Imprimir acórdão
Processo nº 356/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. foi condenado na pena de dezoito meses de prisão, suspensa na condição de
o arguido pagar à Segurança Social as quantias em dívida.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, recurso que
não foi admitido por extemporaneidade. O despacho de não admissão do recurso
fundou‑se no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de
Justiça, nº 9/2005, segundo o qual ao prazo de 15 dias fixado pelo artigo 411º,
nº 1, do Código de Processo Penal, não acresce o prazo de 10 dias a que se
refere o artigo 698º, nº 6, do Código de Processo Civil.
O arguido reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,
alegando, entre o mais, o seguinte:
Se assim não se entender, ou seja, se aos 15 dias de prazo para recorrer não
acrescerem os dias em que o recorrente está privado das gravações requeridas,
quando se trata de recurso de matéria de facto com base em prova gravada, o
artigo 411°, n.° 1 do Código de Processo Penal será materialmente
inconstitucional por violar o princípio da igualdade supra mencionado.
Admitida a reclamação por despacho de 7 de Fevereiro de 2006 (fls. 15 a 17), o
Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães proferiu decisão, datada de 22 de
Fevereiro de 2006, com o seguinte teor:
I. O prazo para interposição do recurso é de quinze dias e conta-se a partir da
notificação da decisão ou do depósito da sentença na secretaria... (n.° 1 do
art.° 411.º do C.P.Penal); e as partes podem praticar os actos processuais
através do correio, sob registo, valendo como data da sua prática a da
efectivação do registo postal (art.° 150.°, n.°1, al. b) do C.P.Civil, ex vi do
art.° 4.° do CPP).
Pode ainda o acto processual ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis
subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento
imediato de uma multa... (art.° 145.°, n.° 5, do C.P.Civil), ex vi do art.°
107.°, n.º 5, do C.P.Penal).
A questão de saber se aos recursos interpostos em processo penal que visem a
impugnação da decisão proferida em matéria de facto se aplica, ou não, a norma
do n.° 6 do artigo 698.° do Código de Processo Civil, está jurisprudencialmente
resolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão Uniformizador de
Jurisprudência n.° 9/2005; DR, I-A, de 04.12.2005 que fixou a seguinte
jurisprudência:
“Quando o recorrente impugne a decisão em matéria de facto e as provas tenham
sido gravadas, o recurso deve ser interposto no prazo de quinze dias, fixado no
artigo 411º, n° 1 do Código de Processo Penal, não sendo subsidiariamente
aplicável em processo penal o disposto no artigo 686°, n.° 6 do Código de
Processo Civil”.
II. Não contesta o reclamante a tese assim defendida pelo STJ.
Todavia, adianta em seu favor uma situação diferente daquela que foi objecto de
apreciação naquele aresto, qual seja a de que, requerendo ao Tribunal ao abrigo
do artigo 7°, n.° 2 e 3 do D.L. n.° 39/95, de 15 de Fevereiro, no dia 11 de
Novembro de 2005, cópia das fitas magnéticas de onde constava a gravação da
audiência de julgamento, as respectivas cassetes só lhe foram facultadas pela
Secção em 18.11.2005, deste modo se verificando que lhe foi coarctado o prazo de
sete dias para preparar recurso, em desrespeito pelo princípio da igualdade,
constitucionalmente garantido.
Não se poderá, porém, dar ao reclamante a razão que tão perseverantemente roga.
O princípio orientador da contagem do prazo para a interposição do recurso a
partir do depósito da sentença constitui uma garantia para as partes, porquanto
assegura que a sentença efectivamente esteja ao alcance dos sujeitos processuais
nos moldes do disposto no n.° 5 do art.° 372.°do Código de Processo Penal e
obsta à insegurança decorrente da notificação postal.
Ao depósito da sentença estão inexoravelmente ligados estes dois aspectos que
lhe atribuem a específica importância de ser através dela, quais sejam os de
que, para além de se operar a notificação da mesma aos intervenientes
processuais com legitimidade para recorrer, se concretiza ainda a objectividade
da sua leitura e a correspondente publicitação dela.
O n.° 2 do art.° 107° do Código de Processo Penal permite a prática do acto fora
de prazo desde que se comprove justo impedimento, para tanto se exigindo que o
interessado o requeira e sejam ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o
caso respeitar.
O conceito de justo impedimento está legalmente caracterizado como o evento não
imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à
prática atempada do acto - art.° 146.° do C.P.C.
