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Processo n.º 1055/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.O presente recurso de constitucionalidade foi interposto pelo representante do
Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho de Bragança, ao abrigo dos
artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 3 da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, da decisão do Juiz do
Tribunal do Trabalho de Bragança de 25 de Novembro de 2005, que, no âmbito do
processo por acidente de trabalho n.º 99/1960 – no qual figura como sinistrado
A., como beneficiária da pensão B. (mãe), e como entidade responsável a
Companhia de Seguros C., S.A. –, julgou inconstitucional a norma do artigo 56.º,
n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, por entender que
essa norma, quando interpretada no sentido de prever uma remição obrigatória
total, isto é, independentemente da vontade do titular, de pensões atribuídas
por incapacidades parciais permanentes superiores a 30% ou por morte, viola o
princípio da justa reparação dos danos emergentes de acidentes laborais,
consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República
Portuguesa. Tal decisão tem o seguinte teor:
«(…)
2. Nos termos dos artigos 33.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e
56.°, n.º 1, alíneas a) e b), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril,
aplicável às pensões resultantes de acidentes ocorridos antes da sua entrada em
vigor, por força do disposto no artigos 41.º, n.º 2, alínea a), da Lei, passaram
a ser obrigatoriamente remíveis as pensões anuais devidas a sinistrados e a
beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam superiores a seis vezes
a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão e
as devidas a sinistrados, independentemente do valor da pensão anual, por
incapacidade permanente e parcial inferior a 30%.
Alinhamos com a posição expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
13 de Julho de 2004 (n.º convencional JSTJ000, in http://www.dgsi.pt), no
sentido de que a data da fixação da pensão não pode ser entendida como a data da
decisão judicial que a fixou, mas antes a data a partir da qual a pensão é
devida. Esta tese não colide, salvo melhor entendimento, com a uniformização de
jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.º
4/2005, publicado no Diário da República, I Série-A, de 2 de Maio de 2005.
Ora, a pensão em causa é devida à beneficiária desde 16/11/1960. Por sua vez, o
seu valor inicial era de 826$00 (€ 4,12), ou seja, era inferior a seis vezes a
remuneração mínima mensal garantida mais elevada estabelecida pela primeira vez
pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27/05, que era de 3.300$00 (€ 13,64).
Estariam, pois, à partida, reunidos os pressupostos necessários à remição
obrigatória da pensão.
3. Contudo, tal como vem sendo entendido pelo Tribunal Constitucional
relativamente às pensões emergentes de incapacidades parciais permanentes
superiores a 30%, também no caso de pensões vitalícias por morte devidas aos
beneficiários legais, as normas dos artigos 56.º, n.º 1, alínea a), e 74.º do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, estão feridas de inconstitucionalidade
por violação do direito à justa reparação por acidente de trabalho ou doença
profissional, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição,
quando interpretadas no sentido de imporem a remição obrigatória total dessas
pensões vitalícias, independentemente da vontade do pensionista.
Transcreve‑se, por elucidativa, parte da fundamentação do Acórdão n.º 56/2005 do
Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, II Série, n.º 44, de
3 de Maio de 2005, doutamente relatado pelo Ex.mo Conselheiro Paulo Mota Pinto,
no qual se apreciou a inconstitucionalidade material do citado artigo 74.º do
Decreto-Lei n.º 143/99, quando interpretado no sentido de abranger no conceito
de pensões de reduzido montante todas as pensões infortunísticas laborais,
incluindo nelas as situações de total ou elevada incapacidade permanente:
«5. No Acórdão n.º 379/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 54.º, págs. 313‑321) escreveu‑se, a propósito, então, do artigo 56.º do
Decreto‑Lei n.º 143/99, que a ‘filosofia subjacente’ à remição obrigatória de
pensões prevista no seu n.º 1, segundo dois diferentes critérios – o do montante
diminuto da pensão, segundo a alínea a), e o do grau de incapacidade laboral,
nos termos da alínea b) – e à remição facultativa de pensões, prevista no seu
n.º 2, era:
‘[...] a de permitir que a compensação correspondente à pensão fixada ao
trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional, não
impeditivos de posterior exercício da sua actividade, possa converter‑se em
capital e, assim, ser aplicada porventura de modo mais rentável do que a
permitida pela mera percepção de uma renda anual.
Se a via que o legislador encontrou é válida perante uma incapacidade diminuta,
a que corresponda montante de pensão reduzido, já não o será em casos de maior
gravidade, de modo a colocar, porventura, em causa, dada a álea inerente, a
aplicação do capital. Daí o não se aceitar que, nos casos de incapacidade de
trabalho fixada em maior percentagem, com natural repercussão no montante da
pensão, se estabeleça uma limitação ao poder de o trabalhador pedir ou não a
remição, reflectida na obrigatoriedade de a esta se proceder.’
Tal interpretação da teleologia das normas é corroborada pela salvaguarda, no
n.º 2 do artigo 33.° da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, de um limite máximo à
remição parcial em situações de ‘incapacidade igual ou superior a 30%’ (‘desde
que a pensão sobrante seja igual ou superior a 50% do valor da remuneração
mínima mensal garantida mais elevada’), e pela inexistência de previsão de ‘um
capital de remição’, no artigo 17.° da Lei n.º 100/97, para situações em que a
incapacidade fosse superior a 30%. (...).
Em todo o caso, o argumento mais relevante apresentado pela decisão recorrida
contra a conformidade constitucional da norma do artigo 74.° do Decreto‑Lei n.º
143/99 (na redacção dada pelo artigo 2.° do Decreto‑Lei n.º 382-A/99, e na
interpretação que foi efectuada pela decisão recorrida, que o Tribunal
Constitucional tem de aceitar como um dado no presente recurso) foi, justamente,
o dos limites à teleologia da remição: nesses casos de incapacidade elevada, ‘só
a subsistência de uma pensão vitalícia poderá precaver o sinistrado contra o
destino, eventualmente aleatório, do capital resultante da remição obrigatória,
em casos como o sub judice’.
Neste ponto, a decisão recorrida foi também ao encontro da ponderação reiterada
pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/99 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 43.º, págs. 597‑603), no qual se pode ler:
“O estabelecimento de pensões por incapacidade tem em vista a compensação pela
perda da capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a infortúnios de que
foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor.
E, por isso, compreende-se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada, o
que o mesmo é dizer que o acidente de trabalho ou a doença profissional não
implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador
(ainda que tenha reflexo, mesmo em medida não muito relevante, na retribuição
por aquele desempenho, justamente pela circunstância de não apresentar uma total
capacidade de trabalho), se permita que a compensação correspondente à pensão
que lhe foi fixada – e sabido que é que, de uma banda, o montante das pensões é
de pouco relevo e, de outra, que o quantitativo fixado se degrada com o passar
do tempo – possa ser “transformada” em capital, a fim de ser aplicada em
finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção
de uma “renda” anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência
digna a quem quer que seja.
Transformação essa que ocorrerá a requerimento do trabalhador ou da entidade
responsável pelo pagamento da pensão, ou, até, obrigatoriamente, por força da
própria lei, neste último caso quando a incapacidade for diminuta (até 10%) e o
montante da pensão for reduzido.
Outro tanto se não passará quando em causa se postarem acidentes de trabalho ou
doenças profissionais cuja gravidade seja de tal sorte que vá acentuadamente
diminuir a capacidade laboral do trabalhador e, reflexamente, a possibilidade de
auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna subsistência. Nestas
situações, e porque a pensão é, necessariamente, de mais elevado montante,
servirá ela de complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em
consequência da reduzida capacidade de trabalho.
Se o montante dessas pensões se perspectivar como algo que actua (ou actuaria
desejavelmente) como um mínimo de asseguramento de subsistência então
compreende-se que o legislador pretenda, como assinala o Ex.mo Procurador-Geral
Adjunto na sua alegação, “colocar o trabalhador a coberto dos riscos de
aplicação do capital de remição”.
Efectivamente, a aplicação de um capital – ainda que no momento em que essa
intenção é formulada se apresente como um investimento adequado, porquanto
proporcionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à
percepção da pensão anual – é sempre alguma coisa que, em virtude de ser
aleatória, comporta riscos.
E daí se aceitar que, nos casos em que a incapacidade de trabalho se situa em
maior percentagem (com o consequente maior montante da pensão), o legislador,
para ressalva do próprio trabalhador que dessa incapacidade padece, não autorize
a remição das respectivas pensões, desta sorte estabelecendo uma limitação ao
poder do trabalhador de pedir ou não a remição.”
Neste Acórdão n.º 302/99 (bem como no Acórdão n.º 482/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional pronunciou‑se sobre a
conformidade constitucional de disposições que vedam a remição de certas pensões
‘a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis’, e julgou‑as
inconstitucionais por violação das disposições conjugadas dos artigos 13.°, n.º
1, 59.°, n.º 1, alínea f), e 63.°, n.º 3, da Constituição.
No presente caso, o problema é de certa forma inverso, pois não está em causa a
limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo
da pensão, não seria mais compensador a efectivação da remição (que redundava –
disse-se –, ‘verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente
infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social
proteja adequadamente [...] o direito dos trabalhadores à justa reparação,
quando vítimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional [artigo 59.°,
n.º 1, alínea f), do diploma básico]’), mas antes a limitação a continuar a
receber a pensão, pela imposição de uma remição obrigatória, para todas as
pensões infortunísticas laborais, mesmo que por incapacidades parciais
permanentes que excedam 30%.
Todavia, também no presente caso a interpretação em causa redunda numa limitação
do poder de o trabalhador ponderar se é menos arriscado continuar a receber a
pensão e recusar a remição – numa imposição do risco do capital a receber –, a
qual, com a extensão que a dimensão normativa admite, tornaria precário e
limitaria o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de
acidente de trabalho ou doença profissional.
6. (…)
Pode, assim, concluir-se, como nos acórdãos citados, que a remição total
obrigatória – isto é, independentemente da vontade do beneficiário – de uma
pensão vitalícia atribuída por uma incapacidade parcial permanente superior a
30% é inconstitucional por violação do direito à justa reparação por acidente de
trabalho ou doença profissional, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição.»
4. Os ensinamentos resultantes da jurisprudência constitucional citada, embora
se refiram ao artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, valem
igualmente para o artigo 56.º, n.º 1, alínea a), quando interpretado no sentido
de impor a remição obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do
titular, de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores
a 30%, na medida em que, ao impor uma limitação ao direito do sinistrado poder
optar, ou pela remição, ou, antes, pelo recebimento da sua pensão sob a forma de
renda anual, tal interpretação põe em causa o princípio constitucional do
direito à justa reparação por acidente de trabalho ou doença profissional
estabelecido no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
E valem também, salvo melhor entendimento, nos casos em que o pensionista não é
o trabalhador sinistrado, mas antes um seu beneficiário legal.
Com efeito, a lei estende o regime especial da reparação dos acidentes de
trabalho aos familiares dos trabalhadores, como decorre do disposto no artigo
1.º da Lei n.º 100/97, o que se justifica, na medida em que aqueles familiares
beneficiam, se não mesmo dependem, dos rendimentos do trabalho por estes
auferidos. Como decorre do disposto no artigo 20.º da referida lei, o direito
desses familiares é reconhecido, nuns casos, independentemente de estes terem ou
não rendimentos próprios (cônjuge ou pessoa em união de facto e filhos até aos
25 anos enquanto frequentarem ensino médio ou superior ou quando afectados de
doença física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho) e,
noutros casos, porque o trabalhador contribuía regularmente para o seu sustento
(ascendentes ou quaisquer parentes sucessíveis à data da morte até aos 25 anos
enquanto frequentarem ensino médio ou superior ou quando afectados de doença
física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho). Em todas as
situações, o pressuposto da atribuição ao beneficiário legal de uma pensão por
morte do trabalhador sinistrado é o da contribuição deste, presumida ou
efectiva, para o sustento daquele. Daí que a pensão por morte atribuída aos
beneficiários legais tenha a natureza de uma prestação de carácter alimentício,
que, se para uns funcionará como um complemento aos seus meios de subsistência,
para outros será o principal, se não mesmo o único meio de assegurar uma
subsistência condigna.
Em qualquer caso, o direito constitucional à justa reparação dos danos
emergentes de acidente de trabalho postula que, à semelhança do que sucede no
caso do pensionista ser o próprio trabalhador sinistrado, seja o beneficiário
legal, no seu livre arbítrio, a decidir qual a forma de reparação que melhor lhe
convém, isto é, a optar entre o recebimento da sua pensão em duodécimos e o
recebimento de um capital de remição, ponderando os riscos inerentes à sua
aplicação.
Em abono de tal entendimento, transcreve‑se uma passagem do douto Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 379/2002, proc. n.º 172/02, de 26 de Fevereiro de
2002, publicado no Diário da República, II Série, n.º 290, de 16 de Janeiro de
2002 (citado, aliás, no Acórdão n.º 56/2003 supra referido), que, embora se
tivesse pronunciado pela conformidade constitucional da remição de pensões por
morte de reduzido montante perspectivada sob o prisma do princípio da igualdade
quando comparadas com outras pensões por morte que não sejam consideradas de
reduzido montante, não deixou de adiantar a desconformidade constitucional da
remição das mesmas pensões à luz do principio da justa reparação dos acidentes
de trabalho:
«5. (...).
No caso sub judice o beneficiário da pensão não é o próprio sinistrado, uma vez
que este morreu, mas poder‑se‑á defender que, também aqui, haverá que proceder a
idêntica ponderação: se, face a um quadro em que as pensões tendem
inevitavelmente a degradar‑se, se consideraram inconstitucionais as normas que
estabelecem ‘uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição’,
justificar-se-ia também um juízo de inconstitucionalidade para uma interpretação
normativa que, por morte do trabalhador, impõe a remição obrigatória das
pensões, sujeitas a actualizações anuais e ajustes por idade dos beneficiários,
para assim se salvaguardar a liberdade de o beneficiário correr os riscos do
capital de remição (...).»
A mesma ponderação é feita, num caso semelhante, no Acórdão n.º 21/2003, do
Tribunal Constitucional, de 15 de Janeiro de 2003, publicado no Diário da
República, II Série, n.º 42, de 19 de Fevereiro de 2003, no qual se refere, a
dado passo, que «tal como naquelas [Acórdãos n.ºs 302/99 e 482/99] anteriores
decisões (face a um quadro em que as pensões tendiam inevitavelmente a
degradar-se) se consideraram inconstitucionais as normas que estabeleciam ‘uma
limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição’, dir-se-ia que
haveria que chegar agora a um juízo de inconstitucionalidade da interpretação da
norma (...) que impõe a remição obrigatória de pensões, por morte do
trabalhador, sujeitas a actualizações anuais e reajustes por idade dos
beneficiários, desde que tenham a oposição destes, para se salvaguardar a
liberdade de o beneficiário ‘correr os riscos de aplicação do capital de
remição’, como naquelas decisões.»
Conclui-se, pois, que a interpretação do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, no sentido de impor a remição
obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular, de pensões
vitalícias atribuídas por morte aos beneficiários legais do sinistrado falecido,
defendida pela seguradora responsável e pela Digna Procuradora da República, põe
em causa o princípio constitucional do direito à justa reparação por acidente de
trabalho ou doença profissional, estabelecido no artigo 59.º, n.º 1, alínea f),
da Constituição, na medida em que impõe uma limitação ao direito do
beneficiário‑pensionista poder optar, ou pela remição, ou, antes, pelo
recebimento da sua pensão sob a forma de renda anual.
5. Pelo exposto, considerando que a beneficiária nestes autos, pelo seu
silêncio, se opôs à remição da sua pensão, decide-se não aplicar, por
inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição, a norma resultante do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, quando interpretada no sentido de impor
a remição obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular, de
pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores a 30% ou
por morte, e, consequentemente, indeferir a requerida remição obrigatória da
pensão fixada nestes autos à beneficiária B..»
2.Admitidos os autos no Tribunal Constitucional as partes foram notificadas para
alegar.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
apresentou alegações, concluindo pela seguinte forma:
«1 – Face à firme corrente jurisprudencial, formada na esteira do decidido no
acórdão n.º 56/05, não se conforma com o princípio constitucional da justa
reparação dos danos emergentes de acidentes laborais, estabelecido no artigo
59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa o regime que se
traduz em impor ao trabalhador/sinistrado ou, no caso de morte, ao
familiar/beneficiário – contra a sua vontade, tida por manifestada no processo –
a obrigatória remição das pensões vitalícias que – independentemente do seu
montante pecuniário – visam compensar graus elevados – superiores a 30% – de
incapacidade laboral.
2 – Tal entendimento tanto se justifica quanto às pensões fixadas anteriormente
à vigência do Decreto-Lei n.º 143/99 (previstas no artigo 74.º), como às pensões
decorrentes de acidentes já ocorridos após vigorar este diploma legal, cuja
remição obrigatória está prevista e regulada no artigo 56.º.
3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – em consequência da
remição da pensão – certos trabalhadores ou beneficiários receberem um capital
indemnizatório, que passam a administrar livremente, enquanto os restantes
continuam a receber uma indemnização expressa em pensão ou renda vitalícia, não
objecto de remição.
4 – Porém, a norma constante do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei
n.º 143/99, ao impor, independentemente da vontade do trabalhador ou
beneficiário, a remição obrigatória total de pensões atribuídas por
incapacidades parciais permanentes superiores a 30%, ou por morte do sinistrado,
ofende o princípio constitucional da justa reparação de danos causados por
acidentes laborais.
5 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante
da decisão recorrida.»
A recorrida não apresentou contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.A única questão em causa no presente recurso é a da conformidade com o artigo
59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa – que consagra o
direito à justa reparação dos danos emergentes de acidentes laborais –, do
artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, quando
interpretada no sentido de impor a remição obrigatória total, isto é,
independentemente da vontade do titular, de pensões atribuídas por incapacidades
parciais permanentes superiores a 30% ou por morte.
Esta mesma norma foi recentemente julgada inconstitucional pelo acórdão n.º
457/2006, tirado na 2.ª Secção em 18 de Julho de 2006 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), e proferido no processo n.º 126/06, por se
considerar ser, na interpretação questionada, violadora do artigo 59.º, n.º 1,
alínea f), da Constituição da República Portuguesa. Pode ler-se nesse aresto:
«(…)
Conforme se refere nas alegações do Ministério Público, era sustentável – face à
situação de facto subjacente à decisão recorrida, reportada a acidente de
trabalho ocorrido em 1986 – que se considerasse aplicável o disposto no artigo
74.º, e não directamente o estatuído no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril.
No entanto, foi esta última a norma cuja aplicação foi expressamente recusada,
com fundamento na sua inconstitucionalidade, pela decisão recorrida, pelo que é
a questão da sua conformidade constitucional que constitui objecto do presente
recurso, embora circunscrita à dimensão delimitada pela situação subjacente à
decisão. Isto é: constitui objecto do presente recurso a norma constante do
artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril,
interpretada no sentido de impor a remição obrigatória de pensões devidas por
acidentes de trabalho, ocorridos anteriormente à data da entrada em vigor desse
diploma, de que haja resultado a morte do sinistrado, que não sejam superiores a
seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação
da pensão, opondo‑se o beneficiário à remição.
São numerosas as decisões deste Tribunal sobre a presente problemática, embora
incidindo em casos em que beneficiário da pensão é o próprio sinistrado e do
acidente haja resultado incapacidade parcial permanente superior a 30%.
Pelo Acórdão n.º 34/2006, na sequência do Acórdão n.º 56/2005 e das Decisões
Sumárias n.ºs 234/2005 e 247/2005, foi declarada “a inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, da norma constante do artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º
143/99, de 30 de Abril, na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 382‑A/99, de 22 de
Setembro, interpretado no sentido de impor a remição obrigatória total de
pensões vitalícias atribuídas por incapacidades parciais permanentes do
trabalhador/sinistrado, nos casos em que estas incapacidades excedam 30%, por
violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República
Portuguesa”. Esse juízo de inconstitucionalidade foi reiterado no Acórdão n.º
73/2006 e da aludida declaração de inconstitucionalidade foi feita aplicação nos
Acórdãos n.ºs 82/2006 e 112/2006 e nas Decisões Sumárias n.ºs 34/2006, 36/2006,
38/2006, 39/2006, 48/2006, 76/2006, 180/2006, 219/2006 e 234/2006.
E, relativamente à norma, ora em causa, do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, cuja aplicação fora recusada, com fundamento em
inconstitucionalidade, pelas decisões recorridas (embora se tratasse de
acidentes ocorridos antes da entrada em vigor desse diploma), o Tribunal
Constitucional, considerando transponível a fundamentação desenvolvida a
propósito do artigo 74.º, julgou‑a inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 58/2006,
118/2006, 204/2006, 292/2006, 322/2006 e 323/2006. Este juízo de
inconstitucionalidade foi reiterado nas Decisões Sumárias n.ºs 87/2006,
102/2006, 110/2006, 111/2006, 128/2006, 129/2006, 131/2006, 144/2006, 145/2006,
148/2006, 159/2006, 160/2006, 195/2006, 207/2006, 261/2006 e 262/2006, na
generalidade das quais nenhuma alusão se faz à data do acidente. Constituiu
fundamento do juízo de inconstitucionalidade constante de todos os Acórdãos e
Decisões Sumárias acabados de citar a violação do artigo 59, n.º 1, alínea f),
da Constituição da República Portuguesa, e, nos Acórdãos n.ºs 322/2006 e
323/2006 (embora com votos dissidentes quanto a este fundamento), ainda a
violação do princípio da confiança.
Recentemente, pelo Acórdão n.º 438/2006, o Tribunal Constitucional apreciou,
pela primeira vez, embora reportada ao artigo 74.º do citado diploma, a mesma
questão de inconstitucionalidade ora em causa, em que beneficiário da pensão não
era o sinistrado, já que do acidente resultou a sua morte, mas sim a sua viúva,
e decidiu “julgar inconstitucional, por violação conjugada do disposto na alínea
f) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição e do princípio da confiança, inerente
ao princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, a
norma constante do artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (na
redacção emergente do Decreto‑Lei n.º 382‑A/99, de 22 de Setembro), interpretada
no sentido de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas
por morte, opondo‑se o titular à remição, pretendida pela seguradora”.
Como nesse Acórdão se reconhece, “pese embora a circunstância de o titular (por
direito próprio, não por sucessão) do direito à pensão não ser, aqui, o
trabalhador, não se afasta o critério da tutela constitucional do direito à
«assistência e justa reparação» por «acidentes de trabalho» para aferir a
validade constitucional da norma em apreciação, já que o direito a pensão
desempenha, no fundo, uma função de substituição da contribuição que o
vencimento do trabalhador significava para a subsistência do beneficiário”.
Na verdade, apesar da formulação literal do preceito constitucional (“1. Todos
os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de
origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: (…) f) A
assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de
doença profissional.”), não parece sustentável que o direito à justa reparação
de acidente de trabalho fique circunscrito à pessoa do trabalhador. Nenhuma
razão material justificaria que, exactamente nos casos em que o sinistro laboral
teve mais graves consequências – a morte do trabalhador –, se tornasse mais
ténue a exigência constitucional da justiça da reparação.
É certo que para as situações em que o beneficiário da pensão não é o
trabalhador sinistrado não valem todos os argumentos aduzidos na jurisprudência
deste Tribunal atrás citada, em especial o que apela à maior ou menor valia do
salário que o trabalhador poderá continuar a auferir de acordo com a sua
capacidade residual de trabalho.
No entanto, o cerne do juízo de inconstitucionalidade radica em que a imposição
da remição de pensões, que o beneficiário já vinha auferindo e que não são de
reduzido montante, apesar da oposição desse beneficiário a essa remição (e,
assim, com desrespeito da autonomia da sua vontade), atenta a maior
aleatoriedade dos proventos que se poderão obter com a aplicação do capital face
à percepção regular da pensão, não assegura a “justa reparação”
constitucionalmente imposta.
Neste contexto, assume relevância a consideração, exposta na passagem transcrita
do Acórdão n.º 438/2006, da função, que a pensão tem, de substituição da
contribuição que o vencimento do trabalhador significava para a subsistência do
beneficiário.
Consideração que é assim desenvolvida:
“Essa função é, aliás, revelada pelos termos em que o artigo 20.º da Lei n.º
100/97 define, quer o círculo dos titulares, quer as condições da sua
atribuição.
Basta verificar que o direito é reconhecido a pessoas a quem o sinistrado, em
vida, estava legalmente obrigado a prestar alimentos ou, em certos casos, os
prestava de facto: cônjuge (cfr. artigos 1672.º, 1675.º, 2009.º, n.º 1, alínea
a), e 2015.º do Código Civil), ex‑cônjuge ou cônjuge judicialmente separado de
pessoas e bens com direito a alimentos (cfr. artigos 2009.º, n.º 1, alínea a), e
2016.º do Código Civil), filhos (cfr. artigos 1874.º, 1880.º, 2009.º, n.º 1,
alínea b), do Código Civil), ascendentes (cfr. artigo 2009.º, n.º 1, alínea b),
do Código Civil) e quaisquer parentes sucessíveis, desde que o sinistrado
«contribuísse com regularidade para o seu sustento». No último caso, há um
alargamento (subjectivo) em relação ao que consta do artigo 2009.º, alíneas d) e
e), do Código Civil, todavia contrabalançado com a exigência acabada de referir.
Quanto ao direito a pensão reconhecido ao unido de facto, há que ter em conta
que o artigo 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, exige, como condição de
atribuição da pensão, a reunião das condições constantes do artigo 2020.º do
Código Civil, ou seja, para que o agora interessa, a titularidade do «direito a
exigir alimentos da herança do falecido».”
Concluindo‑se, como se conclui, que a dimensão normativa ora em apreço viola o
disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da CRP, torna‑se desnecessário
apreciar se também ocorre violação do princípio da confiança.»
No presente caso, a dimensão normativa em questão é precisamente aquela que foi
objecto do julgamento do citado acórdão n.º 457/2006, pelo que, não se
suscitando qualquer questão nova, há apenas que reiterar esse juízo, remetendo
para os fundamentos do referido aresto, consequentemente negando provimento ao
recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 56.º, n.º 1, alínea a),
do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada no sentido de impor a
remição obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular, de
pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores a 30% ou
por morte;
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos