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Processo nº 452/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e recorrido o Conselho Superior da Magistratura, foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
2. Em 5 de Julho de 2006, foi proferida decisão sumária, pela qual se entendeu
não tomar conhecimento do objecto do recurso (artigo 78º-A, nº 1, da LTC), com
os seguintes fundamentos:
“O conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade interposto ao
abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC depende da suscitação
da questão de inconstitucionalidade, durante o processo, de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer (artigo 72º, nº 2, da LTC).
Consideradas as peças processuais indicadas pelo recorrente, em cumprimento do
preceituado no nº 2 do artigo 75º-A da LTC, não pode dar-se como verificado este
requisito, desde logo porque a questão de constitucionalidade foi sempre
reportada a disposições legais alternativas ou cumulativas:
«Tal como se deduz da deliberação do Conselho Permanente do CSM, o entendimento
referido, relacione-se com o art. 3.° do mencionado Regulamento Interno ou com o
art. 69.° da Lei n.° 3/99 (porque a deliberação recorrida não o esclarece com
precisão), é violador do princípio constitucional da igualdade ínsito nos arts.
13.° e 59.°, n.°1, a), da Constituição da República Portuguesa»;
«A deliberação recorrida, ao indeferir a reclamação apresentada, pretendendo
que, designadamente para efeitos retributivos, não se aplica o regime de
acumulação de funções aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes, fez errada
interpretação do art. 3.° do mencionado Regulamento Interno (Deliberação
(extracto) n.° 399/99. Diário da República n.° 157/99, Série II de 1999-07-08
Conselho Superior da Magistratura) e/ou do art. 69.° da Lei n.° 3/99 (porque a
deliberação recorrida não o esclarece com precisão)»;
«Ou, se assim não se entender, efectuou uma interpretação e aplicação do(s)
artigo(s) 3.° do mencionado Regulamente Interno e 69.° da Lei n.° 3/99 violadora
do princípio constitucional da igualdade ínsito nos arts. 13.° e norma do art.
59.°, n.°1, a), da Constituição da República Portuguesa»;
«O entendimento do CSM, relacione-se com o art. 3.° do mencionado Regulamento
Interno ou com o art. 69.° da Lei n.° 3/99 é violador do princípio
constitucional da igualdade ínsito nos arts. 13.° e 59.°, n.°1, a), da
Constituição da República Portuguesa»;
«Tal como se deduz da deliberação do Conselho Permanente do CSM, o entendimento
referido, relacione-se com o art. 3.° do mencionado Regulamento Interno ou com o
art. 69.° da Lei n.° 3/99 (porque a deliberação recorrida não o esclarece com
precisão), é violador do princípio constitucional da igualdade ínsito nos arts.
13.° e 59.°, n.°1, a), da Constituição da República Portuguesa, pois nada
distingue a situação de acumulação de funções que suportei perante a de qualquer
juiz não colocado no quadro complementar de juízes que também acumula funções».
O recorrente não especificou, por conseguinte, a norma cuja constitucionalidade
questionava, o que obsta à verificação do requisito da suscitação prévia, de
forma adequada, da questão de constitucionalidade. Isto, porque “a norma sujeita
a fiscalização aparece sob a veste de um texto, de um preceito ou disposição
(artigo, base número, parágrafo, alínea) e é a partir dessa forma verbal que
há-de ser encontrada, através dos métodos hermenêuticos” (Jorge Miranda, Manual
de Direito Constitucional, Coimbra Editora, 2001, Tomo VI, p. 154).
Por outras palavras, a norma agora identificada no requerimento de interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional – a que resulta do artigo 69º, nºs 1 e
2, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, em conjugação
com o disposto no artigo 3º do Regulamento do quadro complementar de juízes –
não foi a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Por outro lado, resulta até daquelas peças processuais que o recorrente
configurou a questão suscitada como questão de inconstitucionalidade da decisão
e não de uma qualquer norma, quando sustenta e conclui que:
«29.Além disso, a deliberação em causa viola, de forma evidente, o disposto no
art. 59.°, n.°1, a), da mesma Constituição, que dispõe que “Todos os
trabalhadores, sem distinção [...], têm direito à retribuição do trabalho,
segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que
para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência
condigna”»;
«xvi) A deliberação recorrida viola, de forma evidente, o disposto no a. 59.°,
n.°1, a), da mesma Constituição, que dispõe que “Todos os trabalhadores, sem
distinção [...], têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade,
natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual
salário igual, de forma a garantir uma existência condigna”»;
«20. Além disso, a deliberação em causa viola, de forma evidente, o disposto no
art. 59.°, n.°1, a), da mesma Constituição, que dispõe que “Todos os
trabalhadores, sem distinção [...], têm direito à retribuição do trabalho,
segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que
para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência
condigna”».
Circunstância que obsta ao conhecimento do objecto do recurso, já que ao
Tribunal Constitucional cabe apreciar a inconstitucionalidade de normas e não de
decisões (artigos 280º e 281º da CRP e 70º da LTC)”.