Anteriormente à reforma processual trazida pelo Dec. Lei n.° 329-A/95, de 12/12,
o justo impedimento era definido como o evento normalmente imprevisível,
estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou
por mandatário. Nesta acepção a doutrina restringia a previsão legal do disposto
no art.° 146.° do C.P.C. àquelas hipóteses em que “a pessoa que devia praticar o
acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por
mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e
que um cuidado e diligência normais não fariam prever”.
A nova reforma do Código de Processo Civil veio tomar o conceito de justo
impedimento mais maleável, chamando a atenção para o pensamento legislativo que
norteia este regime – a isenção de culpa da parte ou do seu mandatário – e
tomando possível que a jurisprudência possa estendê-lo a situações que a lei
anterior impedia que se o fizesse: - flexibiliza-se a definição conceitual de
“justo impedimento”, em termos de permitir a uma jurisprudência criativa a uma
elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia de
culpa, que se afastem da excessiva regidificação que muitas decisões, proferidas
com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam
(relatório do Dec. Lei n.° 329-A/95, de 12/12)
O novo conceito de justo impedimento faz apelo, em derradeira análise, ao “meio
termo” de que falava Vaz Serra (RLJ; 109.º; 267): deve exigir-se às partes que
procedam com a diligência normal, mas já não é de lhes exigir que entrem em
linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais e ocorre quando se
verifica um evento normalmente imprevisível, isto é, não susceptível de ser
previsto pela generalidade das pessoas e estranho à vontade das partes,
entendendo-se por “parte” tanto o sujeito da relação processual como o seu
mandatário e que a coloca na impossibilidade de praticar o acto por si ou por
mandatário, mesmo usando da devida diligência.
A figura do justo impedimento destina-se a, caso se verifiquem os seus legais
pressupostos, permitir a prática de um acto já depois de ter decorrido o prazo
durante o qual devia ter sido realizado e, por isso, a factualidade que com ele
se identifique terá de ser invocada logo após a sua cessação, não sendo aqui
aplicável o disposto no artigo 153.° do C.P.Civil que estabelece, como regra
geral, o prazo de dez dias para a prática de qualquer acto. A prática de acto
processual fora de prazo, com fundamento em justo impedimento, exige a
verificação desta e a apresentação do respectivo requerimento logo após a sua
cessação, sendo inaplicável o prazo geral do art.°153.° do C.P.Civil para a sua
arguição.
Está o recorrente/reclamante A. qualificado para poder desencadear o
processamento do incidente destinado a averiguar se ocorreu justo impedimento
que impediu o seu mandatário judicial de poder preparar o recurso, ou seja, que
a cópia das fitas magnéticas de onde constava a gravação da audiência de
julgamento pedida em 11.11.2005, só lhe foi facultadas pela Secção em
18.11.2005?
– Certamente que não.
O recurso interposto pelo arguido é totalmente omisso quanto a este ou algum
eventual impedimento surgido na sua elaboração e, não sendo de conhecimento
oficioso o conhecimento o justo impedimento, nunca poderia ser atendida a
pretensão do recorrente na presente reclamação que agora faz contra o
indeferimento do recurso.
Funcionando a reclamação como um recurso do despacho de indeferimento do
recurso, tendo em conta que os recursos têm por fim o reexame por um Tribunal
Superior de questões já apreciadas e resolvidas pelo tribunal a quo, ao Tribunal
ad quem – ou, dito de outro modo, ao Juiz Presidente da Relação que julga a
reclamação contra a rejeição do recurso - está vedado que se pronuncie sobre
questões novas postas pelo recorrente – ou reclamante – nas suas alegações ou
argumentos deduzidos, salvo, como é evidente, quando se esteja perante questões
que impliquem matéria de conhecimento oficioso, igualmente se terá de declinar o
exame das razões que invoca o reclamante com vista ao seu almejado direito de
recorrer da sentença que o condenou.
Sustenta outrossim o reclamante que o indeferimento do recurso por si interposto
viola o princípio constitucional da igualdade.
Esta temática envolve uma especificada análise das razões deduzidas pelo
reclamante, isto é, ter-se-á detalhadamente de averiguar se o conteúdo do
despacho reclamado está de acordo com os princípios fundamentais consagrados na
nossa Lei Fundamental, designadamente se não atenta contra o princípio da
igualdade nela estatuído no art.° 13.º da nossa Lei Fundamental, ao consignar
que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Não impondo, é certo, que a lei seja aplicada de modo igual, generalizadamente,
a todo o cidadão, esta máxima exige, porém, que a situações iguais se aplique
tratamento semelhante, deste modo tão-só possibilitando que relativamente a
casos diferentes sejam utilizadas regras diversas e diferenciadamente
justificadas.
Este princípio, entendido como um modo de controlar o legislador ordinário,
permite apenas que este estabeleça uma pontual diversificação de procedimento
desde que se mostre ponderadamente conforme à razão, objectivamente fundado e
com o intuito de obstar à prepotência legislativa.
E esta a “opinio communis” advogada consensualmente pela hodierna doutrina que
se pronuncia no sentido de que a igualdade constitucional engloba a proibição de
arbítrio, proibição de discriminação e privilégio, obrigação de diferenciação
(tratamento igual de situações iguais ou semelhantes e tratamento desigual),
especificando que a proibição de arbítrio se traduz na exigência de fundamento
racional e a proibição de discriminação e privilégio obsta, v.g., ao que
modernamente sob influência germânica e em detrimento da nomenclatura
tradicional bem mais clarificadora, se vem chamando “lei-providência”
(Massnahmegesetze), ou seja, a norma personalizada, individualizada, excepcional
por não conter uma regra geral, maximamente se se puder detectar nela «uma
intenção discriminatória, injustificada», para usar uma fórmula de Vieira de
Andrade (in Direitos Fundamentais, pág. 199) e que, também unanimemente, é
seguida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que vem entendendo que o
princípio da igualdade proíbe o arbítrio, ou seja, proíbe as diferenciações de
tratamento sem fundamento material bastante, isto é, sem qualquer justificação
razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais e
proíbe ainda a discriminação, ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas
em categorias meramente subjectivas.
Neste entendimento poderemos dizer que a constatação de que o legislador
ordinário atribui prazos processuais diferentes para a interposição do recurso
deduzido em processo civil e para o recurso produzido em processo penal, na
medida em que estamos perante caracterizações processuais diversificadas e a
justificar mediadas legislativas dissemelhantes, esta circunstância não viola o
princípio da igualdade difundido no artigo 13.º da CRP.
Pelo exposto se desatende a reclamação feita.
2. A. interpôs recurso de constitucionalidade da decisão do Presidente do
Tribunal da Relação de Guimarães do seguinte modo:
A.
Arguido reclamante nos autos de reclamação por não admissão de recurso e à
margem referenciados, não se conformando com a decisão do Exmo Vice-Presidente
do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, dela vem,
INTERPOR RECURSO para o Venerando TRIBUNAL CONSTITUCIONAL nos termos do artigo
70° n° 1 al. D) da Lei 28/82 de 15/11, com a redacção que lhe foi dada pela Lei
13- A/98 de 26/02, para o que está em tempo e tem legitimidade — cfr. Artigos
70° n° 1 alínea B), 72 e 75° da citada Lei 28/82 com aquela alteração.
Com efeito, da douta decisão recorrida já não cabe recurso ordinário — cfr.
Artigo 70° n° 4 daquela Lei Orgânica.
Por outro lado, o presente recurso funda-se no disposto na alínea B) do n° 1 do
artigo 70° acima invocado, sendo certo que o recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal
recorrido em termos de estar obrigado a dela conhecer — cfr. Artigo 72° n° 2 da
mesma Lei Orgânica.
Na verdade, os recorrentes invocaram na reclamação que o artigo 411° n° 1 do
C.P.P. é materialmente inconstitucional, por violador do princípio da igualdade,
quando interpretado com o sentido de que ao prazo de 15 dias aí fixado não
acresce o período que a Secção do Tribunal demorou a entregar ao recorrente a
cópia das fitas magnéticas – cfr. Artigo 7° do D.L. n° 39/95 de 15/02.
Ao presente recurso são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de
Processo Civil em especial as respeitantes ao recurso de apelação – cfr. Artigo
69° da Lei 28/82.
O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo – cfr.
Artigo 69° e seguintes da Lei 28/82.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1ª Ao prazo processual de 15 dias estabelecido no artigo 411°, n°1 do Código de
Processo Penal, quando se trata de recurso sobre matéria de facto com base em
prova gravada em audiência, acresce o período de tempo em que o recorrente não
tem acesso às gravações por si requeridas, sob pena de violação do princípio da
igualdade, nos termos do artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
2ª O legislador ao estabelecer o prazo único de 15 dias, pretendeu alcançar a
mesma solução legal, quer se trate de recurso sobre a matéria de facto, quer se
trate de recurso sobre matéria de direito.
3ª Se aos 15 dias não acrescerem os dias em que o arguido está privado das
cassetes requeridas para preparar o recurso, não se está a aplicar de igual
forma o artigo 411°, n°1 do Código de Processo Penal.
4ª O princípio da igualdade é violado quando a diferença de tratamento surge
como arbitrária.
5ª Ou seja, o princípio constitucional da igualdade, entendido como limite
objectivo da discricionariedade legislativa, proíbe desigualdades de tratamento
materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer
justificação objectiva e racional.
6ª Pelo que, o arguido que não dispõe dos 15 dias para recorrer da matéria de
facto, porque se encontra à espera das gravações requeridas, está a ser tratado
de forma desigual relativamente ao arguido que recorre da matéria de direito,
sem qualquer fundamento racional, porquanto o artigo 411°, n.°1 do Código de
Processo Penal estabelece um prazo único de 15 dias para recorrer da matéria de
facto ou de direito.
7ª E mais se diz que não se trata sequer de uma situação de justo impedimento,
porque não se pode admitir que o recorrente apenas beneficie desse acréscimo se
invocar o impedimento, pois mais uma vez se estaria a violar o princípio da
igualdade, isto é, seria tratar como desiguais situações iguais, uma vez que
quem recorre da matéria de direito não está condicionado para fazer o recurso,
em primeiro lugar, pelo período em que se encontra à espera das gravações e, em
segundo lugar, pela invocação do impedimento.
8ª Ou seja, se aos 15 dias de prazo para recorrer não acrescerem os dias em que
o recorrente está privado das gravações requeridas, quando se trata de recurso
de matéria de facto com base em prova gravada, o artigo 411°, n.° 1 do Código de
Processo Penal será materialmente inconstitucional por violar o princípio da
igualdade, nos termos do artigo 13° da Constituição da República Portuguesa.
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1. Não tendo a decisão recorrida interpretado e aplicado a dimensão normativa,
tal como o recorrente a identificou, não deverá conhecer-se do recurso.
2. A entender-se, porém, de modo diferente, não deverá considerar-se
inconstitucional uma interpretação da norma do artigo 411º, n° 1, do Código de
Processo Penal, no sentido de que ao prazo de 15 dias aí fixado pode acrescer o
período de tempo, em que o recorrente se encontra privado das gravações por si
requeridas, desde que tal situação seja integrável no conceito de justo
impedimento, a invocar por ele.
3. Termos que não deverá, proceder o presente recurso.
O recorrente pronunciou‑se no sentido da improcedência da questão prévia
suscitada pelo Ministério Público.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
A)
Questão prévia
3. O recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional no presente
recurso de fiscalização concreta da inconstitucionalidade normativa, uma
interpretação do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual
“ao prazo de 15 dias aí fixado não acresce o período que a Secção do Tribunal
demorou a entregar ao recorrente a cópia das fitas magnéticas”.
O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, na decisão recorrida,
considerou improcedente a reclamação apresentada pelo agora recorrente, uma vez
que “o n.° 2 do art.° 107° do Código de Processo Penal permite a prática do acto
fora de prazo desde que se comprove justo impedimento, para tanto se exigindo
que o interessado o requeira”, o que no caso não aconteceu.
O Ministério Público, em face da fundamentação da decisão recorrida e da questão
suscitada pelo recorrente, sustenta que a dimensão normativa impugnada na
perspectiva da constitucionalidade nos autos não constitui ratio decidendi da
decisão recorrida, sublinhando que “dizer que o período temporal em que o
recorrente não teve acesso à prova gravada pode constituir justo impedimento e
justificar a prática de acto fora do prazo é completamente diferente de afirmar
simplesmente que o prazo normal do recurso não deve ser acrescido daquele
período”.
Importa, assim, averiguar se a decisão recorrida fez aplicação, ainda que
implícita, da dimensão normativa que o recorrente impugna.
4. O recorrente considera, com fundamento na interpretação que propugna, que o
recurso por si interposto é tempestivo, já que “aos 15 dias de prazo para
interpor recurso terão que ser descontados os dias em que o recorrente não tem
acesso às gravações por si requeridas”.
O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães considerou que o recorrente
tinha de invocar justo impedimento, nos termos do artigo 107º, nº 2, do Código
de Processo Penal.
Ora, a invocação de justo impedimento só se justifica para possibilitar a
prática de actos “fora dos prazos estabelecidos por lei”. Desse modo, ao
fundamentar a improcedência da reclamação na ausência de invocação de justo
impedimento, o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães pressupôs
necessariamente a intempestividade da interposição do recurso, ou seja,
considerou que ao prazo de 15 dias previsto no artigo 411º, nº 1, do Código de
Processo Penal, não acresce o período de tempo que o tribunal demorou a facultar
os elementos pedidos (elementos que objectivamente são necessários para a
interposição do recurso). E foi precisamente essa a dimensão normativa que o
recorrente impugnou, submetendo‑a à apreciação do Tribunal Constitucional nestes
autos.
Verifica‑se, portanto, que a norma impugnada constitui ratio decidendi da
decisão recorrida, pelo que se tomará conhecimento do objecto do presente
recurso.
B)
Apreciação do objecto do recurso
5. O Ministério Público, admitindo o conhecimento do objecto do presente
recurso de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, concluiu pela não
inconstitucionalidade da norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo
Penal, interpretada “no sentido de que ao prazo de 15 dias aí fixado pode
acrescer o período de tempo em que o recorrente se encontre privado das
gravações por si requeridas, desde que tal situação seja integrável no conceito
de justo impedimento, a invocar por ele”.
Resulta, porém, do que já se deixou dito que não é esta a dimensão normativa que
o recorrente impugna. Com efeito, o recorrente questiona nos presentes autos a
conformidade à Constituição da norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo
Penal, interpretada no sentido de que ao prazo de 15 dias previsto nesse
preceito não acresce o período que a Secção demorou a entregar os registos da
audiência, interpretação que, como se demonstrou, é pressuposto do entendimento
acolhido pela decisão recorrida e que, nessa medida, cabe agora apreciar.
6. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questões que relevam na
apreciação do objecto do presente recurso.
Com efeito, no Acórdão nº 17/2006 (www.tribunalconstitucional.pt), fazendo‑se
uma referência completa à jurisprudência do Tribunal sobre tal matéria,
considerou‑se que “o critério seguido nessa jurisprudência tem sido o de que tal
prazo só se pode iniciar quando o arguido (assistido pelo seu defensor),
actuando com a diligência devida, ficou em condições de ter acesso ao teor,
completo e inteligível, da decisão impugnanda, e nos casos em que pretenda
recorrer também da decisão da matéria de facto e tenha havido registo da prova
produzida em audiência, a partir do momento em que teve (ou podia ter tido,
actuando diligentemente) acesso aos respectivos suportes (…)”.
O Tribunal Constitucional, no aresto citado, decidiu não julgar
inconstitucionais as normas dos artigos 411º, nº 1, e 412º, nº 4, do Código de
Processo Penal, interpretados no sentido “de que o prazo de interposição de
recurso penal em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se
procedeu à gravação da prova produzida em audiência se conta da data em que o
arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da
prova gravada, e no da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa
gravação”.
Também no Acórdão nº 542/2004 (www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal
Constitucional entendeu, ainda que formulando igualmente um juízo de não
inconstitucionalidade sobre a específica dimensão normativa então impugnada, que
os 15 dias para interposição em matéria de recurso não era um prazo desrazoável
ou inadequado desde que o arguido tivesse efectiva disponibilidade desde o termo
a quo desse prazo das provas gravadas.
Ora, nos presentes autos, o que está em causa é precisamente o acesso ao suporte
material da prova gravada, pelo que as considerações que o Tribunal desenvolveu
nos arestos mencionados fundamentam agora o juízo de inconstitucionalidade.
Assim, ter‑se‑á de aceitar que o ora recorrente actuou com a diligência devida,
pois nada nos autos infirma essa conclusão, não sendo a possibilidade de
invocação do justo impedimento em si razão bastante para afastar o juízo de
inconstitucionalidade por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição
(parâmetro de constitucionalidade que não foi invocado pelo recorrente, mas que
o Tribunal Constitucional pode naturalmente utilizar na apreciação do objecto do
recurso).
Em face do entendimento jurisprudencial a que se fez referência, há que concluir
pela inconstitucionalidade, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição,
da norma impugnada, norma que, repete‑se, foi implicitamente aplicada pela
decisão recorrida, já que a invocação de justo impedimento pressupôs a
ultrapassagem do prazo de interposição do recurso.
7. Alcançada esta conclusão, afigura‑se inútil confrontar a norma impugnada com
o princípio da igualdade.
III
Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucio-nalidade;
b) Julgar inconstitucional a norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo
Penal, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, interpretado no
sentido de ao prazo de 15 dias referido nesse preceito não acrescer o período de
tempo em que o arguido não pôde ter acesso às gravações da audiência, desde que
se pretenda impugnar a matéria de facto e desde que o arguido actue com a
diligência devida;
c) Revogar a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o
presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos