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Processo n.º 969/08
 
 2.ª Secção
 Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
 
                (Conselheiro Cura Mariano)
 
  
 
             Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
 
  
 A – Relatório
 
  
 
             1 – A. instaurou no Tribunal Judicial de Penafiel acção declarativa 
 
 (processo n.º 1187/04.9 TBPNF) contra B., C. e Fundo de Garantia Automóvel, 
 pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe uma indemnização de € 
 
 276.035,00, acrescida de juros de mora, por danos patrimoniais e não 
 patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação imputável à Ré B. e 
 ao condutor não identificado de outro veículo.
 
             Nos danos alegados estavam incluídos a perda da vida do seu filho 
 intra-uterino e o sofrimento deste no período que antecedeu a sua morte.      
 
             Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença 
 que julgou a acção improcedente, tendo absolvido os Réus do pedido formulado.
 
             Inconformada, a Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da 
 Relação do Porto, que, por acórdão proferido em 18 de Junho de 2007, julgou o 
 recurso parcialmente procedente, tendo condenado os Réus B. e o Fundo de 
 Garantia Automóvel a pagar à Autora a quantia de € 161.972,56, acrescida de 
 juros de mora, e absolvido o Réu C. do pedido.
 
             O recurso não logrou provimento, além do mais, quanto à parte da 
 decisão recorrida relativa ao pedido de indemnização pelos danos imputados à 
 perda da vida do filho intra-uterino da Autora e do sofrimento deste no período 
 que antecedeu a sua morte.
 
  
 
             2 – Quer a Autora quer o Fundo de Garantia Automóvel recorreram 
 desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), questionando a correcção 
 jurídica da resposta dada a várias questões com influência no julgado.
 
  
 
             3 – Na parte que concerne à Autora e nas alegações de recurso 
 apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, esta alegou, entre o mais 
 que “o art.º 24.º da Constituição protege o direito à vida e integridade física 
 e psíquica do ser humano” (1); a ofensa do direito à vida intra-uterina 
 constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade” (2); para reparar a 
 perda do direito à vida do filho nascituro da autora é ajustada a quantia de 
 
 €50.000,00” (3); deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para 
 reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte” (4) 
 e “a não se entender assim ou seja, que o art.º 66.º do Código Civil o não 
 permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva 
 do disposto no art.º 24.º da Lei Fundamental” (5).
 
  
 
              4 – Por acórdão proferido em 9 de Outubro de 2008, o STJ julgou 
 improcedente o recurso da Autora e parcialmente procedente o recurso do Fundo de 
 Garantia Automóvel, revogando a decisão recorrida apenas no segmento em que 
 condenou esta parte no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de € 
 
 130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vencem a partir 
 da sentença da 1.ª instância.
 
  
 
             5 – Dizendo-se, mais uma vez inconformada, a Autora interpôs recurso 
 do acórdão do STJ para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do 
 seguinte teor:
 
  
 
             “[…] vem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, 
 n.º 1, alínea b) e 75.º-A, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, 
 interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão recorrido no 
 que tange à questão da inconstitucionalidade material suscitada nas alegações de 
 recurso para este Tribunal, por violação do artigo 24.º da Constituição da 
 República Portuguesa que protege a inviolabilidade da vida humana, inclusive a 
 intra-uterina cuja violação ilícita é ressarcível civilmente”.
 
  
 
             6 – Convidada pelo primitivo relator a “explicitar de forma clara, 
 precisa e concisa a interpretação normativa contida na decisão recorrida cuja 
 inconstitucionalidade pretende ver apreciada, com a cominação prevista no artigo 
 
 75.º-A, n.º 7, da LTC”, a Autora veio a apresentar um longo requerimento em que, 
 além do mais, diz que «o objecto do recurso de inconstitucionalidade é o, salvo 
 melhor opinião, errado entendimento sufragado pelo douto acórdão recorrido 
 proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, na interpretação segundo a 
 qual “o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental ao considerar a vida humana 
 inviolável está a impor a protecção genérica da gestão humana, sem considerar o 
 nascituro como centro autónomo de direitos”»
 
  
 
             7 – Tendo sido determinada a produção de alegações sobre o recurso 
 de constitucionalidade, a recorrente concluiu-as do seguinte jeito:
 
  
 
 “A) A nossa ordem juridico-constitucional, maxime, no artigo 24.º, n.º 1, 
 protege a vida humana desde a concepção e até à morte natural. 
 B) A vida humana que a nossa lei fundamente protege não é a abstracta mas sim a 
 concreta de cada ser humano, como sujeito de direitos, in casu, do filho 
 nascituro já concebido e completamente formado da autora e ora recorrente. 
 C) A vida humana existe desde a concepção ou pelo menos desde a nidificação ou 
 seja da implantação do embrião no útero da mãe. 
 D) A partir da concepção passa a existir um “ser humano”, sujeito de direitos, 
 reconhecido pela ordem jurídica, com interesses próprios e diferentes dos da mãe 
 e até com quem pode entrar em conflito e que são exercitáveis judicialmente, até 
 pelo pai biológico. 
 E) Se a lei fundamental tutela o bem jurídico colectivo e objectivo da 
 identidade e inalterabilidade do património do genoma humano, mais terá de 
 tutelar a própria vida humana por esta ser um prius em relação aquele. 
 F) Que a vida intra-uterina é humana, maxime, a existente no embrião e feto não 
 restam dúvidas, pois se nada impedir a sua evolução natural formar-se-á um ser 
 humano, como aconteceu, in casu. 
 G) A nossa lei fundamental ao proteger os mais fracos e débeis, quis, 
 seguramente, incluir o nascituro já concebido, ou seja, a vida humana desde o 
 seu início e até à morte natural. 
 H) A vida humana só deve ceder em caso de conflito com outra vida humana e 
 segundo o princípio do interesse preponderante. 
 I) Aquando da morte do filho da ora recorrente o feto estava já completamente 
 formado, (de termo) tendo perfeita autonomia física e psíquica em relação à mãe 
 biológica, estando em condições de poder sobreviver à luz do dia, não fosse a 
 agressão letal sofrida, pelo que não pode deixar de qualificar-se, pelo menos 
 neste caso, juridicamente como um ser humano sujeito de direitos e com direito à 
 vida. 
 J) Na verdade se a agressão tivesse sido de menor gravidade e o feto tivesse 
 sobrevivido a esta, este teria vindo ao mundo por cesariana ou espontaneamente, 
 dado estar completamente formado e com total autonomia da mãe biológica, 
 podendo, pois demandar judicialmente o agressor pelos danos materiais e morais 
 sofridos, pelo que não faz qualquer sentido, que tendo a agressão sido letal, 
 não possa exercitar o seu direito pela perda do seu bem mais precioso, a vida 
 humana, o que seria juridicamente inaceitável, o que tudo bem demonstra que o 
 feto é um ser humano cuja vida é tutelada jurídico constitucionalmente. 
 K) Uma vez que o filho da autora à data da morte se encontrava completamente 
 formado, com forma humana e sem deformidade e ou aleijão, como se vê dos autos, 
 maxime, com um peso de 3.495 quilogramas, com 9 meses de gestação e com a altura 
 de 0,515 metros, tendo falecido “ in útero”, em consequência das lesões 
 traumáticas meningeas, associadas à asfixia, provocadas pelo poli traumatismo 
 sofrido pela mãe, em consequência do acidente dos autos, não pode deixar de 
 qualificar-se o mesmo como “ser humano”, sujeito de direitos, incluindo o 
 direito à vida. 
 L) O artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental não distingue entre vida 
 intra-uterina e extra-uterina, pois o que quis dizer foi que onde existir vida 
 humana, maxime, pertença da espécie humana, dada a sua dignidade, a mesma é 
 juridicamente tutelada como sujeito de direitos, só podendo ceder em caso de 
 conflito com outra vida humana, sendo assim um valor absoluto, princípio e fim 
 da sociedade humana. 
 M) Justifica-se, assim, uma interpretação abrangente do dito normativo 
 constitucional, de modo a incluir toda a vida humana desde a concepção e até à 
 morte., porque toda ela merecedora de igual protecção, em especial quando é mais 
 débil, maxime, no princípio e fim. 
 N) Não faz assim sentido de um ponto de vista jurídico constitucional não 
 proteger a vida humana ou proteger menos na sua fase embrionária ou fetal, pois 
 pelo contrario resulta do texto fundamental que este quis proteger, em 
 particular, os mais débeis e indefesos, onde se incluem os nascituros já 
 concebidos. 
 O) A nossa Constituição deve ser interpretada do ponto de vista espiritualista 
 ou seja no sentido de que a mesma assimilou os valores culturais dominantes na 
 nossa sociedade ocidental na qual a vida humana é sagrada e inviolável desde o 
 seu início e até à morte natural. 
 P) O filho da ora recorrente como ser humano, com dignidade própria, é um 
 sujeito de direitos, reconhecido pela ordem jurídica, tendo assim direito à 
 vida, por cuja perda tem direito a ser ressarcido civilmente. 
 Q) Mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer o filho da 
 autora como ser humano e com direito à vida, reconhecido pela ordem jurídica, 
 pelo que a perda desta é ressarcível civilmente conforme foi peticionado. 
 R) O valor a ressarcir pela perda do direito à vida deve ser igual para qualquer 
 ser humano não devendo ser graduado, pois trata-se de um valor absoluto e sem 
 preço. 
 S) Violou o douto acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto no artigo 
 
 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 
 Termos em que deve julgar-se, materialmente inconstitucional, por ofensa directa 
 do artigo 24.º, nº 1 da nossa lei fundamental, a interpretação dada no douto 
 acórdão recorrido segundo a qual o filho da ora recorrente não é, em casu, 
 sujeito de direitos reconhecido pela ordem jurídica, tendo uma existência 
 autónoma per se e em consequência um direito à vida, por cuja violação ilícita 
 tem direito a ser ressarcido civilmente, ordenando-se, em conformidade, a 
 reforma do douto acórdão recorrido, de acordo com o juízo de 
 inconstitucionalidade que vier a ser proferido.”
 
  
 
             9 – O Fundo de Garantia Automóvel apresentou contra-alegações, 
 sustentando a improcedência do recurso.
 
  
 
             10 – Discutida em Secção “a eventualidade de não ser conhecido o 
 recurso, por falta de identificação da norma ou interpretação normativa 
 questionada”, foi ordenada, pelo Acórdão n.º 245/2009, a notificação das partes 
 para se pronunciarem sobre esta questão, querendo, no prazo de 10 dias”.
 
  
 
             11 – Apenas a Autora respondeu a tal convite, terminando a concluir 
 que “mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer ao filho da 
 autora/recorrente a sua dignidade de pessoa humana e consequentemente direito à 
 vida, com o que violou por erro de subsunção o artigo 1.º e 24.º, n.º 1, da Lei 
 Fundamental” e que “o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental deve ser 
 interpretado também na sua vertente subjectiva, maxime, como garante do direito 
 
 à vida do ser com dignidade humana concreta, in casu, o filho nascituro da ora 
 recorrente”, pelo que “deve conhecer-se do recurso”.
 
             
 
             12 – Discutida a questão prévia e porque o primitivo relator ficou 
 vencido, operou-se a mudança de relator.
 
             Cumpre assim proferir acórdão de acordo com os fundamentos da 
 maioria que fez vencimento.
 
  
 B – Fundamentação
 
  
 
             13 – O objecto do recurso de fiscalização concreta de 
 constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da 
 Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, disposição esta que 
 se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas pode traduzir-se numa 
 questão de (in)constitucionalidade de(s) norma(s) que a decisão recorrida haja 
 aplicado como ratio decidendi.
 
             Trata-se de um pressuposto específico do recurso de 
 constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e 
 incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra 
 recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da 
 constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da 
 natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M. 
 Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e 
 actualizada, pp. 79 e segs. e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado 
 no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado 
 no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de 
 pensamento, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 
 
 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o 
 Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 
 
 2000).
 
             Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de 
 fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas 
 que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no 
 recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim própria, mesmo quando 
 esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no 
 que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da 
 interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o 
 critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias 
 específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).
 
             Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos 
 para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de 
 normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da 
 Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub 
 specie constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais 
 tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de “aplicação” a violação 
 
 (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este 
 Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in 
 concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não 
 incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a 
 conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo 
 ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do 
 n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade 
 normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal 
 Constitucional [cf. Acórdão n.º 199/88, publicado no Diário da República II 
 Série, de 28 de Março de 1989; Acórdão n.º 618/98, disponível em 
 
 www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por 
 exemplo, os Acórdãos nºs 178/95 - publicado no Diário da República II Série, de 
 
 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/96, inéditos e o Acórdão n.º 269/94, 
 publicado no Diário da República II Série, de 18 de Junho de 1994)].
 
  
 
             14 – Ora, no caso em apreço, constata-se que a recorrente não 
 definiu no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, 
 mesmo havendo sido convidada a fazê-lo, a coberto do disposto no n.º 6 do artigo 
 
 75.-A da LTC, a norma/dimensão normativa de direito infraconstitucional reputada 
 de inconstitucional e de cuja aplicação resultou o decidido. 
 
             Cabia à recorrente esse ónus processual de definição do objecto do 
 recurso, sob pena do seu não conhecimento.
 
              Ao invés de definir a norma de direito infraconstitucional 
 considerada ratio decidendi do julgado, cuja inconstitucionalidade pretendia ver 
 apreciada, a recorrente limitou-se a apodar o acórdão recorrido de 
 inconstitucionalidade, por violar directamente o artigo 24.º da Constituição. O 
 seu discurso argumentativo é todo ele construído em torno da densificação do 
 conteúdo normativo a conferir a tal disposição constitucional, incluindo até, 
 nas conclusões das suas alegações, onde diz ter o acórdão recorrido violado “por 
 erro de subsunção, o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da 
 República Portuguesa”.
 
             E fá-lo com o sentido de subsumir directamente a ele a situação 
 factual em apreço, ou seja com o sentido da sua aplicação directa aos factos 
 concretos e não como meio de determinar o conteúdo do parâmetro constitucional 
 com o qual havia de ser contrastada a norma de direito infraconstitucional para 
 aferir da sua validade jurídica.
 
             Como se disse, o erro de subsunção ocorrido na elaboração do 
 raciocínio judicativo dos factos concretos ao direito pré-determinado, ainda que 
 erroneamente, não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.
 
             Anote-se, de resto, que, mesmo no recurso para o STJ, a recorrente 
 acaba por rematar as conclusões do recurso com a afirmação de que “o acórdão 
 recorrido violou o disposto nos artigos 66.º e 483.º do Código Civil e 24.º da 
 Constituição”, centrando, já aí, a questão no plano da violação directa das 
 disposições citadas.
 
             Por outro lado, embora dizendo, nas mesmas conclusões do recurso, 
 que “a não se entender assim, ou seja, que o art.º 66.º do Código Civil o não 
 permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva 
 do disposto no art.º 24.º da Lei Fundamental”, o que é certo é que no seu 
 discurso imediatamente anterior a recorrente se apresenta a defender apenas a 
 existência da violação de um direito subjectivo à vida, com base no artigo 24.º 
 da Constituição, e da obrigação de indemnizar resultante da sua violação em 
 concreto, bem como o cômputo dessa indemnização no montante peticionado, não se 
 vendo aí colocada, de forma adequada, qualquer questão de invalidade normativa 
 imputada a qualquer acepção do artigo 66.º do Código Civil.
 
             De tudo resulta que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do 
 objecto do recurso de constitucionalidade.
 
  
 C – Decisão
 
  
 
             15 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional 
 decide não tomar conhecimento do recurso.
 
             Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
 
  
 Lisboa, 8 de Julho de 2009
 Benjamim Rodrigues
 Joaquim de Sousa Ribeiro
 Mário Torres (Vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo. 
 Conselheiro Cura Mariano)
 João Cura Mariano (Vencido, conforme declaração de voto que junto).
 Rui Manuel Moura Ramos
 
  
 
  
 
  
 
  
 DECLARAÇÃO  DE  VOTO
 
  
 
  
 
  
 Votei vencido por entender que podia e devia ter sido conhecido o mérito do 
 recurso interposto, tendo o Tribunal Constitucional perdido uma excelente 
 oportunidade para se pronunciar sobre um tema de especial importância como é o 
 do alcance da protecção do direito à vida.
 Na verdade, a recorrente nas alegações apresentadas perante o Tribunal recorrido 
 suscitou a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do 
 Código Civil, no sentido “de que o nascituro não é titular de um direito à vida, 
 cuja ofensa deva ser indemnizada”.
 No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional 
 efectuou-se a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que 
 fosse verificada por mera remissão para a questão que havia sido suscitada 
 perante o tribunal recorrido.
 Convidada a enunciar expressamente a interpretação cuja constitucionalidade 
 pretendia ver apreciada, a recorrente optou por uma formulação indirecta, 
 apontando qual a interpretação que o tribunal deveria ter seguido para respeitar 
 o parâmetro constitucional que entendia violado pela interpretação perfilhada 
 pelo acórdão recorrido – “a interpretação feita pelo tribunal recorrido é 
 materialmente inconstitucional, por violar frontal e directamente o disposto no 
 artigo 24 nº 1 da Lei Fundamental, já que este normativo deve ser interpretado 
 no sentido de proteger o direito à vida, mesmo a intra-uterina, maxime, a do 
 filho da autora, como titular de direitos, inclusive o direito à vida, violação 
 esta que é ressarcível civilmente”.
 Apesar deste não ser o método mais correcto e esclarecedor de apontar a 
 interpretação normativa cuja fiscalização se pretende, face aos termos em que 
 havia sido suscitada a questão perante o tribunal recorrido e para a qual a 
 recorrente remeteu no requerimento de interposição de recurso, é perfeitamente 
 possível verificar que foi vontade da recorrente arguir perante este Tribunal 
 a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do C.C., no sentido 
 de que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida, cuja ofensa 
 deva ser indemnizada.
 Essa vontade foi depois inequivocamente precisada pela recorrente nas alegações 
 de recurso apresentadas.
 Foi, pois, perceptível para todos os intervenientes processuais, incluindo o 
 próprio Tribunal, qual a questão de constitucionalidade colocada pela 
 recorrente, estando, pois, suficientemente definido o objecto do recurso, pelo 
 que, no meu entendimento, nada impedia o seu conhecimento.
 E, apreciando o mérito do recurso, pronunciar-me-ia pela sua procedência pelas 
 razões que passo a expor.
 O artigo 66.º, do Código Civil, sob a epígrafe “Começo da personalidade”, 
 dispõe:
 
 “1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.
 
 2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”.
 No direito civil a personalidade jurídica traduz a aptidão para se ser sujeito 
 autónomo de relações jurídicas, com a inerente titularidade dos poderes e 
 adstrição a vinculações que essa qualidade envolve.
 Se o reconhecimento desta qualidade por uma determinada ordem jurídica obedece 
 
 às opções valorativas e culturais que nela prevalecem, também não deixa de estar 
 condicionado pelo papel do Direito como instrumento de satisfação de interesses 
 humanos. Daí que nem sempre a personalidade jurídica tenha sido reconhecida a 
 todos os Homens (v.g. as sociedades esclavagistas), assim como actualmente não 
 
 é uma condição exclusiva do Homem (v.g. as pessoas colectivas).
 O acórdão recorrido sustentou que o artigo 66.º, do Código Civil, ao recusar 
 aos nascituros concebidos personalidade jurídica, não permite que estes possam 
 ser considerados titulares de qualquer direito antes do seu nascimento, 
 incluindo o próprio direito à vida.
 A fixação do momento da aquisição da personalidade jurídica no acto de 
 nascimento com a consequente exclusão dos nascituros da condição de pessoa 
 jurídica, já remonta ao direito romano (vide, sobre a condição dos nascituros 
 no direito romano, MAX KASER, em “Direito privado romano”, pág. 101, da ed. de 
 
 1999, da Fundação Calouste Gulbenkian, e SANTOS JUSTO, em “Direito privado 
 romano I. Parte Geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos)”, pág. 
 
 105-107, da ed. de 2000, da Coimbra Editora), sendo essa também a solução da 
 nossa tradição jurídica (vide, anteriormente ao Código de Seabra, BORGES 
 CARNEIRO, em “Direito civil de Portugal”, vol. I, pág. 65, da ed. de 1826, e 
 COELHO DA ROCHA, em “Instituições de direito civil português”, Tomo I, pág. 35, 
 
 § 56., da 6ª ed., da Imprensa da Universidade), a qual veio a obter consagração 
 no artigo 6.º, do C.C. de 1867 (vide, sobre este preceito, DIAS FERREIRA, em 
 
 “Código Civil Português anotado”, vol. I, pág. 11-13, da 2.ª ed., da Imprensa da 
 Universidade, CUNHA GONÇALVES, em “Tratado de direito civil, em comentário ao 
 Código Civil Português”, vol. I, pág. 176-182, da ed. de 1929, da Coimbra 
 Editora, e LUÍS CABRAL DE MONCADA, em “Lições de direito civil”, pág. 253-257, 
 da 4ª ed., da Almedina). E apesar de serem atribuídos alguns direitos aos 
 nascituros, num sinal que eles não deixam de ter protecção jurídica, 
 perfilhou-se o entendimento que a respectiva aquisição só se torna efectiva com 
 o seu nascimento. Como impressivamente disse Cabral de Moncada (ob. cit. pág. 
 
 253), “o homem só existe para o direito como pessoa, depois de ter nascido”.
 O artigo 66.º do C.C., resultante de anteprojecto apresentado por Manuel de 
 Andrade (vide Esboço de um anteprojecto de Código das Pessoas e da Família, no 
 B.M.J. n.º 102, pág. 153.), manteve-se nesta linha de pensamento, enunciando que 
 a personalidade se adquire no momento do nascimento (n.º 1) e frisando que os 
 direitos que a lei reconheça aos nascituros (v.g. nos artigos 952.º e 2033.º, do 
 C.C.) dependem sempre do seu nascimento (n.º 2). É esta também a solução dos 
 sistemas jurídicos que nos são próximos (v.g. artigo 1, do C.C. Italiano, artigo 
 
 311, n.º 4, do C.C. Francês, artigo 30, do C.C. Espanhol, § 1, do B.G.B., artigo 
 
 2.º, do C.C. Brasileiro).
 A interpretação do artigo 66.º, do C.C., perfilhada pelo acórdão recorrido, 
 negando a qualidade de sujeito de direitos ao nascituro concebido, corresponde à 
 leitura maioritária efectuada pela doutrina e a jurisprudência (ANTUNES VARELA, 
 em “A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil”, em Estudos 
 em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez”, vol. I, pág. 631-633, 
 ed. de 2000, da Almedina, CASTRO MENDES, em “Teoria geral do direito civil”, 
 vol. I, pág. 103-109, da ed. de 1978, da A.A.F.D.L., HEINRICH HÖRSTER, em “A 
 parte geral do Código Civil Português”, pág. 293-296, da ed. de 1992, da 
 Almedina, CARLOS MOTA PINTO, em “Teoria geral do direito civil”, pág. 199-202, 
 INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, em “Introdução ao estudo do direito”, vol. II, pág. 
 
 165-167, da 10ª ed., da Coimbra Editora, CARVALHO FERNANDES, em “Teoria geral do 
 direito civil”, vol. I, pág. 193-199, da 3ª ed., da Universidade Católica, 
 RODRIGUES BASTOS, em “Notas ao Código Civil”, vol. I, pág. 107-108, ed. de 1987, 
 do autor, RITA LOBO XAVIER, em “A protecção dos nascituros”, em Brotéria, vol. 
 
 147, pág. 176-184, e DIOGO LORENA BRITO, em “A vida pré-natal na jurisprudência 
 do Tribunal Constitucional”, pág. 121-122, da ed. de 2007, da Universidade 
 Católica), registando-se as opiniões dissonantes daqueles que, apesar do 
 disposto no artigo 66.º, n.º 1, do C.C., entendem que o sistema jurídico acaba 
 por reconhecer personalidade jurídica aos nascituros concebidos (OLIVEIRA 
 ASCENSÃO, em “Direito civil. Teoria geral”, vol. I, pág. 48-55, da 2ª ed. da 
 Coimbra Editora, MENEZES CORDEIRO, em “Tratado de direito civil português”, 
 vol. I, tomo III, pág. 293-306, da ed. de 2004, da Almedina, PEDRO PAIS DE 
 VASCONCELOS, em “Direito de personalidade”, pág. 104-118, da ed. de 2006, da 
 Almedina, ÓRFÃO GONÇALVES, em “Da personalidade jurídica do nascituro”, na 
 R.F.D.U.L., Ano 2000, pág. 525-539, LEITE DE CAMPOS, em “Lições de Direito da 
 família e das sucessões”, pág. 511-514, da 2ª ed., da Almedina, e STELA BARBAS, 
 em “Direito do Genoma Humano”, pág. 235-242, da ed. de 2007, da Almedina), ou 
 uma personalidade jurídica parcial ou fraccionária (RABINDRANATH CAPELO DE 
 SOUSA, em “Teoria geral do direito civil”, vol. I, pág. 265-281, da ed. de 2003, 
 da Coimbra Editora, e PEREIRA COELHO, em “Direito das sucessões. Lições ao curso 
 de 1973-1974”, pág. 192-193, da ed. pol. de 1992), ou ainda que retroagem a 
 personalidade jurídica do nascituro concebido ao momento da constituição do 
 direito em causa (DIAS MARQUES, em “Código Civil anotado”, pág. 23, da ed. de 
 
 1968, da Petrony).
 A opção pelo momento do nascimento, como marco certo, seguro, inequívoco e 
 objectivamente determinável a partir do qual se inicia a personalidade jurídica 
 da pessoa, foi justificada pela voz autorizada de Antunes Varela com três razões 
 fundamentais:
 
 “a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, 
 em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião;
 b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da 
 pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático 
 do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a 
 consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do 
 indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;
 c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, 
 compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da 
 autonomização fisiológica do filho perante o organismo da mãe, o marco cravado 
 na lei para o reconhecimento da personalidade do filho.” (na ob. cit. pág. 633).
 Rita Lobo Xavier (no est. cit.) acentuou a falta de autonomia biológica e social 
 do nascituro concebido como razão preponderante para o Direito Civil, enquanto 
 disciplina positiva da convivência humana elaborada numa perspectiva de 
 autonomia da pessoa no desenvolvimento da sua personalidade, não sentir 
 necessidade de lhe atribuir personalidade jurídica.
 Será que nesta construção, em que não se reconhece personalidade jurídica ao 
 nascituro concebido, a impossibilidade deste ser titular de um direito 
 subjectivo à vida afronta o disposto no artigo 24.º, da C.R.P. ?
 Conforme o Tribunal Constitucional já tem afirmado e aqui se reitera, apesar da 
 vida em gestação ser um bem jurídico constitucionalmente protegido, 
 compartilhando da tutela objectiva conferida em geral à vida humana, não é 
 possível retirar daquele preceito um direito fundamental à vida do nascituro 
 concebido, tendo este por sujeito (vide os Acórdãos nº 85/85, 288/98 e 617/06, 
 em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 5.º, pág. 245, vol. 40.º, pág. 7, 
 e vol. 66.º, pág. 7, respectivamente).
 Esta posição pressupõe que o ente humano, apesar de já concebido, enquanto não 
 nascer não se inclui no universo dos cidadãos que integram a comunidade 
 político-juridica a quem é reconhecida a titularidade dos direitos subjectivos 
 constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da C.R.P..
 Mas o facto de se considerar que a vida intra-uterina é uma das etapas da vida 
 humana abrangida pela exigência da sua inviolabilidade reclama da ordem jurídica 
 infra-constitucional a adopção de medidas que a protejam e tutelem.
 Está aqui em causa a dimensão mais importante da vida intra-uterina, que é a da 
 sua própria existência, importando desde logo verificar se o não reconhecimento 
 pelo Direito Civil de um direito subjectivo à vida do nascituro concebido 
 implica um défice de tutela que ponha em causa a garantia de um nível mínimo de 
 protecção daquele bem jurídico-constitucional.
 Independentemente do juízo que se efectue sobre a necessidade da intervenção 
 dos meios típicos de protecção dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito 
 Civil para protecção da vida intra-uterina, verifica-se que a intervenção desses 
 meios não está dependente de um reconhecimento de um direito à vida do nascituro 
 concebido.
 Como se tem constatado a melhor forma de proteger uma determinada entidade não 
 passa necessariamente por se lhe reconhecer subjectividade jurídica, mas sim 
 pela respectiva elevação à categoria de bem jurídico.
 Na verdade, na tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o Direito 
 Civil disponibiliza não só a utilização de medidas preventivas, intimações de 
 abstenção e o recurso a acções inibitórias, mas também faculta o instituto da 
 responsabilidade civil, através do qual impõe, a quem ofenda bens tutelados 
 pela ordem jurídica, a reconstituição da situação que existiria, caso não se 
 tivesse verificado o evento que obriga à reparação ou a indemnização em 
 dinheiro, quando aquela reconstituição não é possível.
 Neste caso, é precisamente a possibilidade de aplicação deste instituto que está 
 em causa.
 Se a função ressarcitória assume fundamental importância na responsabilidade 
 civil, não deixa também de estar presente neste instituto uma função 
 preventiva, em articulação com a finalidade reparadora (vide, sobre esta 
 articulação, com perspectivas nem sempre coincidentes, PESSOA JORGE, em “Ensaio 
 sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, pág. 47-52, da reimp. de 1995, 
 da Almedina, CARNEIRO DA FRADA, em “Direito civil. Responsabilidade civil. O 
 método do caso, pág. 64-65, da ed. de 2006, da Almedina, MENEZES CORDEIRO, em 
 
 “Direito das obrigações”, 2.º vol, pág. 277, da ed. de 1980, da A.A.F.D.L., 
 JÚLIO GOMES, em “Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função 
 reparatória para a responsabilidade penal”, na R.D.E., Ano XV (1989), pág. 
 
 105-144, PAULA MEIRA LOURENÇO, em “Os danos punitivos”, na R.F.D.U.L., vol. 
 XLIII (2002), n.º 2, pág. 1093-1107, e em “A função punitiva da responsabilidade 
 civil”, pág. 380-385, da ed. de 2006, da Coimbra Editora, e MAFALDA MIRANDA 
 BARBOSA, em “Reflexões em torno da responsabilidade civil”, no B.F.D.U.C., vol. 
 LXXXI (2005), pág. 511-600). 
 
 À constituição da obrigação de indemnização pela lesão de bens jurídicos também 
 presidem fins de protecção, procurando-se dissuadir comportamentos ofensivos 
 desses bens, através da cominação da obrigação de reparação dos prejuízos 
 causados. Perante a ameaça de uma obrigação de indemnização tender-se-á, ao 
 agir, a observarem-se determinados deveres de cuidado de forma a evitar a 
 causação de danos na esfera jurídica alheia e nesse sentido esse 
 desencorajamento funcionará como uma forma de prevenção de futuros 
 comportamentos danosos.
 Ora, não é absolutamente necessário o reconhecimento da titularidade pelo 
 nascituro concebido de um direito à vida, para que o direito civil atribua um 
 direito de indemnização pela morte do nascituro imputável a terceiro (vide, 
 neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em Teoria geral do direito civil”, 
 vol. I, pág. 271-272, nota 673, e Rita Lobo Xavier, na ob. cit., pág. 80, em que 
 atribuem esse direito de indemnização, respectivamente, às pessoas referidas no 
 artigo 496.º, n.º 2, do C.C., e apenas à mãe). A tutela de bens ou interesses 
 jurídicos pelo instituto da responsabilidade civil pode processar-se por formas 
 diferentes das do reconhecimento de direitos subjectivos, conforme resulta do 
 próprio artigo 483.º, do C.C., quando convoca a responsabilidade civil para 
 intervir nos casos de violação de qualquer disposição legal destinada a proteger 
 interesses alheios (vide, neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “O 
 direito geral de personalidade”, pág. 192, nota 346, da ed. de 1995, da Coimbra 
 Editora).
 Perante a lesão de bens jurídicos não titulados, nada impede que se atribua a 
 determinados sujeitos jurídicos o direito a receberem uma indemnização pelo dano 
 provocado por essa lesão. São casos em que, perante o sentimento duma atendível 
 necessidade de perseguir, através do instituto da responsabilidade civil, 
 finalidades preventivas e punitivas, que previnam e sancionem a lesão de um bem 
 jurídico, face à inexistência de um sujeito jurídico lesado, se atribui o 
 respectivo direito de indemnização a determinadas pessoas, tendo em conta, 
 designadamente, a especial relação que têm com o bem lesado.
 O Direito Civil tem a maleabilidade suficiente para permitir esta solução.
 Apesar de alguma atipicidade dogmática, não é, aliás, inédita a consagração de 
 atribuição de direitos de indemnização próprios a terceiros pela ofensa de bens 
 jurídicos dos quais não são titulares, independentemente desta solução poder ser 
 justificada como um caso de indemnização de danos reflexos (v.g. a indemnização 
 pelo dano de morte atribuída aos familiares próximos da vítima, não respeitaria 
 
 à perda da vida por esta, mas sim à perda do convívio com ela, que afectaria 
 esses familiares).
 Por exemplo, o artigo 71.º, n.º 2, ao remeter para o disposto no artigo 70.º, 
 n.º 2, ambos do C.C., é visto como conferindo um direito de indemnização por 
 ofensas aos direitos de personalidade de pessoas já falecidas, ao cônjuge 
 sobrevivo, ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do 
 falecido (vide, neste sentido, CASTRO MENDES, na ob. cit., pág. 111, 
 RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, na última ob. cit., pág. 195-196, MENEZES 
 CORDEIRO, na ob. cit., pág. 463-464, e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, na ob. cit., 
 pág. 121).
 Também na indemnização do dano de morte das pessoas nascidas, para superar o 
 obstáculo do lesado ter deixado de existir com o facto lesivo, parte 
 significativa da doutrina e da jurisprudência, interpreta o artigo 496.º, n.º 
 
 2, do C.C., como atribuindo um direito próprio de indemnização aos familiares da 
 vítima aí mencionados, pela perda da vida (vide, neste sentido, PIRES DE LIMA e 
 ANTUNES VARELA, em “Código Civil anotado”, vol. I, pág. 500, da 4ª ed., da 
 Coimbra Editora, ANTUNES VARELA, em “Das obrigações em geral”, vol. I, pág. 
 
 630-639, da 9ª ed., da Almedina, e na R.L.J., Ano 123, pág. 189 e seg., PEREIRA 
 COELHO, em “Direito das Sucessões. Lições ao curso de 1973-1974”, pág. 167-180, 
 da ed. pol. de 1992, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, em “Lições de direito das 
 sucessões”, vol. I, pág. 288-300, da 2ª ed., da Coimbra Editora, HEINRICH 
 HÖRSTER, na ob. cit., pág. 303-304, RIBEIRO DE FARIA, em “Direito das 
 obrigações”, vol. I, pág. 493-494, da ed. de 1990, da Almedina, DELFIM MAYA DE 
 LUCENA, em “Danos não patrimoniais”, pág. 57-72, da ed. de 1985, da Almedina, 
 PEDRO BRANQUINHO FERREIRA DIAS, em “O dano moral na doutrina e na 
 jurisprudência”, pág. 53-54, da ed. de 2001, da Almedina, e EDUARDO DOS SANTOS, 
 em “Direito das Sucessões”, pág. 54-60, da ed. da A.A.F.D.L., de 2002. 
 Interpretando este preceito no sentido de que este direito é adquirido por via 
 sucessória pelos herdeiros da vítima, vide, VAZ SERRA, na R.L.J., Ano 103, pág. 
 
 166 e seg., Ano 105, pág. 53 e seg., e Ano 107, pág. 137 e seg., INOCÊNCIO 
 GALVÃO TELLES, em “Direito das sucessões. Noções fundamentais”, pág. 73-77, da 
 
 4ª ed., da Coimbra Editora, LOPES CARDOSO, em “Partilhas judiciais”, vol. I, 
 pág. 442-444, da 4ª ed., da Almedina, LEITE DE CAMPOS, em “A indemnização do 
 dano de morte”, no B.F.D.U.C., vol. L, pág. 247 e seg., em “A vida, a morte e a 
 sua indemnização”, no B.M.J. n.º 365, pág. 5 e seg., MENEZES LEITÃO, em “Direito 
 das obrigações”, vol. I, pág. 299-302, da ed. de 2000, da Almedina, e CARVALHO 
 FERNANDES, em “Lições de direito das sucessões”, pág. 63-64, da ed. de 1999, da 
 Quid iuris).
 E tal como é possível atribuir um direito de indemnização pela morte de um 
 nascituro concebido, de igual modo o Direito Civil permite que seja reconhecida, 
 pelo menos à mãe, legitimidade para accionar os demais meios de tutela dos bens 
 jurídicos que este ramo do direito disponibiliza, sem que se consagre um direito 
 do nascituro à vida.
 Não se revelando, pois, que o reconhecimento deste direito subjectivo ao 
 nascituro concebido seja imprescindível para que possa ser assegurada a 
 protecção conferida pelos meios civilísticos de intervenção, designadamente a 
 responsabilidade civil, não se pode considerar que a interpretação civilista de 
 que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida viole o disposto 
 no artigo 24º, n.º 1, da C.R.P..
 Mas isso não significa que a recusa em atribuir um direito de indemnização pela 
 morte de um nascituro já não infrinja este parâmetro constitucional por resultar 
 num défice de protecção ao bem vida.
 A decisão recorrida partindo da constatação de que os nascituros concebidos não 
 eram titulares de um direito à vida, concluiu que a morte destes, em resultado 
 de conduta de terceiro, não era indemnizável.
 Esta posição seguiu na linha de anterior Acórdão do mesmo tribunal proferido em 
 
 25-5-1985 (publicado no B.M.J. n.º 347, pág. 398), e contrariou a posição 
 defendida por Rabindranath Capelo de Sousa (in “Teoria geral do direito civil”, 
 vol. I, pág. 271-272, nota 673), segundo o qual “as expressões “por morte da 
 vítima” e “danos não patrimoniais sofridos pela vítima” dos nº 2 e 3 do artº 
 
 496.º incluem, na sua letra e no seu espírito, a morte do ser humano concebido”, 
 pelo que “por meras interpretações declarativa ou extensiva dos n.º 2 e 3 do 
 artº 496, parece-nos indemnizável o dano não patrimonial da supressão da vida do 
 concebido”, tendo concluído que “seria, aliás, estranho que fossem ressarcíveis 
 os danos à integridade física do concebido, particularmente quando este venha a 
 nascer com vida, e já não o dano da sua morte, pois então seria premiado o 
 assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que 
 tão só lhe produzisse danos corporais”.
 Será que o não reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano da morte 
 de um nascituro concebido é causa de um défice de tutela da vida intra-uterina, 
 exigida pelo disposto no artigo 24º, n.º 1, da C.R.P. ?
 Um suficiente cumprimento de um imperativo de tutela exige a adequação dos 
 meios de protecção disponibilizados pela ordem jurídica ao tipo de bem jurídico 
 a proteger. Não é necessário que sejam mobilizados todos os meios que a ordem 
 jurídica possua susceptíveis de fornecer uma forma de tutela à vida 
 intra-uterina, mas é exigível que estejam disponíveis os meios adequados a 
 garantir uma tutela minimamente eficiente deste bem jurídico.
 E este imperativo de tutela não tem como destinatário apenas o legislador 
 ordinário, mas também o julgador na sua actividade de aplicação da lei.
 Como escreveu Claus-Wilhelm Canaris:
 
