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Processo n.º 292/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., S.A. reclamou para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional – LTC), do despacho do Juiz do 7.º Juízo
Cível do Tribunal Cível de Lisboa, de 1 de Abril de 2004, de não admissão de
recurso de constitucionalidade por ela interposto da sentença de 8 de Setembro
de 2004, que julgou improcedentes os embargos de executado deduzidos na acção
executiva que lhe foi movida por B., L.da.
O despacho então recorrido não admitiu o recurso porquanto – determinando o
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC que “cabe recurso para o Tribunal
Constitucional das decisões em que se aplique norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo” – “desde o início do processo que não
foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade” e, “ainda que no
requerimento em que a embargante requereu a reforma da sentença tenha alegado a
violação de uma norma constitucional, o certo é que, atenta a fase processual em
que tal questão foi suscitada, a mesma não foi objecto de qualquer discussão”.
A recorrente viu deferida, pelo Acórdão n.º 669/2005, a reclamação deste
despacho do Juiz do 7.º Juízo Cível do Tribunal Cível de Lisboa, considerando
este Tribunal que, “no presente caso, a não suscitação adequada da questão de
inconstitucionalidade no pedido de reforma da sentença não teve por efeito a
perda do direito que, perante a natureza inesperada da interpretação normativa
nela aplicada, assistia à recorrente de recorrer para o Tribunal Constitucional
com dispensa desse requisito específico do recurso previsto na alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC”.
Ainda de acordo com o decidido no referido aresto, “o critério normativo
aplicado na sentença de que se pretendeu interpor recurso foi o de que, na
execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um
requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na
alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou
extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se tem por
demonstrado”.
2.Neste Tribunal, a recorrente produziu alegações em que concluiu pela forma
seguinte:
«1. O artigo 20.º da Constituição consagra, nos seus n.ºs 4 e 5, o princípio da
tutela jurisdicional efectiva, inserido na epígrafe do preceito após a Revisão
Constitucional de 1997.
2. O direito contido no n.º 4 do art.º 20.º a que nas causas em que intervenham
a decisão seja tomada mediante processo equitativo compreende designadamente o
princípio do contraditório, conforme se encontra reconhecido pelo Tribunal
Constitucional.
3. O legislador ordinário consagrou no art.º 815.º, n.º 1, do Código de Processo
Civil (presentemente art.º 816.º) o ditame de que numa execução que não seja
baseado em sentença o executado pode usar todos os fundamentos que lhe seria
licitar utilizar em processo declarativo.
4. A sentença de 8 de Setembro de 2004 do Tribunal Judicial de Lisboa não
reconheceu ao opositor da execução o direito a usar todos os meios de defesa que
podia utilizar em processo declarativo, mas apenas os de invocar factos
impeditivos, modificativos ou extintivos dos alegados pelo exequente.
5. A mesma sentença foi proferida num processo de execução subsequente a
injunção não contestada, e em decorrência da aposição da fórmula executória pelo
Secretário do Tribunal.
6. É manifestamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência que esta
aposição da fórmula executória não constitui uma sentença judicial.
7. A sentença de 8 de Setembro de 2004 constituiu uma decisão surpresa, quer
devido à falta de jurisprudência anterior sobre a matéria, quer devido ao facto
de os embargos terem sido recebidos sem reservas, quer finalmente devido ao
facto de na discussão de causa ter sido aceite com toda a amplitude a discussão
da matéria de facto em termos de impugnação.
8. A sentença de 8 de Setembro de 2004 omitiu na sua fundamentação de direito
qualquer referência ao citado art.º 815.°, n.º 1 (hoje 816.º), do Código de
Processo Civil.
9. O opositor da execução tem toda a legitimidade, face ao regime consagrado
neste preceito do Código de Processo Civil, para concentrar a sua defesa na
oposição à execução fundada em título diferente de sentença, sem prejuízo do
direito à oposição na providência de injunção.
10. A sentença recorrida, ao violar, na interpretação restritiva que adoptou, o
regime consagrado pelo legislador ordinário (art.º 14.º do regime anexo ao
Decreto-Lei n.º 269/98, e art.º 816.º do Código do Processo Civil) para a
oposição na execução de títulos distintos de sentença, veio do mesmo passo
violar o artigo 20.º da Constituição que consagra a tutela jurisdicional
efectiva, designadamente o princípio do contraditório em toda a sua extensão.
11. Deve assim a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que
reconheça ao opositor da execução o exercício de todos os fundamentos passíveis
de ser usados em processo declarativo, daí se extraindo as necessárias
conclusões face à prova produzida.»
Notificada para, querendo, contra-alegar, a recorrida nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.A questão que vem suscitada nos autos – tal como se encontra delimitada no
referido Acórdão n.º 669/2005 (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt) – é a de saber se a norma do artigo 14.º do
Regime anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, interpretada no
sentido de que na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula
executória a um requerimento de injunção o executado apenas pode fundar a sua
oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se
tem por demonstrado, viola ou não o artigo 20.º da Constituição, que garante
aos cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e
interesses legalmente protegidos.
É a seguinte a redacção do mencionado artigo 14.º, n.º 1:
“Artigo 14.º
Aposição da fórmula executória
1 – Se, depois de notificado, o requerido não deduzir oposição, o secretário
aporá no requerimento de injunção a seguinte fórmula: «Este documento tem força
executiva.»
[…]”
4.Recorde-se o que este Tribunal afirmou, ainda que para concluir pela
verificação dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso, no Acórdão
n.º 669/2005 sobre a questão que ora se nos coloca:
“[…]
O CPC, na redacção vigente à data da instauração da presente execução (2001),
diferenciava os fundamentos invocáveis pelo executado para se opor à execução
por embargos consoante o título executivo fosse uma sentença (hipótese em que
os fundamentos invocáveis eram os elencados nas alíneas a) a g) do artigo
813.º), uma decisão arbitral (em que aos fundamentos anteriores se aditavam os
que podiam basear a anulação judicial da decisão arbitral – artigo 814.º, n.º 1)
ou outro título (em que aos fundamentos invocáveis na execução fundada em
sentença acresciam quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no
processo de declaração – artigo 815.º, n.º 1), acrescentando o n.º 2 deste
artigo 815.º que a homologação, por sentença judicial, da conciliação,
confissão ou transacção das partes, em que a execução se fundasse, não impedia
que na oposição se alegasse qualquer das causas que determinam a nulidade ou a
anulabilidade desses actos. Este esquema foi mantido na redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, com melhorias de sistematização (a regra
de que a oposição à execução de sentença homologatória de conciliação, confissão
ou transacção se podia também fundar em qualquer causa de nulidade desses
actos, que constava do n.º 2 do artigo 815.º, relativo à oposição à execução
baseada noutro título, transitou [com eliminação da referência a conciliação]
para a alínea h) do actual artigo 814.º, que é o preceito dedicado à enumeração
dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, já que, de facto, “a
situação aí prevista – atenta a existência de sentença homologatória – se situa
no âmbito da execução baseada em decisão judicial” – Carlos Francisco de
Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol.
II, Coimbra, 2004, p. 39).
A injunção, como providência destinada a conferir força executiva ao
requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias
decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da alçada do
tribunal de 1.ª instância, foi instituída pelo Decreto‑Lei n.º 404/93, de 10 de
Dezembro, prevendo‑se que, na falta de oposição do requerido, o secretário
judicial do tribunal aporia fórmula executória no requerimento de execução. Este
diploma não continha qualquer disposição específica quanto às execuções fundadas
nesse título, mas no respectivo preâmbulo esclareceu‑se que:
“A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto
jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender‑se em futura acção
executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de
declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º do Código de Processo
Civil.”
Esse regime foi substituído pelo instituído pelo Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de
Setembro, que alargou a aplicabilidade da providência aos contratos de valor não
superior à alçada do tribunal de 1.ª instância (artigo 7.º do Regime anexo),
tendo posteriormente o Decreto‑Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, estendido
essa aplicabilidade às obrigações comerciais abrangidas por esse diploma. No
que concerne à execução fundada em requerimento de injunção, o artigo 21.º, n.º
1, do Regime aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 269/98 limitou‑se a determinar que a
mesma seguiria, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário
para pagamento de quantia certa, ou os termos previstos no Decreto‑Lei n.º
274/97, de 8 de Outubro, se se verificasse o requisito da alínea b) do artigo
1.º deste diploma; isto é, em termos práticos, o processo sumário de execução –
em regra, utilizável apenas quando a execução se fundava em sentença judicial
condenatória (artigo 465.º, n.º 2, do CPC) – passou a ser utilizável na execução
fundada em requerimento de injunção a que fora aposta a fórmula executória, com
a consequente atribuição exclusiva ao exequente do direito de nomear bens à
penhora (artigo 924.º do CPC), e se o exequente nomeasse apenas bens móveis ou
direitos que não tivessem sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento
comercial, não haveria lugar a reclamação de créditos na execução em causa
(artigos 1.º, alínea b), e 2.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 274/97). Mas, tirando
estas duas especialidades, nenhuma alteração se introduziu nomeadamente quanto à
extensão dos fundamentos invocáveis pelo executado na dedução de embargos à
execução.
A generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo secretário
judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra um título
executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à execução
nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis na
oposição à execução fundada em sentença, “quaisquer outros que seria lícito
deduzir como defesa no processo de declaração”. José Lebre de Freitas (A Acção
Executiva – Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 64 e 182) refere
que os títulos em causa, “formados num processo mas não resultantes de uma
decisão judicial, têm sido classificados como judiciais impróprios” e que o
referido alargamento dos fundamentos da oposição à execução baseada em títulos
diferentes das sentenças e das decisões arbitrais se compreende porque “o
executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se defender
amplamente da pretensão do requerente”. Também Fernando Amâncio Ferreira (Curso
de Processo de Execução, 6.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 39‑46 e 152‑153)
salienta a ausência, no sistema português do processo de injunção, da emanação
por parte de um juiz de uma ordem de pagamento de determinada quantia ou de
satisfação de outra prestação em curto prazo (como sucede nos direitos italiano,
francês e espanhol), sendo a fórmula executória aposta por um oficial de
justiça, reconhecendo que “não sendo o título executivo uma sentença, o
executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em
que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa”,
pelo que “consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que
poderia alegar na contestação àquela acção”. J. P. Remédio Marques (Curso de
Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, págs. 79‑80 e
153, nota 379) considera que a actividade conducente à aposição da fórmula
executória – o “execute‑se” – pelo secretário judicial não se insere na função
administrativa do Estado, visto que não visa a prossecução de interesses gerais
da colectividade, “mas também não é um acto jurisdicional – equiparável”,
parecendo‑lhe tratar‑se “de um acto meramente instrumental, análogo àqueles que
se praticam no exercício de uma função, que tanto pode ocorrer em processos
jurisdicionais como em procedimentos administrativos”; de qualquer forma,
sempre que “não existe um processo declarativo prévio, o executado, nos
embargos, pode impugnar ou excepcionar – mas nunca reconvir – a obrigação
materializada pelo título extrajudicial”. Miguel Teixeira de Sousa (A Reforma da
Acção Executiva, Lisboa, 2004, pág. 69) faz derivar da alteração da redacção do
artigo 53.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, operada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março, o estabelecimento de uma tripartição dos títulos executivos: decisões
judiciais (que são as sentenças condenatórias referidas no artigo 46.º, n.º 1,
alínea a), do CPC), títulos extrajudiciais (que são os documentos mencionados
nas alíneas b) e c) do mesmo preceito) e outros títulos de formação judicial,
entendido como os que provêm de um “processo” (e não de uma “acção”, como os
títulos judiciais), categoria esta última que seria justamente utilizada para
designar os títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um
requerimento de injunção ao qual o requerido não deduziu oposição. Também
Carlos Lopes do Rego (obra citada, vol. I, pág. 90) considera que por “título de
formação judicial” deve ser considerado o “título judicial impróprio, formado
no âmbito de um procedimento cometido aos tribunais judiciais, mas sem qualquer
intervenção jurisdicional, como ocorre, de forma paradigmática, no processo de
injunção”. Porém, esta autonomização dos “títulos de formação judicial”
relativamente aos títulos extrajudiciais apenas releva para efeitos de
determinação do tribunal onde deve correr a acção executiva no caso de cumulação
inicial de execuções, quer se trate de títulos homogéneos (n.ºs 2 e 4 do artigo
53.º do CPC), quer de títulos heterogéneos (n.º 3 do mesmo artigo), não
extraindo os autores citados qualquer outra consequência dessa autonomização,
designadamente no sentido de sequer questionarem a aplicação plena do regime do
actual artigo 816.º (anterior artigo 815.º, n.º 5) às execuções fundadas em
títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de
injunção. Pode, pois, concluir‑se que doutrinalmente é pacífico o entendimento
assim sintetizado por Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e
Execução, 2.ª edição, Coimbra, 2002, p. 172), em passagem já reproduzida no
pedido de reforma da sentença apresentada pela ora reclamante:
«A aposição da fórmula executória não se traduz em acto jurisdicional de
composição do litígio, consubstanciando‑se a sua especificidade de título
executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo
devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à
sua notificação pessoal.
Assim, a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou
preclusivo para o requerido que pode, na acção executiva, controverter a
exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado
em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito.
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua
defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na acção declarativa, nos
termos do artigo 815.° do Código de Processo Civil.»
5.O Tribunal Constitucional teve também já ocasião de dar conta de alguns traços
do regime anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, no Acórdão n.º
625/2003 (igualmente disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), afirmando o seguinte:
«[…]
3. Por intermédio do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, veio a
concretizar-se a possibilidade, consagrada no artº 7.º do Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro, de, sem prejuízo da aplicação do regime do processo
sumaríssimo, ser criada, por diploma próprio, uma espécie processual, dotada de
tramitação própria e referente a autos que corressem termos nos tribunais de
pequena instância cível.
Aquele diploma, todavia, não se circunscreveu àqueles tribunais de competência
específica, vindo a concretizar o propósito estatuído no aludido art.º 7.º
generalizando-o ao conjunto dos tribunais judiciais e para o domínio do
cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedessem
o valor da alçada dos tribunais de 1ª instância ou das obrigações emergentes de
transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de
Fevereiro.
Foi assim que veio a ser instituído o Regime dos procedimentos destinados a
exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor
não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, publicado em anexo ao
Decreto-Lei n.º 269/98, revogando‑se a providência de injunção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro.
De harmonia com este novo Regime, a injunção é uma providência que tem por fim
conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de
obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do
tribunal de 1ª instância ou das obrigações emergentes de transacções comerciais
abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003 (cfr. art.º 7.º desse Regime, na
redacção dada pelo diploma referido em último lugar), requerimento esse
apresentado, consoante a vontade do credor, quer na secretaria do tribunal do
cumprimento da obrigação, quer na do tribunal do domicílio do devedor, e que,
inter alia, deve indicar a taxa de justiça paga por intermédio de estampilha
apropriada, de modelo aprovado por portaria do Ministro da Justiça (o que veio a
suceder, no que ora interessa, por intermédio da Portaria n.º 233/2003, de 17 de
Março), ou nos termos do n.º 4 dessa mesma Portaria, no valor de um quarto de
unidade de conta, quando o procedimento tenha valor inferior a metade da alçada
do tribunal de 1.ª instância, meia unidade de conta se o valor for igual ou
superior a metade daquela alçada, uma unidade de conta, se o valor for igual ou
superior à alçada, ou duas unidades de conta, se o valor for igual ou superior à
alçada do tribunal de relação [cfr. artigos 10º, n.º 2, alínea f), e 19.º, n.º
1, do dito Regime, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 32/2003].»
Já anteriormente, no Acórdão n.º 399/95 (Diário da República, II série, de 16 de
Novembro de 1995), o Tribunal procedera à caracterização da figura da injunção,
nos termos em que a instituiu o Decreto-Lei 404/93, de 10 de Dezembro – fazendo
então uma referência à questão dos fundamentos invocáveis na oposição à
execução fundada em título que resulte da aposição da fórmula executória a um
requerimento de injunção –, e averiguara se as faculdades conferidas aos
secretários judiciais traduzem a atribuição aos mesmos de poderes
jurisdicionais. Fê-lo nos seguintes termos:
«[…]
4.1. Visa a injunção facultar, ao credor de uma obrigação pecuniária decorrente
de contrato cujo valor não exceda metade do da alçada do tribunal da 1ª
instância, um título executivo (v. preâmbulo e artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º
404/93), ou seja, a condição de acesso ao processo de execução que este
representa. Não se trata, portanto, e importa reter este aspecto, da criação de
qualquer forma processual diversa das já existentes na nossa lei adjectiva,
tanto mais que, se ao requerimento for aposta a “fórmula executória” o que se
segue é uma execução sob a forma de processo sumário baseada num título diverso
da sentença judicial (cfr. artigo 465.º, n.º 2, do Código de Processo Civil); e,
se for deduzida oposição à pretensão ou, como aqui sucede, frustrada a
notificação do requerimento (hipóteses previstas no artigo 6.º do Decreto‑Lei
n.º 404/93), o que se segue é uma acção declarativa com processo sumaríssimo
[note-se que a referência do artigo 6.º, n.º 2, à marcação de julgamento – “se
o estado do processo o permitir” – aplica‑se apenas às hipóteses em que foi
deduzida oposição; nos casos em que a notificação postal não ocorre (se frustrou
como diz a lei), tem lugar, como não podia deixar de ser, a citação nos termos
do artigo 794.º, do Código de Processo Civil].
Trata-se, assim, como refere o preâmbulo do diploma, do estabelecimento de uma
“fase desjurisdicionalizada” visando facultar relativamente a dívidas de
montante reduzido a possibilidade – mediante a formação de um título executivo
decorrente do reconhecimento implícito do devedor – de acesso à acção executiva
sem passagem pelo processo declarativo, garantida que se mostra, conforme o
legislador expressamente fez questão de indicar, a defesa do devedor através dos
mecanismos normais de oposição à execução, decorrentes do artigo 815.º do Código
de Processo Civil.
Cabe aqui notar constituírem precisamente este tipo de dívidas (inferiores a 250
000$00) a fatia esmagadora das acções declarativas propostas na justiça cível
portuguesa, no que um estudo recente qualifica sugestivamente de “colonização do
sistema judiciário pelas pequenas dívidas” (referimo-nos ao trabalho coordenado
por Boaventura Sousa Santos, “Os Tribunais na Sociedade Portuguesa”, v. “A
Justiça em Tribunal”, Expresso//Revista de 4.3.95, pág. 32/43, cfr. quanto ao
peso das acções declarativas de dívida até 250 000$00, os quadros constantes de
págs. 40/41).
Assumindo o processo de formação deste tipo específico de título executivo
índole essencialmente tabeliónica (trata-se de verificar a regularidade formal
de papéis e levá-los, por via postal, ao conhecimento de alguém), é natural que
o legislador, em homenagem aos objectivos de simplificação da actividade
jurisdicional que motivaram a injunção, não tenha sobrecarregado a actividade do
juiz com mais esse encargo. Daí, a sua entrega ao secretário judicial que,
exercendo poderes não substancialmente diversos dos já resultantes do artigo
213.º do Código de Processo Civil, constata a não oposição à pretensão (o
elemento que leva à formação do título executivo), certificando em conformidade
o requerimento de injunção. De forma mais simples ainda, nas hipóteses, como a
dos autos, em que o título se não forma, a intervenção do funcionário reduz-se,
na prática, à distribuição de uma acção sumaríssima e à conclusão desta ao
juiz.
4.1.1. Convém a este respeito esclarecer, na sequência da observação constante
das alegações do Ministério Público (2.5 a fls. 37), que a injunção instituída
pelo Decreto-Lei nº 404/93 apresenta diferenças radicais relativamente aos
institutos que no direito francês e italiano recebem o mesmo nome (a
“injonction de payer”, regulada nos artigos 1405.º e 1425.º, do Code de
Procédure Civil, e o “Procedimento d'Ingiunzione” referido nos artigos 633.º a
656.º, do Codice di Procedura Civile). Com efeito, assumem estes, por comparação
ao direito adjectivo português, natureza de verdadeiras acções declarativas
sumaríssimas, culminando com a prolação de uma decisão judicial (artigos
1419.º a 1422.º do CPC francês e 640.º e 641.º do CPC italiano) à qual se pode
conferir, posteriormente, carácter executivo (artigos 1422.º do CPC francês e
647.º do CPC italiano).
A lei portuguesa, para além da coincidência no nome e em alguns aspectos de
pormenor da tramitação, afastou-se decididamente destes modelos. Não se tratou
entre nós de estabelecer um processo especial contendo uma tramitação mais
simplificada e célere para acções declarativas; tratou-se antes de eliminar em
determinadas situações a própria acção declarativa, conferindo um acesso directo
à acção executiva.
O regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 404/93 tem, assim, mais pontos de
contacto com figuras, de introdução mais ou menos recente em diversos direitos
adjectivos civis, em que os poderes de intervenção dos secretários judiciais em
determinados procedimentos relativos a causas mais simples são
substancialmente ampliados em aspectos que não traduzam o exercício de
competências jurisdicionais. Disto constitui exemplo a chamada “déclaration au
greffe”, introduzido em 1989 no processo civil francês (artigos 847-1 e 2, do
CPC francês; v. Armindo Ribeiro Mendes, Novo Processo Executivo, Sub Judice, n.º
5, Jan/Abr de 1993, pág. 29).
Assim caracterizada em traços gerais a figura da injunção, tal qual o
Decreto-Lei n.º 404/93 a desenhou, importa, pressupondo os elementos recolhidos
nessa caracterização, encarar as questões de inconstitucionalidade invocadas no
despacho recorrido.
4.2. Haveria, na óptica da decisão de recusa, desde logo, a edição pelo Governo
de um diploma regulando matéria reservada ao Parlamento, porque relativa à
organização e competência dos tribunais (art.º 168º, n.º 1, alínea q), da
Constituição), consubstanciando, portanto, uma situação de
inconstitucionalidade orgânica.
A expressão “organização dos tribunais” tem que ver genericamente com aquilo que
a Constituição trata sob a designação de “categorias de tribunais” (artigo
211.º; v. também, Secção I do Capítulo II, artigos 11.º e 12.º da Lei Orgânica
dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, redacção da Lei n.º
24/92, de 20 de Agosto), matéria em nada tocada por qualquer das disposições do
Decreto-Lei n.º 404/93.
Por sua vez, ao falar em “competência”, na alínea q) do artigo 168.º, n.º 1, tem
o texto constitucional em vista o sentido que a expressão tem na doutrina
processualista: a “... medida de jurisdição atribuída a cada tribunal” (Castro
Mendes, Direito Processual Civil, I vol, Lisboa 1979, pág. 405), “... as normas
definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre
os diferentes tribunais” (Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual
de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra 1985, pág. 195), ideia esta que sai
confirmada da leitura das referências à 'competência' de tribunais, contidas em
diversas disposições constitucionais [v. artigos 213.º (quanto aos tribunais
judiciais), 214.º, n.º 3 (quanto aos tribunais administrativos e fiscais),
215.º (quanto aos tribunais militares), 216.º, n.º 1, (quanto ao Tribunal de
Contas) e 225.º (quanto ao Tribunal Constitucional)].
Ora, o Decreto-Lei n.º 404/93, designadamente nos artigos 4.º e 6.º, n.º 2, não
contém disposição alguma que mexa com os critérios de distribuição do poder de
julgar entre os diversos tribunais, e que como tal toque aquilo que este
Tribunal vem definindo como “nível nuclear da matéria constante da competência
dos tribunais referida na alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição”
(Acórdão n.º 246/92, - Diário da República, II série, de 22 de Outubro de 1992;
v. também Acórdãos n.ºs 241 e 242/92, Diário da República, II série, de 18 de
Novembro de 1992).
A actividade do secretário visa, como já se frisou, a formação de um título
executivo e as consequências dela, forme-se ou não esse título, sempre obtêm
concretização processual através das espécies processuais normais (execuções
sumárias ou acções declarativas sumaríssimas) que, aliás, a não existir o
mecanismo da injunção, sempre corresponderiam como acções declarativas ao
Tribunal que tramita a injunção.
A tudo isto sempre haverá que juntar ser entendimento deste Tribunal que,
“qualquer que seja o nível ou o grau da competência dos tribunais reservada à
Assembleia da República, seguramente que nele não entram as modificações da
competência judiciária a que deva atribuir-se simples carácter processual”,
pois, “a regulamentação do «processo» a observar perante os tribunais – salvo no
tocante ao processo criminal e (....) ao processo perante o Tribunal
Constitucional – já não é matéria da reserva legislativa parlamentar” (Acórdão
n.º 407/87, Diário da República, II série, de 21 de Dezembro de 1987; v. também
Acórdão n.º 85/88, Diário da República, II série, de 22 de Agosto de 1988).
Não se verifica, assim, a apontada inconstitucionalidade orgânica.
4.3. Resta averiguar se as faculdades conferidas pelo Decreto-Lei n.º 404/93 aos
secretários judiciais traduzem a atribuição aos mesmos de poderes
jurisdicionais, conforme refere o despacho recorrido.
O exercício da função jurisdicional reserva-o a Constituição, no artigo 205.º,
aos tribunais e, dentro destes, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira,
aos juízes (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993,
pág. 792). Isto, porém, não significa que todo o tipo de actividade desenvolvida
por um tribunal, designadamente com incidência processual, assuma carácter
jurisdicional e tenha, em última análise, de competir a um juiz. A
especificidade do exercício da função jurisdicional encontra-a este Tribunal na
presença do elemento “composição de conflitos de interesses (...) de harmonia
com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a
realização do direito e da justiça” (Acórdão n.º 182/90, Diário da República, II
série, de 11 de Setembro de 1990).
Tendo presente a caracterização que atrás se fez da finalidade do processamento
da injunção, ressalta que a actividade do secretário judicial, concretamente
nos aspectos aqui em causa (os decorrentes dos artigos 4.º e 6.º, nº 2, no
trecho aplicável), não implica resolução, com recurso a critérios jurídicos, de
quaisquer conflitos de interesses, não divergindo substancialmente daquela que
às secretarias judiciais é atribuída por diversas disposições do processo.
Como a este propósito refere Armindo Ribeiro Mendes, existe no processo
executivo português um espaço de viabilidade constitucional de uma mais intensa
intervenção material dos funcionários do tribunal (O Processo Executivo e a
Economia, Sub Judice, n.º 2, Jan/Abril, 1992, pág. 55) e foi isso, feito um
balanço global do Decreto-Lei n.º 404/93, o que o legislador pretendeu, embora
reportando essa intervenção à criação de um pressuposto da acção executiva.»
A respeito do princípio da proibição de “indefesa” ínsito no direito de acesso
ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, discorreu
este Tribunal, no Acórdão n.º 508/2002 (igualmente disponível no sítio da
Internet www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
«[…]
O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da
proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza processual
ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20.º da
Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos,
decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício do seu
direito de defesa.
Como se escreveu no Acórdão n.º 271/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º
vol., págs. 359 e segs.):
“E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica
consagrado no artigo 20.º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao
direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e
interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio
material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode
deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo,
compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a
prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios
da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser
aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um
processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional,
se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença
proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual “a proibição da
‘indefesa’ que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que
lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o
ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo
quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de
processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de
alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses” (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª
ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991,
pp. 82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como
sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se
deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e
independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das
regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas
razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do
adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os
acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da
República, II série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto
de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
[…]
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um
julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou
discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o
processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição
anglo-americana) de garantir que cada uma dessas partes deva ser chamada a dizer
de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as
outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos
processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria
execução ou à penhora. Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação
“dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses
dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões […] para o
esclarecimento da verdade. É tal a sua vantagem – seu rendimento – que as leis a
consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo […]. Espera-se
que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que as partes
(ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela
paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz,
mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria
capaz de descobrir por si […]” (Noções Elementares de Processo Civil, com a
colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra,
1979, pág. 379)».
Pode remeter-se, por último, para o quese escreveu no Acórdão n.º 6/2001
(igualmente disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt), para
concluir pela conformidade constitucional da cominação contida no n.º 3 do
artigo 856.º do Código de Processo Civil, segundo a qual, em penhora de
créditos, notificado o devedor de que o crédito fica à ordem do tribunal da
execução e o devedor nada declarar, se entende que reconhece a existência da
obrigação nos termos estabelecidos na nomeação do crédito à penhora:
“[…]
A cominação prevista na norma em apreciação para a falta de declaração do
devedor sobre o crédito penhorado está estabelecida para as situações em que
quer no momento da notificação de que o crédito fica à ordem do tribunal, quer
posteriormente – no prazo legal previsto para a prática de actos processuais – o
devedor nada diz sobre a existência, garantias, data de vencimento e outras
circunstâncias que possam interessar à execução, isto é, a cominação só se
efectiva depois de o devedor ter oportunidade processual de se defender,
contraditando ou dizendo o que lhe aprouver em sua defesa.
In casu, a recorrente terá sido notificada por mais de uma vez, nada tendo dito
em sua defesa sobre o teor das respectivas notificações. Pretende agora
eximir-se à cominação, invocando a sua alegada inconstitucionalidade por
violação dos artigos 2.º e 20.º da CRP.