3. Desta decisão reclamou o recorrente, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo
78º-A da LTC, nos seguintes termos:
«1.º Sinteticamente, ficou expresso na decisão sumária reclamada que o
recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade durante o processo,
de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
2.º E tal aconteceu, ainda segundo a referida decisão, porque não pode ter-se
por verificado o mencionado requisito (estabelecido no art. 75.°-A da LTC) já
que, por um lado, a questão da constitucionalidade foi sempre reportada a
disposições legais alternativas ou cumulativas (fls. 14 da decisão reclamada), e
por outro, a questão suscitada pelo recorrente é da inconstitucionalidade de uma
decisão concreta.
3.º Salvo o devido respeito, não é possível concordar nem com os pressupostos de
tal decisão sumária, nem com o critério de decisão utilizado, sendo de destacar
que o disposto no art. 75.°-A, n.° 2, da LTC foi cumprido, de tal forma que o
Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que proferiu a decisão recorrida, conheceu
efectivamente da questão da constitucionalidade em causa neste recurso. E, por
outro lado, a invocação da inconstitucionalidade de uma norma não impede que, no
tribunal recorrido, também se tenha invocado a inconstitucionalidade derivada de
uma decisão concreta.
4.º Para que se perceba a forma de interposição de recurso concretamente
adoptada e a discordância apresentada, há que considerar que o recorrente
interpôs recurso para o STJ de uma deliberação do Conselho Superior da
Magistratura (CSM).
5.º Nas alegações então apresentadas perante o STJ o recorrente disse
expressamente (e tal consta da decisão sumária reclamada) que a deliberação do
CSM, recorrida, não esclarece com precisão em que dispositivo legal se baseou
para decidir da forma por que o fez, e por isso se escreve no ponto 13. das
alegações e ponto 26. do requerimento de recurso “…o entendimento referido,
relacione-se com o art. 3.° do mencionado Regulamento interno ou com o art. 69.°
da Lei n.° 3/99 (porque a deliberação recorrida não o esclarece com precisão), é
violador do princípio constitucional da igualdade ínsito nos arts. 13.° e 59.°,
n.°1, a), da Constituição da República Portuguesa, pois nada distingue a
situação de acumulação de funções que suportei perante a de qualquer juiz não
colocado no quadro complementar de juízes que também acumula funções”.
6.º A leitura da deliberação do CSM só pôde permitir a alegação mencionada, pelo
que não podia o recorrente ter outro tipo de precisão quanto aos números e
artigos, já que das deliberações do CSM se recorre directamente para o STJ. Está
claramente em causa naqueles pontos uma questão de inconstitucionalidade com
referência a uma dimensão normativa.
7.º Já o Acórdão do STJ, após tecer considerações sobre o disposto no art. 69.°
da Lei n.° 3/99, sustenta, a fls. 12, que “… É esse o sistema retributivo dos
juízes do quadro complementar, com o que se conforma o disposto no artigo 3º do
Regulamento interno do recorrido, normativo inspirado pelo princípio salário
igual para trabalho igual...”.
8.º Face ao decidido pelo STJ foi possível, então, dizer que a norma cuja
inconstitucionalidade foi apreciada, e cuja reapreciação se pretende, deriva,
para o STJ, da conjugação do disposto no art. 69.° da Lei n.° 3/99 e no art. 3.°
da regulamento Interno do CSM referido nos autos; não tinha o recorrente outra
forma de se expressar no seu recurso, pretendendo ser rigoroso.
9.º Mas, aqui, há que chamar a atenção para o que, no nosso entendimento, é um
lapso da decisão sumária reclamada.
10.º Por um lado não se pretende discutir neste recurso a conformidade com a
Constituição do art. 69.° da Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro, ponderado em geral,
nem segundo o “bom direito”, nem segundo o “mau direito” (até porque, segundo o
recorrente, o art. 69.° não devia ter a interpretação que lhe foi atribuída pelo
STJ), pretendendo-se do Tribunal Constitucional (TC) a apreciação da
constitucionalidade da interpretação da norma que o STJ fez resultar do art.
69.° da Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro em conjugação com o art. 3.° do
Regulamento Interno relativo à gestão das Bolsa de Juízes, na interpretação
concretamente adoptada por aquele Tribunal (idêntica à do CSM), segundo a qual,
para efeitos remuneratórios, não se aplica o regime de acumulação de funções
constante do art. 69.° da Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro aos juízes colocados nas
Bolsas de Juízes, mesmo na situação em que tal exercício de funções tenha
implicado um efectivo exercício simultâneo de funções correspondentes a duas
titularidades em tribunais judiciais, com realização de todo o serviço judicial
pendente em ambos os tribunais.
11.º A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o TC aprecie não se
confunde com o dispositivo do art. 69.° da Lei n.° 3/99 ou do art. 3.º do
Regulamento do CSM (que, para o recorrente não têm a interpretação acolhida pelo
STJ); é sim, porque estamos em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade, o critério de decisão (não a decisão) efectivamente
utilizado para a resolução da causa, ou ainda, uma interpretação ou dimensão
normativa, ainda que na perspectiva de um caso concreto, por referência a um
certo dispositivo (sempre a mesma desde o CSM).
12.º Assim, a norma cuja apreciação se pretende seja feita pelo TC é, na
realidade, a que dispõe que, para efeitos remuneratórios, não se aplica o regime
de acumulação de funções constante do art. 69.° da Lei n.° 3/99 de 13 de Janeiro
aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes, mesmo na situação em que tal
exercício de funções tenha implicado um efectivo exercício simultâneo de funções
correspondentes a duas titularidades em tribunais judiciais, com realização de
todo o serviço judicial pendente em ambos os tribunais.
13.º Tal norma, segundo o STJ, deriva dos arts. 69.° da Lei n.° 3/99 e 3.° do
Regulamento do CSM; segundo o CSM deriva de algum ou alguns desses preceitos;
mas é sempre a mesma norma que é inconstitucional.
14.º De resto, não se percebe que regra da LTC proíbe que exista uma cumulação
de dispositivos (números de artigos ou de leis) de onde se retira uma norma
(critério de decisão) cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada.
15.º Aliás, segundo o Acórdão do TC proferido no processo n.° 95- 045 de 10 de
Julho de 1996 (www.dgsi.pt) “...Impendia sobre o reclamante o ónus de avaliar as
diversas e possíveis linhas de interpretação normativa susceptíveis de virem a
ser utilizadas na resolução do caso submetido a julgamento...”; e no Acórdão
proferido no processo n.° 97-63 de 23 de Maio de 1997 (www.dgsi.pt)
estabeleceu-se que “...não pode deixar de recair sobre as partes o ónus de
considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se
pretendem fazer valer e de adoptarem, face a elas, as necessárias cautelas
processuais....”.
16.º Ora, o recorrido enunciou sempre qual o sentido ou dimensão normativa que
tinha por violador da Constituição e, por outro lado, está demonstrado que essa
norma, uma interpretação normativa, foi aplicada na decisão impugnada como seu
suporte.
17.º Por outro lado, indicando o recorrente, de forma expressa, o critério de
decisão (norma) cuja validade constitucional pretende ver apreciada, e havendo
identidade desta arguição com aquela feita no tribunal recorrido, a referência
de que se pretende especificamente a apreciação dessa norma, quer ela resulte de
um ou de outro números de leis (sobretudo quando existiam razões para
incertezas), não deixa efectivamente qualquer dúvida, e é até a estratégia
processualmente mais sustentada pelo próprio TC.
18.º Mesmo aqui, a referência feita pelo recorrente, nas alegações perante o
STJ, de que a norma cuja inconstitucionalidade se suscita pode resultar de um ou
de outro dos dispositivos legais, não tem por efeito criar a dúvida sobre qual a
norma cuja apreciação se pretende efectivamente, tão-só expressar que, em
qualquer dos casos, a norma é inconstitucional. É uma expressão de
simultaneidade. Que norma da LTC foi infringida com este comportamento
processual?
19.º Podia o recorrente ter arguido a inconstitucionalidade apenas da norma
referida enquanto deduzida do art. 69.° da Lei n.° 3/99, mas o STJ ter
considerado que tal norma resultava do art. 3.° do Regulamento do CSM; e podia
ter ocorrido o inverso.
20.º Para prevenir tal falha o recorrente arguiu perante o STJ a
inconstitucionalidade do critério de decisão, em qualquer dos casos, ou seja,
independentemente de qual dos dispositivos o STJ a pudesse fazer derivar (porque
desconhecia até o recorrente se o STJ admitia a existência de tal norma).
21.º Não se vê de que outra forma poderia o recorrente ter arguido a
inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo TC, em sindicância do
juízo de constitucionalidade feito pelo CSM e pelo STJ.
22.º As regras processuais, incluindo as que regem o processo do TC, têm uma
razão de ser e um objectivo claros, não se destinando nem a coarctar o direito
de acesso aos tribunais, nem a ser meros jogos de palavras ou enigmas que os
recorrentes têm de ultrapassar para chegar à possibilidade de apreciação pelo
TC.
23.º E, neste caso, o disposto nos arts. 75.°-A, n.°2 e 72.°, n.°2, da LTC não
tem outro objectivo que não seja o de obrigar a que o TC seja sempre um tribunal
de recurso, que não decida senão sobre a inconstitucionalidade de normas
efectivamente aplicadas, em casos em que tal vício foi concretamente suscitado,
como diz a lei, de forma a permitir que o tribunal recorrido pudesse
pronunciar-se sobre a concreta questão de inconstitucionalidade.
24.º Ora, não podem existir dúvidas de que o STJ pronunciou-se sobre a concreta
questão da constitucionalidade suscitada, e fê-lo de forma expressa e
inequívoca, sem qualquer dúvida sobre a alegação do recorrente, ponderando, nos
termos descritos (como que se retira do teor da fundamentação), que, na sua
opinião, esse critério deriva simultaneamente dos arts. 69.° da Lei n.° 3/99 e
3.° do Regulamento do CSM.
25.º Para quem tenha dúvidas sobre o conceito de norma é de lembrar que logo o
Acórdão do TC n.° 86-150-2 de 26 de Julho de 1986 ( ) estabeleceu “...0
abandono de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente fixada do
conceito de norma, em beneficio da opção por um conceito funcional, adequado ao
sistema de fiscalização da constitucionalidade...” e que “...0 sistema de
fiscalização da constitucionalidade, em geral, tem por objectivo o controlo
daqueles actos que contêm uma regra de conduta ou um critério de decisão para os
particulares, para a Administração e para os tribunais...”.
26.º Também o Acórdão n.° 95-94-02 de 1 de Março de 1994 (……) afirmou que
“Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal, tal como já antes
sucedia com a adoptada pela Comissão Constitucional, que o conceito de “norma”,
para o efeito de fiscalização da constitucionalidade, não abrange apenas os
preceitos de natureza “geral” e “abstracta”, mas inclui todo e qualquer acto do
poder público que contiver uma “regra de conduta” para os particulares ou para a
administração, um critério de decisão para esta última ou para o juiz, ou em
geral, um padrão de valoração de comportamento”.
27.º E no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 106/99, seguido pelo Acórdão do
mesmo Tribunal n.° 90/2005 (www.tribunalconstitucional.pt), aceita-se que: “Pode
suscitar-se a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica (ou de
várias) ou uma dada interpretação dessa norma (ou de várias). Quando, porém, se
suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de
certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em
termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder
enunciar na decisão, de modo a que os destinatários dela e os operadores do
direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser
aplicadas com um tal sentido”.
28.º Ora foi precisamente essa orientação que o recorrente cumpriu, não podendo
existir dúvidas sobre qual a norma em causa.
29.º Na doutrina, Oliveira Ascensão relembra que “Toda a regra é necessariamente
um critério…mas para o direito a regra é necessariamente um critério de decisão.
A regra surge como medianeira da solução jurídica de casos concretos. Dá ao
intérprete o critério pelo qual ele pode julgar ou resolver... Mas a norma no é
o dado da ordem jurídica. No se confunde com a fonte, realidade objectiva... A
regra jurídica pode pois ser caracterizada como um critério material de decisão
de casos concretos...” (O DIREITO, Introdução e Teoria Geral, Almedina, 1991,
pp. 503e 304).
30.º Por isso, não é possível deixar de entender, como o fez o STJ, que a
inconstitucionalidade da norma cuja apreciação se pretende foi suscitada de
forma processualmente adequada, ordenando-se o seguimento do processo.
31.º Note-se que a referência feita a fls. 16 da decisão sumária ao ponto 29.
das alegações perante o STJ, em que se pondera também a inconstitucionalidade de
uma decisão, nada releva, pois não foi ao abrigo dessa alegação que foi
interposto recurso para o TC (obviamente que o recorrente sustentou, perante o
STJ, que a aplicação de uma norma inconstitucional, num caso concreto,
implicaria a inconstitucionalidade de uma decisão; o que agora não releva).
32.º A simples análise do que foi escrito o demonstra; diz-se naquele ponto 29.
que “Além disso, a deliberação em causa viola ... a Constituição...”. Ora o
simples facto de se ter referido “além disso”, deveria, em boa-fé, fazer notar
que “antes” se efectuou uma outra alegação: precisamente a da
inconstitucionalidade normativa».
4. Notificado da reclamação, o Conselho Superior da Magistratura respondeu o
seguinte:
«1. Não pode deixar de concordar-se com os termos da decisão sumária.
2. Efectivamente, se só no recurso para o Tribunal Constitucional o recorrente
especificou a norma cuja constitucionalidade questiona – a que resulta do art°
69°, n°s 1 e 2, da Lei n° 3/99, de 13 de Janeiro, em conjugação com o art° 3° do
Regulamento do Quadro Complementar de Juízes –, deve concluir-se que não
suscitou de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, não se preenchendo, assim,
a previsão da norma ao abrigo da qual o recurso foi interposto – alínea b) do n°
1 do art° 70° da Lei n° 28/82.
3. Deve, pois, indeferir-se a reclamação».
5. Em 27 de Setembro de 2006, em cumprimento do disposto no artigo 3º, nº 3, do
Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, o recorrente e
o recorrido foram notificados para, querendo, se pronunciarem sobre a seguinte
questão:
«Face ao teor do requerimento de reclamação para a conferência, é de admitir que
esta venha a decidir não conhecer do objecto do recurso interposto, com
fundamento na não aplicação pelo tribunal recorrido da norma cuja
inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal, a
qual, por outro lado, não foi suscitada durante o processo.
Com efeito, a decisão recorrida não aplicou a norma que resulta do disposto no
artigo 69º, nºs 1 e 2, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, em conjugação com o
disposto no artigo 3º do Regulamento Interno relativo à gestão da Bolsa de
Juízes, na interpretação segundo a qual, para efeitos remuneratórios, não se
aplica o regime de acumulação de funções constante do artigo 69º da Lei nº 3/99
de 13 de Janeiro aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes, mesmo na situação em
que tal exercício de funções tenha implicado um efectivo exercício simultâneo de
funções correspondentes a duas titularidades em tribunais judiciais, com
realização de todo o serviço judicial pendente em ambos os tribunais (fl. 66 e
s. dos presentes autos), nem tão-pouco foi esta a norma cuja
inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. Perante o Supremo
Tribunal de Justiça foi questionada a constitucionalidade do (s) artigo (s) 3º
daquele Regulamento Interno e 69º daquela Lei, quando interpretado (s) no
sentido de que, designadamente para efeitos retributivos, não se aplica o regime
de acumulação de funções aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes (fl. 11 dos
presentes autos), sem qualquer especificação de trabalho judiciário realizado».
6. O recorrente respondeu, alegando o seguinte:
«1º De acordo com o despacho ora proferido existe a possibilidade de o Tribunal
Constitucional considerar que o recorrente não suscitou a questão da
inconstitucionalidade durante o processo, nomeadamente tendo em conta a
especificação do trabalho realizado, e não em geral, e que o Supremo Tribunal de
Justiça (STJ) não aplicou a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente
pretende ver apreciada.
2º Para além do já exposto no requerimento de reclamação para a conferência, que
se mantém, há que, sinteticamente, fazer referência às questões colocadas.
3º A questão da constitucionalidade foi efectivamente suscitada, devendo
atentar-se que neste tipo de processos, em que o recurso é directo para o STJ, é
sempre apresentado um requerimento de recurso, onde se indicam os fundamentos de
facto e de direito (art. 172.º, n.º1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais), a
que se lhe segue a possibilidade de serem efectuadas alegações (art. 176.º do
mesmo Estatuto).
4º No ponto 3. do requerimento de recurso dirigido ao STJ consta que “[,,,] como
era propósito dessa colocação, e conforme se encontrava acordado com o Exmo.
Vogal do CSM [...], durante o período de 4 de Janeiro de 2005 até 11 de Abril de
2005, despachei diariamente a totalidade dos processos conclusos e presidi a
todas as audiências de julgamento simultaneamente na 8.ª Vara Criminal de
Lisboa, 1.ª Secção e 7.ª Vara Criminal de Lisboa, 3.ª Secção, e fiz igualmente
parte do Tribunal Colectivo em todos os julgamentos das restantes Secções de
ambas as Varas’
5º As circunstâncias de facto referidas não podiam, assim, ser mais concretas.
6º Por outro lado, no ponto 13. das alegações de direito apresentadas ao STJ foi
sustentado que: “Tal como se deduz da deliberação do Conselho Permanente do CSM,
o entendimento referido, relacione-se com o art. 3.º do mencionado Regulamento
Interno ou com o art. 69.º da Lei n.º 3/99 (porque a deliberação recorrida não o
esclarece com precisão), é violador do princípio constitucional da igualdade
ínsito nos arts. 13.º e 59.º, n.º1, a), da Constituição da República Portuguesa,
pois nada distingue a situação de acumulação de funções que suportei perante a
de qualquer juiz não colocado no quadro complementar de juízes que também
acumula funções”
7º E, para boa interpretação, note-se que da deliberação do CSM (nessa altura a
decisão recorrida), a fls. 2, consta que “[...] Fala o senhor juiz em violação
do princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da Constituição, por nada
distinguir a situação de acumulação de funções que suportou perante a de
qualquer juiz não colocado no quadro complementar de juízes. Mas não tem razão.
[...].
8º É bem patente a referência concreta à situação concreta do recorrente (à sua
especificação do trabalho), e não apenas a ponderação genérica sobre a aplicação
dos mencionados regimes ou critérios legais (até pela redacção da parte final do
mencionado ponto 13. ou da deliberação do CSM, em que se cuida de chamar a
atenção para a situação concreta, constante da fundamentação de facto, por
referência à situação abstracta).
9º De resto, o entendimento do CSM foi sempre um entendimento concreto, visando
apenas uma situação concreta, a propósito de circunstâncias bem definidas, e não
uma ponderação abstracta, apenas referida enquanto forma de raciocínio dedutivo.
10º O entendimento, ou critério de decisão, em vista da sua aplicação ao caso
concreto, cuja inconstitucionalidade foi suscitada perante o STJ (como no CSM),
foi, claramente, o de que, para efeitos remuneratórios, não se aplica o regime
de acumulação de funções aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes, mesmo na
situação (verificada) em que tal exercício de funções tenha implicado um
efectivo exercício simultâneo de funções correspondentes a duas titularidades em
tribunais judiciais, com realização de todo o serviço judicial pendente em ambos
os tribunais.
11º Foi forçoso concluir que, para o CSM e para o STJ, tal norma resulta do
disposto no art. 69.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro, em
conjugação com o disposto no art. 3.º do Regulamento Interno relativo à gestão
das Bolsa de Juízes (Deliberação (extracto) n.° 399/99, Diário da República n.°
157/99, Série I de 1999-07-08 do Conselho Superior da Magistratura), sendo certo
que nem o CSM, nem o STJ fizeram, no dispositivo, referência a qualquer artigo
ou norma.
12º Também o STJ, que proferiu a decisão recorrida, conheceu efectivamente da
questão da constitucionalidade em causa neste recurso, tendo aplicado a norma
cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada pelo Tribunal
Constitucional.
13º É verdade que, como foi referido, o STJ não faz uma referência no
dispositivo do acórdão que proferiu a qualquer norma, pois é simplesmente
proferida uma decisão de indeferimento.
14º Mas não é possível esquecer a análise da questão efectuada no acórdão
recorrido para além da própria decisão.
15º Note-se, com particular cuidado, que a norma ou critério de decisão em causa
é a que impõe a não aplicação do regime de acumulação de funções (designadamente
art. 69. da Lei n.º3/99), por interpretação precisamente dessa norma em
conjugação com o artigo 3° do Regulamento Interno do CSM.
16º É a recusa da aplicação do regime de acumulação de funções, por
interpretação do referido normativo, que permite identificar o critério
utilizado.
17º E, por isso, em rigor, se escreve no acórdão do STJ que “Em consequência a
decisão é no sentido da não aplicabilidade ao destacamento do recorrente o
regime legal de acumulação de funções, designadamente a sua vertente de
remuneração especial complementar” (ponto 5., parte final).
18º Mas logo a seguir, no mesmo acórdão (ponto 6., primeiro parágrafo), se
acrescenta “Atentemos agora na vertente de saber se a interpretação das
referidas normas no sentido em que o foram [pelo STJ] está ou não afectada de
inconstitucionalidade”
19º O que se pretende do Tribunal Constitucional é esta reapreciação da
constitucionalidade da interpretação da norma que o STJ fez resultar do art.
69.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro em conjugação com o art.º 3 do Regulamento
Interno relativo à gestão das Bolsa de Juízes, na interpretação concretamente
adoptada por aquele Tribunal.
20º Não é o art. 69.º da Lei n.º 3/99 a norma cuja inconstitucionalidade se
pretende seja apreciada e cuja aplicação foi recusada.
21º A norma aplicada efectivamente pelo STJ (e, por isso, não houve qualquer
dúvida na admissão do recurso para o TC, no STJ), é a que resulta da
interpretação restritiva do art. 69.º da Lei n.º 3/99 e do art. 3.º do
mencionado regulamento Interno, e que consiste no seguinte preceito: para
efeitos remuneratórios, não se aplica o regime de acumulação de funções
constante do art. 69.º da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro aos juízes colocados nas
Bolsas de Juízes, mesmo na situação em que tal exercício de funções tenha
implicado um efectivo exercício simultâneo de funções correspondentes a duas
titularidades em tribunais judiciais, com realização de todo o serviço judicial
pendente em ambos os tribunais.
22º A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o TC aprecie não se
confunde com o dispositivo do art. 69.º da Lei n.º 3/99 ou do art. do
Regulamento do CSM (separada ou conjuntamente); é sim, porque estamos em sede de
fiscalização concreta da constitucionalidade, o critério de decisão (não a
decisão) efectivamente utilizado para a resolução da causa, ou ainda, uma
interpretação ou dimensão normativa, ainda que na perspectiva de um caso
concreto, por referência a um certo dispositivo, que foi adoptada.
23º Ora, o recorrido enunciou sempre qual o sentido ou dimensão normativa, em
virtude da sua aplicação ao caso concreto, que tinha por violador da
Constituição e, por outro lado, está demonstrado que essa norma, uma
interpretação normativa, foi aplicada na decisão impugnada como seu suporte e no
acórdão do STJ foi especificamente analisada a sua conformidade com a
Constituição.
24º No acórdão do STJ não andou aquele Tribunal a efectuar considerações etéreas
sobre a constitucionalidade da interpretação que fez, mas a ponderar realmente
da conformidade com a Constituição de tal interpretação, e, por isso, lá se
escreve que “inexiste, por isso, fundamento legal para que se considere
contrária ao disposto no art. 13.º da Constituição a interpretação do artigo
69.º, n.º 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais no
sentido da sua não aplicabilidade ao destacamento de juízes do quadro
complementar em mais de um órgão jurisdicional”.
25º A interpretação efectuada, que implicou o indeferimento do requerimento
apresentado, no sentido da não abrangência do caso concreto pelo art. 69.º da
Lei n.º 3/99, foi utilizada ou aplicada pelo STJ no caso concreto.
26º A sua aplicação no caso concreto implicou o indeferimento por se ter
rejeitado que estava preenchida uma determinada previsão, o que não é idêntico à
situação de uma norma não ser aplicada a um caso concreto; o que é
inconstitucional é a interpretação restritiva da previsão do art. 69.º da Lei
n.º 3/99.
27º E, mesmo perante outra perspectiva, é essencial não esquecer que o
recorrente também sempre suscitou a questão da constitucionalidade da
interpretação feita no caso concreto em consideração do disposto no art. 3.º do
mencionado Regulamento Interno do CSM (que estabelece que “Os juízes são
nomeados para a bolsa do distrito judicial [...] auferindo o vencimento
correspondente ao que lhes competiria se exercessem funções como efectivos nos
lugares em que estão destacados e ajudas de custo nos termos da lei geral, sem
limite de tempo”).
28º E tal art. 3.º do Regulamento do CSM terá que se considerar aplicado ao caso
concreto pelo acórdão do STJ (parágrafo final do seu ponto II.)
29º Como já foi referido na reclamação para a conferência, as regras
processuais, incluindo as que regem o processo do TC, têm uma razão de ser, uma
lógica e um objectivo claros, não se destinando nem a coarctar o direito de
acesso aos tribunais, nem a ser meros jogos de palavras ou enigmas que os
recorrentes têm de ultrapassar para chegar à possibilidade de apreciação pelo
TC.
30º E, neste caso, o disposto nos arts. 75.º-A, n.º2 e 72.º, n.º2, da LTC, não
tem outro objectivo que não seja o de obrigar a que o TC seja sempre um tribunal
de recurso, que não decida senão sobre a inconstitucionalidade de normas
efectivamente aplicadas (e não sobre questões sem relevância para a decisão a
tomar), em casos em que tal vício foi concretamente suscitado, como diz a lei,
de forma a permitir que o tribunal recorrido pudesse pronunciar-se sobre a
concreta questão de inconstitucionalidade.
31º Ora, não podem existir dúvidas de que a questão da constitucionalidade, em
concreto, foi suscitada, o STJ pronunciou-se sobre a concreta questão da
constitucionalidade suscitada, e tê-lo de forma expressa e inequívoca, como
ponto essencial para a decisão final, sem qualquer dúvida sobre a alegação do
recorrente, ponderando, nos termos descritos que, na sua opinião, não existe
desconformidade com a Constituição do critério utilizado pelo CSM.
32º Basta notar, em consonância com a LTC, que se a norma em causa não tivesse
sido aplicada pelo STJ, o recorrente não teria qualquer interesse no recurso
perante o TC, pois a decisão a proferir em nada poderia interferir com o
decidido pelo STJ.
33º De resto, caberá a quem sustentar outra posição o ónus da identificação da
norma aplicada pelo STJ para a decisão da causa».
7. O recorrido respondeu sustentando que a reclamação deve ser julgada
improcedente.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão agora reclamada conclui que o recorrente não suscitou a questão de
inconstitucionalidade normativa de modo processualmente adequado perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida e que a questão suscitada foi
configurada, durante o processo, como questão de inconstitucionalidade da
deliberação do Plenário do Conselho Superior da Magistratura.
Não contrariando esta segunda conclusão, já que se limita a destacar que não foi
ao abrigo da alegação da inconstitucionalidade da decisão que foi interposto o
recurso para este Tribunal, o ora reclamante sustenta, por um lado, que a
questão de inconstitucionalidade foi reportada a disposições legais alternativas
ou cumulativas, uma vez que “a deliberação do CSM, recorrida, não esclarece com
precisão em que dispositivo legal se baseou para decidir da forma por que o
fez”; e, por outro, que a norma questionada é a que o Supremo Tribunal de
Justiça fez resultar do artigo 69º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, em
conjugação com o artigo 3º do Regulamento Interno relativo à gestão das Bolsa de
Juízes, na interpretação concretamente adoptada por aquele Tribunal (idêntica à
do CSM), segundo a qual, para efeitos remuneratórios, não se aplica o regime de
acumulação de funções constante do artigo 69º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro,
aos juízes colocados nas Bolsas de Juízes, mesmo na situação em que tal
exercício de funções tenha implicado um efectivo exercício simultâneo de funções
correspondentes a duas titularidades em tribunais judiciais, com realização de
todo o serviço judicial pendente em ambos os tribunais.
Independentemente da questão de saber se houve suscitação adequada de uma
questão de inconstitucionalidade normativa, o segundo argumento utilizado é, por
si só, demonstrativo que a “norma” constante do requerimento de interposição de
recurso para este Tribunal não foi aplicada pela decisão recorrida e que não foi
sequer questionada, do ponto de vista jurídico-constitucional, durante o
processo.
Com efeito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça aplica, como ratio
decidendi, o artigo 69º da Lei nº 3/99, interpretando-o no sentido da sua não
aplicabilidade ao destacamento de juízes do quadro complementar em mais de um
órgão jurisdicional:
«Vejamos agora se é ou não aplicável ao destacamento do recorrente o regime
legal de acumulação de funções, designadamente no que concerne à respectiva
vertente remuneratória (…).
Tendo em conta o que resulta da lei, o regime legal de acumulação de funções
pelos juízes em mais de um juízo, vara ou tribunal, é essencialmente diverso do
regime legal de destacamento de juízes integrados no quadro complementar de
juízes, e não se trata, ao invés do o recorrente alegou, apenas de diferença
meramente formal ou de títulos.
Com efeito, o primeiro dos referidos regimes, que é excepcional em relação ao
regime regra de colocação de magistrados judiciais, pressupõe, além da
necessidade do serviço, a deliberação do Conselho Superior da Magistratura nesse
sentido e a anuência do magistrado que vai suportar a acumulação.
O segundo dos mencionados regimes, também excepcional em relação à referida
regra de colocação de magistrados judiciais, depende, além do impedimento de
juízes ou vacatura de lugares por determinado período de tempo, a ponderação da
inconveniência da solução de substituição ou de acumulação.
Na primeira situação, não há limite de tempo, na segunda a duração mínima é, em
regra, de trinta dias, salvo casos de urgência, com direito a ajudas de custo
nos termos gerais.
O normativo que estabelece auferirem os juízes nomeados para a bolsa o
vencimento que correspondente ao que lhes competiria se exercessem funções como
efectivos nos lugares em que estão destacados visa esclarecer, por exemplo, que
se exercerem as funções de juiz de círculo ou equiparado auferirão o vencimento
correspondente.
Assim, o referido normativo é inaplicável à situação em causa, ou seja, não
implica que algum juiz da bolsa aufira a remuneração prevista para a acumulação
de funções a que se reporta ao artigo 69°, n° 2, da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
A lei prevê a remuneração complementar dos juízes que acumulem funções, mas não
a prevê relativamente aos juízes do quadro complementar destacados, salvo no que
concerne a ajudas de custo, o que se conforma com a vertente de mobilidade que
lhes é próprio.
A nomeação de juízes integrados no quadro complementar de juízes para exercerem
simultaneamente funções em mais de um órgão jurisdicional, naturalmente com
vista a superar necessidades prementes do regular funcionamento dos órgãos
jurisdicionais, não se traduz em nomeação em acumulação de funções, nem
pressupõe o seu consentimento.
O normativo relativo à remuneração em situações de acumulação do artigo 69° da
Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais assume-se como
especial em relação às normas que estabelecem sobre a remuneração dos juízes em
geral, certo que, não está em oposição com estas últimas, antes constituindo em
relação a elas desvio motivado por particulares situações funcionais.
A letra e o escopo finalístico da lei, por um lado no quadro da remuneração
complementar de juízes, colocados normalmente em órgãos jurisdicionais
determinados, e por outro, na vertente do destacamento de juízes da bolsa, este
envolvido de significativa particularidade de mobilidade e de satisfação de
prementes necessidades funcionais, não permitem a conclusão sustentada pelo
recorrente no sentido de que tem direito à supracitada remuneração.
Trata-se de situações diversas, assentes em pressupostos de facto diversos, em
quadro de regimes jurídicos diversificados, com a particularidade de a solução
de destacamento de juízes da bolsa só poder funcionar quando não dever operar a
solução de acumulação ou de substituição a que a lei se reporta.
Não se verifica a similitude de situações que permita a aplicação do disposto no
artigo 69°, n° 2, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais,
por força do artigo 10°, n°s 1 e 2, do Código Civil, à situação em que juízes do
quadro complementar sejam destacados para o exercício da função jurisdicional em
mais do que órgão jurisdicional.
A única compensação remuneratória especial que inere aos juízes do quadro
complementar é a que decorre do seu direito a ajudas de custo, consoante o local
do órgão jurisdicional de destacamento, o que é harmónico com o seu estatuto de
mobilidade, a que acima se fez referência.
Em consequência, a conclusão é no sentido da não aplicabilidade ao destacamento
do recorrente o regime legal de acumulação de funções, designadamente a sua
vertente de remuneração especial complementar.
6.
Atentemos agora na vertente de saber se a interpretação das referidas normas no
sentido em que o foram está ou não afectada de inconstitucionalidade.
Alegou o recorrente que o entendimento do recorrido quer se relacione com o
artigo 3° do aludido Regulamento,
quer se relacione com o disposto no artigo 69° da Lei n° 3/99,de 13 de Janeiro,
viola o princípio da igualdade ínsito nos artigos 13° e 59°, 0 1, alínea a), da
Constituição (…)
Inexiste, por isso, fundamento legal para que se considere contrária ao disposto
no artigo 13° da
Constituição a interpretação do artigo 69°, n° 2, da Lei de Organização e
Funcionamento dos Tribunais Judiciais
no sentido da sua não aplicabilidade ao destacamento de juízes do quadro
complementar em mais de um órgão jurisdicional (…).
A interpretação do artigo 69º da Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais no sentido da referida inaplicabilidade não infringe o
disposto nos artigos 13º ou 59º, nº 1, alínea a), da Constituição» (itálico
aditado).
Por outras palavras, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou aquele artigo da
Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais sem que fosse
“critério da decisão” a inaplicabilidade do regime de acumulação de funções
ainda que tenha havido a realização de todo o serviço judicial pendente em ambos
os tribunais. Esta especificidade integra não o “critério da decisão”, mas sim a
aplicação de tal critério ao caso concreto. É, aliás, sintomático do acabado de
referir o que o ora reclamante alega nos pontos 4º e 6º da resposta ao despacho
referido no ponto 5. do Relatório:
«No ponto 3. do requerimento de recurso dirigido ao STJ consta que “[,,,] como
era propósito dessa colocação, e conforme se encontrava acordado com o Exmo.
Vogal do CSM [...], durante o período de 4 de Janeiro de 2005 até 11 de Abril de
2005, despachei diariamente a totalidade dos processos conclusos e presidi a
todas as audiências de julgamento simultaneamente na 8.ª Vara Criminal de
Lisboa, 1.ª Secção e 7.ª Vara Criminal de Lisboa, 3.ª Secção, e fiz igualmente
parte do Tribunal Colectivo em todos os julgamentos das restantes Secções de
ambas as Varas’»;
«6º Por outro lado, no ponto 13. das alegações de direito apresentadas ao STJ
foi sustentado que: “Tal como se deduz da deliberação do Conselho Permanente do
CSM, o entendimento referido, relacione-se com o art. 3.º do mencionado
Regulamento Interno ou com o art. 69.º da Lei n.º 3/99 (porque a deliberação
recorrida não o esclarece com precisão), é violador do princípio constitucional
da igualdade ínsito nos arts. 13.º e 59.º, n.º1, a), da Constituição da
República Portuguesa, pois nada distingue a situação de acumulação de funções
que suportei perante a de qualquer juiz não colocado no quadro complementar de
juízes que também acumula funções”» (sublinhado aditado).
De resto, estas passagens e a “norma” formulada pelo recorrente são
significativas de uma configuração da questão de inconstitucionalidade como de
inconstitucionalidade da decisão, tal como já havia sido destacado na decisão
que é objecto da presente reclamação.
III Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
manter a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 28 de Novembro de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício