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Processo nº 687/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação, A. arguiu a nulidade do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Abril de 2006, nos seguintes termos:
1 – O exponente foi notificado de um acórdão proferido nos presentes.
2 – Porém, constata que foram proferidos dois acórdãos no âmbito do mesmo
processo.
3 – O que a este se reporta e que condenou o arguido na pena única de 12 anos de
prisão e o acórdão referente ao arguido B., que decidiu remeter, de novo, os
autos ao Tribunal da Relação.
4 – A matéria impugnada por parte do arguido B. está directamente conexionada
com os factos dados como provados quanto ao ora exponente A..
5 – Na verdade, o Tribunal deu como apurado que o arguido A. fornecia produto
estupefaciente ao arguido B..
6 – No entanto, no acórdão proferido quanto a este, permite que se vá discutir
se é ou não verdade que o exponente tenha vendido droga ao B..
7 – Quer dizer, o STJ criou uma situação em que pode decidir-se que para o
exponente é A e para o arguido B., é B.
8 – Isso, proíbe a lei, mesmo em caso em que o interessado não recorra (artigo
402°, n°2, al. a) do CPP).
9 – O arguido B. recorreu contestando o julgamento de determinada matéria de
facto.
10 – Decidiu o STJ declarar parcialmente nulo o acórdão proferido pela 2ª
Instância – por não se ter pronunciado, em concreto, sobre as questões de facto
objecto de recurso.
11 – Mais decidiu fosse determinado à Relação reformular o acórdão, procedendo,
agora, ponto, por ponto a “um exercício crítico substitutivo do exame crítico
realizado pelo tribunal de ia Instância” a respeito das provas
(oportunamente especificadas) que, segundo o recorrente Mota suscitem decisão
diversa da recorrida quanto a cada um dos pontos de facto que, na motivação do
recurso do arguido Mota, se consideraram incorrectamente julgados.
12 – Assim, a solução de facto e direito que vier a ser proferida quanto ao co-
arguido, naturalmente, se tiver o mínimo de provimento, tem de aproveitar ao
exponente A.
B) Arguir, com a fundamentação aduzida, a nulidade do acórdão ora proferido
contra si, porquanto o mesmo não pode ser proferido sem ter em conta que um
acórdão único da Relação foi objecto de dois recursos, mas em que em ambos se
discute se o exponente vendeu ou não droga ao co-arguido B., sendo que tal
questão ainda está pendente de decisão, por força do recurso deste.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 25 de Maio de 2006, decidiu do
seguinte modo a arguição de nulidade:
No dia 20ABR06, o Supremo Tribunal de Justiça julgou parcialmente procedente o
recurso do cidadão A., que absolveu do acusado crime de «associação criminosa» e
que, pelo subsistente crime de «tráfico agravado de drogas ilícitas» (art. 24.
b), c) e j) do DL 15/93), condenou definitivamente na pena de 12 (doze) anos de
prisão.
No mesmo dia, o Supremo, relativamente ao co‑aguido B., declarou (parcialmente)
nulo – por se não ter pronunciado, em concreto, sobre as concretas questões de
facto objecto de recurso – o recorrido acórdão da Relação do Porto, determinando
que esta o reformulasse, procedendo enfim, mas agora ponto por ponto, a «um
exercício crítico substitutivo do exame crítico realizado pelo tribunal de
primeira instância» a respeito das provas (oportunamente especificadas) que,
segundo o recorrente, suscitam decisão diversa da recorrida quanto a cada um dos
pontos de facto que, na motivação do recurso, se consideraram incorrectamente
julgados».
Notificado do respectivo acórdão em [27ABR06] o arguido A., em 08MAI06, «arguiu
a [sua] nulidade, (...) porquanto o mesmo não podia ser proferido sem ter em
conta que um acórdão único da Relação foi objecto de dois recursos mas que em
ambos se discutia se o exponente vendeu ou não droga ao co‑arguido B., sendo que
tal questão ainda está pendente de decisão, por força do recurso deste».
É certo que a condenação do arguido A. se fundou, entre muitos outros
(relativamente a outras transacções com outros co‑arguidos, já definitivamente
condenados), nos seguintes factos (comuns ao co‑arguido B.): «Na mesma época, o
arguido A. vendera ao arguido B., para além de outras transacções cujas datas
concretas não foi possível determinar, nos dias 13/04/2000, 10/05/2000,
12/05/2000, 16/05/2000 e 22/05/2000, cerca de um quilo de heroína em cada uma
dessas datas, sendo que da última igualmente lhe vendeu cerca de cem gramas de
cocaína».
Além de que ainda não está, quanto a este co‑arguido, definitivamente assente
(mercê do seu recurso, ainda subsistente, para a Relação) que «o arguido A.
vendera ao arguido B., nos dias 13/04/2000, 10/05/2000, 12/05/2000, 16/05/2000 e
22/05/2000, cerca de um quilo de heroína em cada uma dessas datas, sendo que da
última igualmente lhe vendeu cerca de cem gramas de cocaína».
No entanto, a subsistência do recurso, para a Relação, do co‑arguido B. não
implica que a decisão do recurso do co‑arguido A., para o Supremo, tivesse de
aguardar o resultado do outro.
E isso porque «é autónoma [podendo por isso ter um tratamento autonomizado] a
parte da decisão que se referir, em caso de comparticipação, a cada um dos
arguidos (...)» (art. 403.2.d do CPP). Se bem que «o recurso interposto por um
dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes» (art. 402.2.a
do CPP).
O que quer dizer que, apesar daquela autonomia, o recurso, ainda pendente na
Relação, relativamente ao co‑arguido B. poderá vir a aproveitar ao co‑arguido A.
(se, na sua eventual procedência, a Relação não vier a declarar provado, em
relação ao recorrente, que este se abastecia junto do outro), mesmo que a
condenação deste, mercê da (já constatada e declarada) improcedência do seu
recurso para o Supremo, transite entretanto em julgado.
Ë que esse trânsito, por força do disposto da «extensão» do recurso de um dos
comparticipantes aos demais (sejam recorrentes ou não), no que lhes
«aproveitar», é mais um exemplo do chamado «caso julgado parcial».
Com efeito, do princípio geral (em matéria de recursos penais) de que «a
limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da
procedência daquele [e, no caso, o recurso de facto do arguido B. ainda nem
séquer foi julgado] as consequências legalmente impostas relativamente a toda a
decisão recorrida» (art. 403.3 do CPP) extrai a doutrina a ilação de que «este
preceito estabelece uma verdadeira condição resolutiva do caso julgado parcial»,
sem prejuízo, porém, da sua «formação desde o trânsito da decisão» (CUNHA
RODRIGUES, Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ‑1988, Almedina,
1995, ps. 387–388).
Aceita–se que esta solução seja «susceptível de colocar problemas delicados,
designadamente a nível da exequibilidade da decisão» (ibidem), mas, no balanço
final, é, sem dúvida, mais vantajosa (no âmbito da economia e da celeridade
processuais, obviando a que a acção obstrutiva de um dos co‑arguidos recorrentes
se repercuta, negativamente, na evolução e decisão definitiva do pleito em
relação aos demais, recorrentes ou não) do que desvantajosa (até porque os
respectivos inconvenientes, pela via do caso julgado parcial ou pela do recurso
de revisão, são processual e substancialmente superáveis).
Não enfermando o acórdão reclamado, assim, de qualquer nulidade (por excesso de
pronúncia ou outro fundamento válido e atendível), desatende–se a reclamação, de
11MAI06, do cidadão A..
A. interpôs recurso de constitucionalidade, apresentando o seguinte
requerimento:
A., supra identificado, não se conformando com o douto acórdão proferido por
este Tribunal em, 2006‑5‑25 integrado pelo acórdão de 2006-04-20, vem interpor
recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e com os seguintes
fundamentos:
1 - O recurso é interposto ao abrigo do disposto no artigo 70, n° 1 alínea b) da
Lei N° 28/82, de 15 de Setembro.
2 - Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade, da norma ínsita nos
artigos 402 e 403 ambos do C.P.P, na interpretação acolhida na decisão
recorrida, isto é, que sobre o mesmo acórdão do tribunal da relação pode o S.T.J
proferir acórdãos distintos, um para cada recorrente, considerando a matéria de
facto já definida quanto a um e por definir quanto a outro quando parte dela é
comum.
3 - O entendimento de tais normas com o sentido assumido viola os arts 13, 32 e
205 da CR.P.
4 - A inconstitucionalidade não pode ser levantada anteriormente porquanto o
recorrente foi apanhado de surpresa com a interpretação efectuada e só após o
acórdão de 25 de Maio veio a conhecer os normativos que se diz estarem
subjacentes a tal.
9 - O recurso sobe imediatamente, nos autos, e com efeito suspensivo.
Termos em que, requer a V.Exa, se digne admitir o mesmo, seguindo-se o demais de
lei.
O recurso de constitucionalidade não foi admitido por despacho de 20 de Julho de
2006, com o seguinte teor:
Não recebo o recurso constitucional, de 12JUN06 (fls. 3831), do arguido A..
Desde logo, porque, tratando–se de recurso «interposto ao abrigo do disposto no
art. 70.1.b da a Lei 28/82», não confronta normas cuja inconstitucionalidade
haja sido arguida durante o processo.
E não se obtempere que «a inconstitucionalidade não podia ser levantada
anteriormente porquanto o recorrente foi apanhado de surpresa com a
interpretação efectuada»
Pois que, à partida, «a norma ínsita nos artigos 4O2.º e 4O3.º ambos do CPP, na
interpretação acolhida na decisão recorrida» se fundou – não sendo, por isso
imprevisível – não só no teor 1iteral dos respectivos dispositivos legais como
na doutrina, há muito consagrada na ciência jurídico‑processual penal e na
própria prática jurisprudencial do Supremo, do «caso julgado parcial» e da
respectiva «condição resolutiva».
