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Processo nº 784/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como
recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade do
acórdão de 12 de Julho de 2006 nos seguintes termos:
A., Recorrente nos autos à margem referenciados, notificado do douto Acórdão
proferido vem, pelo presente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos, nos termos dos
art°s. 69° e seguintes da Lei n°. 28/82, de 15 de Novembro, com as revisões
operadas pelas Leis n°s. 143/85, de 26 de Novembro, 85/89, de 7 de Setembro,
88/95, de 1 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro e ao abrigo da al. b) do
n°. 1 do art°. 70° porquanto a decisão recorrida, ao fazer uma apreciação
arbitrária da prova, consubstancia uma interpretação que toma inconstitucional o
art°. 127° do Cód. Proc. Penal, por violação directa do disposto no n°. 1 do
art°. 32° da Constituição da República Portuguesa quanto à garantia de defesa do
arguido, questão já suscitada na conclusão D) das alegações.
A conclusão D referida no requerimento de interposição do recurso tem a seguinte
redacção:
D) O Arguido jamais poderá ser prejudicado ou ver afectado o seu direito de
presunção de inocência, direito que como se sabe tem plena consagração
constitucional, pelo simples facto de ter sofrido uma condenação anterior há
muito tempo, o que viola o art. 32° da CRP;
Cumpre apreciar.
2. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Nos presentes autos, o recorrente apenas afirmou, perante o tribunal recorrido,
que não pode “ser prejudicado ou afectado o seu direito de presunção de
inocência (…) pelo simples facto de ter sofrido uma condenação anterior há muito
tempo”, o que violaria o artigo 32º da Constituição. Como decorre da transcrição
da conclusão D das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, em
momento algum é suscitada uma qualquer questão de constitucionalidade normativa
reportada ao artigo 127º do Código de Processo Penal.
É pois manifesto que não foi suscitada durante o processo qualquer questão de
constitucionalidade normativa [artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional].
Por outro lado, em momento algum o tribunal recorrido assumiu na decisão
impugnada ter procedido a uma apreciação arbitrária da prova, pelo que a
dimensão normativa que o recorrente, de modo pouco claro, indica no requerimento
de interposição do recurso de constitucionalidade não se reporta a norma
aplicada pela decisão recorrida.
Assim, não se verificam os pressupostos processuais do recurso interposto,
nomeadamente, a suscitação durante o processo de uma questão de
constitucionalidade normativa e a aplicação pela decisão recorrida da norma
impugnada. Desse modo, não se tomará conhecimento do objecto do presente
recurso.
3. Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
O recorrente vem agora reclamar nos seguintes termos:
A., Recorrente nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado do
despacho em que se decide não tomar conhecimento do objecto do recurso vem, ao
abrigo do disposto no art° 78°-A, n°s. 1 e 3 da L.T.C., apresentar a reclamação
para a Conferência do referido despacho, nos termos seguintes:
Assenta o douto despacho da Conselheira Maria Fernanda Palma, pela qual temos a
maior consideração, em consequência do teor de algumas decisões suas anteriores
em processos em que interviemos, nos seguintes fundamentos:
1. – Não considerar devidamente suscitada a questão da constitucionalidade
normativa, porquanto o Recorrente se limita a afirmar em abstracto que
determinada decisão se baseia na leitura Imprópria de determinada disposição
legal, tornando-a inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32°, nº
2, da Constituição da República.
2. – Não ter suscitado a questão da constitucionalidade antes da prolação da
decisão, de modo a permitir ao Juiz “a quo” pronunciar-se sobre ela.
Logo, em sede de requerimento de interposição do recurso, a questão da
constitucionalidade normativa está identificada.
Aliás, este aspecto da constitucionalidade normativa e a forma como foi
suscitada, reside na circunstância de perante a decisão tomada se ter verificado
e, por isso, alegado que a condenação do Arguido se ficava a dever a uma decisão
arbitrária sobre a matéria de prova, o que implicava e implicou a violação das
mais elementares garantias do Arguido, consagradas no art° 320 da Constituição
da República, designadamente no seu n° 2.
Quanto ao segundo fundamento, o da intempestividade da arguição da questão da
constitucionalidade, não o podemos sequer compreender.
Na realidade só com o proferimento da sentença se pôde constatar que o Tribunal
tinha feito uma incorrecta aplicação da faculdade contida no art° 127° do Cód.
Proc. Penal.
Foi nesse momento que a decisão recorrida baseando-se, designadamente, no art°
127° do Cód. Proc. Penal, patenteou uma incorrecta interpretação desta
disposição legal, pondo em causa uma das garantias essenciais do processo penal
– a presunção de inocência e o seu corolário e não menos importante o princípio
“in dubio pro reo”.
Portanto, não havia, logicamente, outro momento que não fosse o da interposição
do recurso para suscitar a violação do art° 32°, nº 2 da Constituição da
República, pois antes tal violação ainda não se tinha verificado.
Por último, diz-se que no acórdão recorrido jamais se reconheceu ter a decisão
de 1ª instância procedido a uma apreciação arbitrária da prova.
E é verdade, pois, de contrário, o acórdão teria, naturalmente, revogado a
decisão recorrida que teria transformado o princípio da livre apreciação da
prova em apreciação arbitrária da mesma.
E é isso precisamente o que está em causa.
Como bem referem Figueiredo Dias e Germano Marques da Silva na esteira de
Eduardo Correia e Cavaleiro Ferreira — livre apreciação de prova não se confunde
de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão
gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
Ora, em toda a prova testemunhal produzida, nada permite imputar ao Arguido e
ora Recorrente os crimes em que foi condenado, sendo certo que prova documental
nesse sentido inexiste.
Voltámos aos finais do Séc. XIX em que o princípio da livre apreciação da prova
significava que ao Juiz tudo era permitido, de acordo com o seu sentimento de
infalibilidade, sobrepondo o seu “feeling” à prova de facto produzida.
A imputabilidade ao arguido dos factos de que é acusado, não é um juízo de mero
valor ou de inclinação intelectual de quem julga.
Para haver condenação é indispensável que haja prova produzida que, em termos de
segurança, permita concluir pela culpa do arguido e pela sua participação nos
factos criminosos que lhe são imputados.
Aliás e olhando para trechos e passagens do acórdão recorrido, conclui-se nele
que não é possível imputar ao Arguido e ora Recorrente a prática material das
falsificações que lhe são diriqidas, mas é de presumir que as tivesse ordenado a
colaboradores seus sobre quem exercia o seu poder de direcção!
3. – Por outro lado, em momento algum o Tribunal recorrido terá reconhecido que
a decisão impugnada tivesse sido baseada numa apreciação arbitrária da prova.
Com o devido respeito, nenhum dos argumentos poderá ser considerado procedente.
Vejamos cada um “de por si”:
A questão da constitucionalidade normativa foi suscitada no recurso da decisão
de 1ª Instância, já que só após proferida tal decisão, face à prova produzida,
se pôde constatar a utilização abusiva e imprópria por parte do tribunal do
disposto no art° 127°, n° 1 do Código de Processo Penal.
Tal utilização indevida das faculdades previstas naquela disposição legal
afronta o princpio da presunção de inocência contida no art° 32º, n° 2 da
Constituição da República.
Na verdade, o princípio da presunção de inocência impede que, designadamente, o
artigo 127° do C.P.Penal possa ser utilizado para condenar sem que se tenham
produzido provas consentâneas.
Ir mais longe em sede de requerimento de Interposição de recurso será entrar no
próprio campo das alegações.
E é evidente que o ponderar e determinar da violação do artigo 32°, n° 2 da
Constituição da República implicará sempre uma análise detalhada da matéria de
prova produzida no sentido de aquilatar se os comportamentos objecto do libelo
acusatório poderão ser imputados ao Arguido.
Colaboradores que não se identifica, mas que deverão existir!!
Também se conclui que não se conseguiu provar as vantagens materiais ou outras
que o Arguido e ora Recorrente pudesse ter retirado da prática da factualidade
criminosa, mas pelo sim, pelo não, condena-se !!
O que será isto senão arbitrariedade arrepiante que põe indiscutivelmente em
causa as garantias de todo e qualquer arguido e a própria Justiça?
CONCLUINDO
a) – A questão da constitucionalidade normativa está identificada;
b) – A questão da constitucionalidade, pelas razões referidas, só poderia ter
sido suscitada em sede de recurso, após conhecida a decisão e a sua
fundamentação;
c) – O principio da livre apreciação da prova consagrado no art° 127° do Cód.
Proc.Penal foi utilizado, na decisão recorrida, tal como na decisão de 1ª
Instância, com total e absoluta arbitrariedade, pondo em causa as garantias do
Arguido, designadamente a que se encontra consagrada no art° 32º, n° 2 da
Constituição da República e que impõe que, em caso de dúvida, se absolva o Réu.
O Ministério Público pronunciou‑se do seguinte modo:
1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, o reclamante não suscitou, em termos processualmente adequados,
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de constituir
objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta.
3 – Já que não questionou qualquer critério normativo, atinente à valoração da
prova, mas antes a concreta e casuística apreciação que dela fizeram as
instâncias.
Cumpre apreciar.
2. O recorrente afirma na presente reclamação que apenas teve oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade que pretende ver
apreciada reportada ao artigo 127º do Código de Processo Penal no requerimento
de interposição do recurso.
Se o reclamante se refere ao requerimento de recurso de constitucionalidade (a
sua argumentação não é clara), contradirá o que referiu anteriormente no
requerimento de interposição desse recurso, já que nessa altura afirmou que
suscitara a questão de constitucionalidade na Conclusão D das suas alegações de
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. De resto, não foi proferida nos
autos qualquer decisão objectivamente imprevisível, pelo que tal suscitação
sempre seria intempestiva. Se, diferentemente, pretende referir o recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa, então o reclamante não suscitou nesse momento
processual qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de
constituir objecto idóneo do presente recurso, como se demonstrou na Decisão
Sumária sob reclamação.
Por outro lado, o reclamante reconhece que o acórdão recorrido não assumiu a
realização de uma qualquer apreciação arbitrária da prova. No entanto, foi essa
a dimensão normativa que o reclamante identificou, de modo pouco claro, como se
referiu na Decisão Sumária, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade. Desse modo, a dimensão normativa impugnada não constitui
fundamento da decisão recorrida.
O reclamante tece considerações várias sobre a apreciação da prova produzida nos
autos. Porém, não cabe ao Tribunal Constitucional, no âmbito do recurso da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sindicar a
apreciação da prova produzida na 1ª instância. Na verdade, da argumentação
apresentada decorre que o reclamante pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie a decisão sobre a prova. No entanto, tal não pode ocorrer nos presentes
autos.
Por último, evidencie‑se que não se exige ao reclamante que entre “no próprio
campo das alegações” no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade. Apenas impendia sobre o reclamante o ónus da suscitação da
questão de constitucionalidade normativa durante o processo de modo
processualmente adequado e a indicação no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade da norma que, tendo sido aplicada pela decisão
recorrida, considera inconstitucional. Como se demonstrou na Decisão Sumária, o
reclamante não cumpriu tal ónus. Desse modo, o recurso de constitucionalidade
não pode ser admitido, pelo que a presente reclamação improcede.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos