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Processo n.º 661/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 101 foi proferida a seguinte decisão sumária :
'1. Por sentença da 2.ª Secção da 4.ª Vara Cível do Porto de 3 de Fevereiro de
2006, de fls. 36, foi deferida a providência cautelar intentada por A., Lda.,
contra B., Lda.
Notificada da sentença, B., Lda., invocando não conseguir compreender a
caligrafia usada, veio «requerer que lhe seja notificada cópia dactilografada da
mesma, para poder tomar pleno e integral conhecimento do teor da decisão,
podendo assim, adoptar o comportamento processual que entender adequado».
O requerimento foi, porém, indeferido, por despacho de 17 de Fevereiro de
2006,de fls. 72, «dado que a letra manuscrita da decisão proferida nestes autos
é perfeitamente legível».
Notificada deste despacho, B. veio «expressamente não recorrer do mesmo pois,
via contacto telefónico com a secretaria foi possível inteirar-se das partes da
sentença ilegíveis». Ao mesmo tempo, «tendo tomado conhecimento integral do
despacho que ordena a providência, vem interpor recurso do mesmo, que é de
agravo, com subida imediata em separado» (cfr. fls. 73).
O recurso não foi, porém, admitido, por despacho de 8 de Maio de 2006, de fls.
74, do seguinte teor:
«Não admito o recurso interposto pela requerida “B.”, dado que desde a
notificação em 7.2.2006 (fls. 373) e a data de interposição do recurso 7.3.2006
(fls. 378), decorreram mais de 10 dias. O recurso é pois intempestivo – art.
685.º, n.º 1, CPC.»
Inconformada, B., Lda., reclamou do despacho de não admissão do recurso para o
Presidente do Tribunal da Relação do Porto. A reclamação foi indeferida por
despacho do Vice-Presidente do mesmo Tribunal de 23 de Maio de 2006, de fls. 82.
Na reclamação, B. invocara, designadamente, que
«(…)
49.º A norma do art. 685.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretada de
modo a que o prazo para interposição de recurso se não interrompa quando for
requerida passagem de cópia dactilografada da decisão, viola o art. 20.º, n.ºs
1, 4 e 5 da Constituição da República.
50.º A norma do art. 686.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretada de
modo a não ser aplicável ao pedido de cópia dactilografada da decisão, viola o
art. 20.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição da República.
(…)»
No mencionado despacho do Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto
afirmou-se o seguinte:
«A Reclamante não tem razão.
(…)
Se como alegou, o seu requerimento para obter cópia dactilografada era legal,
conforme à Jurisprudência dominante que cita, competia-lhe interpor recurso do
despacho de indeferimento, já que tal é o fim do recurso, a impugnação de
decisões judiciais pela parte que se considera com ela lesada ilicitamente.
Não o fez e disse-o expressamente no requerimento de fls. 73.
Os motivos que invocou para não o fazer não lhe atribuem o direito de interpor
recurso da decisão anterior, já com o prazo para tal excedido.
Não procede o argumento que tal se processaria como se de um esclarecimento da
decisão se tratasse, previsto no art. 686.º, n.º 1, do mesmo Código.
Pois que a previsão do preceito se não refere à faculdade de requerer cópias
legíveis das decisões, nos termos do art. 259.º, nomeadamente em obediência ao
princípio da cooperação do art. 266.º, n.º 4, também estes preceitos do CPC.
Bem, pois, decidiu o Mm.º Juiz contar o prazo para a interposição do recurso
da data da notificação da decisão de que se pretendia recorrer, de 7/2/06.»
Ainda inconformada, B., Lda., requereu o esclarecimento e rectificação do
despacho de 23 de Maio de 2006, o que foi indeferido por despacho de 23 de Junho
de 2006, de fls. 95.
No citado requerimento de esclarecimento e rectificação, a reclamante afirma que
«se o tribunal interpreta os referidos preceitos do Código de Processo Civil
como determinando que o prazo para recorrer tenha início na data da notificação
da sentença total ou parcialmente manuscrita, não obstante o requerimento de
cópia dactilografada (fundado na ilegibilidade da mesma ou na dificuldade ou
insegurança da sua leitura) em vez de ter início na data da notificação da
decisão tomada sobre o requerimento de passagem da cópia, com desconsideração e
não aplicação do regime do artigo 686.º, n.º 1, então o preceitos dos artigos
669.º e 686.º, tal como interpretados pelo Tribunal são inconstitucionais».
2. Juntamente com o pedido de esclarecimento e rectificação do despacho do
Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 2006, veio B.,
Lda., «interpor recurso do douto despacho que indeferiu a reclamação para o
Tribunal Constitucional, com fundamento no art. 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º
28/1982, de 15 de Novembro, por os arts. 669.º, 685.º e 686.º do Código de
Processo Civil, interpretados no sentido de que o requerimento a pedir cópia
dactilografada da decisão, com fundamento em impossibilidade ou dificuldade, ou
insegurança da leitura do texto manuscrito, não suspende o prazo para recurso,
violam o artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5 da Constituição da República».
3. A questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente prende-se,
fundamentalmente, com o âmbito de aplicação do disposto no artigo 686.º, n.º 1,
do Código de Processo Civil.
Segundo a recorrente, quer nos casos em que se requer a rectificação, aclaração
ou reforma da sentença, quer naqueles em que se pede a entrega de cópia
dactilografada da decisão proferida, o prazo para o recurso só começa a correr
depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento.
Uma interpretação diversa das normas mencionadas acarretaria a violação do
disposto no artigo 20.º da Constituição.
Trata-se, todavia, de uma alegação de inconstitucionalidade que é
manifestamente infundada.
Com efeito, poderia até fazer sentido discutir a questão de constitucionalidade
colocada no presente recurso na hipótese de não se encontrar prevista a
possibilidade de reagir contra uma decisão judicial que recusasse, como sucedeu
nos autos, satisfazer um pedido de entrega de uma cópia dactilografada da
sentença proferida, com fundamento em a mesma ser «perfeitamente ilegível».
Não é esse, todavia, o caso. A recorrente poderia ter interposto recurso de tal
decisão, mas escolheu não o fazer.
Assim sendo, não pode a recorrente vir invocar o direito constitucional de
acesso à justiça a propósito do recurso da decisão de mérito, com fundamento em
impossibilidade ou dificuldade, ou insegurança, da leitura do texto manuscrito,
quando teve ao seu dispor a possibilidade de reagir autonomamente contra a
alegada ilegibilidade do mesmo.
De resto, a satisfação da pretensão da recorrente conduziria a um alargamento,
sem qualquer fundamento legal, do prazo de recurso, através da simples alegação
da ilegibilidade da decisão, mesmo naqueles casos em que a mesma fosse
perfeitamente legível. Bastaria que o interessado não interpusesse recurso da
decisão que indeferisse o pedido de entrega de cópia dactilografada, com
fundamento na perfeita legibilidade da mesma, esquivando-se assim a discutir tal
questão em sede de recurso, e obtendo em qualquer caso o alargamento do prazo de
recurso da decisão de mérito.
Não se ignora, por último, que o Tribunal Constitucional já entendeu que «o
reconhecimento às parte do direito de reclamar o envio ou a entrega de uma cópia
dactilografada de um despacho, sentença ou acórdão não está dependente da
circunstância de a letra do manuscrito ser totalmente ilegível, dado que, por
muito difícil que seja a compreensão de uma caligrafia, não há textos
manuscritos de decisões judiciais que sejam por si mesmos, absolutamente
indecifráveis por um profissional do foro.
Bastará apenas que a letra do autor da decisão judicial “ofereça sérias dúvidas
de leitura” a um destinatário normal e comummente diligente, em termos de a
interpretação do manuscrito lhe exigir um esforço desproporcionado ou um
dispêndio de tempo significativo» (cfr. Acórdão n.º 444/91, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 20.º vol., p. 503).
Mas foi precisamente a discussão judicial sobre esta questão que a atitude
processual da recorrente iludiu, ao não interpor recurso da decisão que
considerou perfeitamente legível a sentença proferida.
4. Estão, portanto, reunidas condições para que se proceda à emissão da
decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, por ser 'manifestamente infundada' a questão de constitucionalidade
que a recorrente pretende ver apreciada.
Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que
toca à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. '
2. Inconformada, a recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto
no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão
sumária.
Para julgar infundada a questão de constitucionalidade suscitada, a decisão
reclamada, a seu ver, assentou em duas razões;
'– (…) a recorrente ter tido oportunidade de recorrer do despacho que indeferiu
o pedido de cópia dactilografada, tendo escolhido não o fazer;
– (…) a satisfação da pretensão da recorrente conduzir a um alargamento sem
fundamento legal, do prazo de recurso'.
Tais fundamentos são, todavia, 'destituídos de razão e merecedores de crítica e
reparação', decorrendo de dois erros:
– o de considerar relevante, quando 'é irrelevante', a questão de 'saber se a
recorrente tinha ou não o direito de recorrer da decisão de indeferimento do
pedido de cópia dactilografada, ou se o exerceu ou não'. Tal questão 'só seria
relevante se a recorrente tivesse optado por não extinguir os meios de recurso
da decisão que não admitiu o recurso da sentença da providência cautelar, com
fundamento em extemporaneidade'. Para além disso, 'a recorrente não podia, nem
pode, recorrer de uma decisão que indefere um requerimento para passagem de
cópia dactilografada, por ininteligibilidade da sentença, se posteriormente a
essa decisão conseguiu inteirar-se do conteúdo da sentença, por telefone, com o
auxílio de funcionário judicial habituada à caligrafia da Meretíssima Juiz',
porque o recurso seria 'inútil' (aliás, seria mesmo um 'acto ilícito', sustenta
a reclamante), e, portanto, nulo, de acordo com o artigo 137º do Código de
Processo Civil;
– o de não considerar que 'existe fundamento legal para a maior demora causada
pelo pedido de cópia dactilografada', o n.º 1 do artigo 686º do Código de
Processo Civil, sendo que 'um pedido de cópia dactilografada da sentença, com
fundamento em ilegibilidade da mesma, tem a natureza jurídica de um pedido de
aclaração'. Assim, o prazo para recorrer da mesma sentença só começa a correr,
em seu entender, 'a partir da notificação da decisão sobre esse pedido'.
Cita, em apoio desta posição, o acórdão n.º 444/91 deste Tribunal e
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça , e acrescenta que, no caso, é a
reclamante 'a maior interessada na rapidez processual'.
Notificado para se pronunciar, a recorrida não respondeu.
3. Como se sabe, não tem cabimento, no âmbito de um recurso de
constitucionalidade, analisar a questão de saber qual é ou não a interpretação
mais adequada de um determinado preceito de direito ordinário; ao Tribunal
Constitucional apenas compete avaliar a interpretação que o tribunal recorrido
lhe deu à luz das regras constitucionais.
O Tribunal Constitucional não vai, assim, pronunciar-se sobre a parte da
reclamação em que a reclamante analisa a questão de saber se o n.º 1 do artigo
686º do Código de Processo Civil deve ou não aplicar-se à hipótese de ter sido
pedida uma cópia dactilografada da sentença de que se pretende eventualmente
recorrer.
4. A reclamante sustenta, no fundo, que o julgamento proferido na decisão
reclamada está errado por assentar numa justificação que não pode ser
considerada relevante: a de que podia ter recorrido do despacho de indeferimento
do pedido de cópia dactilografada e não o fez; aliás, não o poderia fazer,
segundo alega.
É todavia manifesta a falta de razão da reclamante.
Em primeiro lugar, porque a inconstitucionalidade que suscitou neste recurso – e
que, aliás, não concretizou, limitando-se a afirmar a infracção dos n.ºs 1, 4 e
5 do artigo 20º da Constituição – se traduz numa alegação de violação do direito
constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
Tem, por isso, pleno cabimento averiguar se a lei ordinária não conferia ao
reclamante os meios de, por um lado, fazer valer a pretensão de obter uma cópia
legível da decisão de que pretendia recorrer, e, por outro, interpor recurso
desta mesma decisão. Concluindo pela afirmativa, como se concluiu, perde
qualquer fundamento a alegação de violação do direito constitucional invocado
neste recurso.
Em segundo lugar, porque não decorre de forma alguma do disposto no artigo 137º
do Código de Processo Civil que fosse ilícito recorrer do despacho que indeferiu
o pedido de cópia dactilografada, por ser inútil, e que houvesse qualquer
nulidade se o recurso fosse interposto, como sustenta a reclamante. Não seria,
aliás, mais inútil do que a apresentação do requerimento a pedir a cópia
dactilografada, nesse caso.
A verdade, todavia – partindo do pressuposto de que ocorreria efectivamente a
ilegibilidade apontada, naturalmente –, é que seria a interposição de tal
recurso que permitiria reabrir o prazo de recurso da sentença cuja ilegibilidade
estava em causa.
Admitir a inconstitucionalidade apontada pela reclamante implicaria afirmar que
a Constituição impõe que a lei ordinária estabeleça que a mera alegação de que
uma decisão é ilegível suspenda o prazo de recurso da mesma decisão, o que não
tem cabimento.
5. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de negar
provimento ao recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 31 de Outubro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício