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Processo n.º 889/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A., L.da, deduziu reclamação para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 [por manifesto lapso, refere
n.º 3], da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada,
por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho
do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora, de 22 de Junho de
2006, que não admitiu recurso por ela interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, contra os acórdãos do mesmo Tribunal, de 9 de Março de
2006 (que negou provimento ao agravo do despacho saneador – proferido em acção
declarativa de condenação que a ora reclamante intentara, no Tribunal Judicial
da Comarca de Loulé, contra B., L.da – que julgou verificada a excepção da
ilegitimidade activa e absolveu a ré da instância), e de 18 de Maio de 2006 (que
indeferiu pedido de reforma do anterior acórdão).
No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional aduziu a recorrente:
“O Tribunal da Relação fundamentou a sua decisão da seguinte forma:
«Na alínea a) do n.º 2 do artigo 669.º do CPC aparece previsto o erro de
julgamento de questões de direito – que pressupõe obviamente, para além do seu
carácter evidente, patente e virtualmente incontrovertível, que o juiz se não
haja expressamente pronunciado sobre a questão a dirimir, analisando e
fundamentando a (errónea) solução jurídica que acabou de adoptar (v. g.,
aplicou‑se norma inquestionável e expressamente revogada, por o julgador se não
haver apercebido atempadamente da revogação).
Na alínea b) (do mesmo preceito) aparece essencialmente previsto o erro
manifesto na apreciação das provas, traduzido no esquecimento de um elemento
que só por si implicava decisão diversa da proferida (v. g., o juiz omitiu a
consideração de um documento, constante dos autos e dotado de força probatória
plena, que só por si era bastante para deitar a terra a decisão proferida).»
Ora,
É possível admitir que em bom rigor em todas as peças processuais deveria ficar
absolutamente explícito que os autores são os representados da A., L.da, e não
esta. Porém, tal situação está abundantemente invocada em todas as peças
processuais da autoria.
Aliás, a argumentação expendida na douta decisão que indeferiu a requerida
reforma do douto acórdão constitui, salvo o devido respeito, verdadeira e
própria contraditio in adjectu quando invoca a doutrina justa e doutamente
acatada do Prof. Castro Mendes (fls. 2 da douta decisão, § 2), que afinal a
Relação rejeita, dizendo adoptar. O que, no fundo, é o fundamento do presente
recurso.
Deve até considerar‑se intimidatório, e portanto violador do princípio do acesso
à justiça, a condenação da ora recorrente em litigante de má fé.
A interpretação do prescrito nos artigos 26.º, 494.º, alínea e), e 495.º, todos
do Código de Processo Civil e artigos 985.º do Código Civil, ex vi do artigo
1407.º e 1157.º do mesmo diploma legal, acolhida pelo Tribunal, foi conhecida
pelos recorrentes de forma surpreendente, inopinada e inusitada, como resulta já
da reclamação com pedido de reforma da decisão, sub judice.”
O recurso não foi admitido, por despacho de 22 de Junho de
2006 do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora, com a seguinte
fundamentação:
“Nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (Lei Orgânica sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional), constitui pressuposto incontornável da admissibilidade de
recurso para o Tribunal Constitucional ter sido aplicada, na decisão recorrida,
norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Nem o Acórdão proferido a fls. 242-253, nem o Acórdão proferido a fls. 274-277
aplicaram qualquer norma cuja inconstitucionalidade tivesse sido arguida por
qualquer das partes durante o processo.
Como assim, não admito o recurso de constitucionalidade interposto pela
autora/apelante a fls. 279-280.”
Na reclamação deduzida contra este despacho refere a
reclamante:
“A ora reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional em virtude da
fundamentação do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, e a
interpretação acolhida no sobredito acórdão do prescrito nos artigos 26.º,
494.º, alínea e), e 495.º, todos do Código de Processo Civil e artigo 985.º do
Código Civil, ex vi artigos 1407.º e 1157.º do mesmo diploma legal, foi
surpreendente, inopinada e inusitada, como resulta já da reclamação com pedido
de reforma da decisão, sub judice, para a ora recorrente.
O douto acórdão recorrido constitui verdadeira decisão surpresa, com que
razoavelmente a ora recorrente não podia contar – nesse sentido e de acordo com
a jurisprudência generalizada desse Tribunal, a titulo de exemplo – Acórdão n.º
374/2000, de 13 de Julho de 2000, Processo n.º 496/98 – 1.ª Secção, in Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 499 (2000), p. 77.
O requerimento de interposição do recurso encontra‑se devidamente fundamentado e
estão invocadas as normas que a ora reclamante considera violadas.
O recurso para o Tribunal Constitucional é admitido e tido pela CRP entre as
garantias de defesa essenciais.
O recurso é um meio de obter a reforma de sentença injusta, inquinada de vício
substancial ou de erro de julgamento.
Através do recurso aperfeiçoa‑se e faz‑se evoluir o direito, procurando obter
decisões mais equilibradas e justas com a aplicação mais correcta da lei
processual e substantiva e a defesa dos princípios e direitos fundamentais dos
cidadãos.
Ao negar a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional o douto
despacho está a negar o acesso à justiça à ora recorrente.
«O recurso é um instrumento essencial de defesa dos interesses que nos são
confiados pelos cidadãos, e uma garantia de que o sistema tem capacidade de se
regenerar, de se corrigir, logrando, em cada caso, uma justiça mais justa» –
Ilustre Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Rogério Alves, in Boletim da
Ordem dos Advogados, n.º 41, p. 96.
Para além isso, caso se verificasse que o requerimento de interposição do
recurso não tivesse indicado algum dos elementos previstos no artigo 75.º‑A da
Lei n.º 28/82, deveria o M.º Juiz Desembargador Relator ter convidado a ora
reclamante a prestar essa indicação – artigo 75.º‑A, n.º 5, da Lei n.º 28/82 – o
que não foi feito, limitando‑se o douto despacho a indeferir o requerimento de
interposição do recurso e a condenar a ora reclamante na quantia
desproporcionada de 3 Ucs de taxa de justiça por este incidente, 3Ucs essas que
se somam a 4 Ucs que também de forma excessiva (quer por indevida quer pelo
valor em si) a título de condenação por má fé. É de facto demasiado para quem
espera que a Justiça lhe faça justiça.
O douto acórdão intitula o incidente da interposição de recurso de carácter
anómalo, sendo certo que o incidente é o meio adequado à actuação do Tribunal
recorrido.
O douto despacho assim como o douto acórdão recorrido constituem verdadeira
denegação da justiça e uma clara violação do princípio da legalidade – artigos
18.º e 20.º da CRP.
Obviamente, se a reclamante tivesse tido conhecimento ou sequer suspeitasse que
a decisão constante do douto acórdão recorrido iria violar norma constitucional,
a ora reclamante teria arguido a respectiva inconstitucionalidade durante o
processo.
Tratou‑se de uma decisão surpreendente, inopinada e inusitada, como resulta da
reclamação.
Termos em que deve ser admitido o recurso interposto seguindo o processo os
ulteriores termos até final.”
No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério
Público emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação carece manifestamente de fundamento.
Na verdade, a questão suscitada é desprovida de natureza normativa: nem a
reclamante suscitou, durante o processo, qualquer questão de
inconstitucionalidade de «normas», nem sequer o fez no âmbito do requerimento
de interposição de recurso ou do que corporiza a presente reclamação –
controvertendo, não qualquer critério normativo, inferível dos preceitos legais
questionados, mas, pura e simplesmente, a concreta e casuística solução que foi
dada ao incidente de reforma deduzido.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A reclamante não impugna, em rigor, a ocorrência do
fundamento invocado no despacho reclamado para não admitir o recurso de
constitucionalidade: a falta de suscitação da questão de inconstitucionalidade
“durante o processo”.
Na presente reclamação sustenta a reclamante que a
interpretação e aplicação das normas questionadas, feitas no acórdão de 9 de
Março de 2006, constituiu uma “decisão‑surpresa”, não lhe sendo exigível que
procedesse à prévia invocação da inconstitucionalidade de uma interpretação
normativa de todo inesperada.
No entanto, não lhe assiste razão, desde logo porque o
acórdão recorrido, ao negar provimento ao agravo, reiterou o critério que,
quanto à excepção da ilegitimidade activa, havia sido subscrito pelo despacho
saneador então impugnado, pelo que a ora reclamante teve oportunidade de,
justamente nas alegações do agravo desse despacho, suscitar a questão de
inconstitucionalidade que reputasse relevante.
Recorde‑se que o despacho saneador em causa decidira o
seguinte:
“A., L.da, (…) veio propor a presente acção declarativa sob a forma de processo
sumário contra B., L.da, (…).
Pede que, pela procedência da acção, se condene a ré a pagar à autora o valor
das obras na casa das máquinas e para a correcta iluminação das piscinas, a
apurar em execução de sentença.
Alega que foi nomeada administradora das construções existentes no lote
5.1.10.3.D (piscina/zona verde), em Vilamoura, e que nesse lote a ré construiu
duas piscinas com respectivo sistema de chuveiros, passeios circundantes e casa
das máquinas e zona de jardim, que depois vendeu aos comproprietários.
Sucede que a casa das máquinas e a iluminação das piscinas apresentam defeitos –
alegados nos artigos 5.º e seguintes da petição inicial – e a ré, embora
interpelada para tanto, não procedeu às devidas reparações e correcções.
Assim, e porque a falta de reparação põe em risco a segurança, saúde e
integridade física dos comproprietários e demais utentes do imóvel, tencionam os
comproprietários efectuar as obras necessárias, pretendendo com esta acção que
seja a ré condenada a pagar o valor das mesmas, que se liquidará em execução de
sentença.
(…)
Suscita‑se nos autos a eventual ilegitimidade activa, o que se passará a
apreciar de seguida.
Atendendo ao alegado pela autora (considerando a petição inicial aperfeiçoada),
constata‑se que esta alega que a ré construiu e vendeu aos comproprietários do
lote duas piscinas e equipamentos.
Assim, perante os factos alegados, estará em causa um contrato de compra e venda
e a invocação de vícios do mesmo, a que se aplicaria o regime previsto no artigo
916.º do Código Civil (sem prejuízo, se fosse o caso, da aplicação do regime da
empreitada, nos termos do artigo 1225.º, n.º 4, do Código Civil).
Aqui, e desde logo, importa assinalar que não se mostra suficientemente
esclarecido o objecto da compra e venda – se se tratou apenas da compra das
piscinas e equipamentos (?) ou se se tratou da compra de um prédio, onde se
incluiriam essas piscinas e equipamentos. Sendo certo que o tribunal formulou o
adequado convite ao aperfeiçoamento, que não mereceu a necessária resposta da
autora (conforme consta no antepenúltimo parágrafo de fls. 81).
Em segundo lugar, e sem prejuízo do acima referido, constata‑se que não estamos
perante uma fracção autónoma ou partes comuns de prédio constituído em regime
de propriedade horizontal.
A própria autora alega que se trata de construções existentes em lote, cujo
direito de propriedade pertence a várias pessoas em comum, o que também resulta
da certidão predial junta aos autos. É certo que posteriormente, e sem qualquer
explicação, é junta uma escritura de constituição de propriedade horizontal.
Porém, parece resultar que tal, eventualmente, se referirá a um dos edifícios
existentes no aludido lote, e sem resultar que as piscinas em causa integrem
esse concreto prédio.
Sublinhe‑se que o tribunal formulou o devido convite ao aperfeiçoamento, pelo
que não será admissível segundo convite com o mesmo objecto – razão porque esse
segundo convite não foi formulado, para além do que mais adiante será apreciado.
Posto isto, e tendo presente as apontadas deficiências na alegação da autora,
teremos que esta alega que os comproprietários do lote celebraram um contrato de
compra e venda com a ré, tendo como objecto as piscinas e equipamentos.
Assim sendo, e sem prejuízo de outras considerações que se tecessem a propósito
dessa alegação, resultará logo a questão de saber se a autora, por si, dispõe de
legitimidade para intentar a presente acção.
O conceito de legitimidade processual encontra‑se plasmado no artigo 26.º do
Código de Processo Civil.
Deste modo, e na falta de indicação da lei em contrário, são considerados
titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da
relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Ora, como o autor configura a relação material controvertida são sujeitos da
mesma, no lado passivo a ré (vendedora), e no lado activo os comproprietários,
enquanto adquirentes das construções. Em caso algum é sujeito dessa relação
material a própria autora.
Note‑se que o administrador do condomínio dispõe de legitimidade para instaurar
acções, nos termos do artigo 1437.º do Código de Processo Civil, no entanto, no
caso, não estamos em sede do regime de propriedade horizontal – repita‑se, não
se trata de partes comuns de edifício constituído em regime de propriedade
horizontal.
Também, não será o caso de propriedade horizontal de conjuntos de edifícios, nos
termos previstos no artigo 1438.º‑A do Código de Processo Civil. Para tanto,
seria necessário alegar que estaríamos perante um conjunto de edifícios
contíguos funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns
afectadas ao uso de todas ou algumas unidades ou fracções que os compõem –
alegação essa que não foi apresentada pela autora (nem na originária petição
inicial nem na aperfeiçoada), e nem resulta dos documentos juntos.
Mais uma vez, é de referir que o tribunal, confrontado com as deficiências na
petição inicial, quer no que respeita à legitimidade, quer no que respeita ao
mérito da acção, convidou a autora a esclarecer donde resultava o direito por si
invocado e concretamente donde resultava a alegada obrigação da ré e perante
quem esta se obrigara. A resposta da autora, ainda assim com patentes
deficiências, quanto à matéria da legitimidade, veio no sentido atrás
mencionado, permitindo concluir que a relação em causa não a envolvia.
Acresce que a entender‑se de modo diferente, nesta acção seria apreciado o
pedido de pagamento à autora do valor das obras a realizar, quando a autora nada
acordou com a ré, nem as obras seriam custeadas por ela, autora.
Em conclusão, porque não é aplicável o regime de propriedade horizontal, e tal
como a autora configura a relação material controvertida, quem deveria figurar
no lado activo seriam os alegados comproprietários.
Enquanto isso, a autora apresenta-se em juízo por si, e formula uma pretensão a
seu favor (e não dos comproprietários).
Por tudo isto, entende‑se que a autora é parte ilegítima – excepção dilatória de
conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 494.º, alínea e), e 495.º, ambos
do Código de Processo Civil.
A consequência da verificação dessa excepção é a absolvição da instância da ré,
conforme dispõe o artigo 493.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, decide‑se julgar verificada a excepção de ilegitimidade activa e,
consequentemente, absolver da instância a ré, B., L.da.”
Nas alegações do agravo interposto deste despacho, a ora
reclamante não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
limitando‑se a imputar a essa decisão judicial a violação de disposições de
direito ordinário, como resulta das respectivas conclusões, do seguinte teor:
“1 – A ora recorrente, por força do mandato que lhe foi conferido pelo
comproprietários através da acta da assembleia de comproprietários junta a
fls.... dos autos como doc. 2 com a petição inicial, dispõe de legitimidade para
intentar a presente acção.
2 – A ora recorrente apresenta‑se nos autos em representação dos
comproprietários das construções em causa na qualidade de administradora
nomeada.
3 – Os pagamentos peticionados são a favor dos comproprietários – a ora
recorrente é parte no processo em representação dos comproprietários.
4 – O peticionado pagamento à ora recorrente do valor das obras a realizar
resulta dos poderes do mandato que à ora recorrente foi conferido pelos
comproprietários.
5 – Pelo que viola a douta decisão a quo o disposto nos artigos 26.º, 494.º,
alínea e), e 495.º, todos do CPC e artigo 985.º do Código Civil ex vi dos
artigos 1407.º e 1157.º do mesmo diploma legal.”
Ao agravo foi negado provimento pelo referido acórdão de 9 de
Março de 2006, com a seguinte fundamentação (omitiram‑se as notas de rodapé):
“No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso
apresentada pela ora agravante que o objecto do presente recurso está
circunscrito a uma única questão: a de saber se a ora recorrente, por força do
mandato que lhe foi conferido pelos comproprietários através da acta da
assembleia de comproprietários junta aos autos como doc. 2 com a petição
inicial, dispõe de legitimidade para intentar a presente acção.
(…)
Como é sabido, a legitimidade em sentido processual (a lei emprega, por
vezes, o termo legitimidade num outro sentido, dito material) representa, ao
contrário do que ocorre com os demais pressupostos processuais subjectivos
relativos às partes (personalidade, capacidade, patrocínio judiciários) – os
quais assistem ou faltam à parte em todos os processos ou, pelo menos, num
grande número de processos, sendo, portanto, qualidades processuais do sujeito
em si – «uma posição da parte em relação a certo processo em concreto – melhor,
em relação a certo objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à
questão de que esse processo se ocupa».
Resulta do artigo 26.º, n.º 3, do CPC que, sempre que a lei não disponha de
outro modo, considerar‑se‑ão como titulares do interesse relevante para o efeito
da legitimidade (tenha‑se presente que a lei, no n.º 1 do mesmo artigo 26.º,
«define a legitimidade [como poder de dirigir o processo] através da
titularidade do interesse em litígio») os sujeitos da relação material
controvertida.
A regra é, pois, a de que «a legitimidade das partes advém da sua posição de
sujeitos da relação material controvertida». Dito doutro modo: «Em regra,
portanto, afere‑se da legitimidade comparando os sujeitos da relação jurídica
subjacente com os sujeitos da relação jurídica processual (partes)».
Quanto à questão de saber qual é a «relação jurídica controvertida» que serve de
base à aferição da legitimidade das partes (ou a que é configurada
unilateralmente pelo autor ou a que se apresenta ao tribunal depois de ouvidas
ambas as partes e de examinadas as razões de uma e outra), existiu, entre nós,
uma longa querela doutrinária na qual, durante décadas, o legislador não tomou
partido, só tendo, finalmente, tomado posição expressa sobre a vexata questio do
estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes aquando
da Reforma do Código de Processo Civil operada pelos Decretos‑Leis n.ºs
329‑A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro, altura em que foi
adoptada (na nova redacção então conferida ao n.º 3 do citado artigo 26.º do
CPC) uma formulação semelhante à que já constava do Decreto‑Lei n.º 224/82, de 8
de Junho – diploma que, porém, nunca chegou a entrar em vigor –, assente na
titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor.
De resto, a concepção que, desde há muito, vinha já sendo maioritariamente
sufragada pela jurisprudência, antes mesmo da citada Reforma processual de
1995/1996, é a de que as partes só são ilegítimas quando, tomada a relação
jurídica material controvertida tal como a configura o autor na petição inicial,
elas não são os sujeitos desta (tese de Barbosa de Magalhães).
É, por isso, de concluir que «a legitimidade tem de ser apreciada e determinada
pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção
possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito
invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de
pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o
autor».
Ora, no caso dos autos, a autora configurou a relação material controvertida
por forma tal que os sujeitos do contrato de compra e venda, cujo pretenso
incumprimento (por banda do vendedor) fundamenta o pedido condenatório
formulado nesta acção seriam, de um lado, os comproprietários do lote de terreno
onde se situam uma piscina e os respectivos equipamentos de apoio e, do outro, a
sociedade ora ré.
A esta luz, é óbvio que, não se atribuindo a autora a si própria a qualidade de
sujeito do contrato de compra e venda em cujo alegado incumprimento se funda o
pedido condenatório deduzido contra a sociedade ora ré, contrato esse em que a
posição de comprador seria encabeçada pelos vários comproprietários do lote de
terreno onde tal piscina e equipamento foram erigidos, ela (autora) carece,
manifestamente, de legitimidade activa.
Acresce que o lote de terreno onde se encontra erigida a referida piscina e
respectivos equipamentos de apoio não está sequer constituído em propriedade
horizontal, sendo antes propriedade de diversas pessoas, no número das quais não
figura a autora. Pelo que aquela piscina e os respectivos equipamentos não
constituem partes comuns de nenhum edifício constituído em propriedade
horizontal, cuja administração tivesse sido confiada à ora autora/agravante (nos
termos do artigo 1435.º do Código Civil). O que liminarmente exclui a aplicação
ao caso dos autos do disposto no artigo 1437.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Civil.
A circunstância de – segundo é alegado pela autora – os vários comproprietários
do lote de terreno onde está erigida a mencionada piscina e os respectivos
equipamentos terem deliberado, numa reunião que entre si levaram a cabo,
mandatar a aqui autora/agravante para que «procedesse à notificação das
construtoras ora rés para executarem as obras necessárias à
eliminação/reparação dos defeitos existentes, no prazo de sessenta dias,
devendo as obras ter inicio num prazo de trinta dias, após a última notificação
ou, caso as obras não fossem executadas nos referidos prazos, que fossem
executadas pelos comproprietários, pelo valor do orçamento obtido pela
requerente, sendo as construtoras responsáveis pelo pagamento das mesmas
acrescido dos respectivos juros legais», não altera minimamente os dados do
problema.
Na verdade – como bem observa a ré ora agravada (nas suas contra‑alegações) –,
«a recorrente veio demandar em nome próprio, embora sobre direito
reconhecidamente alheio, tendo interposto acção em que figura ela como autora».
Ora, «ao agir em juízo como se fosse a própria parte, titular da relação
material controvertida, a autora age, não como mandatária, mas como substituta
processual dos verdadeiros interessados». «Porém, o fenómeno da substituição
processual só é admitido nos casos expressamente previstos na lei, como na acção
sub‑rogatória, não se estendendo a casos como o presente».
Eis por que o saneador objecto do presente recurso de agravo nenhuma censura
merece, ao ter julgado a autora parte ilegítima por falta de legitimidade
activa.”
Esta decisão, como é patente, confirmativa do decidido no
despacho saneador agravado, e em consonância com correntes doutrinárias e
jurisprudenciais dominantes, nada tem de inesperado ou surpreendente, em termos
de dispensar a recorrente do ónus de prévia suscitação da questão de
inconstitucionalidade.
Acresce que nem sequer no pedido de reforma do anterior
acórdão – embora esse momento não fosse já adequado para o efeito – a ora
reclamante suscitou a questão de inconstitucionalidade identificada no
requerimento de interposição do presente recurso.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Outubro de 2006.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos