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Processo n.º 739/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
1. A. interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão da Relação de Évora, de 11 de
Julho de 2006, que negou provimento a recurso da decisão que lhe aplicou a
medida de coacção de prisão preventiva, por estar indiciada a prática de um
crime de tráfico de estupefacientes agravado (artigos 21.º, n.º 1 e 24.º,
alíneas c) e j), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 2 de Janeiro), e da decisão que
lhe negou o acesso a alguns elementos de prova que reputa importantes para
impugnar a decisão que decretou essa medida de coacção.
Esse acórdão confirmou duas decisões do juiz de instrução criminal que haviam
desatendido os seguintes pedidos formulados pelo arguido, ora recorrente:
- o pedido de libertação imediata, que o recorrente fundara em não ter sido
respeitado o prazo de 48 horas para interrogatório e aplicação das medidas de
coacção, nos termos dos artigos 141.º e 254.º do Código de Processo Penal;
- o pedido de que lhe fosse facultado o acesso aos elementos de prova de
prova que foram determinantes para aplicação da medida de coacção, a fim de
poder motivar o respectivo recurso perante a Relação.
O recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
inconstitucionalidade das seguintes normas:
- dos artigos 141.º e 254.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo
Penal, na interpretação de que é respeitado o prazo de 48 horas quando o arguido
detido é apresentado ao juiz de instrução que o ouve sobre a identidade e os
antecedentes criminais e valida a detenção dentro desse prazo, mas a comunicação
dos factos que motivaram detenção, bem como a decisão que aplica a medida de
coacção ocorre depois das 48 horas, por violação dos artigos 18.º, 27.º, 28.º,
n.º 1 e 32.º da Constituição.
- dos artigos 86.º, n.ºs 1, 2 e 5, 89.º, n.º 2, 97.º, n.º 4 e 141.º, n.ºs. 1, 4
e 5, do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual, querendo o
arguido impugnar a decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão
preventiva, não necessita de conhecer o conteúdo das intercepções telefónicas e
autos de vigilância, elementos de prova usados pela decisão judicial para
fundamentar a aplicação daquela medida, por violação dos artigos 18.º, n.º 1,
28.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5, e 205.º da Constituição.”
2. O recorrente apresentou alegações, nas quais sustenta e conclui o
seguinte:
“1. O douto acórdão recorrido interpretou normas dos artigos 141.º n.º 1 e 254.º
n.º 1 al. a), ambos do C.P.P., como não violador da Constituição, a
circunstância de o arguido ter sido presente ao Juiz de Instrução no prazo de 48
horas, que o ouviu sobre antecedentes criminais e validou a sua detenção
ordenada pelo O.P.C. competente, mas, tendo o seu 1º interrogatório “strictu
sensu”e a comunicação dos factos que motivaram a sua detenção, bem como a
decisão que aplicou a medida de coacção, ocorrido bem depois das 48
2. O arguido foi detido por mandado de detenção emitido fora de flagrante delito
pelo OPC competente, sem que dele conste um único facto concreto.
3. Presente a MM JIC, não se iniciou o seu interrogatório, e não lhe foram
comunicados os motivos de facto e de direito que fundamentaram a sua detenção.
4. Só bem depois do prazo de 48 horas ter terminado, é que se iniciou o seu
interrogatório e foi explicado ao arguido os motivos de facto e de direito que
fundamentaram a sua detenção.
5. Tendo só após esse prazo, o arguido a efectiva oportunidade de responder a
perguntas da MM JIC.
6. Por último, também só depois desse prazo ter terminado, é que foi o estatuto
coactivo do arguido ponderado e aplicada a prisão preventiva.
7. Devem tais normas serem julgadas inconstitucionais quando interpretadas e
aplicadas no sentido de que se mostra cumprido o prazo de 48 horas e que alude o
artigo 28.º n.º 1 da CRP, sem que se tenha iniciado o 1º interrogatório “strictu
sensu”, sem que o detido conheça ao motivos da detenção e os factos que a
sustentam e, sem que seja interrogando dando-se-lhe a possibilidade de se
defender;
8. E, ainda, quando interpretadas e aplicadas no sentido de que é possível a
apreciação judicial da aplicação da medida de coacção ao arguido, ainda que
entre a detenção e aquela medeie prazo superior ao de 48 horas, a que alude o
artigo 28.º n.º 1 da CRP.
9. O douto acórdão recorrido interpretou as normas dos artigos 86.º n.º 1, n.º 2
e n.º 5, 89.º n.º 2, 97.º n.º 4 e 141.º n.º 1, n.º 4 e 5, todos do C.P.P., com a
interpretação com que foram aplicadas na decisão recorrida, ou seja, querendo o
arguido impugnar a decisão judicial que lhe aplicou a medida de coacção prisão
preventiva, não necessita de conhecer o conteúdo das intercepções telefónicas e
autos de vigilância, elementos de prova usados pela decisão judicial para
fundamentar a aplicação da prisão preventiva.
10. Da mesma forma tinha já entendido o despacho da MM JIC aí recorrido, ao
considerar as peças cujo acesso o arguido agora pretende não respeitam a
diligências de prova a que pudesse assistir nem a declarações por ele prestadas
não se encontrando no leque daquelas cujo acesso lhe é permitido por via do
disposto no art. 89.º n.º 2 do Cod. Proc. Penal e que…não se entende verificada
a conveniência para o esclarecimento da verdade no acesso ao seu conteúdo dos
elementos agora referenciados pelo arguido, nos termos que vêm previstos no art.
86.º n.º 5 do Cod. P. Penal.
11. Resta dizer que o arguido não teve conhecimento no decurso do seu
interrogatório, do conteúdo de qualquer auto de vigilância, intercepção
telefónica ou sua transcrição.
12. Contudo, as mesmas serviram de fundamento para decretar a sua prisão
preventiva.
13. Serviram também, para que no decurso do seu interrogatório, o arguido fosse
confrontando com a existência das escutas telefónicas e de vigilâncias, que
contra ele existiam.
14. Contudo em nenhum, momento do interrogatório ou após este, o arguido teve
conhecimento do teor de uma intercepção telefónica ou vigilância.
15. A interpretação com que foram aplicadas as normas do C.P.P. acima referidas,
no douto acórdão recorrido, é inconstitucional, por limitar de uma forma
desproporcional e intolerável os direitos defesa do arguido, e assim contende
com as normas constantes nos artigos 18.º n.º 1, 28.º n.º 1, 32.º, n.º 1, n.º 2,
n.º 3, n.º 5 e 205.º da CR.”
O Ministério Público contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e
concluindo nos termos seguintes:
“1. O prazo de 48 horas previsto nos artigos 28.º, n.º 1 da Constituição e
141.º, n.º 1 e 254.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, funciona
como prazo máximo para apresentação ao juiz de instrução de arguido detido.
2. Não é constitucionalmente exigível que no decurso do referido prazo, seja o
arguido interrogado e que haja tomada de posição judicial sobre a medida de
coacção imposta, maxime a prisão preventiva.
3. Não se afigura também inconstitucional uma interpretação das normas dos
artigos 86.º, n.ºs 1, 2 e 5, 89.º, n.º 2, 97.º, n.º 4 e 141.º, n.ºs 1, 4 e 5 do
Código de Processo Penal, segundo a qual e de acordo com um ponderado equilíbrio
entre direitos da defesa do arguido e preservação do segredo da justiça na fase
inicial da investigação, não tenham que ser facultados todos os elementos de
prova para efeitos de recurso da decisão que aplicou a prisão preventiva.”
Cumpre conhecer do objecto do recurso.
3. Quanto ao prazo para validação judicial da detenção e aplicação de medidas
de coacção.
3.1. Importa começar por pôr em destaque os factos em que se concretiza a
aplicação da norma a este propósito questionada, de modo a mais facilmente
identificar o problema de constitucionalidade que importa resolver:
- O recorrente foi detido, conjuntamente com outros sete co-arguidos, pelas 9
horas do dia 28 de Fevereiro de 2006, em cumprimento de mandado de detenção
emitido por órgão de polícia criminal, nos termos dos artigos 255.º, n.º 1,
alínea a) e 256.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por tráfico de
estupefacientes, crime previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º,
alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;
- Os oito detidos foram apresentados ao juiz de instrução criminal às 13
horas e 50 minutos, de 1 de Março de 2006, sendo proferido despacho a ordenar
interrogatório imediato;
- Pelas 16 horas e 59 minutos, do dia 1 de Março de 2006, o juiz de instrução
interrogou o recorrente sobre a sua identidade e antecedentes criminais,
informou-o dos direitos e deveres que lhe são conferidos pelo artigo 61.º do
Código de Processo Penal e proferiu despacho do seguinte teor: “Valido a
detenção do arguido porque efectuada fora de flagrante delito nos termos dos
art.s 257.º, n.º 2 e 258.º do CPP, tendo o mesmo sido apresentado no prazo
legalmente previsto nos art.s 141.º, n.º 1 e 254.º, n.º 1, al. a) daquele
diploma legal”;
- O juiz de instrução interrompeu os interrogatórios pelas 19 horas e 50
minutos do dia 1 de Março, designando para continuação da diligência o dia 2 de
Março de 2006, pelas 9 horas.
- A diligência foi retomada no dia 2 de Março de 2006, sendo sucessivamente
interrogados os arguidos, com exposição dos motivos da detenção e dos factos que
lhes eram imputados, ocorrendo o interrogatório do ora recorrente, que foi o
último, às 12 horas e 35 minutos de 2 de Março de 2006;
- No início deste interrogatório, o recorrente apresentou um requerimento
pedindo a sua libertação imediata, alegando não lhe terem sido comunicados, no
prazo de 48 horas, os motivos da detenção e os factos imputados;
- O que foi indeferido, tendo o recorrente sido interrogado e tendo-lhe sido
aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
Esta sequência torna evidente que não está em causa uma interpretação da
norma que permita o atraso (ou a falta de cumprimento do prazo) na apresentação
do arguido ao juiz de instrução criminal, a qual teve lugar dentro das 48 horas
posteriores à sua detenção. Simplesmente, sendo oito os arguidos que haviam sido
detidos e apresentados simultaneamente, à ordem do mesmo processo, num primeiro
momento e ainda dentro dessas 48 horas, teve lugar um primeiro interrogatório
(uma primeira fase do interrogatório) limitado à verificação judicial da
regularidade formal da detenção e, depois, outro interrogatório (uma segunda
fase do interrogatório) com comunicação ao arguido dos factos imputados e dos
motivos da detenção e a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Esta segunda fase do interrogatório ocorreu 51 horas e 35 minutos depois do
início da detenção, ou seja 3 horas e 35 minutos após o termo do referido
período.
3.2. A dimensão normativa questionada não se diferencia substancialmente
daquelas que o Tribunal Constitucional já foi chamado a apreciar relativamente
às normas do n.º 1 do artigo 141.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 254.º do
CPP, por referência ao prazo máximo de 48 horas estabelecido pelo artigo 28.º da
Constituição, designadamente, no acórdão n.º 565/2003 (Diário da República, II
Série, de 30 e Janeiro de 2004), cuja doutrina foi retomada no acórdão n.º
135/2005, Diário da República, II Série, 27 de Abril de 2005).
Disse-se naquele primeiro acórdão:
«Ao questionar a conformidade constitucional das normas do Código de Processo
Penal nela aplicadas, o Recorrente pretende acima de tudo sindicar uma
interpretação segundo a qual o prazo de 48 horas referido quer na lei de
processo, quer na própria Constituição, se conta até à simples apresentação do
detido no tribunal e a sua entrega à custódia judicial. Além disso, será também
inconstitucional uma interpretação dos questionados preceitos do Código de
Processo Penal que permita ao juiz, após este prazo, manter detido o arguido,
interrogá-lo nessa situação e determinar-lhe a medida de coacção de prisão
preventiva.
2.5. A primeira destas questões deverá ser resolvida mediante a interpretação do
próprio preceito constitucional cujo parâmetro é aqui invocado. O citado n. 1 do
artigo 28.º da Constituição tem, actualmente, a seguinte redacção:
A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a
apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de
coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e
comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.
Esta redacção resultou de alteração introduzida no preceito pela quarta revisão
constitucional. Antes disso, o preceito proclamava o seguinte:
A prisão sem culpa formada será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito
horas, a decisão judicial de validação ou manutenção, devendo o juiz conhecer
das causas da detenção e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe
oportunidade de defesa.
Tal redacção podia razoavelmente suscitar uma dúvida de interpretação sobre se a
decisão de validação, após o interrogatório, deveria ser proferida ainda dentro
do referido prazo de 48 horas. Reflecte essa hesitação o seguinte comentário de
Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA in CRP Anotada (3.ª ed., Coimbra, 1995).
A prisão preventiva sem culpa formada, seja a efectuada em flagrante delito,
seja a ordenada em caso de fortes indícios de grave crime doloso, carece sempre
de validação ou de confirmação pelo juiz em curto prazo de tempo (parecendo que
esse prazo de 48 horas vale para a apresentação de detido ao juiz e também para
a decisão deste), de modo a limitar ao máximo a privação do direito à liberdade
por via administrativa (especialmente, policial). É ao juiz que compete decidir
da pertinência e necessidade da prisão, confirmando-a, substituindo-a por outra
medida ou fazendo libertar o detido.
Certo, porém, é que actualmente o preceito tem uma redacção diferente.
A alteração deve-se, sem dúvida, à adequação a uma nova terminologia
constitucional, mas apresenta ainda uma alteração de natureza gramatical:
enquanto que anteriormente se dizia que a detenção deveria ser submetida no
prazo máximo de 48 horas “a decisão judicial de validação ou manutenção,...”,
actualmente diz-se que a detenção deverá ser, no mesmo prazo, sujeita “a
apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de
coacção adequada,...”.
Ora deve aceitar-se que o que o legislador constitucional pretende, no aludido
preceito, é limitar a privação do direito à liberdade por via administrativa,
especialmente a policial, como reconhecem os citados Anotadores, ou seja, o que
o parâmetro constitucional impõe é um prazo máximo de prisão administrativa, que
não poderá exceder as 48 horas.
Tal entendimento sufraga-se ainda no disposto no artigo 5.,º §1, c), e §3, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem e na doutrina que sobre ele se
construiu. A alínea c) do §1 admite a privação de liberdade, sem condenação, “a
fim” de o detido “comparecer perante a autoridade judicial competente”; o §3
estabelece:
Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea
c) do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro
magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a
ser julgada num prazo razoável ou posta em liberdade durante o processo. A
colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a
comparência do interessado em juízo.
Em anotação, escreveu Ireneu Cabral Barreto (A CEDH anotada, 2.ª ed., Coimbra,
1999): “Pretende assim reduzir-se, tanto quanto possível, o risco de arbítrio e
assegurar a preeminência do direito, um dos princípios fundamentais de uma
sociedade democrática que implica um controlo judicial das ofensas ao direito
individual e à liberdade”. Mais à frente: “Em primeiro lugar, a pessoa presa
deve ser apresentada imediatamente (aussitôt na versão francesa, promptly na
versão inglesa) a um juiz”. “Os órgãos da Convenção, confrontados com as
divergências das legislações internas dos Estados membros sobre o prazo em que
uma pessoa presa deve ser apresentada a um magistrado, não conseguiram definir
um critério uniforme e preciso, limitando-se a afirmar que esta celeridade deve
ser apreciada in concreto segundo as circunstâncias da causa, embora se possa
admitir, no limite, alguns dias”. “A obrigação de apresentar uma pessoa a um
magistrado é incondicional e automática, sem que isso implique o direito de ser
ouvida num determinado prazo”.
Equacionado nestes moldes o problema, certo é que a entrega do cidadão detido
aos serviços judiciais significa a cessação de uma situação legal de poder
administrativo sobre a pessoa privada de liberdade, mostrando-se, por isso,
cumprida a garantia que a norma constitucional pretende consagrar.
Outras razões de natureza prática, mas que se ligam com direitos processualmente
conferidos aos suspeitos da prática de crime, também apontam para este sentido
interpretativo.
Com efeito, se o prazo de 48 horas se reportasse ao momento em que é proferido
despacho de validação da prisão, após o interrogatório, teríamos que admitir que
a legalidade da prisão dependeria em boa medida não só da actuação policial e da
prontidão com que o detido havia sido entregue em tribunal, como ainda do
próprio arguido e das opções que ele entendesse tomar neste primeiro
interrogatório, designadamente quanto ao tempo gasto nas respostas e na
exposição da sua defesa. Isto é, a legalidade da prisão ficaria dependente de
acto do próprio interessado, o que seria incompreensível, atentos os riscos que
a solução acarretaria não só para a utilidade do interrogatório, como para os
direitos de natureza garantística que a lei confere aos próprios arguidos nesse
momento processual.
Além disso, a finalidade da intervenção do juiz de instrução, neste primeiro
interrogatório, ultrapassa a apreciação da legalidade da detenção efectuada e a
consideração das respectivas “causas” no momento em que ela se efectivou, pois
reside, também, na aplicação de uma medida de coacção, caso em que a decisão tem
a ver com um juízo de prognose sobre a necessidade da prisão preventiva e,
logicamente, com a dinâmica da instrução.
Pode assim aceitar-se que o n.º 1 do artigo 28.º da Constituição visa impor um
prazo máximo de detenção administrativa, designadamente policial, e que, por
força desta norma, o detido deverá ser nesse prazo entregue à custódia de um
juiz; o que, em concreto, se cumpriu com a sua apresentação no Tribunal de
Oeiras e com o facto, comprovado, de o Juiz ter despachado no processo ainda
dentro do aludido prazo.
Em suma, deve concluir-se que não viola a Constituição a interpretação
perfilhada na decisão recorrida dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, alínea a), do
Código de Processo Penal.
2.6. Outra questão reside em saber se não ofende a garantia constitucional de
liberdade individual prevista no n.º 1 do artigo 27.º da CRP a interpretação dos
aludidos preceitos que permite ao juiz validar a detenção do recorrente, após
interrogatório, 54 horas após a sua detenção e cerca de 6 horas após a sua
apresentação em tribunal.
Este é, na verdade, um outro problema, pois nem os questionados preceitos do
Código de Processo Penal nem a Constituição referem expressamente um prazo certo
dentro do qual deverá ocorrer o interrogatório do detido e ser proferida decisão
sobre a aplicação de medida de coacção.
Mas há uma clara indicação quanto a este prazo no disposto na alínea a) do n.º 2
do artigo 103.º do Código de Processo Penal: a diligência deverá ocorrer no mais
breve espaço de tempo. É também este o sentido que se deve recolher do já
aludido comando constitucional previsto nos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1,
da CRP.
Compreende-se, por isso, que não seja concretizado um prazo determinado para o
juiz ouvir e julgar da validade da detenção, porque a duração dessa tarefa
dependerá do caso concreto.
Inúmeros factores podem, na verdade, condicionar a celeridade da actividade do
juiz, como, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime praticado, a complexidade
do caso, o número de agentes envolvidos, o estado físico e psíquico do próprio
detido e as opções que elege quanto à exposição da sua defesa.
Importa, porém, ter em conta a jurisprudência deste Tribunal sobre o dever de
celeridade nos casos em que estão em causa direitos fundamentais. Designadamente
no acórdão 407/97, de 21 de Maio, frisou-se que “o critério interpretativo neste
campo não pode deixar de ser aquele que assegure a menor compressão possível dos
direitos fundamentais” e que “a intervenção do juiz é vista como uma garantia de
que essa compressão se situe nos apertados limites aceitáveis”, ponderando-se:
... no quadro de uma previsão legal atinente ao processo criminal (a única
constitucionalmente tolerada), carecerá sempre de ser compaginada com uma
exigente leitura à luz do princípio da proporcionalidade, subjacente ao artigo
18.º, n.º 2, da Constituição, garantindo que a restrição do direito fundamental
em causa se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse
constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente. [...]
Também o TEDH tem aceitado, como já se viu, que a obrigação de apresentar uma
pessoa a um magistrado não implica o direito de ser ouvida num prazo
determinado, mas no que, caso a caso, mostre ser o mais breve.
Ora, procurando usar o mesmo critério, cumpre assinalar que não ocorreram in
concreto hiatos no controlo, pelo Juiz, da situação do Recorrente.
Com efeito, apresentados os detidos, entre os quais se contava o Recorrente, no
Tribunal de Oeiras em 31 de Março de 2003, segunda-feira, logo o Juiz proferiu
despacho a designar as 13 horas e 30 minutos para os interrogatórios dos presos,
fazendo menção da hora a que despachou – 12 horas e 15 minutos – e referindo que
essa foi também a hora em que o processo lhe foi entregue. Os interrogatórios
iniciaram-se pelas 14 horas e 45 minutos; às 18 horas e 35 minutos do mesmo dia
deu-se início ao interrogatório do arguido. Findo o interrogatório, o Juiz
validou a prisão e determinou que o arguido ora recorrente aguardasse em prisão
preventiva a instrução do processo.
Ora, quer a circunstância de o Juiz haver imediatamente lavrado despacho a
designar hora para o interrogatório, diligência que ocorreu logo de seguida, e o
controlo sempre manifestado pelo Juiz sobre a situação do arguido – o que
inequivocamente resulta da possibilidade conferida ao Advogado do arguido de
requerer a sua libertação quando foi ultrapassado o prazo dentro do qual, no seu
entendimento, deveria manter-se detido – determinam a convicção segura, no juízo
de proporcionalidade que aqui é determinante, que as normas dos artigos 141.º,
n.º 1, e 254.º, a), do Código de Processo Penal, tal como foram interpretadas e
aplicadas, não violam a Constituição, designadamente os artigos 27.º, n.º 1,
28.º, n.º 1, e 32.º.»
Estas considerações merecem ser reiteradas no presente caso, em que igualmente
se depara, quer a apresentação dos detidos ao juiz de instrução dentro do prazo
de 48 horas, quer um lapso de tempo até à decisão final sobre as medidas de
coacção que correspondente ao decurso do interrogatório de todos os arguidos
co‑envolvidos. Se alguma diferença deve destacar-se entre a hipótese presente e
a apreciada no acórdão n.º 565/2003 é que a prática judiciária que ela revela –
dito de modo mais adequado ao objecto de controlo de constitucionalidade, a
dimensão normativa que lhe preside – fiscaliza mais precocemente a situação do
arguido, o que legitimaria que se invocasse o argumento de maioria de razão.
Efectivamente, na situação agora em apreço, houve verificação judicial da
regularidade formal da detenção do arguido, acompanhada de informação acerca dos
seus direitos, ainda dentro do período de 48 horas, e não a simples colocação do
arguido à disposição do juiz de instrução pela entidade policial. Ficou
prevenido o risco de permanência de uma situação de detenção que porventura
enfermasse de flagrante ilegalidade, v. gr., por ter sido decretada por entidade
incompetente, sem o formalismo legal, por facto que a lei não preveja ou cuja
duração se mostrasse excedida. Só o confronto do arguido com os factos que lhe
estiveram na base (nisto se diferencia a situação da apreciada no acórdão n.º
135/2005 em que também esse confronto ocorreu, quanto à aí recorrente, dentro
das 48 horas) e a aplicação da medida de coacção, isto é, a apreciação dos
pressupostos substanciais para a privação de liberdade, é que ocorreu cerca de
três horas e meia após esse prazo da apresentação ao juiz. Mas numa sequência de
actos processuais executados sem hiatos além dos que são razoavelmente
explicados pela necessidade de descanso dos intervenientes na diligência,
incluindo o dos arguidos.
Reitera-se, assim, a ideia de que o prazo estrito do n.º 1 do artigo 28.º da
Constituição respeita à apresentação dos detidos ao juiz e não à decisão deste e
que o importante para que não exista violação das disposições constitucionais é
que a actuação do juiz de instrução, enquanto garante da posição do arguido
durante o inquérito, decorra sem demora, sem hiatos estranhos à matéria do
processo e que acarretem uma dilação desrazoável da decisão. Como o Tribunal
lembrou no acórdão n.º 135/2005, pode até admitir-se que, se o tempo de espera
pelo termo do interrogatório dos restantes arguidos for desrazoável, tal terá
consequências também no plano da constitucionalidade. Mas não pode dizer-se que
a circunstância de o interrogatório sobre os factos e sobre os motivos da
detenção e a inerente possibilidade de defesa, bem como a decisão de aplicação
das medidas de coacção, terem ocorrido mais de 48 horas a partir do início da
detenção, corresponda a uma interpretação das normas em causa que viole o
disposto nos artigos 27.º, n.º 1, e 28.º, n.º 1, 18.º e 32.º da Constituição da
República.
Assim, nesta parte improcede o recurso.
4. Quanto ao acesso, por parte do arguido, em processo em segredo de justiça,
ao conteúdo dos elementos de prova em que se fundou a decisão de aplicação da
prisão preventiva que pretenda impugnar.
4.1. O arguido requereu que lhe fosse dado acesso aos elementos de prova em
que concretamente se fundou a decisão de aplicação da medida de coacção de
prisão preventiva, para poder impugná-la. Elementos esses respeitantes às
intercepções telefónicas, nomeadamente as realizadas no dia e no decorrer das
operações de desembarque dos estupefacientes, as transcrições das escutas
telefónicas, as vigilâncias policiais e documentos apreendidos. O que foi
indeferido por despacho do juiz de instrução e veio a ser confirmado pelo
acórdão recorrido.
Depois de fazer referência a entendimentos jurisprudenciais e doutrinais
divergentes, ponderou-se no acórdão recorrido o seguinte:
“ [ …]
Tudo, por considerar que se está numa fase em que impera o segredo de justiça e,
por isso, há que limitar (ao máximo) o acesso aos autos e a entrega de
fotocópias (e mesmo a consulta dos autos, dizemos nós) ia facilitar uma maior
divulgação e publicidade que poderia prejudicar a investigação que está em
curso.
Entendendo-se que esta limitação não cerceia as suas garantias de defesa bem
como não impede o “exercício correcto do recurso”.
Porquanto, o arguido tomou conhecimento dos factos de que foi denunciado e das
circunstâncias que permitem concluir pela verificação dos requisitos legais,
designadamente do art.º 204.º e suas alíneas b) e c) do C.P.P.. Por outro lado,
prossegue o falado aresto, foi-lhe dado conhecimento, por consulta, quer das
suas declarações, quer do despacho subsequente a esse interrogatório (cfr.:
ainda e no mesmo sentido, o ac. Rel. de Lisboa, de 6-11-2001, na C.J., ano XXVI,
Tomo V, págs. 128).
Como vemos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 586/05, publicado no D.R.,
II Série, de 4.01.2006, onde se não julgou inconstitucional a norma do art.º
89.º, n.º 2 em conjugação com o artºs. 69.º, n.º 1, als. f) e h) e 141.º n. 4 do
C.P.P. interpretado no sentido de que pode ser negado ao arguido preso
preventivamente – para o efeito de apresentar a sua defesa e apresentar o
recurso dessa prisão – o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos
mesmos) em que concretamente se funda a prisão preventiva, se do auto de
interrogatório consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi
interrogado e se das questões concretas colocadas é possível concluir qual é a
interpretação do M.P. acerca de um comportamento do arguido tido como relevante
para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se considera satisfeito
o direito de defesa do arguido, não estando em causa a violação dos artºs. 28.º,
n.º 1 e 32.º, n.º 1, da C.R.P.
(E se transpusermos este último aresto e seu entendimento para o caso vertente,
o bastante seria para indeferir o pretendido pelo aqui recorrente.
Chama-se a atenção para o teor do interrogatório do arguido constante de fls.
1494 a 1495 dos autos, em conexão com o despacho judicial de fls. 1548 e 1549
dos autos e de onde decorre que o aqui recorrente teve conhecimento das questões
concretas existentes no caso, as entendeu, as explicou e, por tal, sabe bem das
razões que conduziram à sua prisão preventiva.
Como é de referir que o aqui recorrente teve acesso a várias peças processuais e
que os autos bem o demonstram – cfr. fls. 1549 destes autos)
Aderimos a este último entendimento por se nos afigurar ser o mais consentâneo
com os fins visados pelo processo penal – v.g. o da realização da justiça, da
descoberta da verdade material, de defesa dos direitos do arguido.
Não se discute que o processo penal há-de ter por finalidade, entre outras, a de
protecção dos direitos fundamentais dos cidadãos e muito especialmente o direito
à liberdade – cfr. art.º 27.º, n.º 1, da Const. Rep. Portuguesa.
Mas também se não pode olvidar que o inquérito é uma fase processual em que para
a realização da justiça e a descoberta da verdade material importa assegurar uma
investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada ou
mesmo irremediavelmente prejudicada, por factores exteriores à administração da
justiça penal, ao mesmo tempo que imporia tutelar de forma efectiva a presunção
de inocência do arguido, o que também é uma forma de lhe garantir o direito ao
bom nome e reputação (artº.s 26.º, n.º 1 da C.R.P. e 180.º do Cód. Penal), numa
fase processual onde vale, por excelência, o mandamento constitucional de que
todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença
condenatória (art.º 32.º, n.º 2 da C.R.P.). Como bem o salienta Maria João
Antunes, in “O segredo de Justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a
medida de coacção” – Liber Discipulorum” para Jorge de Figueiredo Dias – págs.
1244 – 1245.
Daí, as restrições que o segredo de justiça vem implementar e de que são
paradigma o teor do art.º 89.º, n.º 2 do C.P.P. (cfr. art.º 20.º, n.º 3, da
C.R.P.).
O que cabe descortinar é se o arguido a quem foi imposta a medida de coacção de
prisão preventiva necessita de ter acesso aos autos para consultar os elementos
de prova ou súmula dos mesmos em que concretamente se funda tal medida, v.g.
para efeitos de recurso.
A respeito, discorre a citada autora, tal, é uma afirmação que devemos recusar,
na medida em que esse conhecimento ocorre obrigatoriamente por outras formas,
nomeadamente por força do disposto nos artºs. 97.º n.º 4, 141.º, n.º 4, 194.º,
n.ºs 2 e 3 e 254.º, n.º 2 do C.P.P.. Para além disso, importa considerar que a
ideia da igualdade de armas (…) “só pode ser entendida com um mínimo aceitável
de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico‑material
global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. Com a consequência de que
uma concreta conformação processual, só poderá ser recusada, como violadora
daquele princípio de igualdade, quando dever considerar-se infundamentada,
desrazoável ou arbitrária; como ainda quando possa refutar-se substancialmente
discriminatória à luz das finalidades do processo penal do programa
político‑criminalmente que àquele está assinalado ou dos referentes axiológicos
que o comandam.
E prossegue, nesta avaliação positiva do regime legal do direito de defesa do
arguido, na fase de inquérito, estiveram sempre presentes as palavras de
Figueiredo Dias (…) “o processo penal português não é “ab initio” totalmente
contraditório, assim se opondo àquelas concepções que, em nome de uma estrutura
processual autenticamente acusatória, defendem a extensão total do contraditório
ao inquérito. Esta proposta, que pretende excluir de todo a existência de uma
fase inicial em que oficiosamente se investigue uma notícia do crime sem
participação contraditória do suspeito, se bem que aparentemente protectora, na
máxima medida, dos direitos fundamentais dos cidadãos, pode vir a prejudicar,
tanto o interesse público na repressão da criminalidade, como o interesse do
arguido no seu bom nome e reputação e em que a paz jurídica não seja posta em
causa senão em face de uma suspeita com um mínimo razoável de fundamento”.
(cfr. ob. cit. págs. 1267-1268).
Ora, tendo tido o arguido – e aqui recorrente – conhecimento dos factos
imputados – e como o seu interrogatório bem o demonstra –, ter tido acesso a
outras peças processuais – v.g. teor das suas declarações e a actos de buscas –,
de tudo decorre que pode com tais peças preparar a sua defesa, sem que com tal
possa dizer que lhe foram coarctados os seus mais directos direitos de defesa –
v.g. o do direito ao recurso (cfr. art.º 32.º, n.º 1 da C.R.P.).
Daí que, bem andou o Mmo. Juiz ao indeferir o pretendido acesso do arguido às
intercepções telefónicas, transcrições das escutas e autos de vigilância e tudo
o demais e como bem decorre do despacho de fls. 1548 a 1549 dos autos.”
4.2. O acórdão recorrido retirou o regime jurídico de acesso aos elementos de
prova constantes do processo, na fase de inquérito, por parte do arguido que
pretenda impugnar a decisão que lhe aplica a prisão preventiva, do n.º 2 do
artigo 89.º e do n.º 5 do artigo 86.º do Código de Processo Penal. Os demais
preceitos do Código de Processo Penal que neste capítulo o acórdão cita, entre
os quais se contam os relativos ao primeiro interrogatório judicial de arguido
detido (artigo 141.º) e à fundamentação das decisões judiciais em processo penal
(artigo 97.º), são mencionados de modo adjuvante, para justificar a suficiência
do regime, na sua globalidade, para defesa dos direitos fundamentais do arguido,
e não como sede legal do critério normativo de decisão que levou à recusa de
acesso aos elementos probatórios que o recorrente pretendia conhecer e
expressamente requereu em ordem a motivar o recurso da decisão do juiz de
instrução (escutas e autos de vigilância policial).
Assim, o que importa apreciar é a constitucionalidade da norma extraída do
n,º 2 do artigo 89.º e do n.º 5 do artigo 86.º do CPP, na interpretação segundo
a qual o arguido que pretenda impugnar a decisão que lhe aplicou a medida de
coacção de prisão preventiva não tem direito de acesso ao conteúdo de elementos
de prova que tenham sido determinantes para a aplicação daquela medida.
4.3. A questão de determinar, durante o inquérito, fase processual coberta
pelo segredo de justiça (artigo 86.º do Código de Processo Penal), qual a
amplitude, do direito de acesso aos autos por parte do arguido
constitucionalmente exigida, nomeadamente se o n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição impõe que lhe seja facultado o conhecimento do conteúdo dos
elementos de prova em que concretamente se tenha fundamentado a decisão
aplicativa da medida de coacção da prisão preventiva que pretenda impugnar, foi
já objecto de apreciação por parte do Tribunal, designadamente, nos acórdãos n.º
121/97 (Diário da República, II Série, de 30 de Abril de 1997), n.º 416/2003
(Diário da República, II Série, de 6 de Abril de 2004) e n.º 586/2005 (Diário da
República, II Série, de 4 de Janeiro de 2006).
Disse-se no acórdão n.º 416/2003:
'A conjugação entre o direito de defesa do arguido e o segredo de justiça foi
objecto de tratamento por este Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 121/97
(Diário da República, II Série, n.º 100, de 30 de Abril de 1997, pág. 5148;
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 146; e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 36.º vol., pág. 313), embora o recurso onde esse aresto foi
proferido respeitasse já à fase de interposição de recurso do despacho
determinativo da prisão preventiva (sobre o tema, cf. Maria da Assunção E.
Esteves, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de
justiça”, em O Processo Penal em Revisão – Comunicações, Universidade Autónoma
de Lisboa, Lisboa, 1998, págs. 123‑131, republicado em Estudos de Direito
Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, págs. 145‑154).
Após exposição da evolução do regime legal sobre segredo de justiça e de
relevantes elementos de direito comparado, esse Acórdão n.º 121/97 consigna:
“10. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Lamy/Reino da Bélgica
veio julgar, através de acórdão de 30 de Março de 1989, tirado por unanimidade,
que não era respeitada a igualdade de armas se o arguido ou o seu advogado, que
pretendesse impugnar a decisão que lhe impusera a prisão preventiva, não tivesse
acesso às peças processuais onde estavam os elementos que serviram para
fundamentar tal decisão, ao passo que o Ministério Público delas tinha
conhecimento e delas se servia para defender a manutenção da prisão preventiva.
Ao não ser respeitada a igualdade de armas entre a acusação e a defesa, daí
resultava, segundo a mesma decisão, que o processo penal não era verdadeiramente
contraditório, pelo que era violado o artigo 5.º, n.º 4, daquela Convenção
(acórdão integralmente publicado em Sub Judice – Justiça e Sociedade, Novos
Estilos, n.º 11, Novembro de 1994, págs. 201 a 208, e também parcialmente na
Revue Universelle des Droits de l' Homme, vol. 1, 1989, págs. 124 e seguintes).
No caso Lamy, o arguido era um cidadão belga, gerente de uma sociedade de
responsabilidade limitada que se apresentara à falência, vindo aquele a ser
responsabilizado pela prática do crime de insolvência dolosa. Preso
preventivamente, impugnou o arguido por recurso a decisão de aplicação dessa
medida de coacção, sem ter tido acesso a todas as peças do processo. No recurso
de cassação suscitou a questão da falta de acesso ao processo, ao ter-se
apercebido de que o tribunal de segunda instância de Liège se baseara em
relatórios da polícia judiciária cujo conteúdo era desconhecido do recorrente e
do seu advogado para manter a decisão que decretara a prisão preventiva. Face à
improcedência do seu recurso no Tribunal de Cassação belga, o arguido recorreu
às instâncias europeias. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aceitou a sua
tese, considerando ter sido violado o n.º 4 do artigo 5.º da CEDH. Escreveu-se
nessa decisão:
«O Tribunal, tal como a Comissão, verificou que, devido à interpretação que a
jurisprudência deu à lei, o advogado do requerente não pôde, durante os
primeiros trinta dias da prisão preventiva, conhecer nenhum dado dos autos e
especialmente dos relatórios elaborados pelo juiz de instrução e pela polícia
judiciária de Verniers. Sucedeu assim concretamente no momento da primeira
comparência perante a Secção que tinha de se pronunciar sobre a confirmação do
mandado de prisão (...). O advogado não tinha a possibilidade de se opor
eficazmente às declarações ou argumentos que o ministério público deduzira dos
referidos documentos.
Era fundamental para o requerente ter esses documentos à sua disposição nesse
momento crucial do processo, em que o tribunal tinha de decidir se prolongava ou
dava por finda a prisão. Em especial, esta possibilidade teria permitido ao
advogado do senhor Lamy expor os seus pontos de vista sobre as declarações e a
atitude dos demais acusados (...). Na opinião do Tribunal, o exame dos
documentos referidos era, portanto, indispensável para discutir eficazmente a
legalidade do mandado de prisão.
Há uma relação demasiado estreita entre a necessidade da prisão preventiva e a
posterior apreciação da culpabilidade para que se possa recusar a consulta dos
autos no primeiro caso quando a lei a exige no segundo.
Ao passo que o procurador da Coroa conhecia os autos na sua totalidade, a
tramitação processual não dava ao requerente a possibilidade de impugnar
adequadamente os motivos invocados para justificar a prisão preventiva. Uma vez
que não garantia a igualdade de armas, o processo não era realmente
contraditório (veja-se, mutatis mutandis, a anteriormente citada sentença
Sánchez-Reisse, série A, n.º 107, pág. 19, ponto 51).
Por conseguinte, foi violado o artigo 5.º, n.º 4.» (n.º 29)
11. (...)
12. Tendo presentes os dados doutrinais e de direito comparado carreados para
os autos, importa decidir a questão de constitucionalidade suscitada pelo
recorrente.
Ora, tem‑se por seguro que o n.º 2 do artigo 89.º do CPP, conjugado com o n.º 1
do artigo 86.º do mesmo diploma, viola a Constituição quando impede, sempre e
em quaisquer circunstâncias, fora das situações excepcionais previstas na
primeira daquelas normas, o acesso do arguido ao auto na fase de inquérito,
nomeadamente quando este pretenda impugnar por recurso o eventual despacho de
manutenção da prisão preventiva.
A norma do n.º 2 do artigo 89.º do CPP procede a uma avaliação abstracta e
rígida dos riscos de acesso do arguido ao auto, impedindo que o juiz possa
valorar in concreto os interesses conflituantes em presença, o do arguido em
conhecer os indícios que serviram de fundamento à decisão de manutenção de uma
medida de coacção tão gravosa para a sua liberdade, como é a prisão preventiva,
e os do Estado em assegurar as finalidades do processo penal, nomeadamente os
interesses relativos à garantia de que a investigação do crime se fará em
condições de eficácia, a preocupação de que o arguido não procurará subtrair‑se
à acção da Justiça ou cometer novos crimes, ou a pretensão de assegurar a
subsistência dos meios probatórios já reunidos, evitando a sua eventual
destruição.
Deve notar‑se que, durante a fase de inquérito, em especial à medida que este
vai decorrendo, se vão inevitavelmente consolidando ou enfraquecendo os
indícios que motivaram a aplicação de uma medida de coacção ao arguido, por
força das actividades de investigação que se vão desenrolando. É por isso que a
lei processual penal permite ao juiz de instrução que revogue as medidas de
coacção por ele decretadas (artigo 212.º do CPP), e impõe mesmo, quando tenha
sido decretada a prisão preventiva, o reexame oficioso da subsistência dos
pressupostos da medida pelo juiz de instrução de três em três meses (artigo
213.º do CPP).
Neste quadro legal, não é possível sustentar que os princípios do
contraditório e da igualdade de armas imponham ao legislador que consagre, em
todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase de inquérito
pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja
para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do
despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido (artigo 212.º do CPP).
De facto, as circunstâncias podem variar de caso para caso, no que toca ao tipo
de crime investigado e ao próprio grau de desenvolvimento das actividades de
recolha da prova.
Mas o princípio do asseguramento de todas as garantias de defesa ao arguido
(artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) não se compatibiliza com a solução do
artigo 89.º, n.º 1, do CPP na medida em que este impede que o juiz faça
naqueles casos uma apreciação em concreto da possibilidade de acesso do
mandatário do arguido aos autos. Na verdade, importa fazer notar que a
possibilidade de o arguido, sujeito a prisão preventiva, conseguir impugnar,
através de advogado, a legalidade da aplicação da medida de coacção se poderá
tornar eminentemente formal, se não puder ter acesso aos autos para saber quais
são os «fortes indícios da prática do crime», ou quaisquer outros elementos
relevantes para a determinação ou manutenção da prisão preventiva.
É, também, seguro que o Ministério Público poderá motivar não só a resposta ao
recurso como também responder aos requerimentos destinados a fazer revogar a
prisão preventiva, dispondo de livre e incondicionado acesso aos autos.
Não obstante caber ao Ministério Público a direcção do inquérito e não se poder
falar, em absoluto, numa igualdade de armas entre o Ministério Público e o
arguido, – pondo‑se, assim, ex natura rerum a questão da igualdade de armas em
processo penal em moldes diversos do que em processo civil (cf., por exemplo,
além do citado Acórdão n.º 497/96, os Acórdãos n.ºs 132/92, 611/94 e 223/95,
publicados no Diário da República, II Série, n.º 169, de 24 de Julho de 1992,
n.ºs 4, de 5 de Janeiro de 1995, e n.º 146, de 27 de Junho de 1995,
respectivamente) – sempre que o arguido reaja contra a prisão preventiva, o
Ministério Público pode actuar processualmente como opositor da tese sustentada
por aquele. Nesse caso, vedando a lei, sempre e em qualquer caso, o acesso aos
autos haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais,
não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa previstas e asseguradas
pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Isto só não deverá ser assim se houver
razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das
circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos
ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não
concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, não se traduzindo, em
tal caso, a recusa de acesso – em despacho fundamentado – em restrição
excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo.
Quando a entidade recorrida sustenta, nas contra‑alegações apresentadas no
Tribunal Constitucional, que o objectivo confessado do arguido recorrente é «o
de poder sindicar a legalidade do despacho que lhe aplicou a medida de prisão
preventiva, e não propriamente contrariar a imputação que lhe é feita – e na
possibilidade de o fazer é que se concretiza o direito que invoca» (a fls. 85
dos autos), há‑de convir‑se que esse argumento não é decisivo para a resolução
do recurso sub judicio: será essencialmente na fase de instrução, se vier a
ocorrer, que o arguido poderá diligenciar no sentido de infirmar a acusação e
de evitar ser pronunciado; na fase do inquérito, não havendo ainda acusação, a
defesa do arguido há‑de ter também por objecto a medida de coacção que lhe foi
imposta, se entender que a mesma lhe foi ilegalmente aplicada. Não podem, por
isso, cindir‑se os dois momentos processuais e dizer‑se que as garantias de
defesa só têm de ser asseguradas na fase de instrução.
A solução legal que resulta da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 86.º
e do n.º 2 do artigo 89.º do CPP é violadora do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, impedindo, de forma desproporcionada, que o juiz autorize o acesso
aos autos, quando de tal acesso não decorram riscos para as actividades de
recolha da prova, ou inconvenientes sérios para a conclusão do inquérito,
nomeadamente quando, como no caso dos autos, já passou um certo período de tempo
após o momento de detenção do arguido.
Foi seguramente com base em idêntico juízo que, no caso Lamy, o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem considerou violador do princípio da igualdade de
armas, na fase de recurso da decisão de manutenção da prisão preventiva, a
privação do arguido e do seu advogado de acesso a determinados relatórios
policiais referentes a actividades probatórias já concluídas, não tendo
detectado razões ponderosas que obstassem a tal acesso.”
E o mesmo acórdão n.º 416/2003, depois de destacar os critérios gerais da
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem posterior ao caso Lamy,
designadamente nos acórdãos de 13 de Fevereiro de 2001 nos casos Lietzow v.
Alemanha, Garcia Alva v. Alemanha e Schöps v. Alemanha (todos disponíveis em
www.echr.coe.int; cfr. a síntese apresentada por Henriques Gaspar, “Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem (Direito penal e direito processual penal) 2001”,
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2, pág. 287 e segs.),
conclui nos seguintes termos:
'Recordadas as orientações da jurisprudência deste Tribunal Constitucional e do
TEDH, e passando a apreciar o caso do presente recurso, constata‑se que basta
perfilhar a orientação traçada no Acórdão n.º 121/97 − sem necessidade de
acompanhar em toda a sua extensão a jurisprudência do TEDH − para concluir pela
inconstitucionalidade da interpretação seguida pelo acórdão recorrido.
Não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas
apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a
imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação
da medida de coacção de prisão preventiva. Ora, relativamente a estes
específicos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se
decidiu no Acórdão n.º 121/97, que se considere sempre e em quaisquer
circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a
investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em
concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação,
também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa
causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa
causar à defesa do arguido − ponderação a que, no caso, o acórdão recorrido não
procedeu'.
4.4. Reitera-se este entendimento de princípio, pelo que importa passar à
análise da concreta dimensão normativa que no presente recurso está sujeita a
apreciação de conformidade com a Constituição.
Em primeiro lugar, observa-se que o acórdão recorrido, secundando o despacho
do juiz de instrução, não perfilhou um entendimento absolutamente “abstracto e
rígido” do direito de acesso ao conteúdo dos autos por parte do arguido, que se
esgotasse na previsão taxativa do n.º 2 do artigo 89.º do CPP. Efectivamente,
fez também intervir, na definição do critério normativo ao abrigo do qual a
pretensão do recorrente foi apreciada, a previsão do n.º 5 do artigo 86.º, que
prevê a possibilidade de que seja “dado conhecimento a determinadas pessoas do
conteúdo de acto ou documento em segredo de justiça, se tal se afigurar
conveniente ao esclarecimento da verdade”.
Fê-lo, porém, adoptando um entendimento que não dá ao bloco normativo em
causa um sentido capaz de satisfazer as exigências constitucionais acima
enunciadas e que decorrem do n.º 1 do artigo 32.º, em conjugação com o n.º 1 e
alínea b) do n.º 3 do artigo 27.º e com o n.º 3 do artigo 18.º da Constituição.
Como resulta de todo o capítulo em que esta questão é versada, o acórdão
recorrido não interpretou o n.º 5 do artigo 86.º do CPP como comportando um
efeito ampliativo da previsão do n.º 2 do artigo 89.º, quando esteja em causa a
pretensão do arguido de acesso aos autos na fase de inquérito, que possa
considerar-se suficiente para tornar o regime compatível com a exigência
constitucional de que o processo “assegure todas as garantias de defesa
incluindo o recurso” perante uma decisão de aplicação da prisão preventiva. Na
verdade, o tribunal a quo revela nessa fundamentação que as normas em causa não
impunham que procedesse à ponderação, em concreto, entre, por um lado, o
prejuízo que a revelação dos elementos pretendidos possa causar à investigação
e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do
arguido, como efectivamente não procedeu. O entendimento de que a lei permite a
revelação ao arguido de outros elementos além dos previstos no n.º 5 do artigo
86.º, se isso for conveniente ao esclarecimento da verdade, não equivale a
adoptar um critério normativo de solução do conflito mediante a ponderação, em
concreto, entre a relevância do conhecimento desses elementos de prova para a
efectividade do direito ao recurso, perante uma medida desta natureza, e os
interesses que justificam o segredo de justiça, nomeadamente a eficácia da
investigação.
É certo que, como salienta Maria João Antunes, no estudo citado pelo acórdão
recorrido (maxime pág. 1264), não pode transpor-se, sem mais, a jurisprudência
do TEDH quando invoca o princípio da igualdade de armas para se decidir pela
violação do artigo 5.º, § 4º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
naqueles casos em que foi negado ao recorrente o acesso global aos autos para
efeito de impugnar a sujeição a prisão preventiva. Apelar a este princípio ou,
pelo menos, a uma das suas facetas, significa a desconsideração de uma nota
fundamental: apesar de estruturado segundo o princípio da acusação, o processo
penal português não é um processo de partes, obedecendo as intervenções
processuais do Ministério Público a critérios de estrita objectividade (artigo
219.º da Constituição e 53.º do CPP), incluindo na fase de inquérito e na
sustentação, perante o juiz de instrução, de que ocorrem os pressupostos de
aplicação de medidas de coacção. Como escreve Maria João Antunes (loc. cit.,
pág. 1267) «importa considerar que a ideia de igualdade de armas, tantas vezes
presente nesta discussão, ‘só pode ser entendida com um mínimo aceitável de
correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico material
global da acusação e da defesa e da sua dialética. Com a consequência de que uma
concreta conformação processual só pode ser recusada, como violadora daquele
princípio de igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável
ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se substancialmente
discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa
político-criminal que àquele está assinalado ou dos referentes axiológicos que o
comandam’».
Todavia, o que está em causa não é assegurar a paridade entre os sujeitos
processuais ou a estrutura totalmente contraditória do processo na fase de
inquérito – a que a Constituição não obriga (artigo 32.º, n.º 5, da CRP) –, mas
a substancialidade do direito ao recurso relativamente a medidas que atingem
directamente o direito à liberdade do arguido presumido inocente, conferindo a
este os meios para uma intervenção constitutiva na decisão, de molde a reduzir
ao comunitariamente suportável o risco de privação injustificada da liberdade.
Ora, o simples conhecimento dos factos imputados e da existência, no processo,
de elementos probatórios que sustentam essa imputação e consequente juízo de
forte indiciação e os motivos para aplicação da medida de coacção, sem que o
arguido (ou ao seu mandatário, não sendo de excluir liminarmente que a lei
comportasse restrições à comunicação àquele, pelo menos em certo tipo de
processos, de elementos revelados ao seu advogado) possa analisar, no momento da
elaboração da motivação do recurso, o conteúdo desses mesmos meios de prova que
foram determinantes da convicção do juiz de instrução, não permite ao
interessado sustentar motivadamente a sua posição sobre o significado e o valor
probatório de tais elementos indiciários. A tarefa do arguido recorrente para
convencer o tribunal superior de que não ocorrem os pressupostos para a privação
cautelar da liberdade a que foi sujeito será sempre afectada por um deficit de
informação que diminui a efectividade da sua actuação processual na demonstração
do desacerto da decisão recorrida e, nessa medida, atinge as garantias de defesa
perante uma medida tão gravosa como é a prisão preventiva. O conhecimento, que
ao arguido advém pelas exigências de concretização a que está sujeito o
interrogatório e a fundamentação da decisão de aplicação da medida de coacção
(artigos 97.º, n.º 4, 141.º, n.º 4, 194.º, n.ºs 2 e 3 e 254.º, n.º 2, do CPP),
dos factos e da existência de indícios não substitui o conhecimento do conteúdo
dos elementos probatórios de onde tais conclusões foram extraídas, em ordem a
habilitá-lo a um recurso com exploração da máxima possibilidade de sucesso. Se
esses outros elementos, não compreendidos naqueles a que o arguido tem acesso
nos termos do n.º 2 do artigo 89.º, foram decisivos para a convicção do juiz de
instrução, só conhecendo o seu conteúdo o arguido recorrente pode motivar o
ataque a tal decisão mediante um discurso crítico racionalmente fundado que
ponha em causa a sua validade, o seu significado ou o seu poder convincente.
Não se nega, como o acórdão recorrido salienta, que a solução tem de ser
orientada pela procura de concordância prática das finalidades conflituantes
apontadas ao processo penal, nomeadamente, a realização da justiça e a
descoberta da verdade material e a protecção dos direitos fundamentais dos
cidadãos, arguido incluído. Nem se ignora que o segredo de justiça na fase de
inquérito vai ordenado a servir uma pluralidade de interesses, que também se
apresentam frequentemente como conflituantes, como a honra e reputação do
arguido, a segurança e a protecção da vida privada de terceiros (ofendidos,
testemunhas, etc.) e a eficácia da investigação e, portanto, a descoberta da
verdade e a realização da justiça penal. É também inegável que na protecção do
segredo de justiça que a lei deve assegurar de modo adequado, por exigência do
n.º 3 do artigo 20.º da Constituição, se compreende a que vai dirigida às
necessidades da investigação e da sua eficiente condução. Esta é a principal
razão para vedar ao arguido o acesso aos autos na fase de inquérito Mas esta
extensão do segredo interno só se apresenta compatível com o princípio do
asseguramento de todas as garantias de defesa, na exigência de optimização do
princípio perante decisões privativas da liberdade, quando o arguido pretenda
impugnar a decisão aplicativa de medidas de coacção desta natureza, se a regra
for a que permita o acesso ao conteúdo (obviamente, de modo que não comprometa o
segredo da parte restante – cfr. artigo 89.º, n.º 2, parte final, do CPP) dos
elementos que essa mesma decisão apresenta como determinantes para a aplicação
da medida, tendo a recusa de ser justificada mediante a ponderação, em concreto,
entre o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação (ou a outros
interesses protegidos pelo segredo) e o prejuízo que a sua ocultação possa
causar à defesa do arguido.
É certo, como argumenta o Ministério Público, que os elementos a que o
arguido não tem acesso devem acompanhar o recurso e que a Relação pode,
inclusivamente, pedir outros constantes do processo que entenda serem úteis.
Porém, essa possibilidade de reexame e instrução oficiosa pode ser invocada para
justificar que não se considere como constitucionalmente imposto, sempre e em
quaisquer circunstâncias, o acesso do arguido a tais elementos e se admita a
ponderação de outros interesses. Mas não para a recusa, como regra, de elementos
que, segundo a fundamentação da decisão recorrida, foram determinantes para a
aplicação da prisão preventiva.
5. Decisão
Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma dos artigos 141.º e 254.º, n.º 1, alínea
a), do Código de Processo Penal, na interpretação de que é respeitado o prazo de
48 horas quando o arguido detido é apresentado ao juiz de instrução, que o ouve
sobre a identidade e os antecedentes criminais e valida a detenção dentro desse
prazo, mas a comunicação dos factos que motivaram detenção, bem como a decisão
que aplica a medida de coacção ocorrem mais de 48 horas após o início da
detenção;
b) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da
Constituição, a norma dos artigos 86.º, n.º 5 e 89.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal, na interpretação segundo a qual, querendo o arguido impugnar a
decisão que lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva, lhe pode ser
recusado o acesso a elementos de prova que foram determinantes para fundamentar
a aplicação daquela medida, sem que haja apreciação, em concreto, da existência
de inconveniente grave na revelação do conteúdo desses elementos para os
interesses que justificam o segredo de justiça;
c) Revogar o acórdão recorrido na parte a que respeita o precedente juízo de
inconstitucionalidade, determinando a sua reformulação em conformidade com este
juízo.
d) Sem custas.
Lisboa, 31 de Outubro de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Gil Galvão
Bravo Serra [Vencido quanto à alínea b do ponto 5 – “Decisão” – do presente
aresto.
Na verdade, propugnei pelo improvimento do recurso quanto ao ali decidido.
E isso não só porque, em primeiro passo, se me levantam dúvidas sobre o acórdão
impugnado, substancialmente, só se ancorou numa perspectiva de “defesa” do
segredo de justiça e da descoberta da verdade - com os valores que lhes estão
subjacentes -, como também porque, na sua essência, anuo, quer à corte de razões
que foram carreadas a tal acórdão, no específico ponto em causa, quer àquela que
foi aduzida na alegação produzida neste Tribunal pelo Ex.mo Representante do
Ministério Público]
Artur Maurício