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Processo nº 253/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, o Tribunal da Comarca de Oeiras proferiu a seguinte
decisão:
I. RELATÓRIO.
O Ministério Público acusou, para julgamento em processo de transgressão, o
arguido A. (id. a fls. 04), acusando-o da prática da contravenção de falta de
título de transporte válido em transportes públicos, prevista e punível pelo
art.° 3º, n.° 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio.
Procedeu-se a audiência de julgamento em conformidade, cumprindo agora apreciar
e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
1. Factos provados:
No dia 26 de Maio de 2004, pelas 14h50m, em Linda-a-Velha, Oeiras, no autocarro
n.° 219, da carreira 2 da empresa “B.”, o arguido não se fazia transportar
munido de título de transporte válido previamente adquirido para o efeito.
O que sabia ser necessário.
Mais sabendo que tal conduta era proibida por Lei.
2. Não houve quaisquer factos não provados.
3. Motivação da decisão de facto.
A convicção do Tribunal quanto à factualidade provada formou-se nas declarações
confessórias do arguido, confirmando do teor do auto de notícia.
4. Fundamentação de Direito.
4.1. O arguido vem acusado da prática da prática da infracção de falta de título
de transporte válido em transportes públicos, constante do artigo 3.°, n.° 2,
alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio, o qual dispõe:
“Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa do montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;”
4.2. A infracção prevenida no referido dispositivo reveste a natureza de
transgressão ou contravenção, regendo-se, ainda (ao menos do ponto de vista
substantivo) pelo C. Penal de 1886. Na verdade, o art.° 6.° do Decreto-Lei n.°
400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o C. Penal vigente e revogou o anterior,
expressamente manteve o regime do C. Penal de 1886 no que às contravenções
concerne.
Sem outras considerações que, agora, se revelariam supérfluas, sobre,
nomeadamente, a natureza penal das transgressões e a própria liquidez
constitucional dessa realidade jurídica, actualmente, no ordenamento jurídico
português, mormente face ao universo do Direito das Contra-Ordenações
(constituindo as transgressões, sem dúvida, um corpo estranho no ordenamento
sancionatório português hodierno), importa, somente, assentar, que essa natureza
penal se mantém, e mais se mantém a definição que constava do vetusto Código
Penal de 1886, segundo o qual “considera-se contravenção o facto voluntário
punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância das
disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a
intenção maléfica” (art.° 3.º).
Isto posto cabe questionar se, na infracção em causa, se estabelece uma pena
(contravencional) fixa e, sendo assim, se tal é constitucionalmente aceitável.
Quanto ao primeiro ponto, crê-se que a resposta deve ser afirmativa. Com efeito,
o preceito punitivo prevê duas penas fixas: a primeira, consiste no preço do
bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa do montante de
50% do preço do respectivo bilhete; a segunda, prevenida na segunda parte da
norma, redunda em cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, no caso
de a multa, se calculada de acordo com o primeiro critério, resultar em montante
inferior a tal mínimo (é a hipótese que sucede na esmagadora maioria, se não na
totalidade, das situações).
Isto significa, portanto, que o julgador não tem qualquer intervenção da
determinação da pena concreta, em especial, adequando-a à culpa – que pode ser,
desde logo, dolosa ou negligente – e à própria situação sócio‑económica do
agente da infracção. Tal equivale, afigura-se, a concluir que o normativo em
apreço padece, irremediavelmente, de inconstitucionalidade por violação dos
princípios da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa
humana (e, saliente-se, a adequação económico‑financeira das penas pecuniárias
pode considerar-se um princípio geral do Direito Penal, em sede de penas
pecuniárias, com fundamento no próprio princípio constitucional da dignidade da
Pessoa Humana).
4.3. Como repetidamente tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional o Direito
Penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e
livre, ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento
e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que
exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa. E é – ou deve
ser - um Direito Penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos
com dignidade penal (ou, para utilizar uma expressão hoje corrente, com
ressonância ética), sendo que uma tal danosidade social, capaz de justificar a
imposição de uma punição, há-de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num
plano meramente sociológico.
O Direito Penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de
ultima ratio, pois só se justifica que intervenha se a protecção dos bens
jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras
medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções
criminais. A necessidade da pena – que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa –
limita, pois, o âmbito de intervenção do Direito Penal, ou é mesmo o critério
decisivo dessa intervenção.
O legislador ordinário, além de um princípio de humanidade na previsão das
penas, que logo releva do princípio da dignidade da pessoa humana (cf. art.°s
25.°, n.°s 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a ideia de
necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade.
4.4. É bem certo o Tribunal Constitucional, quando teve que ajuizar uma norma
penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sempre sublinhou
que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no
estabelecimento das penas correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa
matéria, só pode censurar-se, ratione constitutionis, as decisões legislativas
que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado
de Direito, o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o
princípio de justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva.
4.5. O que se disse acima – em apertada síntese – resulta, entre outros, dos
seguintes artigos da Constituição: do art.° 1.º, que baseia a República na
dignidade da pessoa humana; do art.° 18.°, n.° 2, que condiciona a legitimidade
das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das
mesmas; do art.° 25.°, n.° 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade
pessoal; e do art.° 30.º, n.° 1, que proíbe penas ou medidas de segurança
privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração
ilimitada ou indefinida.
4.6. O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do Direito Penal de um
Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem
assim, que a medida da pena ultrapasse a medida da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e logo se decanta da
dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (art.° 1.º da
Constituição) e, bem assim do direito de liberdade (art.° 27.°, n.° 1); No dizer
de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu “fundamento axiológico ao
princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais
essencial à ideia do Estado de Direito democrático”.
Ora, um Direito Penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas:
de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu
limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção)
que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o
mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora,
prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar
ao caso que lhe é submetido, atender ao grau e intensidade de culpa do agente.
A previsão, pela Lei, de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele; nem, enfim, à situação socio-económica do agente.
Ora, tal obriga a que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações
que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito
diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de
atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam.
4.7. Mas, o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a
situações essencialmente iguais, e se trate diferentemente as que forem
diferentes – também vincula o juiz. A essência da aplicação do princípio da
igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos
e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que
significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem
de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de
ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso
de entender que tal se justifica.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções (nos três vectores
essenciais: necessidade, adequação e racionalidade).
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, o
princípio da igualdade, e o princípio da proporcionalidade. E isto é assim para
qualquer tipo de pena, maxime, pena de prisão ou pena de multa.
4.8. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre situações semelhantes (cf.
os arestos citados na nota 3).
Em todos as situações foi considerada inconstitucional a norma constante da
parte final do § único do art.° 67.º do Decreto n.° 44.623, de 10 de Outubro de
1962, enquanto sanciona com uma pena fixa (consistente no máximo da pena
prevista no art.° 64.° do mesmo Decreto) o crime agravado de pesca ilegal em
período de defeso.
Mas esta jurisprudência, até determinada altura, não foi unívoca. Assim, por
exemplo, dissentiu o Acórdão n.° 83/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
volume 18°, pp. 493 e seguintes), o qual apreciou, justamente, a norma referida.
Sublinhou-se nesse aresto que “não se nega, em tese geral, que os princípios da
igualdade e da proporcionalidade possam implicar o juízo de que a cominação de
penas criminais fixas quanto a certo crime por uma concreta norma jurídica seja
tida por materialmente inconstitucional”. Acrescentou-se que “não se crê
igualmente que destes princípios constitucionais tenha que decorrer
necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional
de todas as chamadas penas fixas”. Mais adiante, o aresto ponderou que, “no
domínio do direito penal económico ou do direito penal de defesa do ambiente e
da ecologia, pode aceitar-se, em casos pontuais e para certos tipos de
infracções, a cominação de penas fixas, ainda que o juiz possa sempre recorrer
aos meios gerais de suspensão da pena ou mesmo de dispensa da pena. Nessa
medida, só tendencialmente as penas serão fixas”.
Mais se transcreveu, a seguir, uma passagem de um estudo de JORGE DE FIGUEIREDO
DIAS (“Breves Considerações Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das
Penas em Direito Penal Económico”, in Direito Penal Económico, CEJ, Coimbra,
1985, p. 40), na qual o Autor sustenta, em âmbitos determinados do Direito Penal
económico, em conformidade com a ideia de que a este direito não só compete uma
função de protecção de bens jurídicos, mas também de promoção de valores
económico-sociais no seio da comunidade, a possibilidade de o legislador,
legitimamente, proibir o juiz de impor uma pena inferior ao limite mínimo ditado
pela culpa, mas sem que essa proibição possa ir tão longe que impeça a
proporcionalidade entre a pena e a infracção, quando esta seja de pequena
gravidade, pois, de contrário, estaria a ultrapassar-se o limite máximo
permitido pela culpa, em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou
de intimidação o que seria, além do mais, duplamente inconstitucional por
irremissível violação do princípio da culpa, imposto pelos art.°s 1.º, 13.° e
25.º, n.° 1, da Constituição; e inconstitucional, por violação do princípio da
proporcionalidade das sanções no direito penal económico, reconhecido sem
quaisquer limitações pelo art.° 88.° da Lei Fundamental.
No dito aresto acrescentou-se: “Nesta linha de pensamento, não se crê que possa
afirmar-se [...] que a cominação desta pena fixa concreta, quando surja uma
circunstância agravante específica, viole intoleravelmente os princípios da
culpa ou da proporcionalidade das sanções à gravidade das infracções. [...) Por
um lado, não pode falar-se, no caso sub iudicio, de violação do princípio da
igualdade, na medida em que a norma desaplicada considera manifestamente um grau
de culpa que normalmente se verifica no comum dos casos de pesca ilegal
nocturnas nos períodos de defeso, sendo certo que acentuado. Seja como for, tal
norma (ou outras normas do diploma) não impede, de forma absoluta, que o juiz
adeqúe a sanção à gravidade da infracção, de harmonia com os ditames da justiça
distributiva.”
E mais adiante:
“No presente processo, e de forma decisiva, há-de considerar-se [...] que “só em
via de princípio”, ou seja, tendencialmente, se pode ter por fixa a cominação de
penas prevista nesta legislação sobre fomento da piscicultura e da defesa da
pesca nos rios, já que “(...) nada obsta a que no caso, desde que tal se
justifique, se proceda à atenuação especial da pena (artigos 730 e 74° do Código
Penal) ou mesmo à dispensa da pena (artigo 750 do mesmo Código). [...] Quer
dizer, a norma sancionatória, devidamente interpretada no contexto sistemático
do Código Penal, não conduz a resultados arbitrários, nem implica
necessariamente uma igualdade de tratamento perante situações diversas de
agentes com acentuadas diferenças de grau de culpabilidade. Na verdade, como se
viu, não pode sustentar-se que a norma proíba de forma absoluta que o juiz
estabeleça uma diferenciação na aplicação de sanções quanto a arguidos em
situações materialmente diferentes, dando assim acolhimento à ideia de
diversificação, em detrimento de uma ideia de tratamento uniforme, encarada, em
princípio, pelo legislador.
A seguir, apreciando a norma à luz do princípio da proporcionalidade, ponderou o
Acórdão:
“Por outro lado, o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa nestes casos
não pode considerar-se que viole o princípio da proporcionalidade, o qual
postula, no Direito Penal, que a gravidade das sanções deve ser proporcional à
gravidade das infracções. A melhor interpretação da norma desaplicada não
acarreta um resultado que possa qualificar-se como manifesta violação do
princípio da proporcionalidade, visto que o juiz dispõe sempre, como se viu, da
possibilidade de recorrer a institutos de natureza geral como o de atenuação
especial da pena e o da dispensa de pena, evitando que se atinjam, em concreto,
resultados intoleráveis ou gravemente chocantes, “em homenagem a razões de pura
prevenção geral negativa ou de intimidação”, para se utilizarem as expressões de
Figueiredo Dias, no passo atrás transcrito. Acresce que a pena cominada para o
comum dos casos se afigura como razoavelmente proporcionada ao conjunto de
comportamentos recondutíveis a este específico tipo criminal, no comum dos casos
da vida, não tendo este Tribunal razões para censurar a opção do legislador
neste caso concreto.
Reafirma-se, assim, que tal pena tendencialmente fixa não ofende o princípio da
proporcionalidade da sanção à gravidade da infracção, isto dando por adquirido
que a eliminação do antigo artigo 880, da Constituição na segunda revisão
constitucional, em 1989, não traduziu uma diferente valoração do legislador
constitucional sobre os princípios básicos do Direito Penal, em especial do
Direito Penal Económico [...).”
Por fim, olhando a norma então sub iudicio sob a perspectiva do princípio da
culpa, aditou-se:
“Por último, também para aqueles que sustentam que está constitucionalmente
consagrado o princípio da culpa em matéria penal, tão-pouco se pode dizer que a
cominação de penas fixas, com o sentido de tendencial fixidez atrás exposto,
possa conduzir a uma “irremissível violação do princípio da culpa”, de novo se
utilizando a expressão de Figueiredo Dias, atrás transcrita. É que, já se viu,
continua a reconhecer-se ao juiz uma apreciável intervenção na adequação da
sanção ao agente, em função dos resultados apurados no julgamento, admitindo-se
que seja determinada uma atenuação especial da pena ou, até, a dispensa de pena.
O juiz não está limitado a condenar ou a absolver o arguido. No caso de ter de
condenar, não tem necessariamente de lhe aplicar uma sanção rigidamente fixa,
como mero efeito da lei. [...] Se é verdade que, em linha de princípio, se deve
preferir um sistema de mobilidade das penas cominadas para cada tipo criminal,
entre um mínimo e um máximo fixados na lei, de forma a que o juiz possa graduar
a pena à gravidade da infracção e à culpabilidade do agente, não se pode dizer
que o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa prive de todo em todo o
juiz de levar em conta a individualidade concreta do agente e as específicas
circunstâncias de cada caso, como atrás se viu Também aqui se pode dizer que não
é violado o princípio da culpa, dando como suposto que o mesmo tem consagração
constitucional.
Tudo isto para concluir que não se mostram, assim, violados pela norma em
análise os princípios constitucionais de igualdade e de proporcionalidade das
sanções criminais.”
4.9. O Tribunal Constitucional retomou a doutrina deste Acórdão n.° 83/91,
aplicando-a no caso sobre que incidiu o acórdão n.° 441/93 (publicado nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 25.º, p. 643), estando em causa,
porém, já não uma sanção de natureza criminal, mas uma coima; o mesmo sucedendo
no Acórdão n.° 175/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume
36.º, pp. 103 e seguintes), confrontando-se com uma situação em que o limite
mínimo de uma coima passara a ser igual ao seu limite máximo (ou seja, em que a
coima passou a ser de montante fixo), embora neste último aresto, já se tenha
chamado a atenção “de a possibilidade de aplicação de uma sanção não variável
poder implicar uma frontal contradição com a vontade expressa do legislador no
artigo 30° da Lei n.° 30/89, onde se estabelecem os critérios para a graduação e
determinação, em concreto, dos montantes das coimas.”
No entanto, em resposta a tal doutrina seguiu-se o acórdão n.° 95/2001,
publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002, o qual, em
seguida se transcreve para melhor elucidação:
«Pode dizer-se, em síntese, que o citado acórdão n.° 83/91 concluíu que a norma,
que está sub iudicio nestes autos, não viola o princípio da igualdade, nem o da
proporcionalidade, nem o da culpa – e, por isso, não é inconstitucional –,
porque, não proibindo o juiz de lançar mão do instituto da atenuação especial da
pena ou, sendo caso disso, mesmo do da isenção de pena, o que, ao cabo e ao
resto, a norma em causa comina é uma pena tendencialmente fixa. Não uma pena
rigidamente fixa. Ora – pondera o aresto –, só este último tipo de pena fixa a
Constituição proíbe. Ou seja, ela só proíbe que a lei preveja penas que, no caso
de se provar que “o arguido agiu ilícita e culposamente, isto é, que é imputável
e que não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da
culpabilidade”, o juiz tenha que aplicar rigidamente, sem poder fazer outra
coisa senão absolver ou condenar o arguido, pois, “devendo condená-lo, terá de
lhe aplicar a pena prevista na lei, sem possibilidade de qualquer graduação”. A
Constituição – sublinha o acórdão – não proíbe as penas só tendencialmente
fixas, ou seja, aquelas que o juiz, em princípio, não pode graduar, mas em que
pode recorrer a institutos de carácter geral, como os da atenuação especial da
pena ou da dispensa da pena, para adequar a sanção à personalidade do agente e
às circunstâncias apuradas quanto à infracção.
Pois bem: flui do que se disse atrás que a proibição constitucional de penas
fixas acarreta a ilegitimidade de todas as penas fixas: mesmo daquelas a que o
acórdão n.° 83/9 1 chama penas só tendencialmente fixas.
Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o acórdão n.° 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73° do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.° 1 do
artigo 72° do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74° do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado acórdão
n.° 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.° 202/2000:
Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente).
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.° 202/2000:
A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida,
conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer
molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da
igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais.
A norma constante da parte final do § único do artigo 67° do Decreto n.° 44.623,
de 10 de Outubro de 1962, aqui sub iudicio – ou seja: o segmento dele que manda
aplicar o máximo da pena prevista no artigo 640 para o crime de pesca em época
de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca
reservada – é, pois, inconstitucional: ela viola os princípios constitucionais
da culpa, da igualdade e da proporcionalidade».
4.10. Toda esta doutrina, que se sufraga, é aplicável à situação dos presentes
autos. No caso em questão a Lei determina a aplicação de um multa correspondente
do preço do bilhete acrescido de uma multa do montante de 50% do preço do
respectivo bilhete; ou correspondente a 100 vezes o mínimo cobrável no
transporte utilizado. Em qualquer caso, trata-se sempre de uma multa de valor
fixo, que vem a ser aplicada em Tribunal, caso o arguido, oportuna e
voluntariamente não proceda ao pagamento da multa.
Embora a terminologia utilizada na norma constante do art.° 67.º, do Decreto
44.623 citado seja algo diferente, pois manda aplicar os máximos das penas a
partir de uma pena variável, a situação vem a ser é idêntica. Cabe assim
declarar em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos do
artigo 280.°, n.°1 alínea a), da CRP, a inconstitucionalidade da norma constante
do artigo 3.°, n.° 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio, por
violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade.
III. DECISÃO.
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da
culpa, da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos art.°s 1.º, 13.º, n.°
1, 18.º, n.° 1, 25.°, n.° 1, e 30.°, n.° 1, da Constituição, a norma constante
do artigo 3.°, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio, e em
consequência,
B) Na não aplicação daquela norma, ABSOLVER o arguido A. da transgressão de que
vinha acusado.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes
termos:
O Ministério Publico junto deste Tribunal, vem, nos termos do art° 70°, nº 1,
al. a) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional – Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas
pela Lei n° 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei 88/95, de 1 de Setembro e pela Lei
n° 13-A/98, de 26 de Fevereiro - interpor recurso para o Tribunal Constitucional
do despacho de 14 de Dezembro de 2005, proferido no processo acima indicado que,
com fundamento em inconstitucionalidade material, recusou aplicar o art° 30 n° 2
al. a) do Dec. Lei n° 108/78, de 24 de Maio.
Nestes termos, porque está em tempo e tem legitimidade, requer-se a V. Exª. se
digne admitir o recurso, com efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios
autos, directamente para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, onde serão produzidas as
alegações do recurso (art°s 72°, n° 1. al. a) e n° 3 - recurso obrigatório para
o M° P° -, 74°, n° 1, 75°, n° 1, 75°-A, n° 1, 76°, n° 1, 78°, n° 4 e 79º, todos
da referida Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional).
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público alegou, concluíndo o
seguinte:
1 - É inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade, a norma constante do artigo 3°., n°. 2, alínea a) do
Decreto-Lei nº. 108/78, de 24 de Maio, na medida em que estabelece uma pena de
multa de valor fixo, que o tribunal terá sempre de aplicar em caso de
condenação.
2 - Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida quanto à questão de
inconstitucionalidade que é objecto de recurso.
Cumpre apreciar.
2. A norma cuja apreciação é submetida ao Tribunal Constitucional tem a
seguinte redacção:
Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os
infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido
de uma multa de montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer
título válido de transporte;
O tribunal a quo, invocando jurisprudência do Tribunal Constitucional, julgou
tal norma inconstitucional, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e
da proporcionalidade.
3. A norma sob apreciação estabelece uma sanção penal (uma multa) fixa no seu
valor, caso se verifique a situação descrita no tipo (utilização de transporte
público sem título válido). Trata‑se, deste modo, de uma infracção penal
(contravenção) à qual são aplicáveis os princípios que conformam o regime das
penas criminais.
O Tribunal Constitucional, em diversos arestos (cf. Acórdãos nºs 95/2001,
202/2000, 20/2002 e 124/2004, www.tribunalconstitucional.pt) decidiu julgar
inconstitucionais normas que consagrem penas fixas.
No mencionado Acórdão nº 124/2004, o Tribunal Constitucional julgou
inconstitucional com força obrigatória geral a norma da parte final do § único
do artigo 67º do Decreto nº 44.623, de 10 de Outubro de 1962, enquanto manda
aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º do mesmo diploma para o crime de
pescar em época de defeso, quando concorrer a agravante de a pesca ter lugar em
zona de pesca reservada, por violação dos princípios constitutivos de culpa, da
igualdade e da proporcionalidade. Nesse Acórdão, o Tribunal Constitucional,
transcrevendo o Acórdão nº 95/2001, considerou o seguinte:
(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ
DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas
fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também
o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de
prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena,
situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de
comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na
determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de
culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na
determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de
ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas
consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente,
nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham
a favor ou contra ele.
Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo
igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem
por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem
maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas,
o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações
essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também
vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado
a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de
observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções
criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa,
que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de
observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da
proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena
de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de
dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
“mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão
nítida quanto possível entre o legislador e o juiz” –, sublinha que “uma
responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena
conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do
princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade”.
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II
série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa
de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que
caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o
emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional,
por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Escreveu-se aí:
“Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena
fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de
acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a
exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das
suas “circunstâncias”) corresponda também uma diferenciação da sanção penal que
lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal
situação concreta.
Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na
verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de
caçar invariável de cinco anos para o “crime de caça” do artigo 31º, n.º 10, da
Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional”.
Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal
sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram
apontados.
(...) Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse
modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a
entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias
atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias),
por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são,
em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas
desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro
que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador
penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de
prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para
encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso.
Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto
da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que
faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma
pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente
fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de
prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código
Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor
fortemente atenuativo (“quando existirem circunstâncias anteriores ou
posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a
ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena”, diz o n.º 1 do
artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode
recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com
multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são “diminutas”
“a ilicitude do facto e a culpa do agente”; que o “dano” já foi “reparado”; e
que “à dispensa de pena” se não opõem “razões de prevenção” (cf. o artigo 74º do
mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado acórdão
n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – “dar conta da
necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à
culpa do agente e às necessidades de prevenção”.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.º 202/2000:
“Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como
prevendo uma pena apenas “tendencialmente fixa” ela não viola o princípio da
igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e
das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções,
encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de
prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a
perigosidade do agente)”.
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.º 202/2000:
“A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de
atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a
graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa,
assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida,
conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer
molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da
igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais”.
Estas considerações são, no essencial, transponíveis para os presentes autos.
Com efeito, as contravenções que o legislador manteve no sistema penal
português, após a criação do Regime Geral das Contra‑ordenações (Decreto-Lei nº
433/82, de 27 de Outubro, agora na redacção do Decreto-Lei nº 356/85, de 17 de
Outubro e do Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro), não estão em geral
despenalizadas, isto é, subtraídas aos princípios constitucionais do Direito
Penal, tal como o princípio da culpa e a proibição constitucional de penas
fixas. Na verdade, o legislador, mesmo em termos processuais, subordinou a
matéria de processamento e julgamento de contravenções a um regime processual
penal simplificado, mas, em todo o caso, de natureza processual penal e não
administrativa (Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de Janeiro). E, apesar de as
infracções terem sido despenalizadas nesta específica matéria através da Lei nº
28/2006, de 4 de Julho (artigos 7º, 13º e 14º), é ainda aplicável aos processos
pendentes o regime concretamente mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à
medida das sanções aplicáveis (artigo 14º, nº 2). A evolução legislativa impede,
assim, não só de situar as infracções qualificadas como ilícito contravencional
no Direito de mera ordenação social, no Direito Civil ou em qualquer outro ramo
do Direito, mantendo‑se a natureza que legal, doutrinária e jurisprudencialmente
sempre lhe foi conferida (cf. Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, reimp.,
1996, p. 213 e ss., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I,
Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, 2004, p. 145 e, ainda Maia
Gonçalves, Código Penal Anotado, 3ª ed., 1977, anotação ao artigo 3º), como
também, nesta matéria específica, é salvaguardada a subordinação a princípios do
Direito Penal garantísticos. Também não há qualquer obrigação constitucional
genérica de despenalizar o ilícito contravencional, na medida em que a opção do
legislador ao nível do ilícito, da sanção e do processo não interfira com o
princípio da necessidade da pena.
E, por fim, ainda o próprio Direito de mera ordenação social adopta, no
essencial, os princípios do Direito Penal (artigos 2º, 3º, 8º e 9º do
Decreto-Lei nº 433/82), não sendo sequer os princípios da culpa e da proibição
de penas fixas expressamente afastados por aquele regime legal.
Consequentemente, não existem razões substanciais, nem legais nem
constitucionais, inerentes à menor gravidade do ilícito contravencional que
tornem inadequada ou injustificada a aplicação daqueles princípios, sobretudo na
medida em que eles se exprimam numa acentuação das garantias do arguido.
Razões de economia processual ou de celeridade bem como argumentos relacionados
com a massificação das infracções não têm dignidade constitucional por si para
prevalecer sobre princípios constitucionais que se aplicam directa,
expressamente e sem excepções a matéria de ilícito e sanções penais e que não
são sequer incompatíveis com a natureza do próprio Direito de mera ordenação
social.
E, finalmente, também não existem argumentos derivados da espécie de sanção –
uma multa penal – que impeçam a sua adaptação aos princípios constitucionais.
Não suscitando o presente recurso qualquer outra questão que deva ser apreciada,
remete‑se para a jurisprudência constitucional citada (cujo fundamento é
acolhido pela decisão recorrida), concluindo‑se pela inconstitucionalidade da
norma sob apreciação, por violação dos princípios da culpa, da igualdade e da
proporcionalidade.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de
inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da
declaração de voto que junto)
Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da
declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencido por ter ficado com sérias dúvidas sobre a extensão da
jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade, por violação dos princípios
constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, de penas fixas
para crimes, que subscrevo (cf., aliás, o Acórdão n.º 202/2000, de que fui
relator), à infracção prevista no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de
Maio, consistente na utilização de transportes colectivos de passageiros sem
estar munido de título de transporte válido, e que está em causa no presente
recurso de constitucionalidade. É certo que essa infracção é sancionada com uma
“multa” que é receita do Estado, e que o próprio diploma remete o processo
respectivo para os artigos 166.º e segs. do Código de Processo Penal de 1929.
Apesar disso, não pode esquecer-se que, nos casos em que o agente utiliza o
serviço de transporte com intenção de não pagar e se nega a solver a dívida
respectiva, a sua actuação é já prevista e punida (com uma pena a aplicar dentro
de uma moldura penal, obviamente), como crime de “burla para obtenção de
serviços”, no artigo 220.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. Nas restantes
hipóteses, penso que a conduta prevista como infracção no artigo 3.º do
Decreto-Lei n.º 108/78, por não atingir aquele “mínimo ético” que é protegido
pela previsão de sanções criminais, melhor seria objecto de uma contraordenação,
sendo, portanto, considerada como infracção de natureza não criminal, mas antes
jurídico-administrativa – cf., aliás, a despenalização dessas condutas, também
referida no Acórdão, operada pela Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho (e em especial
o artigo 7.º desta).
Acresce que estamos perante infracções que são tipicamente condutas que têm
lugar no tráfico ou circulação de massas, em que é em regra particularmente
difícil, logo pela “natureza das coisas”, a averiguação de algumas das
circunstâncias que podem justificar uma individualização e graduação da sanção.
Esta averiguação poderia mesmo, ou impor um esforço que não parece exigível, ou,
pelo seu carácter rotineiro, conduzir a situações de injustiça relativa. E,
consistindo a infracção na utilização de um serviço de transporte sem o
respectivo título, cuja obtenção custa certo montante, parece de admitir – como
noutras infracções em que está em causa o não pagamento de um certo montante
fixo para utilização de serviços postos à disposição do público – que a sanção
consista num múltiplo ou fracção fixa desse montante, isto é, que seja fixada
por referência a esse custo (e isto, mesmo que não seja uma sanção de tipo
contratual ou convencional, mas antes uma sanção para uma infracção que está
prevista na lei).
Estas considerações fizeram-me duvidar do acerto de uma ampla proibição
constitucional de quaisquer sanções pecuniárias fixas, em casos como o presente,
em que é de duvidar da natureza criminal (ou da justificação político-criminal)
da sanção e em que a infracção, cometida no tráfico de massas, consiste no não
pagamento de um preço pela utilização de um serviço disponibilizado ao público,
pelo que parece mais simples que a sanção seja fixada num múltiplo ou fracção do
montante que deveria ter sido pago. Perante tais dúvidas, não me pronunciei no
sentido da inconstitucionalidade.
Paulo Mota Pinto
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Não obstante acompanharmos as considerações tecidas no acórdão sobre a
natureza e funcionalidade jurídico-constitucionais do Direito Penal e a sua
sujeição aos princípios da necessidade das penas, da legalidade, da culpa, da
proporcionalidade e da igualdade e aderirmos, igualmente, à tese segundo a qual
um Direito Penal de culpa não é compatível com a existência de penas criminais
fixas, nos termos afirmados, entre outros, pelo Acórdão n.º 95/01, a que o
presente acórdão se arrimou, divergimos da posição que fez vencimento
relativamente à concreta contravenção (hoje, contra-ordenação – cf. Lei n.º
28/2006, de 4 de Julho) e à sanção que se encontram previstas no art. 3.º, n.º
2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio.
2 – E dissentimos porque entendemos que aqueles princípios não
postulam o mesmo grau de protecção constitucional quando o ilícito que está em
causa não é o ilícito criminal, mas outro tipo de ilícito, como o
contravencional ou, agora, o contra-ordenacional, bem podendo transportar um
diferente grau de tutela constitucional para cada um destes dois últimos tipos
de ilícito e, dentro deles, das concretas infracções que o legislador
constitucionalmente competente modele.
O acórdão abona-se numa lógica apodíctica de total
transponibilidade daqueles princípios constitucionais de direito penal para o
direito contravencional e para o direito contra-ordenacional, não relevando
suficientemente, segundo o nosso ponto de vista, o aspecto da Lei fundamental os
destrinçar.
Ora, acontece que esta apenas aludia, até à revisão de 1992, à
“lei criminal” e aos “crimes” [cf., a título de exemplo, os art.ºs 29.º, 30.º,
32.º e 167.º, alínea e), na versão originária], omitindo qualquer referência às
contravenções.
Deste modo, ao constituir, no uso da sua discricionariedade
normativo-constitutiva, o ilícito contravencional, o legislador ordinário só
estava obrigado à “Constituição criminal” onde pudesse surpreender-se uma
identidade dos motivos constitucionais, ainda que com assento em outros
preceitos constitucionais como, por exemplo, os arts. 2º, 13º, nº 1 e 20º s Lei
fundamental.
Por seu lado, a partir daquela revisão, a Constituição passou a
falar em termos dicotómicos, de crimes e de contra-ordenações, continuando a
silenciar a existência do ilícito contravencional [art. 29.º, 30.º, 32.º e
168.º, n.º 1, alínea c)], para dizer, sucintamente, quanto ao último, que “nos
processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de
audiência e de defesa” e que era (como continua a ser) da competência reservada
da Assembleia da República “legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de
mera ordenação social”.
Ora, conquanto admitamos, em tese geral, que os princípios da
legalidade, da culpa, da proporcionalidade e da igualdade são também aplicáveis
no direito contravencional (como no contra-ordenacional), entendemos, todavia,
que eles têm, aqui, um diferente grau de intensidade de tutela constitucional.
Assim, segundo o nosso ponto de vista, o recorte normativo dos
factos ilícitos poderá ser efectuado com mais plasticidade do que no direito
penal, de modo a poder abarcar realidades que estão próximas, mas em que
continua a estar presente a teleologia que justifica a criação da contravenção
(ou contra-ordenação) – um princípio de legalidade menos sujeito à sua dimensão
de tipicidade.
Assim, será lícita a utilização de conceitos com maior grau de
indeterminação relativamente ao que se passa no direito criminal, na medida em
que a sanção demandada pela prática dos factos ilícitos não contende com a
garantia fundamental da liberdade e segurança da pessoa humana (art. 27.º, n.º
1, da CRP), antes se quedando, primacialmente, pela imposição de um sacrifício
pecuniário e que, desse modo, afecta, essencialmente, tão só uma das dimensões
em que se desdobra a protecção constitucional do direito de propriedade,
surgindo as sanções acessórias, mesmo quando não revistam a mesma natureza, como
medidas de carácter especial, sendo que, no caso do concreto ilícito, elas nem
sequer estão previstas.
Esta maior elasticidade do princípio da legalidade
repercute-se, igualmente, no domínio da conformação legislativa das respectivas
sanções, apontando no sentido de o legislador poder ampliar ou restringir a sua
modelação ou concretização normativas (sobre a articulação entre o princípio da
legalidade e o princípio da culpa, na projecção das penas, cf. o Acórdão n.º
547/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Por outro lado, a culpa não contende com a violação, voluntária
ou negligente, de concretos bens com essencial ressonância ética, referindo-se,
essencialmente, à violação de padrões normativos de ordenação social,
constantes, normalmente, de normas regulamentares.
Por isso, ela tende a manifestar-se através de tipos de
comportamentos que são susceptíveis de acontecer em massa, em virtude de, por um
lado, ser grande o universo das pessoas que estão sujeitas, na vida real, a
esses padrões normativos, e, por outro, a violação se traduzir, normalmente, na
simples produção do resultado que o legislador pretende evitar, seja ele
positivo ou negativo.
Por fim, a especificidade que os princípios da legalidade e da
culpa assumem no domínio das contravenções (contra-ordenações) não pode, também,
deixar de ter reflexos, atento tal “padronamento”, no domínio da necessidade de
intervenção do juiz para concretizar o nível de ilícito e de culpa atingidos
pelo concreto comportamento do agente.
Deste modo, não se vê que o legislador ordinário, colocado
perante a possibilidade de verificação de infracções contravencionais
(contra-ordenacionais) em massa, decorrente da opção legislativa de punir a esse
título comportamentos violadores de simples regras de conduta ou de ordenação da
comunidade social ou de colaboração com o Estado, não possa conferir maior
relevo às exigências postuladas pelo princípio da legalidade em detrimento do
sentido apontado pelo princípio da culpa e, nesse seu juízo, proceder a uma
maior concretização das sanções aplicáveis nesses tipos de ilícito, afrouxando a
necessidade da intervenção do juiz no apuramento efectivo do montante da sanção
a aplicar, sem que possa sustentar-se existir uma violação intolerável dos
princípios da igualdade e proporcionalidade.
Não pode, por outro lado, desconhecer-se que as sanções em
causa não têm o sentido estigmatizante do direito criminal e que não atingem o
direito fundamental da liberdade, tendo natureza, essencialmente, pecuniária.
Acresce que o respeito pelos referidos princípios
constitucionais, com a intensidade de tutela demandada pelo direito criminal, se
afigura tanto menos imperativa quanto menor for o valor pecuniário da sanção, na
sua expressão absoluta: não é indiferente à Lei Fundamental uma sanção cujo
montante máximo aplicável seja de elevadíssimo ou muito elevado valor pecuniário
e uma outra sanção que se quede por valores baixos ou acessíveis ao comum das
pessoas (abordando essa matéria, cf. o referido Acórdão n.º 547/01).
Trata-se de uma solução legislativa que pode encontrar especial
justificação substancial nos princípios da necessidade, da proporcionalidade e
da igualdade, bem como na concreta natureza dos bens ou deveres jurídicos que
são violados, na natureza da sanção – pecuniária – e no montante absoluto das
sanções abstractamente aplicáveis (afirmando, abertamente, a conformidade
constitucional de algumas penas fixas, podem ver-se os Acórdãos nºs 83/91,
441/93 e 74/95, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
3 - Ora, é exactamente o que se passa com a norma objecto do
recurso de constitucionalidade.
Ela pune o comportamento, no mínimo culposo, da falta de título
válido de transporte, por banda do utilizador, nos casos em que a cobrança não é
feita por agente cobrador mas por outro processo, prevendo que o infractor pague
o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa de
“50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo
cobrável no transporte utilizado”.
Para o conhecimento da questão em apreço apenas releva a norma,
na parte em que esta sanciona o comportamento do infractor com multa, pois o
pagamento do preço corresponde a uma mera dívida que encontra a sua causa
jurídica no contrato de transporte (ainda que de simples adesão).
Antes de mais importa notar que não estamos, porém, perante
uma sanção que se possa considerar rigidamente fixa.
Na verdade, a sanção prevista apenas coloca na mesma posição os
infractores que utilizem, sem título válido, o transporte durante um mesmo
percurso ou ainda aqueles em que o valor de 50% do preço do respectivo bilhete
seja inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado. Nos outros
casos, a sanção é objectivamente variável.
Todavia, existem razões que podem sustentar, no plano
constitucional, essa opção legislativa de igualação sancionatória.
A sanção pune a utilização dos transportes sem título válido de
transporte, nos casos em que a cobrança do preço não é feita por cobrador.
O fim que ela prossegue é, pois, o de desencorajar, pelo modo
tido como eficaz, a utilização dos transportes sem o pagamento da
contraprestação devida pela prestação do transporte e de, por essa via, procurar
garantir, na maior medida possível, a amortização dos custos do investimento e
da prestação do serviço.
Ora, estes serviços de transporte são serviços de interesse
geral, porquanto satisfazem necessidades básicas dos cidadãos, que são prestados
em regime de concessão de serviço público e que estão sujeitos a princípios
específicos, como o da universalidade, ou do acesso do maior número possível de
pessoas, mesmo as economicamente desfavorecidas, neste se incluindo a
inadmissibilidade legal da possibilidade de escolha do contraente e de recusa de
contratar, possível relativamente a outros bens.
Deve notar-se, por outro lado, que a prestação de serviços
deste tipo corresponde, de resto, a um modo de o Estado se desincumbir da tarefa
fundamental cometida no art. 9.º, alínea d) da Constituição (“promover o bem
estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem
como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais…”).
Acresce – como já se disse, no nosso voto de vencido aposto ao
Acórdão n.º 650/04, publicado no Diário da República I Série-A, de 23 de
Fevereiro de 2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, a propósito do
transporte ferroviário, mas não sendo diferente a valoração a estabelecer aqui –
que “o fornecimento desse serviço está sujeito a um princípio de qualidade
elevada que é normativamente definida (cf., hoje, o art. 7º da Lei n.º 23/96, de
26 de Julho), afastando, assim, quaisquer critérios de padrões mínimos ou até de
critérios médios na avaliação do grau de cumprimento da obrigação de transporte
(cf. Carlos Ferreira de Almeida, Serviços Públicos, Contrato Privados, in
Estudos de Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, p. 132)”.
Por estas razões, os preços relativos à prestação dos serviços
de transporte são, por via de regra, “preços normativos” e não preços
estabelecidos por acordo das partes ou segundo mecanismos de livre funcionamento
do mercado, em cuja determinação intervêm, de modo relevante, factores
normativos e ponderações “políticas” que são efectuadas pela competente
administração pública, situando-se, normalmente, em patamares que se situam
abaixo do que resultaria daquele mercado.
Mas demandando a actividade de prestação de tais bens avultados
investimentos, não poderá, correspondentemente, o legislador deixar de adoptar,
como se disse, já, instrumentos que garantam, eficazmente, o pagamento dos
preços devidos.
Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma
económico dos seus utilizadores, que procura colocar todos os consumidores no
mesmo plano, quanto à possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma
óptica de igualdade de oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela
conformação de um ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado
para conferir eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por
decorrência desses mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para
todos aqueles que o violem, desde que ele se situe dentro de valores que não
sejam desadequados, e exista uma infracção a punir.
A sanção fixa corresponderá, deste modo, a uma transposição
para o campo sancionatório dos mesmos princípios a que obedece, precisamente, o
estabelecimento dos preços normativos e a conformação do dever do seu
pagamento/cobrança, maxime, dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
A sanção constitucionalmente impugnada enquadra-se, a nosso
ver, dentro de tais exigências.
O que acaba de dizer-se não impede que o legislador ordinário,
no uso da sua discricionariedade normativo-constitutiva, não possa optar por um
sistema de sanções variáveis, como aquele que estabeleceu no art. 7.º da recente
Lei n.º 28/2006, de 4 de Julho, que regulou em novos termos o “regime
sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de transportes
colectivos de passageiros”.
Eis, porque entendemos que não é constitucionalmente proibida a
existência, no ilícito contravencional e no contra-ordenacional, de sanções
fixas, relativamente a infracções cuja conformação visa defender bens jurídicos
relacionados com a prestação de bens em condições tendenciais de igualdade no
seu acesso real.
Benjamim Rodrigues