O artigo 2º da Constituição tem a epígrafe Estado de direito democrático, nele
se estatuindo que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático,
baseado na vontade popular, na dignidade da pessoa humana, para alcançar uma
sociedade justa e solidária.
Ora, não se vê em que medida a cominação estabelecida na norma em apreço viole o
Estado de direito democrático que a recorrente invoca. Num Estado de direito
democrático os cidadãos devem obediência à lei, ainda que esta lhes imponha o
cumprimento de obrigações e não já e apenas lhes atribua direitos. Não resulta
violado o Estado de direito democrático quando, atribuindo a lei
obrigações/deveres aos cidadãos, em caso de incumprimento dos mesmos, se
estabeleçam consequências prejudiciais para os seus destinatários, por força do
referido incumprimento.
A cominação prevista na norma em apreço para o incumprimento do devedor só é
accionada depois de se lhe dar oportunidade de defesa, sem que ele a tenha
querido apresentar. O reconhecimento da obrigação nos termos indicados na
nomeação do crédito à penhora só sucede porque o devedor, notificado de que o
crédito fica à ordem do tribunal, não prestou sobre ele quaisquer declarações no
acto da notificação nem posteriormente no prazo geral para a prática de actos
processuais.
A existência de cominações no processo civil não faz com que a decisão
proferida seja desconforme com o Estado de direito democrático, em que se
pressupõe que os cidadãos cumpram a lei, recebendo e respondendo às
notificações, cumprindo os deveres que lhes são impostos, responsabilizando-se
pelo respectivo incumprimento.
Refira-se ainda que, no processo civil, situações mais gravosas do que a da
recorrente se verificam, por exemplo, nas acções julgadas com base em provas com
força probatória legal (presunções legais, documentos, confissão, designadamente
por falta de impugnação especificada pelo réu dos factos articulados pelo autor
na petição), sendo entendimento pacífico na jurisprudência deste Tribunal o de
que não são inconstitucionais as normas então em causa (cfr., entre outros,
Acórdãos n.º 223/95, in DR, II Série, de 27.06.1995 e nº. 499/98 – inédito).
O princípio da proporcionalidade (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da CRP) exige que as
medidas restritivas legalmente previstas sejam o meio adequado para prossecução
dos fins visados pela lei, o mesmo é dizer para a salvaguarda de outros direitos
ou bens constitucionalmente protegidos, sendo necessárias para alcançar os fins
(que não podiam ser alcançados com meio menos gravoso) e que os meios
restritivos e os fins obtidos se situem numa “justa medida”.
A cominação estabelecida para o devedor que, notificado para tal - podendo
fazê-lo no acto ou posteriormente, no prazo legal assinalado -, nada declarou
sobre o crédito penhorado pelo tribunal, não se configura como um meio legal
restritivo desproporcionado, desrazoável ou excessivo em relação aos fins
obtidos, maxime a satisfação do interesse legítimo do credor em obter o
pagamento da sua dívida pela nomeação à penhora dos créditos do executado.
Além disso, a referida cominação não é produto de uma decisão legislativa
arbitrária ou caprichosa.
Não resultam assim, violados os princípios constitucionais da proporcionalidade
e da razoabilidade.
De igual modo se não mostra violado o artigo 20.º da CRP enquanto este garante
aos cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos.
[…]
Nada disto acontece, por força da aplicação da norma em apreço, já que ela
pressupõe que previamente foi dada oportunidade processual ao devedor de
defender o seu direito e exactamente por ele nada ter dito, se considera
reconhecida a obrigação – a referida norma não coloca, pois, o notificado numa
situação de “indefesa” e, no caso, só a conduta da recorrente fez precludir o
direito de alegar e provar a invocada inexistência do crédito.
Aliás, a recorrente nem sequer nega que aquela oportunidade processual lhe foi
dada, já que admite o recebimento das notificações relativas à penhora dos
créditos, não cuidando de se pronunciar no prazo legal.”
6.No presente caso, porém, a distribuição do ónus da prova que resulta do efeito
cominatório previsto na norma impugnada dá-se fora do âmbito do exercício da
função jurisdicional, não tendo havido, antes da emissão do título executivo,
apreciação da pretensão do autor por parte de um juiz. Não existindo decisão
condenatória, o executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se
defender amplamente da pretensão do exequente.
Conferida força executiva ao requerimento de injunção em resultado de um
procedimento que representa a atribuição de uma especial fé a uma pretensão de
pagamento de uma quantia em dinheiro, sem pôr em causa a possibilidade de
questionar quer a obrigação exequenda, quer o responsável pelo seu cumprimento,
o executado não se pode defender amplamente da pretensão do exequente em fase
anterior ao requerimento de execução. Na oposição de mérito à execução, a qual
visa um acertamento negativo da obrigação exequenda, incumbe ao exequente o ónus
de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito substancial, sendo à
acção executiva que se devem reportar as normas dos artigos 342.º a 345.º da
Código Civil, relativas ao problema do ónus da prova. Assim, quando, como no
caso dos autos, o executado ponha em causa ser ele a pessoa responsável pelo
cumprimento da obrigação exequenda, é o exequente que, em sede de oposição à
execução, terá o encargo de o provar, de acordo com o artigo 342.º, n.º 1, do
Código Civil. Trata-se de “matéria de defesa do devedor; e só por existir um
título executivo é que ao devedor cabe a iniciativa de instaurar a acção”
(Bruns-Peters, Zwangsvollstreckungsrecht, München, 1987, p. 90, citado por José
Lebre de Freitas, A Acção Executiva – Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra,
2004, p. 184, nota 33).
Houve, é certo, por parte do devedor, uma opção no sentido de não deduzir a
pertinente oposição no procedimento de injunção, reservando para a acção
executiva subsequente à constituição do título executivo a formulação da defesa
que anteriormente podia ter formulado, sendo tal falta de oposição subsequente à
sua notificação o próprio fundamento da aposição da fórmula executória no
requerimento de injunção.
Como afirma o tribunal a quo, “a característica deste título judicial impróprio,
que o afasta dos restantes títulos criados por força de disposição legal,
resulta, aliás, do facto de a força executiva ser conferida apenas depois de se
conceder ao devedor a possibilidade de, judicialmente, discutir a causa debendi,
alegada. Ou seja, no processo de injunção, o requerido tem a possibilidade de,
deduzindo oposição, impedir que seja aposta força executiva à acção”.
Pode talvez dizer-se que o título executivo não é uma sentença porque o devedor
optou por, no procedimento de injunção, não se opor à pretensão do requerente.
Mas, seja como for, a falta de oposição e a consequente aposição de fórmula
executória ao requerimento de injunção não têm o condão de transformar a
natureza (não sentencial) do título, tornando desnecessária, em sede de oposição
à execução, a prova do direito invocado, deixando ao executado apenas a alegação
e prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do
exequente.
Tendo presente, por um lado, que a demonstração do direito do exequente não tem
o mesmo grau de certeza relativamente a todos os títulos executivos,
reconhecendo-se que o título executivo que resulte da aposição da fórmula
executória a um requerimento de injunção demonstra a aparência do direito
substancial do exequente, mas não uma sua existência considerada certa, e, por
outro lado, que a actividade do secretário judicial não representa qualquer
forma de composição de litígio ou de definição dos direitos de determinado
credor de obrigação pecuniária, há que evitar a “indefesa” do executado,
entendendo-se por “indefesa” a privação ou limitação do direito de defesa do
executado que se opõe à execução perante os órgãos judiciais, junto dos quais se
discutem questões que lhe dizem respeito.
Nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, se uma limitação interfere
com um direito, restringindo-o, necessário se torna encontrar na própria
Constituição fundamentação para a limitação do direito em causa como que esta se
limite “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos” – não podendo, por outro lado, nos termos do n.º
3 do mesmo artigo, “diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais”.
No caso, a possibilidade de se introduzir limites ao princípio da proibição de
“indefesa”, ínsito na garantia de acesso ao direito e aos tribunais, consagrada
no artigo 20.º da Constituição, existe apenas na medida necessária à salvaguarda
do interesse geral de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, «de
forma célere e simplificada», de um título executivo” (9.º § do preâmbulo do
Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro), assim se alcançando o justo
equilíbrio entre esse interesse e o interesse do executado de, em sede de
oposição à execução, se defender através dos mecanismos previstos na parte final
do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil (correspondente hoje ao
artigo 816.º, na redacção introduzida pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março).
Ora a norma em causa, na interpretação perfilhada dos autos, segundo a qual a
não oposição e a consequente aposição de fórmula executória ao requerimento de
injunção determinam a não aplicação do regime da oposição à execução previsto
nos artigos 813.º e segs. do Código de Processo Civil, designadamente o
afastamento da oportunidade de, nos termos do actual artigo 816.º do mesmo
Código, e (pela primeira vez) perante um juiz, o executado alegar “todos os
fundamentos de oposição que seria lícito deduzir como defesa no processo de
declaração”, afecta desproporcionadamente a garantia de acesso ao direito e aos
tribunais, consagrada no artigo 20.º da Constituição, na sua acepção de
proibição de “indefesa”.
Ponderadas as considerações referidas, apenas se justificando normas restritivas
quando se revelem proporcionais, evidenciam uma justificação racional ou
procurem garantir o adequado equilíbrio face a outros direitos e interesses
constitucionalmente protegidos, entende-se que a norma impugnada se encontra
ferida de inconstitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da
indefesa ínsito no direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no
artigo 20.º da Constituição, a norma do artigo 14.º do Regime anexo ao
Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, na interpretação segundo a qual, na
execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula executória a um
requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua oposição na
alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos, modificativos ou
extintivos do direito invocado pelo exequente, o qual se tem por demonstrado;
b) Em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a sua reforma de
acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos