A restrição da participação no referendo aos cidadãos residentes em
território nacional cumpre os requisitos do universo eleitoral prescritos no nºs
1 e 12 do artigo 115º da Constituição;
h) O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da
constitucionalidade do referendo, a que se refere a alínea f) do nº 2 do artigo
223º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não
coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos
termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional;
i) Nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada
implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição.
2º Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do
referendo proposto na mencionada Resolução nº 54‑A/2006, da Assembleia da
República.
Lisboa, 15 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria Helena Brito
Maria João Antunes (com declaração)
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido quanto às
alíneas e) e i) do n.º 1, e ao n.º 2 da decisão, e com declaração de voto quanto
à alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza. Vencida quanto
às alíneas e), h) e i) do n.º 1 e, consequentemente quanto ao n.º 2 da decisão,
conforme declaração de voto junta.
Paulo Mota Pinto (vencido quanto às alíneas e),
g), e i) do n.º 1, e, consequentemente, quanto ao n.º 2 da decisão, nos termos
da declaração de voto que junto)
Benjamim Rodrigues (vencido quanto às alíneas e)
e i) do n.º 1 e, decorrentemente, ao n.º 2 da decisão, e com declaração de voto
quanto à sua alínea g) do n.º 1, nos termos da declaração de voto junta.)
Mário José de Araújo Torres (Vencido relativamente às
alíneas e), g) e i) do n.º 1 e, consequencialmente, ao n.º 2 da decisão, nos
termos da declaração de voto junta)
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido quanto às
alíneas e) e i) do n.º 1 e quanto ao n.º 2 da decisão conforme declaração em
anexo que, para além disto, abrange as matérias tratadas nas alíneas b), c),
d), g) e h) do aludido n.º 1 da decisão do presente aresto).
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a alínea h) do ponto 1º da Decisão, sem prejuízo de ulterior reponderação
da questão de saber se o Tribunal Constitucional é competente, no âmbito da
verificação prévia da constitucionalidade do referendo, para apreciar se a
pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que
um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido o número 2 da decisão, considerando não
verificada a constitucionalidade e legalidade do referendo proposto, uma vez que
não acompanho as conclusões constantes das alíneas e) e i) do número 1, pelas
razões que passo sumariamente a enunciar. Ficaram-me ainda dúvidas quanto à
conclusão expressa na alínea g) do número 1, que não foram porém suficientes
para me levar a afastar, neste ponto, da decisão – e enunciarei igualmente a
justificação do meu ponto de vista.
2. A alínea e) da decisão dá por verificados os requisitos de
objectividade, clareza e precisão exigidos pelo número 6 do artigo 115º da
Constituição. Começando pelo primeiro, pode desde logo perguntar-se se ele não
será afectado pelo o inciso final da pergunta “em estabelecimento de saúde
legalmente autorizado”, na medida em que a sua inclusão nesta é susceptível de
ser vista como induzindo uma resposta afirmativa. Com efeito, a autorização
legal pode considerar-se reportada à realização da interrupção voluntária da
gravidez nos termos em que se pretende questionar o eleitorado, e só em caso de
resposta afirmativa existiriam estabelecimentos autorizados a levá-la a cabo.
Admitimos no entanto que por tal inciso se tenha em vista a existência de
estabelecimentos de saúde legalmente autorizados a praticar em geral actos
cirúrgicos, ou actos do tipo daqueles em que se incluem os que interferem no
processo de interrupção voluntária da gravidez, o que afastaria o risco de a
pergunta predispor necessariamente a uma resposta positiva. Só que, a ser assim,
tal redunda numa menor clareza da pergunta, uma vez que no respectivo contexto
ela consente a dúvida legítima sobre o que se entende por “estabelecimento de
saúde legalmente autorizado”. Dúvida que poderia aliás ser facilmente
esclarecida se se falasse em “estabelecimento de saúde a autorizar”. Semelhante
ambivalência pode ainda ligar-se ao conceito de “despenalização” que integra a
pergunta, na medida em que nos podemos legitimamente interrogar sobre o seu
alcance. Visa ele a supressão total da infracção, nas suas duas componentes, a
hipótese e a sanção, ou limita-se apenas a esta última, deixando permanecer o
carácter ilícito do comportamento mas sem lhe ligar qualquer sanção penal, na
linha de uma tendência referida no acórdão e que contesta a racionalidade da
ideia de que o crime reclama sempre uma pena (nº 9 do acórdão)? Pode igualmente
questionar-se se o estádio visado pela pergunta é o de uma total e radical
descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (quando realizada por
opção voluntária da mulher, nas primeiras dez semanas e em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado), em termos de esta deixar, em tais condições, de
constituir um facto ilícito e de ser objecto de uma censura ético-jurídica (o
que parece ser inculcado pela última condição enunciada), ou se a ela apenas
deixa de estar ligada uma sanção de carácter penal, sem que no entanto a ordem
jurídica deixe de a considerar como censurável. A falta de nitidez e de
univocidade dos sentidos possíveis da pergunta prejudica assim irremediavelmente
a sua clareza, em termos de justificar o nosso voto de vencido quanto à alínea
e) do nº 1 da decisão.
3. Também não sufragamos a afirmação, feita na alínea i) da
decisão, de que nenhuma das respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta
formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a
Constituição. Entendemos, na verdade, que tal sucede com a resposta afirmativa,
uma vez que, ao possibilitar a realização da interrupção voluntária da gravidez,
“por opção da mulher, nas primeiras dez semanas”, se lesa, de forma
constitucionalmente insuportável, o princípio da inviolabilidade da vida humana
consagrado no artigo 24º, nº 1 da Constituição. Em nosso entender, deste
princípio decorre igualmente a protecção da vida intra-uterina, uma vez que
“funcionando o direito à vida como pressuposto e condição de todos os restantes
direitos do ser humano, (…), é o momento de origem da vida que torna operativo
o postulado constitucional da sua inviolabilidade” (Paulo Otero, Direito da
Vida, Coimbra, 2004, p. 82).
Do reconhecimento da protecção constitucional da vida
intra-uterina não decorre porém, em nosso entender, que lhe deva ser
necessariamente dispensada uma tutela jurídico-penal idêntica em todas as fases
da vida e que uma tal tutela seja absoluta. Designadamente, aceitamos que uma
lógica de ponderação de valores e de concordância prática como a que se exprime
no método das indicações (tal como consagrado presentemente entre nós ou
porventura noutras variantes) possa conduzir à não punibilidade de certas
situações de interrupção voluntária da gravidez. É por isso aliás que não temos
por constitucionalidade inadmissível uma resposta negativa à pergunta formulada,
uma vez que a solução jurídica que dela resultaria – a insusceptibilidade de
alterar, nos termos contemplados na pergunta, o regime da interrupção voluntária
da gravidez, com a consequente manutenção da situação presente – não contraria,
em nosso entender a Constituição. O que já contrariará a Constituição, pelo
contrário, será uma solução legislativa que, num dado período (dez semanas, no
texto da pergunta), permita o sacrifício de um bem jurídico constitucionalmente
protegido, por simples vontade da mãe, independentemente de toda e qualquer
outra consideração ou procedimento. Em tais casos, não poderá falar-se em nosso
entender de concordância prática ou de ponderação de valores, uma vez que
nenhuma protecção é dispensada ao bem jurídico vida. É certo que o acórdão
sustenta, diferentemente, existir ainda aqui uma ponderação, ou uma tentativa de
concordância prática, entre o bem jurídico vida (do feto) e o direito à
autodeterminação da mulher grávida. Simplesmente, entendemos que, com a solução
legal proposta, ao fazer prevalecer sempre, em todos os casos e
independentemente das circunstâncias, o que se designa por “direito ao livre
desenvolvimento da personalidade da mulher”, se está afinal a postergar
completamente a protecção da vida intra-uterina que cremos ser objecto de tutela
constitucional. Também não ignoramos que o acórdão pretende responder a esta
objecção considerando existir uma protecção do bem jurídico vida, como que vista
diacronicamente, uma vez que se a ponderação se faz nas primeiras dez semanas a
favor do direito ao livre desenvolvimento da mãe grávida ela passa depois por
admitir uma tentativa de concordância prática nos termos do método das
indicações para, no período final da gravidez, reverter à protecção total do bem
jurídico vida. Não podemos porém aceitar esta versão, na medida em que a
protecção dos bens jurídicos não pode ser vista em abstracto, desenraizada da
consideração dos seus titulares e que, no sistema proposto, o bem jurídico vida
é, sempre e independentemente das circunstâncias, desconsiderado nas primeiras
dez semanas, não lhe sendo nunca pois, em tal período, dispensada qualquer
protecção. É por conduzir assim, no período considerado, a essa total
desconsideração do bem de vida, quando radicado num sujeito, sejam quais forem
os motivos que levam à decisão da mãe, que entendemos que o sistema proposto
contraria o imperativo de protecção da vida intra-uterina constitucionalmente
consagrado, com o que temos por justificada a nossa discordância com a conclusão
formulada na alínea i) do nº 1.
4. Finalmente, não temos por conseguida a justificação
fornecida pelo acórdão para a definição do universo eleitoral a que procede a
proposta. Na verdade, explicar a restrição deste universo aos cidadãos
residentes em Portugal pela circunstância de a aplicação da lei penal portuguesa
se orientar em princípio por um critério de natureza territorial é conceber o
interesse dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro de forma redutora,
excluindo-o por não serem eventuais potenciais integrantes do círculo de pessoas
susceptíveis de serem abrangidas pelo comando de uma norma incriminadora. Ora,
diversamente, e também atento o relevante interesse nacional reconhecido à
questão objecto do referendo, a participação dos portugueses no estrangeiro
(rectius, daqueles de entre estes chamados a participar) justifica-se pela
particular ligação destes (traduzida pelo recenseamento) à vida nacional e pela
circunstância de a questão a decidir integrar como que o património cultural da
comunidade em que se têm por inseridos.
Nestes termos, não temos por congruente a fundamentação dada
pelo acórdão a este propósito. Simplesmente, dispondo a Constituição, no seu
artigo 115º, nº 12, que os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro
regularmente recenseados são chamados as participar nos referendos “quando
recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito”, não temos
por claro o que se deva entender a este propósito. Ou seja, se é para nós nítido
que tal ocorre num eventual referendo sobre a vinculação de Portugal a um
tratado europeu, já temos dúvidas que uma questão central da vida comunitária
diga especificamente respeito aos cidadãos residentes no estrangeiro, muito
embora não se possa duvidar que lhes diga igualmente respeito. É por não
podermos excluir, sob reserva de melhor estudo, que o citado preceito
constitucional vise como fundadas razões limitar em maior grau a participação
dos residentes no estrangeiro nas iniciativas referendárias, que nos limitamos a
dar conta das nossas dúvidas a este respeito, sem dissentir contudo da solução a
que o acórdão chegou a este respeito na alínea g) do nº 1 da decisão.
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto às alíneas e), h) e i) do n.º 1º. e, consequentemente,
quanto ao n.º 2º. da decisão, pelas razões que indiquei no voto de vencida que
juntei ao acórdão n.º 288/98, que transcrevo, e que a meu ver não são postas em
causa pelo presente acórdão:
«Votei vencida quanto à alínea f) [correspondente à actual al. e) do n.º 1] do
n.º 1º. porque entendo que a pergunta não satisfaz, tanto quanto podia e devia
satisfazer, os requisitos constitucionalmente exigidos de objectividade, clareza
e precisão.
No plano da objectividade, importaria sobretudo garantir, na medida do
possível, a neutralidade da pergunta relativamente às posições dominantes no
debate público da questão, em especial a posição que se traduz em manter o
actual sistema legal de não punibilidade do aborto terapêutico, eugénico ou
criminológico, nas condições definidas pelo artigo 142º. do Código Penal, o qual
se não pode confundir de modo nenhum com a ideia de penalização absoluta da
interrupção voluntária da gravidez. Ora, nos termos em que se encontra
formulada, a pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que
não exprime a alternativa emergente dos debates que lhe deram origem, e que se
coloca entre a despenalização relativa da lei actual e a despenalização absoluta
até às dez semanas de gravidez.
Quanto aos requisitos da clareza e da precisão, eles mostram-se
imperfeitamente cumpridos, tanto do ponto de vista da resposta positiva ao
referendo, como do ponto de vista da resposta negativa. Com efeito, uma resposta
positiva pode ser entendida como favorável a uma simples eliminação da
incriminação do aborto, mantendo-se este, no entanto, como um acto não lícito
para outros efeitos, da mesma forma que pode ser entendida no sentido da
liberalização – e, portanto, da licitude – do aborto nas primeiras dez semanas
de gravidez, como sugere a parte final da pergunta ao referir-se à sua prática
em estabelecimento legalmente autorizado. Uma resposta negativa, por seu lado,
pode traduzir, quer o entendimento de que a criminalização deve ser mantida nos
termos actuais, quer a opinião de que tanto deve ser despenalizado o aborto
realizado em estabelecimento legalmente autorizado como o que é executado fora
desses estabelecimentos.
Votei vencida quanto à alínea i) [actual al. h) do n.º 1] do n.º 1º.
por ter sérias dúvidas quanto à possibilidade de o Tribunal Constitucional, na
fase de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da
proposta de referendo, se pronunciar sobre a constitucionalidade material da
pergunta do ponto de vista da eventual desconformidade de alguma das respostas
possíveis. Os referendos exigem um grau de simplificação das questões que
normalmente inviabilizará um juízo fundado sobre a conformidade constitucional
das respostas hipotéticas. Só mais tarde, se e quando uma lei vier a ser
aprovada em consequência do referendo, e em face dos termos concretos da
regulamentação que nela se contiver, o Tribunal Constitucional estará em
condições de se pronunciar acerca da adequação constitucional das soluções
adoptadas. O referendo apenas produz consequências mediatas sobre a ordem
jurídica, relativamente indeterminadas e, não obstante o efeito vinculativo
sobre o legislador, aliás sem qualquer sanção eficaz, também incertas.
Poderá, em sentido contrário, argumentar-se que há questões em que os
parâmetros constitucionais são tão nítidos e peremptórios que não oferecerá
dificuldades um juízo sobre a constitucionalidade de uma questão submetida a
referendo, ainda que reduzida à sua máxima simplificação. Mesmo, todavia, que
fosse esse o caso presente, a apreciação da constitucionalidade material da
pergunta, quanto a este aspecto, encontra-se inviabilizada por força de
imprecisões e ambiguidades de que, a meu ver, ela padece. Refiro-me,
nomeadamente, à incerteza do significado de uma resposta positiva, a que acima
aludi, pois a diferença entre a liberalização e a simples despenalização do
aborto tem decerto profundas implicações constitucionais.
Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização é
compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana, ficando esta
protegida por formas de tutela jurídica sem carácter penal, já, porém, a
liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto
lícito não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece
inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana, razão pela qual
entendo que deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal, fixada nos
acórdãos nºs 25/84 e 85/85, apenas compatível com o sistema das indicações.
Fica, assim, igualmente fundamentado o meu voto de vencida quanto à alínea j)
[actual al. i) do n.º 1] do mesmo n.º 1º.
Fica de igual modo justificado que, na falta de objecções à formulação da
pergunta, me teria pronunciado no sentido de considerar preenchidos os
requisitos de realização do referendo que, na perspectiva atrás desenvolvida,
incumbe ao Tribunal, neste momento, apreciar, possibilitando assim o
conhecimento qualificado da concepção dominante sobre a matéria em causa. Tendo,
porém, em conta as considerações precedentes, votei contra o segundo ponto da
decisão.»
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto às alíneas e), g) e i) do n.º 1, e, consequentemente,
quanto ao n.º 2 da decisão, pelas razões que passo a expor:
1.A minha discordância em relação à alínea e) assenta fundamentalmente nas
razões expostas na declaração de voto que juntei ao acórdão n.º 288/98 (a que
pertencem os passos retomados seguidamente). A meu ver, as exigências,
constantes dos artigos 115.º, n.º 6, da Constituição, e 7.º, n.º 2, da Lei
Orgânica do Regime do Referendo, de que as perguntas objecto de referendo sejam
formuladas com objectividade, clareza e precisão, são cruciais para assegurar a
correcção e a idoneidade democrática do procedimento referendário. Elas visam
permitir aos eleitores a leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades da
pergunta, evitando “que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela
errónea representação das questões” e eliminando a possível sugestão de
respostas, directa ou implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, anot. X ao
art. 118.º). Requer-se, assim, “a minoração, na medida do possível, do risco de
leituras e entendimentos da questão pelos seus destinatários que possam –
directa ou implicitamente, por interrogações ou ambiguidades que suscitem no
eleitor – apontar para uma das respostas alternativas. Sendo esta a finalidade
precípua das referidas exigências, impõe-se concluir que elas devem ser
apreciadas a partir justamente do ponto de vista dos destinatários, considerando
mesmo, mais do que um ‘tipo médio’ de eleitor, um tipo de eleitor com graus de
instrução e literacia abaixo da média, e não podendo, assim, a precisão e o
rigor técnico-científicos da questão prevalecer, na medida em que sejam
susceptíveis de afectar a clareza para aquele tipo de eleitor. Por outro lado,
clareza e objectividade afiguram-se-me necessariamente atributos relativos,
podendo dizer-se que esta ou aquela formulação é mais ou menos clara, ou mais ou
menos objectiva, em termos de respeitar os requisitos constitucionais e legais
mínimos, mas tendo de considerar-se neste juízo a maior ou menor frequência do
uso de certas expressões na linguagem acessível aos destinatários da questão,
bem como a existência de expressões ou formulações alternativas, muito próximas
ou praticamente equivalentes, mas significativamente mais claras e objectivas”.
Continuo a considerar que a pergunta proposta não satisfaz o requisito de
objectividade, designadamente, por o enquadramento na frase da expressão “em
estabelecimento legalmente autorizado” se afigurar susceptível de conduzir a um
enviesamento da resposta, ou, pelo menos, de despertar dúvidas nos
destinatários. Com efeito, “a condição contida nesta parte final da pergunta
pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a
interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão
em caso de resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do
eleitorado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois, uma resposta positiva, e
pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos
legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas
condições definidas, seria paradoxal penalizar esta interrupção”. A meu ver,
este ponto pode, pelo menos, continuar a despertar dúvidas ao leitor que ignore
o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal
autorização legal, e considero que o seu esclarecimento não é de remeter apenas
para a campanha eleitoral, não devendo permitir-se qualquer enviesamento da
questão a submeter a referendo. Nem creio que à utilização do instituto do
referendo seja inerente o risco de tais ambiguidades. Deve antes dizer-se, a meu
ver, que, não podendo simplesmente elencar-se nomes ou símbolos (como nos
restantes actos eleitorais), e antes se tendo que formular questões – tarefa
mais sujeita a manipulações e distorções – “por maioria de razão, a exigência de
objectividade surge acrescida” (assim, Maria Benedita Urbano, O Referendo,
Coimbra, 1998, p. 210). A resposta a este argumento, no sentido da falta de
objectividade da pergunta, que se contém no Acórdão n.º 288/98 e foi retomada na
presente decisão (n.º 23), assenta, a meu ver, num equívoco: o de separar a
autorização legal aos estabelecimentos de saúde, a que se refere a questão, da
realização da interrupção da gravidez por mera opção da mulher (diz-se, assim,
que, já hoje sendo possível efectuar em certas condições a interrupção
voluntária da gravidez, já existem “estabelecimentos de saúde legalmente
autorizados”). É claro, porém, que a pergunta se refere – e é mesmo nesse
sentido que é entendida pelo “destinatário normal” – a estabelecimentos de saúde
legalmente autorizados a realizar a interrupção da gravidez por mera opção da
mulher, e tal pressupõe já uma resposta positiva à pergunta (exigir-se-ia, pois,
pelo menos, que se falasse de “estabelecimentos de saúde que venham a ser
legalmente autorizados” a tanto).
Para além desta reserva, ficaram-me novamente dúvidas quanto à clareza do termo
“despenalização”, não só em face de hipóteses alternativas, de sentido
equivalente mas indubitavelmente mais claras, segundo o critério que apontei e
que julgo decisivo, como em relação à possível permanência do juízo de ilicitude
do aborto (embora sem pena, ou, mesmo, fora do domínio criminal).
2.Votei também vencido quanto à alínea g) do n.º 1 da decisão, sobre o universo
eleitoral do referendo proposto.
Entendo que no artigo 115.º, n.º 12, da Constituição, e no artigo 37.º, n.º 2,
da Lei Orgânica do Regime do Referendo, que se referem a matérias que digam
“também especificamente respeito” aos cidadãos portugueses residentes no
estrangeiro: a) não se prevê a participação dos cidadãos portugueses residentes
no estrangeiro em todos os referendos nacionais (como resulta da formulação e da
própria localização sistemática das referidas normas); b) não se requer um
interesse específico apenas dos cidadãos não residentes, distinguindo-se a
fórmula empregue, por exemplo, da do “interesse específico” que era exigido para
a delimitação dos poderes legislativos das regiões autónomas (trata-se de
matérias que digam também especificamente respeito aos cidadãos não residentes
em Portugal).
A meu ver, é excessiva a exigência de que a matéria do referendo “tenha a ver
com a específica situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”,
ou de uma “particular incidência relativamente aos interesses da emigração
portuguesa”. Por isso não é decisivo o critério da aplicação da lei penal no
espaço, em que se baseia o presente Acórdão, sem aprofundar a dilucidação do
sentido da formulação constitucional e legal. Em face destas, deve entender-se,
a meu ver, que nas matérias que digam “também especificamente respeito” aos
cidadãos não residentes se incluem ainda aquelas que são susceptíveis de
interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos que residem em Portugal, ou
simplesmente as que não respeitem a um interesse específico destes cidadãos
residentes. É o que acontece, designadamente, com alterações da legislação
nacional que impliquem, ou traduzam, uma alteração fundamental nos valores
subjacentes à ordem jurídica nacional, ou uma “mudança de paradigma” na
protecção de bens jurídicos fundamentais – como seria, por exemplo, o caso (se
esses referendos fossem constitucionalmente possíveis) com referendos relativos
à reintrodução da pena de morte ou da prisão perpétua. Como resulta do que direi
a seguir, entendo que é igualmente o caso da presente alteração da legislação
relativa à interrupção voluntária da gravidez, pelo facto de se passar a
prescindir de qualquer indicação ou motivo para a sua realização, para além da
opção de um dos progenitores.
Considerei, pois, que era de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses
residentes no estrangeiro a participar no presente referendo.
3.Quanto à discordância em relação à alínea i) do n.º 1 da decisão, mantenho as
razões expostas na declaração de voto anexa ao acórdão n.º 288/98. Assim,
acompanho a consideração – que vem, aliás, no seguimento da anterior
jurisprudência do Tribunal e da maioria da doutrina – de que a vida humana
pré-natal é abrangida pela garantia de inviolabilidade constante do artigo 24.º
da Constituição. Com uma formulação ampla, esta norma não se limita a garantir
um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente uma
tutela não subjectivada do bem “vida humana em formação”, e, em meu entender,
impõe igualmente ao legislador um correspondente dever de protecção. Como se
pode ler na referida declaração de voto, aceito, porém, “a tese de que esta
protecção não tem que assumir as mesmas formas nem o mesmo grau de densificação
da exigida para o direito à vida subjectivado em cada pessoa, bem como a tese de
que tal protecção se pode e deve ir adensando ao longo do período de gestação.
Aceito, ainda, que, quando se verifique estarem outros direitos
constitucionalmente protegidos em conflito com a vida intra-uterina, se possa e
deva proceder a uma tentativa de optimização, não sendo esta possibilidade
vedada por qualquer escala hierárquica de valores constitucionais – embora
defenda que a inegável importância do bem ‘vida humana’, como pressuposto
necessário de todos os outros direitos, e, desde logo, o seu carácter de comando
prima facie (portanto, mesmo não invocando, nem a específica estrutura desse
bem, nem a sua eventual consagração numa regra, assentes numa lógica de tudo ou
nada), sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em
conflito com esse bem (…), assim como a definição, pelo legislador, das
circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação da tutela da
vida humana intra-uterina”.
O que não acompanho é a conclusão de que a afirmada “concordância prática” entre
a liberdade, ou o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, da mulher e a
protecção da vida intra-uterina “possa conduzir a desproteger inteiramente esta
última nas primeiras dez semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto
de protecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da
mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da
verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto”. Por outras
palavras, não concordo com que, pela via da alegada harmonização prática dos
interesses em conflito, a Constituição permita chegar a uma “solução dos
prazos”, com aceitação da total “indiferença dos motivos” ou de uma
“equivalência de razões” para proceder à interrupção voluntária da gravidez,
para a qual todas as razões podem servir – “quer seja realizada por absoluta
carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada por puro
comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise
apenas, por exemplo, selar a destruição das relações com o outro progenitor”.
Entendo que a garantia da inviolabilidade da vida humana, incluindo a vida
intra‑uterina, pode ter de ceder perante outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, se se verificar em concreto a presença de um
motivo constitucionalmente relevante para a realização da interrupção voluntária
da gravidez, pois “aquela garantia há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar
o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de ‘aborto a pedido’, sem
invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem
jurídica” – tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade
da mãe quanto ao «destino» de uma vida humana que já iniciou o seu percurso, v.,
entre outros, Maria Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime, Porto,
1995, p. 386; no mesmo sentido Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de
personalidade, Coimbra, 1995, p. 166, n. 241, e, com uma análise comparatística
das soluções vigentes em vários sistemas europeus, João Loureiro, “Aborto:
algumas questões jurídico‑constitucionais (A propósito de uma reforma
legislativa)”, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. 74, Coimbra, 1998, pp.
327-403. Ou seja, entendo que o dever de protecção da vida humana intra-uterina,
que a Constituição impõe, não pode deixar de ter como conteúdo mínimo a
protecção contra a liberdade de pôr termo a esta vida intra-uterina, sem
invocação de razões. Assim, considero que o direito à liberdade da mulher, bem
como o direito ao “livre desenvolvimento da personalidade” – direito que, aliás,
se refere aqui apenas a um dos progenitores, e, onde, como se sabe, no limite
tudo poderia caber (cf. Paulo Mota Pinto, “O direito ao livre desenvolvimento da
personalidade”, in Portugal-Brasil – ano 2000, Stvdia Ivridica, 40, Coimbra,
2000, pp. 149-246) – não são suficientes para fundamentar a desprotecção da vida
pré-natal, mesmo nas primeiras dez semanas, se não forem reforçados com a
presença de uma indicação no caso concreto. E isto, não curando sequer de saber
qual o tipo de indicação que seria constitucionalmente relevante ou a quem deve
competir avaliá-la – pressuposto apenas que não basta a mera opção da mãe,
desvinculada de qualquer controlo exterior.
Não encontro, nem no Acórdão n.º 288/98, nem na presente decisão, razões que
afastem a relevância constitucional da “indiferença dos motivos” (a consideração
de que, em nome da liberdade de um dos progenitores, qualquer motivo serve) para
destruir um bem constitucionalmente tutelado. Em particular, é claro que a
referência ao prazo das primeiras dez semanas (n.º 31 da decisão) apenas pode,
na própria lógica de compatibilização com a protecção da vida intra-uterina,
seguida pelos acórdãos de que dissenti, servir para delimitar o momento antes do
qual não existe qualquer protecção. Já não existem argumentos para fundamentar a
menor ponderação em termos de “concordância prática”, justamente até às
primeiras dez semanas, da vida intra-uterina que se reconhece tutelada na
Constituição, sendo evidente que mesmo tal restrição a um prazo inicial da
gravidez conduz ao sacrifício total, pela interrupção da gravidez, do bem
protegido.
Noto, aliás, que o presente aresto se recusou a considerar concretamente
quaisquer elementos científicos, como os emergentes da chamada “revolução
ecográfica”, relativos à caracterização do feto nas suas diversas fases de
desenvolvimento, afastando‑os apenas com a fundamentação, a meu ver extremamente
insuficiente, de que “não dão, em si mesmos, solução aos conflitos de valores”,
e resumindo o “valor conflituante”, no presente caso, à “liberdade da mulher
grávida”, ou ao “livre desenvolvimento da personalidade”. Ora, a “concordância
prática” exige, como se sabe, o cumprimento de um ónus de argumentação jurídica
dirigido a fundamentar o tipo de concordância a que se chega, sob pena de se
esgotar numa mera “fórmula vazia” (no sentido de ligar a estrutura da ponderação
a fazer para a concordância prática de direitos fundamentais a uma teoria da
argumentação jurídica que remete para uma teoria da argumentação prática em
geral, v. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1985, p. 154).
O referido ónus de argumentação não é, por outro lado, cumprido com a
consideração genérica, que ecoa mais do que uma vez no presente aresto (n.º 16 e
36), de que, sendo a questão em causa discutida, e objecto de divisões profundas
na sociedade, é de admitir (mesmo no plano constitucional) resolvê-la devolvendo
a decisão ao voto directo do povo soberano. Independentemente de outras
considerações que possa merecer este argumento (o próprio Ronald Dworkin, Life’s
Dominion. An Argument About Abortion, Euthanasia and Individual Freedom, 1993,
pp. 154-159, citado no Acórdão, conclui, aliás, o tratamento da relevância da
coerção na matéria da interrupção da gravidez no sentido de que, se a questão
for a de saber se o Estado pode impor quer a proibição dessa interrupção, “o
facto de a escolha ser aprovada pela maioria não é melhor justificação num caso
do que no outro”), deve notar-se que ele não pode ser relevante para o controlo
da constitucionalidade de uma pergunta referendária. Na verdade, o parâmetro de
constitucionalidade ou a intensidade do respectivo controlo não variam entre o
controlo da constitucionalidade da pergunta no referendo ou de uma norma
jurídica aprovada pelo parlamento (por exemplo, um diploma aprovado na sequência
do referendo), o que, além do mais, se torna evidente logo que se pensa, por
exemplo, em que para o resultado do referendo não releva apenas uma maioria
constituinte (a Constituição proíbe, aliás, o referendo sobre alterações à
Constituição), mas logo maioria simples.
Não pode, também, merecer o meu acordo a fundamentação que remete para a
harmonização entre a vida intra-uterina, por um lado, e garantia de uma
maternidade consciente, por outro, e, em termos de conduzir ao sacrifício geral
desta durante as primeiras dez semanas. Com efeito, subjacente “à afirmação da
licitude da interrupção voluntária da gravidez com base na garantia de uma
maternidade consciente parece-me estar uma visão do aborto como meio de
contracepção, ou, mesmo, de planeamento familiar, que não considero
constitucionalmente admissível (a garantia da maternidade consciente é, aliás,
prevista na Constituição a par do direito ao planeamento familiar). E mesmo que
se considerasse que a garantia da maternidade consciente tem uma dimensão
subjectiva que vai além do planeamento familiar, podendo incluir o aborto, não
vejo o que poderia este argumento acrescentar à invocação do direito à
liberdade, em termos de prevalecer em geral, durante as primeiras dez semanas,
sobre a garantia da vida intra-uterina, a qual, como condição de base de todos
os outros direitos, assume uma posição-chave”.
Consideraria, assim, a resposta afirmativa à pergunta – na medida em que conduz
à despenalização da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, e,
portanto, com irrelevância dos motivos invocados para pôr termo à gravidez –
como inconstitucional, por violar o princípio da “proibição da insuficiência”,
quanto à protecção da vida pré-natal (o “Untermabverbot” – v., entre nós, José
Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª
ed., Coimbra, 2003, p. 273), isto é, o “défice” de tutela de um bem cuja
protecção é constitucionalmente assegurada (sem que esta garantia seja afastada
pela proposta compatibilização com outros interesses constitucionalmente
protegidos). Isto, uma vez que, por outro lado, não se divisam outros meios a
que o legislador possa recorrer para proteger esse bem, afirmando a sua
dignidade ética para a comunidade jurídica, e que a protecção penal é, apesar de
tudo, a única que se pode revestir de alguma eficácia jurídica (e notando
igualmente que a questão submetida a apreciação não contende directamente com a
da punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta
positiva viesse a contribuir para a diminuição deste, ou, muito menos, para a
diminuição geral do número de abortos).
4.Por último, e ainda a propósito da alínea i) do n.º 1 da decisão, discordei
também da fundamentação empregue para justificar a não inconstitucionalidade de
uma resposta negativa. O presente aresto inova aqui em relação ao Acórdão n.º
288/98. Mas a inovação, com uma pronúncia “incidental” sobre o regime vigente,
passa, a meu ver, ao lado do objecto de cognição do Tribunal no presente
processo – a constitucionalidade da pergunta referendária – e é mesmo
contraditória com o sentido que se atribui ao controlo pelo Tribunal, a
propósito da resposta positiva.
Com efeito, já desde o Acórdão n.º 288/98 se entendeu que ao Tribunal não cabe,
a propósito do controlo da constitucionalidade de uma pergunta de um referendo
destinado a propor uma alteração do regime vigente, pronunciar-se sobre o
concreto regime jurídico, em vigor ou que viesse provavelmente a ser aprovado.
Antes lhe cabe apenas apreciar se uma das respostas à pergunta, ou eventualmente
as duas, implicam necessariamente uma solução inconstitucional – implicação
necessária, esta, avaliada, naturalmente, em relação aos efeitos do referendo,
com os correspondentes deveres de agir ou de não agir da Assembleia da República
delimitados pelo teor da pergunta a que se respondeu (cf., falando de acto
legislativo correspondente às perguntas objecto de resposta, ou de acto “de
sentido correspondente”, os artigos 241.º e 243.º da Lei n.º 15-A/98, de 3 de
Abril). Justamente por isso se afirmou no Acórdão n.º 288/98 que podem existir
outros elementos (como a exigência de um aconselhamento da mulher) que, não
constando da pergunta, poderiam, porém, vir a ser previstos na legislação
aprovada na sua sequência (n.º 52).
Uma resposta negativa apenas impede, pois, o legislador de alterar o regime
vigente no sentido correspondente à pergunta. E aplicado a tal resposta, o
critério para a sua inconstitucionalidade – repete-se: o da implicação
necessária de uma solução inconstitucional – significa que a resposta negativa
só seria inconstitucional se existisse uma imposição constitucional de alteração
do regime vigente justamente no sentido previsto na pergunta, isto é, se a única
alteração constitucionalmente aceitável fosse a correspondente ao sentido da
pergunta. Já outras alterações (tal como os outros elementos que poderiam ser
previstos em caso de resposta positiva) não seriam abrangidas pelo efeito do
referendo. Resulta daqui, com toda a linearidade, que o Tribunal, a entender
tratar desenvolvidamente da questão de saber se a resposta negativa implicava
necessariamente uma solução inconstitucional – diversamente do Acórdão n.º
288/98, que se limitou a remeter o problema da manutenção da incriminação para a
liberdade de conformação do legislador (não deixando, a este propósito, de
responder àquela questão) –, haveria de ter apurado se o legislador estava
constitucionalmente vinculado a alterar o regime vigente justamente no sentido
correspondente à resposta positiva.
Não foi, porém, assim que o presente Acórdão entendeu dever abordar a questão,
antes se pronunciando (n.º 35) sobre o regime vigente – com considerações
relativas ao “sistema vigente” ou a uma “solução mais abrangente no sentido da
exclusão da responsabilidade” (itálico aditado). Tais considerações não tinham,
a meu ver, lugar no contexto do presente Acórdão, mesmo que fossem movidas pelo
intuito de atalhar a qualquer alteração do regime vigente num sentido mais
restritivo – àquilo que (destoando numa decisão judicial que, além do mais, tem
de pronunciar‑se sobre a objectividade da pergunta referendária) o Acórdão
qualifica, noutro passo (n.º 5), como um “retrocesso” num sentido
criminalizador. Pois tal alteração nunca esteve em causa nem pode ser
“implicação necessária” de qualquer uma das respostas à pergunta.
Paulo Mota Pinto
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido quanto à decisão constante da alínea e), na parte em que, aí,
se julga que a pergunta formulada na proposta de referendo satisfaz os
requisitos da objectividade e da clareza; votei com dúvidas a decisão constante
da alínea g) e votei vencido quanto à decisão constante da alínea i), na parte
em que aí se considera que a resposta afirmativa à pergunta formulada não
implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição,
todas as alíneas do ponto 38 do acórdão.
Tal posição fundamenta-se nas razões que passo, sucintamente, a
expor.
2 – Antes de as dar a conhecer, não posso, porém, deixar passar
em branco a convocação feita no Acórdão [Parte II, ponto 9, epigrafada de
“Enquadramento actual da questão objecto da proposta de referendo”] à cultura
bíblica enquanto razão tida como susceptível de concitar dúvidas, no plano da
racionalidade, sobre “a perspectiva doutrinária de que o crime reclama sempre a
punição e não outra forma de superação”, por, ali, “o mal do pecado – que é a
separação de Deus – é [ser] superado pelo perdão e pela graça”.
Na verdade, tal abordagem apresenta-se efectuada não só em
termos ambíguos, como não consegue afastar, igualmente, a suspeita de que a sua
referência poderá ser vista como estando, subliminar e utilitariamente,
funcionalizada para gerar alguma aceitação da doutrina do acórdão por parte de
alguns sectores sociais que seguem, ou estão próximos de tal cultura, como regra
de conduta da sua vida.
Omite-se ou ignora-se, porém, que, na doutrina bíblica, não tem
qualquer pertinência, no plano da racionalidade, a afirmação da existência de
qualquer relação ou sequer conexão, em termos de simples correspondência, e
muito menos em termos de equivalência, entre crime e pena. Estes são conceitos
que, nesse domínio, são totalmente imprestáveis. No plano de relação entre o
Homem e Deus não há lugar para a existência das figuras de crime e de punição.
Segundo a doutrina bíblica, Deus é, em Si próprio, Amor e Vida.
Por mor do acto de criação, Deus estabelece com o Homem uma relação pessoal de
Amor. O pecado consiste, assim, em um corte, voluntário e consciente, do Homem
com a fonte da sua Vida e de Amor que apenas acontece quando aquele repudia,
consciente e voluntariamente, a vontade manifestada de Deus. O mal do pecado
traduz-se, pois, assim, no “sentimento” ou “efeito” de privação ou de falta que
a pessoa criada, por puro acto de Amor, tem relativamente ao seu Criador, por se
ter por abandonada quando, de acordo com o seu acto de criação, continua a
“ansiar” por Ele. A restauração da relação pessoal de Amor entre o Homem e Deus
representa o fim desse “sofrimento”, resultando de puro acto de misericórdia,
próprio do Amor do Criador, em face do acto de arrependimento da pessoa criada,
traduzido na sua reconciliação com o Criador.
Não tem, pois, qualquer sentido ou utilidade a
descontextualizada convocação da doutrina bíblica para o thema decidendum. Ao
invés, o que resulta dessa doutrina é que, correspondendo a vida a um acto
pessoal do Amor de Deus, não deverá o Homem negar a sua contínua revelação real,
no devir do tempo e dos tempos.
3 – Segundo penso, a pergunta formulada aos eleitores não é
clara e objectiva.
Note-se que se trata de exigências constitucionais (art.º 115.º, n.º 6) e não só
de requisitos conformados pelo legislador ordinário (art.º 7.º da Lei Orgânica
do Regime do Referendo).
Como tal, o sentido que se lhes deve conferir, tem de ser, no meu ponto de
vista, um sentido que se conjugue, com a máxima expansividade de protecção,
decorrente da sua natureza de direitos e garantias fundamentais (art.º 18.º, n.º
2, da Constituição da República Portuguesa – CRP) com o princípio democrático do
direito à participação política e do direito ao sufrágio e ao respectivo
exercício (art. 48.º e 49.º da CRP).
Sendo assim, a pergunta há-de poder ser entendida, em toda a sua extensão,
quanto ao seu conteúdo e projecção da resposta, por quem, nos termos
constitucionais e legais, poderá ser eleitor.
Deste modo, não pode o grau de exigência desligar-se do universo real que
constitui esse colégio eleitoral.
Assim, suscitam-se-nos ponderadas dúvidas sobre a clareza da pergunta na medida
em que tal qual a pergunta é feita, esta supõe que o eleitor, para poder fazer
um juízo ponderativo-decisório, conheça qual o regime vigente quanto à
penalização da interrupção voluntária de gravidez e, nomeadamente, as suas
actuais causas de desculpabilização e de justificação.
Ora, parte relevante dos eleitores não será detentora de tais conhecimentos.
Além de que, a pergunta faz apelo a conceitos de matriz técnico-jurídica, como
sejam os de “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”, “por opção
da mulher”, cuja inteligibilidade escapa a grande parte do colégio eleitoral,
bem podendo, por isso, gerar a dúvida aos eleitores sobre se eles não estão
assumidos na proposta em sentido diferente daquele pelo qual essa realidade
empírica é expressada comummente, em linguagem vulgar, mas que é a seguida,
normalmente, na comunicação política: aborto e completa liberalização dentro das
10 primeiras semanas, desde que a mulher o queira e o mesmo seja efectuado em
estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Para além disso, a utilização da expressão “estabelecimento de
saúde legalmente autorizado” é, também, equívoca, pois permite tanto uma acepção
de estabelecimento de saúde (público ou privado), autorizado, apenas, para a
prática do aborto nas condições propostas, como a de estabelecimento (público ou
privado) autorizado, de prestação de serviços de saúde (pública), que pode
praticar, igualmente, esses e outros actos abortivos, cuja prática já não é
punida no regime vigente.
E, do mesmo passo, a pergunta não é objectiva nem neutra no que
importa à sua intencionalidade.
Na verdade, a referência a “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”,
para a prática da interrupção voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas de gravidez, deixa entender que a condição apenas existirá
no caso prevalecer a resposta positiva, dado esse acto, nas condições propostas,
não ser hoje autorizado em qualquer estabelecimento de saúde, predispondo por
isso a uma tal resposta para que a condição seja possível.
Por outro lado, a previsão de que o aborto, por simples opção da mulher, dentro
do prazo assinalado, será efectuado em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado sugere uma ideia de completa inexistência de quaisquer outros valores
constitucionais ou legais que tenham de entrar em confronto com a opção da
mulher, ou seja, uma ideia de completa liberalização do aborto, desde que
realizado dentro do prazo das 10 semanas e em estabelecimento de saúde
autorizado.
4 – Votei, ainda, com dúvidas quanto à questão do universo
subjectivo eleitoral.
Não tendo, todavia, chegado a um juízo de não conformidade constitucional, outra
solução não poderia aceitar que a da aplicabilidade do princípio da presunção de
constitucionalidade.
Diz o n.º 12 do art.º 115.º da CRP que “nos referendos são chamados a participar
cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do
disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga
também especificamente respeito”.
Na verdade, se é certo que, na aplicação da lei penal, vigora o
princípio da territorialidade (art.º 4.º do Código Penal) e que os cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro não estão, em regra, sujeitos à aplicação
da lei penal, salvo nas condições limitadas do art.º 5.º, n.º 1, alínea c), do
mesmo código, argumentos estes que apontam para a solução da não
inconstitucionalidade do universo eleitoral adoptado, também não o deixa de ser
que a questão pode ser vista fora do enfoque, apenas, da conexão com o direito
penal, podendo argumentar-se que, estando em causa uma alteração tão profunda ao
sistema de valores jurídicos do direito pátrio, essa alteração não é de todo
indiferente à situação dos portugueses residentes no estrangeiro, enquanto
cidadãos que tendem a reger a sua vida por esses valores e esse direito e deles
dão expressão nos locais onde vivem. Neste aspecto, estar-se-ia perante “matéria
que lhes diria [diz] também especificamente respeito”.
Tal solução seria postulada, de resto, pela mesma lógica substancial que
justifica a participação dos portugueses residentes no estrangeiro nas eleições
para o cargo de Presidente da República, podendo encontrar-se em tal
circunstância a coincidência de universo eleitoral estabelecida no referido n.º
12 do art.º 115.º da CRP. A participação dos portugueses, nestas eleições,
também se explica pelo facto de estar em causa a instituição representativa do
povo português e dos valores constitucionais que sedimentou na sua Constituição.
Subsistem-me, porém, dúvidas sobre se a Assembleia da República não goza de
discricionariedade normativo-constitutiva, relativamente às situações em que a
matéria objecto do referendo não diga directamente respeito aos portugueses
residentes no estrangeiro enquanto tal, como é o caso.
5.1 – Finalmente, votei vencido quanto à decisão constante da
alínea i) do ponto 38 do acórdão, na parte em que aí se considera que a resposta
afirmativa à pergunta formulada não implica necessariamente uma solução jurídica
incompatível com a Constituição.
Não irei expor longamente os fundamentos
jurídico-constitucionais com base nos quais se considera que a vida humana
uterina tem consagração e protecção constitucionais nos termos do art.º 24.º,
n.º 1, da nossa Lei fundamental. E não o farei, exactamente, porque, quer o
Acórdão n.º 288/98, ao qual constantemente se arrimou, aí de modo inequívoco,
quer o presente Acórdão não deixam de pressupor, ainda que, neste, de forma não
tão impressiva, que a vida uterina tem protecção constitucional, correspondendo
a um direito ou garantia fundamentais. Depois, porque acompanho, no essencial,
os votos apostos àquele Acórdão n.º 288/98 pelos senhores conselheiros que
votaram vencido e que aqui se recuperam.
Nesse ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar
de ser quanto à solução desta questão – a nossa discordância com o acórdão
reside, essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que
se entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele
concitada, sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no art.º
24.º, n.º 1 da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia
fundamentais entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora
designada “liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre
desenvolvimento da personalidade”.
Não obstante isso – e com referência à metodologia seguida –
não é de passar em branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os
argumentos que, na sua óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de
uma solução jurídica perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao
referendo, discorre, essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os
direitos fundamentais, susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma
“configuração mais radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a
solução passasse, no caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a
existência, no direito vigente, de causas de desculpabilização e de justificação
que dão expressão, num plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no
caso, por um juízo ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos
como estando em conflito.
Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se
afirma, nem se viu alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por
referência a vida pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal
idêntica em todas as fases da vida”, como postulado ou decorrência da
inviolabilidade da vida humana ou que haja “uma argumentação a favor da
inconstitucionalidade [da resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em
todos os seus estádios”.
Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal
da vida humana tenha de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da
vida e em todas as circunstâncias de facto.
O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do
direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo,
dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito
criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da
culpa e do estado de necessidade.
Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de
conformar diferentes níveis de protecção criminal, expressos, maxime, no recorte
do facto ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias
do continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a
vida intra-uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a
existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja
penalmente protegida.
Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de
inflexível necessidade lógica”, como afirma o acórdão, entre a definição da
inviolabilidade da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela
interferência de perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de
afastamento da responsabilidade devido “à necessidade da pena” assenta sobre uma
patente incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a
intervenção penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a
existência dessa protecção penal.
Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no
referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,
segundo o qual na mente dos constituintes do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não
caberia a protecção da vida uterina só teria sentido para quem – posição que
parece não ser, de modo assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Ac.
288/98, em que constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos
– seguisse uma tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal
artigo da vida intra-uterina.
5.2 – Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por
todos os vencidos, que a vida humana intra-uterina goza de protecção
constitucional, o que importa saber, é se, a operação de concordância prática
dos direitos e valores constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o
acórdão levou a cabo se apresenta efectuada com respeito pelo princípio
constitucional que emerge do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP.
Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo,
essencialmente, nas seguintes considerações.
Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão
perspective a tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no art.º
24.º, n.º 1, da CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por
reduzir, subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu
âmbito de protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às
pessoas nascidas.
Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido
falar-se de inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que
dela seja titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser
pessoa (cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto,
Torino, 1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamento provocado”, in Bioética, AA. VV.
Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp.
201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à
Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e
Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).
Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial
fundamento da tutela constitucional devida ao embrião/feto o princípio
constitucional da dignidade humana, quando este princípio supõe, precisamente, a
existência de um ser dotado de vida humana e o preceito do art.º 24.º, n.º 1, da
CRP não só não aponta em qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma
solução contrária ao princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos
direitos e garantias fundamentais, constantemente, invocado para justificar a
inclusão nos direitos fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida.
Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de
concordância prática entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos
como estando em conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a
“liberdade da mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre
desenvolvimento da sua personalidade”. E não efectuou, porque, pura e
simplesmente, para fazer prevalecer este último, rejeita a titularização, no
âmbito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP (subjectivação constitucional), do direito à
vida humana e, decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a
nascer, admitindo a possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida
humana.
De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e
jurisprudência constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos
constitucionais, precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a
colisão de direitos constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador
ordinário, com base num critério normativo de prevalência da liberdade da mulher
a manter um projecto de vida à custa da morte do feto, titular constitucional de
vida humana e da respectiva dignidade.
A operação de concordância prática entre direitos
constitucionais, posicionados como estando em conflito, demanda a realização de
um juízo de ponderação (legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio
constitucional da máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias
fundamentais.
Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter
uma optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a
tais direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles
em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o
conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da
vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a
nascer e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do art.º 18.º, n.º
3, da CRP.
[E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o
acórdão admite, a tutela constitucional do titular embrião/feto no princípio da
dignidade de vida humana – lógica essa, diga-se, incongruente, se referida à
dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência
da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada
dignidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a
perspectivada situação de colisão de direitos]
Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar
de ter presente a estrutura e natureza dos concretos direitos ou garantias
constitucionais, que se apresentam como estando em conflito, mormente para
avaliação dos resultados sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua
dimensão de justa medida, ao qual deve obediência.
Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa
direitos ou garantias constitucionais em concreto, radicados em diferentes
titulares constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um
projecto de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada
situação de gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência
de um concreto titular do direito à vida humana a nascer.
Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que
quer conferir uma especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de
protecção constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa
expressões reveladoras desse significado, como o adjectivo “inviolável” ou
expressões de exclusão como “ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo,
quanto ao primeiro caso, os art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º 1, e,
quanto ao segundo caso, os art.ºs 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a
ambas as situações, o art.º 13.º, n.º 2).
O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º
24.º, n.º 1) como direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá
significar que se trata de um direito que não poderá ser violado em caso algum,
mesmo pelo Estado legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de
exclusão que consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação,
como sejam as causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação.
Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional
que se encontra dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se
compreende que o seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os
outros, de um direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem
titulares de vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer
constituir-se comunidade organizada em Estado de direito democrático.
Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se
apresenta em colisão com ele – a liberdade da mulher a manter um projecto de
vida como expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade – não se
apresenta dotado constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão.
Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o
art.º 27.º, n.º 2, da CRP, a liberdade física ou liberdade de “ir e vir” – essa
sim dotada de tal força excludente – mas sim uma específica dimensão do
princípio do desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1.
Assim sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no
ser resultante da partogénese celular, ser esse diferente, não só biológica e
geneticamente (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra,
2003, pp. 310 a 312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de
Ética – Das Bases Teóricas à Actividade Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria
do Céu Patrão Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351 e 352), como também
constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, “Estatuto do
Embrião”, in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer,
Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A.
M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou mulher
grávida – seja ele já uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucional – e
podendo ele estar em colisão com o direito a manter um projecto de vida como
expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, titularizado na mulher
grávida, não pode deixar, numa ponderação de concordância prática dos valores
constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza
constitucional, uma solução que não acarrete o sacrifício do titular da vida
humana.
Anote-se, de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma
alteridade de titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua
mãe é que justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998,
procure intentar uma demonstração de existência de concordância prática entre o
direito titularizado da mulher grávida e o direito respeitante ao embrião/feto.
O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do
concreto embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio
materno (e de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA,
a vida humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por
sua vez, resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto
espermatozóide. O ser irrepetível advindo da partogénese celular deixa de
existir, saindo violado, por completo, o seu direito à vida humana.
Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da
mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da
sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o
futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer
por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como,
por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.
Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o
poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua
vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de
desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção
da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida
humana de um concreto titular – o concreto feto em gestação.
Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção
voluntária de gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de
gravidez, assume tão só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo
de planeamento familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um
direito absoluto da mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto
embrião/feto, qualquer protecção constitucional do seu direito à vida humana,
consagrado no art.º 24.º, n.º 1, da CRP.
Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa
liberalização do aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar
o aspecto de saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser
efectuada uma ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre
opção, da mulher de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em
estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.
Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade
não vemos como possa ser acolhida pelo princípio constitucional da
proporcionalidade, na sua acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade
torna-se patente não só quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que
está em colisão com o direito da mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de
plano, nas primeiras 10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar
dependente apenas da decorrência de simples prazos de gestação, e da
aleatoriedade decisória que, durante eles, poderá ser feita, livremente, pela
mulher grávida, podendo ser levada a cabo, sem censura penal, num limite em que
o feto tem até já forma humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro,
Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização
de uma concordância prática dos direitos em questão no plano abstracto,
indicando até, nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da
maternidade, que identifica.
Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é
que, posta a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito
objectivo à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio
legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no
que toca ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo
aborto.
E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto
pelo acórdão, para justificar a existência de um juízo ponderativo de
concordância prática, que só tal operação permite enquadrar constitucionalmente
as causas de desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de
gravidez existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a
concretizações, relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão
em causa, de princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito
criminal – as causas de justificação e de desculpabilização.
Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que
os direitos cuja existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver
a sorte de não ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares
de direito à vida humana que tenham nascido.
A vida humana não existe sem um titular e não é possível
falar-se de violação, que o preceito constitucional proíbe, sem ser
relativamente à posição jurídica de quem se encontre investido na titularidade
de um direito.
De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do
conteúdo constitucional desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo
essencial, no mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do
legislador ordinário, mas nos do constitucional.
Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida
no acórdão (pontos 7 a 10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa
sobre a solução, em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito
de valores ou direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta
de referendo, poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o
referendo e não de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes
por parte da Assembleia da República.
É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas
pode traduzir uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido
transportado pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder
legislativo ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do
conteúdo dos direitos e garantias constitucionais, só possível através da
concessão/assumpção de poderes constituintes.
Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o
acórdão, segundo a qual não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção
do direito constitucional à vida humana e de que não existe uma imposição
constitucional à criminalização.
Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não
podemos acompanhar, de forma alguma, a segunda proposição.
E não podemos, porque entendemos que existem direitos
constitucionais cuja existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a
criminalização das atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador
ordinário dever usar todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes,
evidentemente, a sua última ratio – o direito criminal.
É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito
que é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com
pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos,
não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência
de uma comunidade politicamente organizada em Estado.
O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido
ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do
Homem e da sociedade organizada.
Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático
do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de
direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá
existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de
utilizar na sua protecção a última ratio – o direito criminal.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que: (i) a
formulação da pergunta não satisfaz os requisitos constitucionais e legais da
clareza e da objectividade; (ii) é injustificada a restrição do “universo
eleitoral” aos eleitores residentes no território nacional; e (iii) a resposta
afirmativa é susceptível de conduzir a uma solução jurídica inconstitucional.
1. A falta de clareza e de objectividade da
pergunta.
1.1. A Constituição da República Portuguesa
(CRP) exige, no seu artigo 115.º, n.º 6, que as questões objecto de referendo
sejam “formuladas com objectividade, clareza e precisão”, tendo a Lei Orgânica
do Regime do Referendo (Lei n.º 15‑A/98, de 3 de Abril, alterada pela Lei
Orgânica n.º 4/2005, de 8 de Setembro – LORR) reiterado que “as perguntas são
formuladas com objectividade, clareza e precisão (...), sem sugerirem, directa
ou indirectamente, o sentido das respostas”.
Os requisitos da clareza e da precisão implicam
que a pergunta seja formulada “de modo unívoco e explícito, sem ambiguidades”
(Acórdão n.º 704/2004), insusceptível de “comportar mais do que uma
interpretação” (Acórdão n.º 531/98). O requisito da objectividade impede a
utilização de formulações susceptíveis de “induzir os eleitores em erro,
influenciando o sentido da resposta” (Acórdão n.º 531/98).
Entendo que a pergunta ora em apreciação não é
clara quando utiliza a expressão “em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado”, e não é objectiva quando usa a expressão “despenalização da
interrupção voluntária da gravidez”.
1.2. A primeira expressão é susceptível de duas
interpretações: tratar‑se de estabelecimento de saúde legalmente autorizado a
praticar abortos (autorização específica) ou tratar‑se de estabelecimento de
saúde legalmente autorizado a funcionar como estabelecimento de saúde tout
court (autorização genérica).
No Acórdão n.º 288/98 o Tribunal Constitucional
interpretou a expressão naquele primeiro sentido, interpretação que foi mantida
pelo precedente acórdão. Afigura‑se‑me, porém, que é a segunda a interpretação
correcta, como, a meu ver, resulta da história das iniciativas parlamentares
pertinentes, em que a expressão surge como equivalente a “estabelecimento de
saúde oficial ou oficialmente reconhecido” (cf. Projectos de Lei n.ºs 177/VII,
235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII, 453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX,
405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X e 166/X), que é, aliás, a utilizada no
corpo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal. O que se pretendeu exigir terá
sido que o aborto fosse praticado em estabelecimento de saúde, quer oficial,
quer legalmente autorizado (no sentido de oficialmente reconhecido), e não em
quaisquer outras instalações, mas não se terá querido limitar tais intervenções
a estabelecimentos de saúde especificamente autorizados a praticar abortos
(admitindo que estas autorizações específicas existam ou venham a existir). A
simples existência desta dualidade de interpretações demonstra a falta de
clareza desta parte da pergunta.
1.3. Mais grave, porém, é a falta de
objectividade que deriva do uso da expressão “despenalização da interrupção
voluntária da gravidez”.
Interessará começar por recordar as oito
formulações propostas para a pergunta ao longo das diversas tentativas de
processo referendário nesta matéria:
1) “Não existindo razões médicas, o aborto deve
ser livre durante as primeiras 12 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 38/VII,
apresentado pelo PSD, Diário da Assembleia da República (DAR), II Série‑A, n.º
12, de 9/1/1997);
2) “Não existindo razões médicas, o aborto deve
ser livre durante as primeiras 10 semanas?” (Projecto de Resolução n.º 75/VII,
apresentado pelo PSD, DAR, II‑A, n.º 23, de 15/1/1998);
3) “1 – Concorda que o aborto seja livre nas
primeiras 10 semanas de gravidez? 2 – Concorda que razões de natureza económica
ou social possam justificar o aborto por constituírem perigo grave para a saúde
da mulher?” (proposta de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo
PSD e CDS‑PP, DAR, I, n.º 51, de 20/3/1998);
4) “Concorda com a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10
primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” (proposta
de substituição do Projecto n.º 75/VII, apresentada pelo PS (DAR, I, n.º 51, de
20/3/1998), que viria a ser adoptada pela Resolução da Assembleia da República
n.º 16/98 (Diário da República (DR), I Série‑A, n.º 76, de 31/3/1998), e
retomada no Projecto de Resolução n.º 69/X, apresentado pelo PS (DAR, II‑A, n.º
50, de 22/9/2005), adoptado pela Resolução da Assembleia da República n.º
52‑A/2005 (DR, I‑A, Supl. ao n.º 188, de 29/9/2005), e no Projecto de Resolução
n.º 148/X, apresentadas pelo PS (DAR, II‑A, n.º 2, de 21/9/2006), adoptado pela
Resolução da Assembleia da República n.º 54‑A/2006 (DR, I Série, 2.º Supl. ao
n.º 203, de 20/10/2006));
5) “Concorda que deixe de constituir crime o
aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, com o consentimento da
mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 7/X,
apresentado pelo BE, DAR, II‑A, n.º 4, de 2/4/2005);
6) “Concorda que deixe de constituir crime o
aborto realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez, com o consentimento da
mulher, em estabelecimento legal de saúde?” (Projecto de Resolução n.º 9/X,
apresentado pelo PS (DAR, II‑A, n.º 4, de 2/4/2005), adoptado pela Resolução da
Assembleia da República n.º 16‑A/2005 (DR, I‑A, Supl. ao n.º 78, de 21/4/2005));
7) “Concorda com a despenalização do aborto
realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez, com o consentimento da mulher,
em estabelecimento legal de saúde” (proposta de substituição do Projecto n.º
9/X, apresentado pelo CDS‑PP, DAR, II‑A, n.º 8, de 22/4/2005);
8) “Concorda com a liberalização do aborto, se
realizado, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado?” (Proposta de substituição do Projecto n.º 148/X,
apresentada pelo CDS, DAR, II‑A, n.º 12, de 28/10/2006).
Nestas formulações são utilizados os conceitos
de “liberalização”, “despenalização” e “descriminalização”, que, como é sabido,
têm sentidos bem diferenciados e efeitos distintos, desde logo o de que, como
assinala Jorge de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal,
Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, p. 178), “se a interrupção for um facto
ilícito, ainda que não punível, o Estado se sentirá desobrigado das prestações
sociais decorrentes da intervenção médica – de acordo com o princípio de que não
podem ser dispendidos dinheiros públicos com factos constitutivos de ilícitos
penais”.
Tenho por evidente que a medida legislativa que
os proponentes do referendo visam aprovar, na hipótese de resposta afirmativa
vinculativa, não consiste numa mera despenalização (sem descriminalização). Não
se trata, na verdade, de previsão de situações de não aplicação de penas a
determinados autores de condutas que continuam a ser qualificadas como
criminalmente ilícitas (como acontece com as propostas de eliminação do n.º 3 do
artigo 140.º do Código Penal, constantes dos Projectos de Lei n.ºs 308/X (PCP),
309/X (Os Verdes) e 317/X (BE), que, essas sim, conduzem à não punição da mulher
grávida em todas as situações de crimes de aborto, praticados fora das previsões
do artigo 142.º), mas muito mais do que isso. Trata-se de deixar de considerar
como crime, relativamente a todos os participantes nessas intervenções (e não
apenas à mulher grávida), o aborto praticado, nas primeiras dez semanas de
gravidez, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado. E não se trata apenas de afastar a ilicitude criminal, mas toda e
qualquer ilicitude. E ainda mais: trata‑se de assegurar, pelo próprio Estado,
designadamente através do serviço nacional de saúde, a prática desses actos.
Isto é: pretende‑se passar de uma situação de “crime punível”, não a uma
situação de “crime não punível”, mas a uma situação de “não crime”, de “não
ilícito” e de “direito a prestação do Estado”.
Nem se diga, como foi aduzido no debate
parlamentar, que não se trata de “descriminalização” por o crime de aborto
continuar a ser punível quando praticado para além das 10 semanas. A questão,
porém, é que um conjunto de situações (prática do aborto, por opção da mulher,
até às 10 semanas de gravidez, sem que se verifiquem as “indicações” do artigo
142.º), que eram consideradas crime e como tal punidas, deixam de ser
consideradas como crime relativamente a todos os intervenientes nessas práticas.
Neste contexto, embora fosse sustentável que,
em rigor, se trata de uma “legalização” do aborto em causa [na apresentação da
Projecto de Resolução foi expressamente referido: “(...) ao legalizar a
interrupção voluntária da gravidez sob determinadas condições, não se está, como
é evidente, a liberalizar o aborto, está‑se apenas a alargar, de forma razoável
e equilibrada, o elenco das excepções, já hoje admitidas na lei, à regra geral
de criminalização que permanece em vigor. (..) Por isso, propomos a realização
desta consulta popular, onde a única questão a decidir é saber se «sim» ou
«não» à licitude da interrupção voluntária da gravidez, nas primeiras 10
semanas, em estabelecimento autorizado” – DAR, I, n.º 14, de 20/10/2006, p. 8
(sublinhados acrescentados)], a pergunta a formular, para ser objectiva, teria,
no mínimo, de referir a intenção de “deixar de constituir crime” tal conduta.
Isto é: devia ter sido mantida a formulação dos Projectos de Resolução n.ºs 7/X
(BE) e 9/IX (PS) – “Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado
nas primeiras 10 [12 para o BE] semanas de gravidez, com o consentimento da
mulher, em estabelecimento legal de saúde?” – acolhida na Resolução da
Assembleia da República n.º 16‑A/2005.
A isto acresce que, quer na discussão pública
em curso sobre este tema, quer, mais relevantemente, na apresentação parlamentar
da iniciativa referendária, se tem sistematicamente insistido na associação
desta iniciativa ao propósito de pôr termo à perseguição criminal, julgamento,
condenação e prisão das mulheres grávidas que pratiquem aborto. E o uso da
expressão “despenalização”, na pergunta, pode propiciar o entendimento de que é
esse propósito que se visa alcançar, o que não corresponde à realidade. Na
verdade, face ao apontado desiderato, a aprovação da medida legislativa que
resultará de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo surge como
inadequada, por defeito e por excesso: por defeito, porque não evitará a
perseguição criminal das mulheres que pratiquem aborto para além das 10 semanas
fora das indicações do artigo 142.º do Código Penal e ainda das que pratiquem
aborto dentro das 10 semanas, mas fora de estabelecimento de saúde legalmente
autorizado; por excesso, porque exclui da incriminação, não apenas as mulheres
grávidas, mas todos os intervenientes no acto em causa.
Não se leia nas considerações precedentes
qualquer tomada de posição negativa quanto ao mérito da iniciativa. Não é disso
que se visa nesta sede, em que apenas se trata de verificar o respeito dos
requisitos de clareza e de objectividade exigíveis à pergunta do referendo.
E, pelas razões expostas, concluo que, para
além da falta de clareza da expressão “estabelecimento de saúde legalmente
autorizado”, a expressão “despenalização da interrupção voluntária da gravidez”
não respeita o requisito da objectividade, pois se mostra susceptível de
“induzir os eleitores em erro, influenciando o sentido da resposta”.
2. A definição do “universo eleitoral”.
A proposta referendária limita a intervenção no
referendo aos “cidadãos eleitores recenseados no território nacional”.
O precedente acórdão (n.º 26), para considerar
justificada esta limitação, invoca argumentos (ser a “aplicação da lei penal
portuguesa a cidadãos residentes no estrangeiro relativamente excepcional e
condicionada” e não ter a matéria do referendo “a ver especificamente com a
particular situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro”), que
não posso acompanhar.
Com efeito, afigura‑se‑me de todo impertinente
o argumento extraído das regras sobre a aplicação no espaço da lei penal
portuguesa. Não pode constituir critério adequado para aferir da relevância da
participação no referendo dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a
circunstância de, por regra, as normas penais portuguesas lhes não serem
aplicáveis. O interesse na participação no referendo não pode resultar da
susceptibilidade de ser autor ou vítima dos crimes em causa.
Por outro lado, a CRP (artigo 115.º, n.º 12)
não restringe a participação dos cidadãos residentes no estrangeiro aos
referendos sobre matéria que apenas lhes diga especificamente respeito, mas sim
sobre matéria “que lhes diga também especificamente respeito”. E em lado algum a
CRP manda considerar esses cidadãos “na sua condição de emigrantes”, condição
que, aliás, muitos deles não terão.
Há que atender que não é à generalidade dos
cidadãos portugueses residentes no estrangeiro que é facultada a participação no
referendo, nem sequer ao grupo, mais reduzido, dos que, estando recenseados,
são eleitores da Assembleia da República. É, apenas, ao grupo estrito de
cidadãos portugueses a quem, apesar de residirem no estrangeiro, foi admitida a
participação nas eleições para Presidente da República por mantenham “laços de
efectiva ligação à comunidade nacional” (artigo 121.º, n.º 2, da CRP, para que
remete o artigo 115.º, n.º 12) e que efectivamente exercitaram esse direito de
recenseamento (o que revela a actualidade do seu interesse na participação nos
assuntos públicos nacionais), designadamente titulares de órgãos da União
Europeia e de organizações internacionais, diplomatas e outros funcionários e
agentes em serviço em representações externas do Estado, funcionários e agentes
das comunidades e da União Europeia e de organizações internacionais,
professores de escolas portuguesas, cooperantes (artigo 1.º‑A, n.º 1, da Lei
Eleitoral para Presidente da República – Decreto‑Lei n.º 319‑A/76, de 3 de Maio,
alterado, por último, pela Lei Orgânica n.º 5/2005, de 8 de Setembro); cônjuges
ou equiparados, parentes ou afins, que vivam com os cidadãos atrás mencionados
(artigo 1.º‑A, n.º 2, da mesma Lei); e os cidadãos que não estejam ausentes do
território nacional para além de determinados limites temporais, consoante sejam
residentes nos Estados membros da União Europeia ou nos países de língua
oficial portuguesa ou nos demais Estados ou que se tenham deslocado a Portugal e
aqui permanecido durante determinado período de tempo em época recente (artigo
1.º‑B da mesma Lei).
Por outro lado, a matéria em causa no
referendo, como o evidencia a intensidade do debate público que a tem rodeado
ao longo de um já dilatado período de tempo, está directamente ligada à
definição dos valores fundamentais estruturantes da comunidade nacional,
problemática que não pode deixar de afectar os portugueses que, apesar de
residentes no estrangeiro, têm manifestado laços de efectiva ligação à
comunidade nacional e revelado interesse actual na intervenção directa na vida
política nacional.
Não se vislumbra motivo justificado para
excluir este grupo de cidadãos portugueses da participação num referendo que,
atenta a matéria sobre que versa, também lhes diz especificamente respeito, e no
qual, aliás, irão participar cidadãos estrangeiros residentes em Portugal – os
referidos no artigo 38.º da LORR.
3. A inconstitucionalidade da solução
legislativa derivada de eventual resposta positiva vinculativa ao referendo.
3.1. Apesar da notória divisão de posições
revelada pelos quatro acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre a
problemática do aborto (Acórdãos n.ºs 25/84, 85/85, 288/98 e o presente), num
aspecto crucial verificou‑se unanimidade por parte dos 31 juízes das diversas
formações que subscreveram esses acórdãos: todos eles, nemine discrepante,
assumiram que a vida intra‑uterina constitui um bem constitucionalmente
tutelado, donde deriva a obrigação do Estado de a defender.
O reconhecimento da dignidade constitucional da
vida intra‑uterina (comum, aliás, à generalidade das pronúncias de diversos
Tribunais Constitucionais da nossa área civilizacional) – que é independente de
concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana – não impede,
como é óbvio, a admissão de que a sua tutela seja menos forte do que a da vida
das pessoas humanas (desde sempre revelada na diferenciação das penas aplicáveis
aos crimes de aborto e de homicídio) e que possa conhecer gradações consoante a
fase de desenvolvimento do feto, designadamente em sede de ponderação da solução
do conflito entre esse valor e outros valores igualmente dignos de protecção
constitucional, relacionados com a mulher grávida.
O que se me afigura constitucionalmente
inadmissível, por incompatível com o reconhecido dever do Estado de tutelar a
vida intra‑uterina – com consequente postergação da concepção primária do feto
como uma víscera da mulher, sobre a qual esta deteria total liberdade de
disposição – é admitir que, embora na fase inicial de desenvolvimento do feto,
se adopte solução legal que represente a sua total desprotecção, com absoluta
prevalência da “liberdade de opção” da mulher grávida, sem que o Estado faça o
mínimo esforço no sentido da salvaguarda da vida do feto, antes adoptando uma
posição de neutral indiferença ou, pior ainda, de activa promoção da destruição
dessa vida.
Não acompanho, assim, o argumento expendido no
n.º 48 do Acórdão n.º 288/98 e retomado no n.º 31 do precedente acórdão, que
vislumbra uma ponderação de interesses no “contexto global” da regulação da
matéria, como que “compensando” a desprotecção total da vida intra‑uterina nas
primeiras 10 semanas com a protecção total (ou quase total) nos últimos períodos
de gestação, argumento que se me afigura inaceitável face à inarredável
individualidade e infungibilidade de cada vida humana, mesmo que intra‑uterina.
Como se afirmou na declaração de voto do Cons. Tavares da Costa aposta àquele
acórdão, na vida intra‑uterina manifesta‑se “uma forma de vida que, desde logo,
contém um acabado programa genético, único e irrepetível, o qual, se entretanto
não conhecer destruição, culminará, inevitavelmente, com o nascimento de um ser
humano” (sublinhado acrescentado) – cf., ainda, sobre este ponto, Jorge Miranda
e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp.
230–232).
3.2. Não excluo, porém, compartilhar da
convicção de Jorge de Figueiredo Dias (obra citada, p. 172) “de que mesmo um
sistema que combinasse equilibradamente o sistema das indicações com o sistema
dos prazos não mereceria censura constitucional se nele assentasse o legislador
ordinário; nomeadamente se um tal sistema se combinasse por sua vez, como deve,
com um consistente e adequado sistema de aconselhamento” (negrito no original,
sublinhado acrescentado).
Isto é: admitiria considerar não
inconstitucional uma solução legislativa que, no período inicial da gestação,
acabasse por conceder prevalência à opção da mulher grávida, desde que fosse
associada à imposição de um sistema de aconselhamento, designadamente se este
aconselhamento não fosse um aconselhamento meramente informativo, mas antes um
aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida.
Como resulta dos elementos de direito comparado
largamente referidos no Acórdão n.º 288/98 (cf. também João Carlos Simões
Gonçalves Loureiro, “Aborto: algumas questões jurídico-constitucionais (A
propósito de uma reforma legislativa)”, Boletim da Faculdade de Direito, vol.
LXXIV, Coimbra, 1998, pp. 327‑403), há, na nossa área civilizacional, três
modelos fundamentais em matéria de criminalização do aborto.
Um primeiro grupo engloba os países em que
vigora a proibição total: Irlanda e Malta.
O segundo grupo é integrado pelos países que
reconhecem apenas o modelo das indicações, isto é, “o reconhecimento de
situações taxativamente indicadas e objectivamente controláveis (i. e.,
controláveis por terceiro) perante as quais a lei permite o sacrifício da vida
intra‑uterina” (Figueiredo Dias, local citado, p. 171). É o caso, embora com
variações quanto ao tipo de “indicações” consideradas relevantes e a sua
relacionação com os períodos de gestação, da Itália, Reino Unido, Luxemburgo,
Suíça, Finlândia, Portugal e Espanha. [Em parêntesis refira‑se que, ao
contrário do que com frequência se refere no debate público, não vigora em
Espanha um sistema “liberal”, perante o qual seria chocantemente contrastante o
“limitado” sistema português. O sistema legal espanhol é estritamente um
sistema de indicações. O que ocorre é que, na prática, uma interpretação
latíssima da indicação relacionada com a “saúde psíquica” da mulher grávida
conduziu a uma permissividade na prática do aborto, sobretudo em “clínicas
privadas”, que têm como objecto exclusivo do sua actividade a prática abortiva
(segundo informa João Loureiro, estudo citado, p. 339, 98% dos abortos
realizados nas clínicas privadas apresentam como “indicação” o risco para a
saúde psíquica da mãe)].
O terceiro grupo compreende os países que
associam o modelo das indicações com o modelo dos prazos, segundo o qual o
aborto será permitido, sem necessidade de justificação por parte da grávida ou
do seu controlo por terceiro, dentro de certo prazo. Neste grupo, há ainda que
distinguir entre os que não associam (Áustria, Dinamarca, Suécia e Grécia) e os
que associam ao método dos prazos um sistema de aconselhamento obrigatório
meramente informativo (Bélgica, França, Luxemburgo) ou um aconselhamento
obrigatório orientado para a salvaguarda da vida (Holanda, Itália, Alemanha) e
um período de reflexão (Bélgica, França, Holanda, Itália, Luxemburgo).
Na Holanda, estabeleceu‑se, no artigo 5.º da
Wet afbreking zwangerschap, de 1 de Maio de 1981, “um processo de aconselhamento
obrigatório visando analisar alternativas à interrupção voluntária da gravidez e
que o médico, se a mulher achar que a situação de emergência não poderá ser
resolvida de outro modo, se certifique que a mulher manifestou e manteve o seu
pedido de livre vontade após cuidadosa reflexão e na consciência da sua
responsabilidade pela vida pré‑natal e por si própria e pelos seus” (João
Loureiro, estudo citado, p. 366‑367).
Em Itália, durante os primeiros 90 dias da
gravidez, a decisão de abortar cabe à mulher, mas sujeita a consulta em centro
de consulta familiar, que a deve esclarecer e ponderar em conjunto com ela e
com o autor da concepção (se a mulher assim consentir) todas as soluções
possíveis, com o objectivo de ajudar a mulher a ultrapassar as causas que
poderiam conduzi‑la a interromper a sua gravidez (cf. n.º 38 do Acórdão n.º
288/98).
Finalmente, na Alemanha, na sequência directa
de pronunciamentos do respectivo Tribunal Constitucional, a possibilidade de
prática de aborto, nas primeiras 12 semanas, a pedido da mulher, está dependente
de aconselhamento obrigatório especificamente dirigido à protecção da vida
embrionária e fetal, dispondo o n.º 1 do § 219 do Código Penal alemão (cf. João
Loureiro, local citado, p. 389):
“O aconselhamento serve a protecção da vida que está por
nascer. Deve orientar‑se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a
gravidez e de lhe abrir perspectivas para uma vida com a criança. Deve ajudá‑la
a tomar uma decisão responsável e em consciência. A mulher deve ter a
consciência de que o feto, em cada uma das fases de gravidez, também tem o
direito próprio à vida e que, por isso, de acordo com o sistema legal, uma
interrupção da gravidez apenas pode ser considerada em situações de excepção,
quando a mulher fica sujeita a um sacrifício que pelo nascimento da criança é
agravado e se torna tão pesado e extraordinário que ultrapassa o limite do que
se lhe pode exigir.”
A meu ver, atento o quadro constitucional
português vigente, não pode deixar‑se de considerar inconstitucional um sistema
que, na parte em que acolhe o método dos prazos, não o condicione a um sistema
de aconselhamento orientado para a salvaguarda da vida. Na verdade, após se
reconhecer que a vida intra‑uterina constitui um valor constitucionalmente
tutelado, cuja defesa incumbe ao Estado, é contraditório e incongruente
considerar constitucionalmente aceitável uma solução em que a vida do feto é
sacrificada, por mera opção da mulher, sem que o Estado tome qualquer iniciativa
nesse domínio, a mínima das quais seria condicionar o aborto à obrigatoriedade
de aconselhamento e de um período de reflexão. Aconselhamento este que, nos
sistemas legais que o acolhem, não surge como mecanismo estranho à solução penal
(como as consultas de planeamento familiar), mas antes se insere no estrito
domínio penal, como condição da não incriminação ou punição do aborto.
3.3. É certo que, quer o Acórdão n.º 288/98,
quer o precedente acórdão, acabem por reconhecer a relevância da introdução, na
lei que vier a ser aprovada na sequência de eventual resposta afirmativa
vinculativa ao referendo, da “obrigatoriedade de uma prévia consulta de
aconselhamento, em que possa ser dada à mulher a informação necessária sobre os
direitos sociais e os apoios de que poderia beneficiar no caso de levar a termo
a gravidez, bem como o estabelecimento de um período de reflexão entre essa
consulta e a intervenção abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua
decisão de forma livre, informada e não precipitada, evitando‑se a interrupção
da gravidez motivada por súbito desespero” (n.º 52 do Acórdão n.º 288/98,
retomado no n.º 34 do precedente acórdão).
Acontece, porém, que, perante os termos em que
está formulada a pergunta do referendo, se a lei aprovada na sua sequência não
contemplar esse condicionamento (e, como veremos, é mesmo questionável que o
possa inserir), ela não poderá ser vetada pelo Presidente da República nem
sujeita a fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional com o fundamento de
ser inconstitucional a não consagração do aconselhamento obrigatório como
condição de não punibilidade.
É o que resulta, a meu ver, da força
vinculativa constitucionalmente atribuída à resposta afirmativa ao referendo,
com participação neste de mais de metade dos eleitores inscritos no
recenseamento.
As diversas iniciativas legislativas surgidas,
neste domínio, na última década, na parte em que visavam a introdução do sistema
dos prazos (Projectos de Lei n.ºs 177/VII, 235/VII, 236/VII, 417/VII, 451/VII,
453/VII, 16/VIII, 64/VIII, 1/IX, 89/IX, 405/IX, 409/IX, 1/X, 6/X, 12/X, 19/X,
166/X, 308/X, 309/X e 317/X), previram o condicionamento da não punibilidade do
aborto, por opção da mulher, aos seguintes requisitos:
1) ser a interrupção da gravidez efectuada por
médico ou sob a sua direcção;
2) ser feita em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido;
3) durante as primeiras 10 ou 12 semanas de gravidez;
4) com invocação de motivos relacionados com a preservação da
integridade moral e dignidade social da mulher e com uma maternidade consciente
e responsável; e
5) após consulta num centro de acolhimento familiar ou comissão
de apoio à maternidade.
A proposta de referendo apenas contempla, como condições de
“despenalização” (rectius, descriminalização), para além da opção da mulher, o
prazo de 10 semanas e a natureza do estabelecimento de saúde.
Do carácter vinculativo do referendo (artigo
115.º, n.º 1, da CRP) resulta que o sentido da vontade popular soberana, por
esse meio directamente expressa, se impõe aos órgãos de soberania que sejam
chamados a intervir no subsequente processo legislativo. Impõe à Assembleia da
República e ao Governo a aprovação, em prazo certo, do acto legislativo de
sentido correspondente à resposta afirmativa (artigo 241.º da LORR) e proíbe ao
Presidente da República a recusa de promulgação do acto legislativo “por
discordância com o sentido apurado em referendo com eficácia vinculativa”
(artigo 242.º da LORR).
Desta última proibição de veto presidencial
(sem distinção entre veto político e veto por inconstitucionalidade) resulta a
impossibilidade de fiscalização preventiva, pelo Tribunal Constitucional, da
constitucionalidade do acto legislativo concretizador da pronúncia referendária,
desde que o sentido desse acto caiba dentro do alcance de tal pronúncia. Isto é,
tal como Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II,
Coimbra, 2006, p. 309), entendo que só será admissível o Presidente da República
requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da lei
concretizadora da pronúncia referendária “apenas naquilo em que ela estiver
para além do conteúdo da proposta referendada, ou no tocante a
inconstitucionalidade orgânica ou formal”. Trata‑se de entendimento também
subscrito por Maria Benedita Urbano (O Referendo – Perfil Histórico‑Evolutivo do
Instituto. Configuração Jurídica do Referendo em Portugal, Coimbra, 1998, p.
287: “(...) isto equivale à impossibilidade de o PR utilizar o seu veto político
e de pedir a fiscalização preventiva das normas concretizadoras da consulta
referendária, pelo menos na parte em que elas se limitem a traduzir
correctamente a vontade popular”), por Luís Barbosa Rodrigues (O Referendo
Português a Nível Nacional, Coimbra, 1994, pp. 230‑231, onde após, referir estar
vedado ao Presidente da República recusar a promulgação da lei que concretize o
resultado do referendo, acrescenta: “No que se refere ao Tribunal Constitucional
(...) parece líquido que este não deverá pronunciar‑se preventivamente acerca da
concretização normativa do resultado do referendo, mesmo se instado pelo
Presidente da República a fazê-lo”), e mesmo por Vitalino Canas (Referendo
Nacional – Introdução e Regime, Lisboa, 1998, pp. 23 e 35 e nota 37), que,
apesar de admitir que o Presidente da República peça “a fiscalização preventiva
da constitucionalidade de quaisquer normas constantes de um acto executor da
decisão dos cidadãos expressa em referendo, tenham elas ligação directa com essa
execução ou não e seja o referendo vinculativo ou não”, reconhece que, “quando o
Tribunal Constitucional tenha efectuado aquilo que se designou por fiscalização
pré‑preventiva das normas, a sua jurisdição se reduza à averiguação sobre se a
norma produzida na sequência do referendo coincide com a norma pré‑avaliada”.
No caso concreto, se, face a resposta
afirmativa vinculativa ao referendo, a Assembleia da República aprovar uma lei
em que condicione a “despenalização” do aborto às três condições expressas na
pergunta (opção da mulher, período de 10 semanas e estabelecimento de saúde
legalmente autorizado) – hipótese em que não vejo como se poderá sustentar que a
lei desrespeite o sentido da resposta –, a questão da inconstitucionalidade
dessa solução legislativa, por se entender que seria indispensável a imposição
de uma consulta de aconselhamento e/ou de um período de reflexão, não poderá
ser colocada ao Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva,
contrariamente ao que pressupõem o Acórdão n.º 288/98 e o precedente acórdão,
sendo mesmo questionável a constitucionalidade da imposição, pelo legislador,
de outras condições de “despenalização” para além das que constam da pergunta,
tal como seria inconstitucional, por exemplo, a fixação do período de gravidez
em 8 semanas, em vez das 10 semanas que da mesma constam.
A solução para evitar o aparecimento
irremediável de soluções legislativas inconstitucionais consiste no particular
rigor que o Tribunal Constitucional deve colocar na apreciação da
constitucionalidade das soluções legislativas emergentes das respostas (positiva
ou negativa). Não basta, contrariamente à decisão que no presente acórdão obteve
maioria, que nenhuma das respostas implique necessariamente uma solução jurídica
incompatível com a Constituição. O que importa assegurar é que nenhuma das
possíveis soluções jurídicas que caibam no sentido da resposta (relativamente às
quais o Tribunal Constitucional, pelas razões expostas, não terá oportunidade de
se voltar a pronunciar em sede de fiscalização preventiva) viole a Constituição.
No presente caso, a meu ver, não apenas uma das
soluções possíveis, mas até a solução que directamente resultará da resposta
afirmativa, se se converter a formulação literal desta em artigo de lei, é
inconstitucional, atenta a completa falta de intervenção do Estado na tutela da
vida intra‑uterina, bem constitucionalmente protegido, que exigiria, no mínimo,
a imposição da obrigatoriedade de uma consulta de aconselhamento e de um período
de reflexão antes da consumação do aborto. Ora, em vez dessa intervenção para
salvaguarda da vida, de tal solução resultará, nem sequer uma posição de
neutralidade ou de indiferença do Estado (que já seria criticável), mas
inclusivamente uma posição de promoção do aborto, através da facilitação da sua
prática, por mera opção da mulher grávida, sem invocação de motivos, nos
serviços públicos de saúde, tendencialmente gratuitos.
Mário José de Araújo Torres
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Coincidem, no presente aresto, duas matérias de difícil resolução.
A primeira tem a ver com a os requisitos formais e substantivos da convocação de
referendo, e a segunda diz respeito à natureza da questão especificamente
tratada: a descriminalização do crime de aborto quando voluntariamente praticado
'nas primeiras 10 semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado'.
2. Votei em sentido contrário à solução encontrada pelo Tribunal em
resposta a estas duas questões, pois entendo, essencialmente, que a pergunta
formulada não espelha com clareza, precisão e objectividade – como a
Constituição impõe – a matéria que é colocada à consideração dos cidadãos, e
também porque entendo que uma resposta positiva à pergunta determina violação do
n.º 1 do artigo 24º da Constituição.
3. As cautelas com que a lei rodeia a convocação de referendo
explicam-se pelo peso que, nas democracias ocidentais, é conferido à opinião
pública expressa em sufrágio universal, fora dos momentos eleitorais
determinados pelos ciclos políticos previstos na Constituição. É, assim,
essencial – ao fim e ao cabo para garantir a genuinidade da resposta dos
cidadãos –, que a pergunta seja absolutamente clara e objectiva, não só na sua
locução gramatical, mas também no seu conteúdo, expondo a questão por forma a
permitir a sua completa apreensão. Não é, a meu ver, o caso em presença, pois a
pergunta não esclarece, nem deixa espaço para que se perceba, que, actualmente,
a lei já não penaliza sempre a interrupção voluntária da gravidez (artigo 142º
do Código Penal). Em suma, a pergunta pode falsamente fazer concluir que o
tratamento jurídico do aborto se desenvolve na dicotomia
crime/descriminalização, sem ocorrência de situações justificativas de não
punibilidade já previstas no actual sistema legal. Ao colocar deficientemente os
dados da questão, a pergunta não é, a meu ver, precisa nem objectiva.
4. Quanto à segunda questão, entendo muito simplesmente que se a
Constituição, no aludido preceito, protege, sem excepção, a vida humana, é
necessário que se conclua que esse dever de protecção legal se estende a todas
as formas de vida humana e, portanto, à vida intra-uterina. O que não significa
que se imponha um grau de intensidade necessariamente igual na protecção de
todas as formas de vida. Significa, isso sim, que se me afigura
constitucionalmente desconforme que se retirem completamente todos os obstáculos
legais à morte da vida intra-uterina, nesse período de 10 semanas.
5. Para além disto, acompanho, embora com dúvidas, a solução
perfilhada nas alíneas b), c), d), g) e h) da decisão.
Carlos Pamplona de Oliveira