 “…A proibição de insuficiência não é aplicável apenas no (explícito) controlo 
 jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente, nos 
 correspondentes problemas no quadro da aplicação e do desenvolvimento judiciais 
 do direito. Pois, uma vez que a função de imperativo de tutela de direitos 
 fundamentais não tem, de forma alguma, alcance mais amplo no caso de uma 
 realização pela jurisprudência do que pelo legislador, o juiz apenas está 
 autorizado a cumprir esta tarefa porque, e na medida em que, a não o fazer, se 
 verificaria um inconstitucional défice de protecção, e, portanto, uma violação 
 do princípio da proibição da insuficiência…” (In “Direitos fundamentais e 
 direito privado”, pág. 124,  da ed. de 2003, da Almedina).
 Daí que o juízo de inconstitucionalidade por insuficiência de tutela de bem 
 reconhecido pela perspectiva objectiva dos direitos fundamentais possa recair 
 sobre um critério normativo que fundamente decisão judicial.
 O Direito Penal é, em regra, o ramo do direito infra-constitucional que, devido 
 ao forte impacto dos meios repressivos que utiliza, revela maior eficácia na 
 protecção dos bens jurídicos, devendo, contudo, apenas intervir como ultima 
 ratio.
 Apesar do Código Penal vigente dedicar um capítulo à criminalização dos actos 
 contra a vida intra-uterina (capítulo II, do Título I, do Livro II), punindo a 
 prática do crime de aborto (artigos 140.º e 141.º do C.P.) e assegurando, assim, 
 a melhor protecção jurídica àquele bem jurídico, exclui dessa punição os actos 
 meramente negligentes (artigo 13.º, do C.P.), pelo que, relativamente a este 
 tipo de acções, onde se insere precisamente a situação sub iudice, não é 
 possível contar com este tipo de tutela.
 Entendeu o legislador ordinário, por razões de política criminal, que nesta 
 forma especial do acto violador da vida intra-uterina, atenta a natureza e a 
 hierarquia do bem jurídico protegido, não se justificava a intervenção do 
 direito penal.
 Todavia, esta área penalmente desprotegida não deixa de reclamar uma tutela 
 jurídica. Se o valor social deste bem jurídico possa não exigir que o direito 
 penal o proteja de todo o tipo de ameaças, já a ordem jurídica, encarada 
 globalmente, não pode permanecer indiferente a qualquer acto que atente contra à 
 vida intra-uterina, nomeadamente aos que resultem de comportamentos negligentes.
 Atento o âmbito restrito dos domínios de intervenção do direito disciplinar e a 
 falta de eficácia das medidas civilísticas de pura prevenção face à 
 imprevisibilidade dos actos negligentes, não poderá o instituto da 
 responsabilidade civil deixar de ser recrutado para esta missão.
 E mesmo que seja possível apontar a falta de eficácia preventiva da 
 responsabilidade civil perante a forte intervenção da figura dos seguros no 
 domínio da responsabilidade por actos negligentes, a existência de uma obrigação 
 de indemnizar, mesmo que não afecte imediatamente o património do lesante, não 
 deixará de sinalizar a reprovabilidade do acto.
 Aliás, note-se que em dimensões menos exigentes deste bem jurídico, o instituto 
 da responsabilidade civil não tem deixado de intervir, tutelando, por exemplo, 
 a integridade física do feto, ao reconhecer um direito de indemnização por 
 ofensas corporais. Fora das teias da construção dogmática que fixa o início da 
 personalidade jurídica no acto de nascimento, uma vez que nestes casos o feto 
 ofendido consegue nascer, atribui-se-lhe o direito de reclamar uma indemnização 
 pelas ofensas sofridas antes do nascimento, tutelando-se, assim, a sua 
 existência intra-uterina (vide, neste sentido, ANTUNES VARELA, em “A condição 
 jurídica do embrião humano perante o direito civil”, em Estudos em homenagem ao 
 Professor Doutor Pedro Soares Martínez”, vol. I, pág. 633-634, da ed. de 2000, 
 da Almedina, CARLOS MOTA PINTO, na ob. cit., pág. 201-202, e CASTRO MENDES, na 
 ob. cit., pág. 108-109).
 A não admissão do pagamento duma indemnização compensatória da morte do feto, 
 nas áreas penalmente desprotegidas, como sucede relativamente aos actos 
 negligentes, resulta, assim, num défice de protecção que viola o princípio da 
 suficiência de tutela, pela ausência de oferta de meios jurídicos que defendam 
 suficientemente o direito à vida intra-uterina.
 Daí que se conclua que o critério normativo de que a morte de um nascituro 
 concebido não é um dano indemnizável deva ser considerada inconstitucional, por 
 violação do disposto no artigo 24.º, n.º 1, da C.R.P..
 Aliás, a reparação deste dano seria sempre obrigatoriamente indemnizável face ao 
 princípio estruturante do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 
 
 2.º, da C.R.P., do qual se colhe um direito geral à reparação dos danos, de que 
 são expressão particular os direitos de indemnização previstos nos artigos 22.º, 
 
 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da C.R.P. (vide GOMES CANOTILHO e VITAL 
 MOREIRA, ob. cit., pág. 206).
 Constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos 
 contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador 
 ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados 
 que alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos 
 bens e interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram 
 injustamente lesionados pela acção ou omissão de outrem, necessariamente 
 assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos 
 sofridos, não constituindo a ausência de um titular do bem ofendido obstáculo 
 intransponível à intervenção do instituto da responsabilidade civil pelas 
 razões acima explicadas.
 Por estas razões julgaria procedente o recurso interposto, declarando 
 inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 24.º, da 
 Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, do Código Civil, 
 quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituro concebido não é um 
 dano indemnizável.
 João Cura Mariano