Além de que o «trânsito» (já que sujeito a essa condição resolutiva do caso
julgado parcial) da condenação do co‑arguido A. – antes de definida a culpa do
co‑arguido B., cumpre – conciliatoriamente – a exigência constitucional de que
todo o defesa» e obsta a que, contra ela, se possam invocar [como invocou,
abstractamente, o recorrente] os valores constitucionais patrocinados pelos
«arts. 13º, 32º e 205º do CPP».
O que, só por si, haveria de justificar – pois que «manifestamente infundado» –
a rejeição, mesmo que admissível, do recurso.
2. A. reclamou com os seguintes fundamentos:
A., supra identificado, notificado da decisão que não admitiu o recurso, não se
conformando com a mesma, vem ao abrigo do disposto no artigo 77 da L.T.C.
(redacção da Lei n° 1 3-A/98 de 26 de Fevereiro, conjugado com o artigo 405 do
C.P.P., reclamar para a conferência, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 - O recorrente suscitou a inconstitucionalidade na interpretação acolhida dos
arts 402 e 403 do C.P.P., no acórdão proferido pelo S.T.J., uma vez que, sobre o
mesmo acórdão do Tribunal da Relação o S.T.J. proferiu acórdãos distintos, um
para cada recorrente, considerando a matéria de facto já definida quanto a um e
por definir quanto a outro, quando parte dela é comum.
2 - Entendeu o recorrente que a interpretação de tais normas com o sentido
assumido viola os arts 13, 32 e 205 da CR.P.
3 - A inconstitucionalidade não pode ser levantada anteriormente porquanto o
recorrente foi apanhado de surpresa com a interpretação efectuada e só após o
acórdão de 25 de Maio veio a conhecer os normativos que se diz estarem
subjacentes a tal.
4 - Na verdade, a decisão de sobre a mesma matéria no âmbito do mesmo processo
ocorre única e exclusivamente após ter sido proferido o acórdão de 25 de Maio.
Como é que o recorrente iria adivinhar que tendo sido apreciado conjuntamente os
dois recursos apresentados sobre eles iriam recair decisões diversas estando em
causa os mesmos factos?
5 - Logo, nunca a inconstitucionalidade supra referida poderia ser anteriormente
invocada.
6 - Pelo que, atento o disposto no artigo 32 da C.R.P., onde se refere
expressamente que “São asseguradas todas as garantias de defesa dos arguidos”, o
facto de não se dar ao recorrente a possibilidade de recorrer nos termos em que
o fez, implica uma clara diminuição das suas garantias de defesa. Tanto mais
que,
7 - poderemos com a interpretação que foi feita pelo S.T.J., ter sobre os mesmos
factos decisões opostas. Ora, a celeridade processual não pode prevalecer sobre
a justiça das decisões. Importa que o arguido seja julgado no mais curto espaço
de tempo, não podendo contudo, correr o risco de beneficiar arguidos em
detrimento de outros. Não foi feita separação de processos, os recorrentes foram
julgados conjuntamente, existe matéria conexa, recorreram em simultâneo, o
julgamento foi agendado para o mesmo dia, e foram proferidos acórdãos diversos.
8 - Termos em que, requer seja revogada a decisão supra referida sendo o recurso
admitido.
O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
O ora reclamante teve oportunidade processual para suscitar, no âmbito da
arguição de nulidade que deduziu a fls. 36, a questão de inconstitucionalidade
normativa a que reportou o recurso de fiscalização concreta interposto, sendo,
nomeadamente, perceptível qual o entendimento do STJ, subjacente à prolação de
acórdãos distintos quanto aos vários arguidos, apesar de a matéria de facto ser,
em parte, comum.
Tratando‑se de recurso fundado na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82,
incidia sobre o arguido‑recorrente o ónus de suscitar tal questão de
inconstitucionalidade durante o processo, confrontando com ela o STJ, ao dirimir
a nulidade invocada – e determinando o incumprimento de tal ónus a inverificação
dos pressupostos do recurso de fiscalização concreta em causa, o que dita a
improcedência da presente reclamação.
Cumpre apreciar.
3. Nos presentes autos, o reclamante pretende submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional, no recurso de constitucionalidade que não foi admitido, uma dada
interpretação dos artigos 402º e 403º do Código de Processo Penal, relativa à
alegada possibilidade de prolação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de dois
acórdãos distintos eventualmente contraditórios.
Ora, a arguição de nulidade que o reclamante formulou fundou‑se precisamente na
possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça proferir decisões alegadamente
contraditórias em relação aos dois co‑arguidos.
Desse modo, se o reclamante considerou que existia, no entendimento que o
Supremo Tribunal de Justiça veio a acolher no acórdão de 25 de Maio de 2006 (do
qual o reclamante interpôs o recurso de constitucionalidade não admitido), uma
qualquer interpretação normativa inconstitucional, tinha o ónus de a suscitar na
arguição de nulidade.
Não tendo cumprido tal ónus, não se verifica o pressuposto processual do recurso
que o reclamante interpôs, consistente na suscitação da questão de
constitucionalidade normativa durante o processo. O recurso de
constitucionalidade não podia, pois, ser admitido, pelo que a presente
reclamação improcede.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 17 de Outubro de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos