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Processo nº 479/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. foi condenado, por Acórdão proferido aos 11 de Janeiro de 2005 pela 8ª Vara
Criminal do Círculo Judicial de Lisboa, pela prática, como co-autor, de três
crimes de falsificação, previstos pelo art.256º, n.º1, al.a) e n.º4, do Código
Penal, nas penas parcelares de um ano e seis meses de prisão por cada um deles
e, por efeito do operado cúmulo jurídico destas penas com a pena de 4 anos e 6
meses de prisão imposta no âmbito do processo n.º1200/00.9JFLSB, da 2ª Vara
Criminal de Lisboa, na pena única de 6 anos de prisão.
Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por
Acórdão datado de 17 de Novembro de 2005, negou provimento ao recurso,
confirmando nos seus integrais termos a decisão proferida em primeira instância.
Deste Acórdão, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, o que
fez nos termos que seguidamente se transcrevem:
«A., arguido nos autos à margem identificados interpõe, pela forma seguinte
RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL do douto acórdão final proferido:
1. Fundamento do recurso: artigo 70º, n.º1, alínea b), da Lei do TC.
2. Normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se suscita: os artigos 256º,
n.º1, do Código Penal e 358º, n.º1 e 379º, n.º1, al.b) do CPP, quando permitem
que um arguido seja condenado por um crime de falsificação com dolo específico
de enriquecimento ilegítimo, quando vinha pronunciado pelo crime de falsificação
com dolo específico de prejuízo, sem que o arguido seja, em audiência, em acto
prévio à sentença, confrontado com essa possibilidade de alteração, para que
dela se possa defender.
3. Normas da CRP violadas: artigo 32º, n.º1, da CRP [direito de defesa] e também
n.º5 [acusatório].
4. Acto processual no qual a norma em causa foi aplicada: o acórdão recorrido.
[…]».
2. Por se haver entendido que não podia conhecer-se do objecto do recurso, foi
proferida a decisão sumária ora reclamada.
De tal decisão fez-se constar, no que releva para a decisão
a proferir, a seguinte fundamentação:
«Conforme vem sendo pacífica e reiteradamente afirmado por este
Tribunal, o controlo de constitucionalidade, tal como entre nós se encontra
concebido, assume natureza estritamente normativa, ou seja, dirige-se à
apreciação de questões de desarmonia constitucional imputadas a normas jurídicas
objecto de aplicação pelas instâncias, tanto podendo versar sobre as próprias
normas jurídicas qua tale, como sobre o particular sentido em que as mesmas
foram interpretadas no âmbito de uma determinada actividade subsuntiva e,
portanto, sobre a interpretação normativa que no “tribunal a quo” lhes houver
sido associada.
Nesta última hipótese – que é, de resto, a presente – «(…) a norma é
tomada, não com o sentido genérico e objectivo, plasmado no preceito (ou fonte)
que a contém, mas em função do modo como foi perspectivada e aplicada à
dirimição de certo caso pelo julgador». Na presença de «preceitos, disposições
ou comandos jurídicos susceptíveis de várias interpretações, o controlo do
Tribunal Constitucional vai ser exercido sobre o resultado de uma dada
interpretação judicial da norma que – na óptica de alguma das partes – afronta
determinados princípios ou preceitos constitucionais e foi efectivamente
aplicada à dirimição do litígio» (Lopes do Rego, Jurisprudência Constitucional,
n.º3, Julho-Setembro 2004).
Por outro lado, tratando-se, como sucede no presente caso, de
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do art.70º da LTC, a
possibilidade da respectiva admissão encontra-se dependente da verificação
cumulativa dos requisitos enunciados no n.º2 do art.72º do referido diploma, ou
seja, de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o
processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”,
exigindo-se ainda, quando o objecto da sindicância pretendida consista numa
determinada interpretação normativa, que a decisão recorrida haja feito
aplicação, como sua ratio decidendi, da dimensão normativa reputada de
inconstitucional pelo recorrente.
Quer isto significar que a possibilidade de conhecimento do objecto
do recurso interposto ao abrigo da al.b) do n.º1 do art.70 da LCT se não basta
com a oportuna e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade,
necessário igualmente se tornando, ainda na formulação seguida no Acórdão nº
674/99 (in www.tribunalconstitucional.pt), «que essa mesma norma tenha sido
efectivamente aplicada na decisão recorrida e, no caso de se contestar a
constitucionalidade da norma em causa apenas com uma dada interpretação, (…) que
ela tenha sido aplicada in casu com essa mesma interpretação».
Daí que se vincule o recorrente, quando questionada é a conformidade
constitucional de uma determinada interpretação normativa, ao isolamento da
dimensão ou sentido normativo contraditado, exigindo-se-lhe que o enuncie de
forma a que, «no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa
apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em
geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o
sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo,
violar a Constituição» (cfr. Acórdão n.º 367/94, www.tribunalconstitucional.pt).
Pois bem.
De que o aludido ónus de identificação foi cabalmente observado pelo recorrente
parece não restarem dúvidas no caso presente.
Com efeito, quer na motivação com que fundamentou o recurso interposto para o
Tribunal da Relação de Lisboa do Acórdão proferido em primeira instância, quer
no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, o recorrente
deixou claro que a sua pretensão é a de ver declaradas inconstitucionais as
normas correspondentes aos «artigos 256º, n.º1, do Código Penal e 358º, n.º1 e
379º, n.º1, al.b) do CPP», quando interpretadas no sentido de permitir que «um
arguido seja condenado por crime de falsificação com dolo específico de
enriquecimento ilegítimo, quando vinha pronunciado pelo crime de falsificação
com dolo específico de prejuízo, sem que o arguido seja, em audiência, em acto
prévio à sentença, confrontado com essa possibilidade de alteração, para que
dela se possa defender».
Identificada que assim está a dimensão normativa que, por referência
aos preceitos legais indicados, o recorrente pretende sindicar através do
accionamento da jurisdição constitucional, a questão essencial a resolver
consiste em saber se, conforme se viu já ser exigido, a decisão recorrida
interpretou no sentido que o recorrente reputa de inconstitucional qualquer uma
das normas mencionadas e, como sua ratio decidendi, de tal interpretação fez
derivar o pronunciamento que conduziu à confirmação do Acórdão proferido em
primeira instância na parte em que aí se condenou o arguido pelo cometimento,
como co-autor, de três crimes de falsificação, previstos pelo art.256º, n.º1,
al.a) e n.º4, do Código Penal.
A resposta, tal como é dada pelo teor da argumentação expendida na
própria decisão recorrida, é claramente negativa.
Com efeito, embora estabeleça o recorrente, como premissa básica de
suscitação, que, no âmbito da respectiva actividade subsuntiva, o Tribunal de
primeira instância, prescindindo do accionamento prévio do mecanismo previsto no
art.358º, n.º1, do Cód. de Processo Penal, condenou o arguido “por crime de
falsificação com dolo específico de enriquecimento ilegítimo quando o mesmo
vinha pronunciado pelo crime de falsificação com dolo específico de prejuízo”,
em tais termos aplicando o art.256º, n.1º, do Cód. Penal, o certo é que, sem
exclusão de qualquer um dos três ilícitos-típicos em presença, a efectiva
ocorrência de tal alegada convolação não só não foi reconhecida pelo tribunal a
quo, como se encontra categoricamente refutada no excerto que o Acórdão
recorrido reservou à apreciação da invocada “alteração substancial e/ou não
substancial dos factos fora da disciplina do art.358º do CPP”, tema este em que
o próprio recorrente inscreveu a suscitada questão de inconstitucionalidade.
Efectivamente, ao afirmar que «da leitura dos factos descritos na pronúncia e
dos factos considerados provados conclui-se que nada de verdadeiramente novo, de
essencialmente diferente, foi trazido ao processo», apenas tendo existido
«“redução” da matéria de facto, e diferente composição ou arrumação da matéria
de facto, que nem sequer chegou a implicar, enquadramento jurídico diverso, no
que ao crime de falsificação se refere”» (sublinhado nosso), o Tribunal da
Relação de Lisboa rejeitou, de forma suficientemente expressiva e inequívoca, a
tese defendida pelo recorrente no que diz respeito à alegada modificação, pelo
aresto recorrido, dos termos em que o despacho de pronúncia havia perspectivado
o “dolo” correspondente aos imputados crimes de falsificação de documento, assim
recusando que qualquer um dos preceitos que vêm indicados houvesse sido objecto
da interpretação que o recorrente reputa de inconstitucional.
Esta visão segundo a qual, uma vez confrontado com a dupla via
alternativamente prevista no tipo incriminador para aquilo que, de um ponto de
vista conceptual, o recorrente faz corresponder a possíveis modalidades do dolo,
o Tribunal de primeira instância não substituiu a perspectiva resultante da fase
de instrução é, de resto, inteiramente corroborada pela análise da fundamentação
constante do Acórdão confirmado, em especial no confronto com o enunciado
factual contido na hipótese introduzida em juízo pelo despacho de pronúncia.
Vejamos mais de perto, não sem antes relembrar o que vem sendo
sustentado pela doutrina a propósito dos elementos que integram o tipo
incriminador em questão, mormente acerca do respectivo elemento subjectivo.
Decorre da previsão correspondente ao art.256º, n.º 1, do Código Penal, na
modalidade de execução contemplada na respectiva alínea a), que comete o crime
de falsificação “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao
Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, fabricar
documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de
outra pessoa para elaborar documento falso”.
Perspectivado a partir do elemento subjectivo do correspondente tipo, pode
dizer-se que o crime de falsificação de documentos se inscreve na categoria dos
chamados crimes intencionais (neste sentido, vide Helena Moniz, Comentário
Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pg. 684 e ss.), com isto se pretendendo
significar que o preenchimento da factualidade típica não dispensa a verificação
no agente de uma particular direcção de vontade: justamente a intenção de causar
prejuízo a outra pessoa ou de obter para si ou para outra pessoa benefício
ilegítimo.
Trata-se, deste modo, de um crime também designado na doutrina por delito de
tendência interna transcendente, ou seja, relativamente ao qual a intenção de
atingir um determinado resultado, determinando a acção, constitui condição
simultaneamente necessária e suficiente para o preenchimento do tipo no sentido
em que não exige que o fito pretendido seja efectivamente alcançado para que
haja lugar à punição (neste sentido, Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte
General, 4ª ed., pg.286).
Ora, no que ao crime de falsificação concerne, a particular intenção de vontade
que no agente se supõe, de acordo com a dupla formulação alternativa a que
fizemos já referência, tanto pode ser a de causar prejuízo a outra pessoa –
asserção em que corresponderá àquilo que o recorrente designa por «dolo
específico de prejuízo» – como a de obter para si ou para outra pessoa benefício
ilegítimo – modalidade em que coincidirá com aquilo que o recorrente classifica
de «dolo específico de enriquecimento».
Pois bem.
No requerimento de interposição do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de
Lisboa, mais propriamente sob o respectivo ponto 39, o recorrente, em jeito de
introdução da questão de inconstitucionalidade à frente enunciada, começa por
afirmar que a pronúncia supõe que o arguido agiu com «dolo de prejuízo».
Embora não esclareça logo aí o recorrente a qual ou quais dos três crimes de
falsificação de documento em presença pretende referir-se, uma leitura atenta do
requerimento de interposição de recurso - quer do que aí se afirma sob os pontos
40 e 41, quer, em especial, dos termos da respectiva síntese conclusiva - revela
que apenas dois poderão considerar-se sujeitos às objecções dirigidas contra a
decisão sobre censura: o crime de falsificação de documento referente ao
contrato celebrado com a sociedade B. Limited e o crime de falsificação de
documento relativo ao contrato em que foi interveniente a sociedade holandesa
C..
Vejamos mais de perto, principiando, justamente, pelo crime de falsificação de
documento respeitante ao contrato celebrado com a sociedade B. Limited.
Para corroborar a tese de que o arguido foi pronunciado com «dolo de
prejuízo», o recorrente, ainda no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
logo faz notar aquilo que considera ser o «seguinte aspecto essencial constante
da pronúncia [33º]: os “arguidos sabiam (…) que causavam assim prejuízo ao clube
ao fazer com que a contabilidade espelhasse indicadores financeiros de
solvabilidade e autofinanciamento fictícios”».
Por certo ser que, na economia do discurso narrativo seguido pelo
despacho de pronúncia, o facto reproduzido e destacado pelo recorrente se
inscreve tematicamente no trecho reservado à descrição das circunstâncias em que
se afirma haver tido lugar a fabricação do “contrato de promessa pretensamente
celebrado entre o D. e a sociedade B. Limited” (facto 23º do despacho de
pronúncia), mais propriamente no âmbito da caracterização do grau de
representação com que diz ter o primeiro então actuado, evidente se torna que é
na condenação pela prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo
art.256º, n.º1, al.a), do Cód. Penal, imputado a partir do contrato celebrado
com a sociedade B. Limited, que o recorrente começa por reconhecer a
interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende ver sindicada.
No que a tal crime concerne, sustenta o recorrente que «consta da
pronúncia que “arguidos sabiam (…) que causavam assim prejuízo ao clube ao fazer
com que a contabilidade espelhasse indicadores financeiros de solvabilidade e
autofinanciamento fictícios”», o que, na formulação seguida, quererá significar
que «a pronúncia imputa ao arguido dolo de dano e não dolo de enriquecimento (…)
no que se refere à fabricação e uso do contrato em causa».
Ainda de acordo com a perspectiva seguida pelo recorrente,
«relativamente a tal contrato», porém, «o que se conclui no aresto foi apenas
que o arguido “agiu com vista a demonstrar aos sócios do clube uma situação
financeira fictícia” [facto n.º20 do elenco dos factos provados]», nada sendo
referido «quanto a prejuízos, pois que essa menção apenas vem consignada a
propósito do contrato com a C.» (sublinhado aditado).
Sucede, contudo, que, conforme se tentará demonstrar, a um tal modo
de ver as coisas não presta qualquer apoio a realidade documentada nos autos.
Ao socorrer-se do enunciado fáctico constante do despacho de
pronúncia para suportar a alegação de que, no que concerne ao crime de
falsificação de documento relativo ao contrato celebrado com a sociedade B.
Limited, aí se imputou ao arguido «dolo de prejuízo», o recorrente revela não
desconhecer que, no caso presente, do conjunto das exigências a que, por força
do preceituado no art.283º, n.º3, do Cód. de Proc. Penal, aplicável por força do
disposto no art. 308º, n.º2, do mesmo diploma legal, se encontrava vinculado o
proferido despacho de pronúncia, não resultava o ónus de especificar, perante
uma formulação típica de recorte alternativo, o segmento do texto contido no
corpo do indicado número n.º1 do art.256º do Cód. Penal para cuja integração
considerava aptos os factos previamente descritos.
Daí que saber se, relativamente ao crime de falsificação de
documento referente ao contrato celebrado com a sociedade B. Limited, o despacho
de pronúncia perspectivou o preenchimento da factualidade típica através da
associação à actuação objectivamente imputada de uma intenção de causar prejuízo
– hipótese em que, na formulação empregue pelo recorrente, teria atribuído ao
pronunciado «dolo específico de dano» - é coisa que só poderá esclarecer-se a
partir dos próprios factos descritos, uma vez que serão eles, se não na sua
particular eloquência, ao menos em resultado da interpretação subsuntiva para
que apelam ou que consentem, a revelar, em definitivo, a dimensão típica objecto
de imputação.
E o que se verifica é que, justamente no que concerne ao
preenchimento do tipo subjectivo de ilícito, o confronto entre a narração
contida no despacho de pronúncia e o acervo factual positivamente considerado no
Acórdão que lhe sucedeu não autoriza nem legitima a ilação reivindicada pelo
recorrente.
Com efeito, depois de, sob o ponto 20 do elenco dos factos provados,
haver considerado demonstrado que o arguido «agiu com vista a demonstrar aos
sócios do clube uma situação financeira fictícia» – assim dando por verificado,
nos seus exactos termos, o facto descrito sob o ponto 20 da pronúncia -, o
acórdão da primeira instância teve ainda por provado o facto enunciado sob o
art.33º da versão acusatória, ou seja, que o arguido «sabia que com a sua
conduta abalava a credibilidade e fiabilidade que a contabilidade do clube
merecia e que causava assim prejuízo ao clube, ao fazer com que a contabilidade
espelhasse indicadores financeiros de solvabilidade e autofinanciamento
fictícios».
Quer isto significar que, ao invés do sustentado pelo recorrente, o
acórdão de primeira instância, ao fixar o quadro factual que considerou
demonstrado em juízo, não se limitou à afirmação de que o arguido «agiu com
vista a demonstrar aos sócios do clube uma situação financeira fictícia»,
omitindo qualquer referência aos prejuízos contemplados na pronúncia, o que,
considerados os próprios termos em que o apontado vício vem enunciado,
contradiz, por seu turno, as premissas de que é feita derivar a reivindicada
ocorrência de uma alteração de perspectiva em matéria de preenchimento do tipo
subjectivo de ilícito, impedindo, por consequência, que nesse sentido se aceite
haja sido interpretado o art.256º, n.º1, do Cód. Penal, quando aplicado aos
factos.
A conclusão para que vimos propendendo é, de resto, reforçada pelo
teor da fundamentação de direito constante do acórdão proferido em primeira
instância.
Com efeito, no âmbito da actividade subsuntiva a que foi sujeito o
acervo fáctico tido por demonstrado em juízo e a propósito da explicitação dos
termos em que se considerou integrado o tipo subjectivo de ilícito, o tribunal
de primeira instância fez notar, no texto do respectivo aresto, que «a
fidedignidade das contas, no sentido de reflectirem o estado financeiro do clube
e os resultados da gestão em cada ano, constituem um bem merecedor de tutela
jurídica contra-ordenacional e a adulteração dos resultados reais ainda que,
como defende o arguido, por essa via passem a aparentar um resultado financeiro
mais vantajoso, constitui para o clube um prejuízo, embora de natureza
imaterial, mas sem dúvida um prejuízo típico do crime de falsificação».
Encontrando-se consabidamente excluída do âmbito dos poderes de
cognição deste Tribunal a possibilidade de aferir da conformidade da solução
encontrada ao direito infraconstitucional e, por consequência, de sindicar a
adequação do raciocínio seguido em matéria de preenchimento do tipo subjectivo
de ilícito às especificidades colocadas pela categoria dos delitos intencionais
ou de tendência interna transcendente, o que essencialmente importa colocar em
evidência é que a argumentação desenvolvida no acórdão relativamente à
integração do elemento controvertido pelo recorrente o perspectiva
declaradamente na vertente do “prejuízo”, impedindo que no resultado do
pronunciamento das instâncias pudesse reconhecer-se o tipo de convolação que vem
apontado.
Quer isto significar que, tal como evidenciado já pelos próprios
termos em que, com inteira fidelidade à pronúncia, se viu haver sido fixado o
acervo factual demonstrado pelo julgamento, também a fundamentação jurídica
constante do acórdão proferido em primeira instância obsta ao acolhimento da
tese segundo a qual, relativamente ao crime de falsificação de documento
imputado a partir do contrato tido como pretensamente celebrado com a sociedade
B. Limited, o arguido foi condenado com «dolo de enriquecimento» apesar de vir
pronunciado com «dolo de prejuízo», impedindo que, quanto à verificada aplicação
do art. 256º, n.º1, do Código Penal, possa identificar-se na confirmatória
decisão recorrida a dimensão normativa que o recorrente pretende ver
fiscalizada.
Relativamente ao crime de falsificação de documento imputado com
base no contrato pretensamente celebrado entre a sociedade holandesa C. e o D.
Sob o ponto 44 do requerimento de interposição de recurso dirigido
ao Tribunal da Relação de Lisboa, afirma o recorrente que «a decisão recorrida
[último parágrafo da página 55 e primeiro parágrafo da página 56] considera que,
em relação a este contrato, acresce “(…) aqui a intenção de obter um benefício
ilegítimo, uma vez que neste caso o arguido visava ainda obter a confiança dos
sócios em novas eleições, pretendo assim um benefício que lhe não era devido,
pois por via da fabricação do documento e da adulteração das contas pretendia
ver chancelada uma gestão positiva do clube, quando o que estava reflectido nas
contas não correspondia ao que dessa gestão efectivamente resultava”».
A decisão recorrida – sustenta ainda o recorrente sob o ponto 45 - ,
«ao ter considerado que, em relação a este contrato [supostamente fabricado
tendo em mira a avaliação eleitoral da obra de gestão do arguido] ocorreu dolo
específico de enriquecimento, incorre em nulidade por proceder a uma alteração
não substancial dos factos não precedida do benefício do contraditório, como
exigem os artigos 358º, n.º1, e 379º, n.º1, al.b), ambos do CPP, porquanto (i)
trata-se de valorar facto não contido na pronúncia [o dolo de benefício
ilegítimo; a pronúncia imputava ao arguido o dolo específico de dano] (ii) que
permite embora a subsunção ao mesmo tipo incriminador (iii) mas que foi dado
como adquirido sem que o arguido fosse confrontado com essa possibilidade de
alteração de um requisito típico essencial, para que disso se pudesse defender».
Pois bem.
Sujeitando o pressuposto de que é feita derivar a suscitada questão
de inconstitucionalidade ao confronto entre a narração constante do despacho de
pronúncia e o quadro factual traçado em juízo, facilmente se verá que, também no
que diz respeito ao crime de falsificação de documento relativo ao contrato tido
como pretensamente celebrado entre a sociedade holandesa C. e o D., a
coincidência entre os elementos num e noutro caso considerados impede que
acompanhada possa ser a tese sustentada pelo recorrente.
Com efeito, a par da correspondência que, no essencial, pode
estabelecer-se entre os factos tidos por demonstrados sob os pontos 82, 88, 90,
91, 92 e 93 do acórdão proferido em primeira instância e os factos alegados sob
os artigos 99, 104, 106, 107, 108 e 112 da pronúncia, respectivamente, a análise
comparativa entre o enunciado contido em uma e outra das referidas peças
processuais revela ainda, e em especial, que a asserção segundo a qual, ao
decidir «fabricar o contrato pretensamente celebrado entre a sociedade holandesa
C. e o D.», o recorrente actuou «com vista a demonstrar aos sócios do clube uma
situação financeira fictícia e consequentemente obter a sua confiança em novas
eleições», para além de se incluir no elenco dos factos considerados provados
pelo julgamento, sendo enunciada sob o ponto 81 do aresto, constava já da
hipótese trazida pelo despacho de pronúncia, mais propriamente da alegação
contida sob o respectivo artigo 97.
E justamente porque o substrato factual daquela particular direcção
de vontade que ao recorrente veio a ser atribuída se acha inscrito, quer no
acervo factológico demonstrado em juízo, quer na narração anteriormente contida
no despacho de pronúncia, evidente se torna que, ao perspectivar a integração do
tipo subjectivo de ilícito ainda na vertente do “benefício ilegítimo”, o
tribunal de primeira instância, no âmbito da respectiva actividade subsuntiva,
não só respeitou os limites que o objecto do processo, tal como vem definido
pelo acusador, necessariamente coloca à argumentação possível em matéria de
preenchimento dos elementos estruturadores da 'fattispecie' convocada, como se
manteve inteiramente fiel ao âmbito consentido pela pronúncia.
É certo que, no trecho do Acórdão dedicado ao enquadramento jurídico
da matéria factual, o Tribunal de primeira instância, após rememorar o
demonstrado facto segundo o qual, ao «fabricar o contrato pretensamente
celebrado entre a sociedade holandesa C. e o D.», o recorrente «visava ainda
obter confiança dos sócios em novas eleições», acrescentou o seguinte: «(…)
pretendo assim um benefício que lhe não era devido, pois por via da fabricação
do documento e da adulteração das contas pretendia ver chancelada uma gestão
positiva do clube, quando o que estava reflectido nas contas não correspondia ao
que dessa gestão efectivamente resultava».
Simplesmente, conforme relevado pela própria semântica da formulação
empregue, do que se trata aqui é de uma mera asserção explicativa, sem conteúdo
fáctico inovador, distinto e autonomizável da realidade objecto de demonstração
anteriormente recapitulada, e não, conforme serviria à pretensão do recorrente,
da introdução, por efeito do processo interpretativo seguido, de um elemento
novo, em si mesmo indispensável ao reconhecimento na prestação do actuante da
intenção de obter para si um benefício ilegítimo ou à integração do tipo
subjectivo de ilícito na perspectiva daquilo que vem designado por «dolo
específico de enriquecimento».
Justamente porque a possibilidade de afirmação do tipo subjectivo de
ilícito na modalidade de obtenção de “benefício ilegítimo” se encontrava já
garantida pelo acervo factual constante da pronúncia e decalcado no Acórdão, mal
sucedida se revela a imputação ao aresto condenatório da valoração de facto não
contido naquele despacho e, por consequência, de uma alteração dos termos em
que, de acordo com o conceptualismo seguido, o «dolo» vinha atribuído ao
recorrente.
Uma vez aqui chegados, a conclusão que cremos ter tornado evidente é
a de que, ao confirmar a condenação do recorrente pelo cometimento, como
co-autor, dos crimes de falsificação de documento, previstos pelo art.256º,
n.º1, al.a), e n.º4, do Código Penal, referentes aos contratos havidos como
pretensamente celebrados com as sociedades B. Limited e C., a decisão recorrida
não validou a aplicação da norma referida com o sentido acusado de ser
inconstitucional, o que, para além de retirar automaticamente sentido à
reivindicada intervenção do mecanismo previsto no art.358º, n.º1, do Cód. de
Proc. Penal, impede o conhecimento do objecto do presente recurso em razão da
sua conhecida natureza instrumental.
2. De tal decisão sumária reclama agora o recorrente para a conferência, o que
faz ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC e sob invocação dos
argumentos seguintes:
« […]
Primeira situação
1. O arguido foi pronunciado pelo crime de falsificação cometido na modalidade
de dolo de dano ou de prejuízo e foi condenado pelo mesmo crime na modalidade de
dolo de enriquecimento ilegítimo, sem o benefício concedido pelo artigo 358° do
CPP.
2. Cremos que estes termos da questão são inquestionáveis, e nenhuma
hermenêutica das peças processuais pertinentes legítima conclusão adversa que é
a que extrai a decisão reclamada.
3. Houve pois uma alteração não substancial [artigo 1°, n.° 1, alínea f) do
CPP], pois que, se bem que o arguido saísse condenado pelo mesmo crime pelo qual
vinha pronunciado a verdade é que o foi na modalidade típica subjectiva diversa
daquela outra pela qual vinha pronunciado e ao arguido foi subtraído o benefício
do contraditório que o citado artigo 358° do CPP lhe garante.
4. Ora esta alteração só pode decorrer do facto de o acórdão condenatório haver
dado como provados outros factos que não aqueles que constavam da pronúncia: ou
seja, enquanto esta alinhava concretamente na sua narrativa factos atinentes ao
prejuízo para o clube, o aresto condenatório deu como assente ter ocorrido
enriquecimento do arguido.
5. A decisão sumária louva-se em argumentos que, salvo o devido respeito, nos
permitimos pôr em crise, socorrendo-se (i) da fundamentação da matéria de facto
do acórdão (ii) da fundamentação de Direito do mesmo.
6. Primeiro [página 18], afirma e pura proclamação que «nada de verdadeiramente
novo, de essencialmente diferente foi trazido ao processo», nisto citando o
aresto da Relação recorrido, quando o acima afirmado mostra à saciedade que tal
afirmação não tem correspondência com a realidade e que, bem antes pelo
contrário, houve uma substancial mutação no titulo subjectivo de imputação
penal.
Não basta pois afirmar que nada mudou quando tudo mudou para que nos convençamos
que está tudo na mesma! Serão meras palavras se a realidade as desmentir. Como
iludir que a pronúncia afirmava que o arguido quisera prejudicar o clube e ante
o ilogismo desta afirmação [que mobilizou toda a defesa do arguido] é que se deu
em termos de aresto condenatório a reviravolta para o dolo de enriquecimento,
antes desconsiderado e ausente da narrativa da pronúncia!
7. Segundo, a decisão sumária afirma [página 21] que afinal [em relação a um
certo contrato com a B.] também foi dado como provado um ponto [o ponto 20 da
matéria provada] em que aflora o dolo de prejuízo, só que esquece que esse
momento não tem qualquer correspondência no elenco narrativo da pronúncia, pelo
que se afigura, neste particular como de cunho inovador em termos do objecto do
processo tal como ele se encontrava enunciado.
8. Finalmente, retirando argumentos da fundamentação de Direito do acórdão
condenatório, a decisão sumária cita-lhe excerto de onde decorre haver sido
convocado como elemento do raciocínio jurídico condenatório o facto de a
«adulteração» da «fidedignidade das contas» do clube, «constitui para o clube um
prejuízo, embora de natureza imaterial, mas sem dúvida um prejuízo típico do
crime de falsificação», só que este momento do discurso jurídico surge
exactamente desgarrado face à materialidade adquirida e, por isso, em
contradição com a mesma!
9. Neste particular o artigo 33° da pronúncia é expressão límpida que nenhum
excurso interpretativo consegue agora obnubilar: a pronúncia imputou ao arguido
o ter pretendido prejudicar o clube ao ter procedido às falsificações que lhe
imputa.
Segunda situação
10. O arguido foi condenado por uma falsificação cometida com dolo especifico de
enriquecimento ilegítimo quando afinal da pronúncia em relação a este tipo de
crime este facto não constava, pelo que ocorre aqui uma alteração não
substancial sem a garantia do contraditório [citados artigos 1, n.° 1, alínea g)
e 358° do CPP].
11. Pretende a decisão sumária reclamada [em relação ao contrato D./C.] (i) em
enunciado genérico que o essencial da narrativa do aresto condenatório se
encontra vertida a pronúncia, nisso incluindo o dolo específico e que nenhuma
alteração houve pois ao objecto desta (ii) e concretamente que o aresto
condenatório ao ter dado como assente a existência de dolo específico de
enriquecimento mais não fez do que louvar-se em factos vertidos na pronúncia que
o proclamavam.
12. Ora, mau grado o muito respeito, não podemos acompanhar este raciocínio.
13. Em primeiro lugar a decisão sumária limita-se a proclamar em termos vagos
[página 24] uma aparente identidade entre o sentenciado e o pronunciado.
Tal é a consciência de que se trata de identidade aparente que se usa o termo
«correspondência (....) no essencial».
Debalde procurará o leitor da decisão sumária uma demonstração concreta e
casuística da qual decorra em termos insofismáveis que o arguido foi pronunciado
com fundamento em factos que são os da pronúncia.
14. Em segundo lugar porque o reclamante citou haver um trecho do aresto
condenatório onde inovadoramente foi proclamado o facto subjectivo [dolo de
enriquecimento] que não constava do pronunciado e do provado.
15. Ora é aí que não colhe a decisão recorrida [página 25] quando afirma
salvificamente que o trecho que cita do aresto me causa [«dedicado ao
enquadramento jurídico da matéria factual»] é «uma mera asserção explicativa,
sem conteúdo fáctico inovado, distinto e autonomizável de demonstração
anteriormente recapitulada» e que, afinal, o elemento «benefício ilegítimo» já
estava contido na narrativa da pronúncia.
16. È que na verdade, o que aquele passo do aresto recorrido faz é proceder a
uma fundamentação de Direito que não tem apoio no adquirido no objecto do
processo, sendo nisso e bem pelo contrário um momento original de um discurso
jurídico sem arrimo nos factos adquiridos e em colisão com eles.
A esta reclamação respondeu o Ministério Público nos termos que seguidamente se
transcrevem:
1 — A questão colocada pelo reclamante traduz-se em saber se se situa dentro dos
poderes cognitivos do Tribunal Constitucional — circunscritos à estrita
dirimição da questão de inconstitucionalidade normativa suscitada — não apenas
sindicar o critério normativo explicitamente adoptado no acórdão recorrido, mas
verificar se, em termos substanciais, o mesmo foi adequado e concludentemente
adoptado e aplicado pelas instâncias, passando, para tal, a proceder a uma
autónoma comparação — concreta e casuística — entre a matéria de facto constante
da pronúncia e a que é especificada na sentença condenatória, de modo a concluir
que, em certo caso concreto — e ao contrário de explicitamente afirmado na
decisão recorrida — há “matéria nova” na referida sentença.
2 — A resposta a esta questão deve ser, a nosso ver, claramente negativa —
estando vedada ao Tribunal Constitucional tal actividade, consubstanciada uma
directa valoração e comparação das várias versões da matéria de facto,
sedimentada ao longo do processo, de modo a “corrigir” o critério normativo
explicitamente enunciado e adoptado na ordem dos tribunais judiciais,
confrontando o critério — autónoma e directamente inferido da dita comparação —
com os preceitos e princípios constitucionais.
3 — Na verdade, ao fazê-lo, estaria o Tribunal Constitucional a intrometer-se,
de forma inadmissível, nas competências atribuídas constitucionalmente aos
tribunais judiciais, apreciando e valorando directamente os factos especificados
na pronúncia e na sentença final condenatória, sobrepondo o seu juízo ao das
instâncias competentes, de modo a decidir se estamos perante meras alterações de
forma ou “arrumação” da matéria de facto, irrelevantes para a delimitação do
“facto em sentido jurídico”, ou perante matéria substancialmente inovatória.
4 — Como se decidiu no recente acórdão n° 406/06, tal actuação extravasa
manifestamente os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
5 — E cumprindo acentuar que, no caso dos autos, não ocorre manifestamente uma
aplicação implícita de critério normativo diverso de explicitamente invocado e
enunciado na decisão recorrida.
6 — Na verdade — e como inteiramente se demonstra na decisão reclamada, cujo
teor não é abalado pela argumentação do reclamante — a “semântica da formulação
empregue” na decisão recorrida é plenamente compatível com a inverificação de
conteúdo fáctico inovador, alcançado, em termos de plena plausibilidade, pela
douta decisão reclamada.
II. Fundamentação.
Conforme resulta da argumentação desenvolvida na decisão sumária cujo teor acima
se transcreveu, aí se concluiu pelo não conhecimento do objecto do recurso
pretendido interpor pelo ora reclamante com fundamento na circunstância de o
Acórdão recorrido não haver validado, expressa ou implicitamente, a aplicação de
qualquer um dos preceitos convocados com o sentido acusado de ser
inconstitucional, o que é incompatível com o carácter instrumental dos recursos
de constitucionalidade.
Para suportar tal conclusão, logo começou por se fazer notar que, pretendendo o
recorrente ver declaradas inconstitucionais as normas correspondentes aos
«artigos 256º, n.º1, do Código Penal e 358º, n.º1 e 379º, n.º1, al.b) do CPP»,
quando interpretadas no sentido de permitir que «um arguido seja condenado por
crime de falsificação com dolo específico de enriquecimento ilegítimo, quando
vinha pronunciado pelo crime de falsificação com dolo específico de prejuízo,
sem que o arguido seja, em audiência, em acto prévio à sentença, confrontado com
essa possibilidade de alteração, para que dela se possa defender», ter o
tribunal recorrido, no insubstituível exercício dos seus poderes de cognição,
rejeitado expressamente a efectiva ocorrência de tal alegada convolação, assim
recusando que qualquer dos preceitos indicados houvesse sido objecto da
interpretação pretendida sindicar através do accionamento da jurisdição
constitucional.
Comprometida, portanto, que se reafirma a possibilidade de, com recurso ao
discurso argumentativo expresso no acórdão recorrido, aí reconhecer a aplicação
do critério normativo reputado de inconstitucional, a defesa da conclusão
extraída pela decisão reclamada tenderia a bastar-se, perante os termos em que o
reclamante volta a equacionar o fundamento da sua discordância, com as
pertinentes observações feitas pelo Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto na
resposta apresentada à reclamação.
Com efeito, circunscrevendo-se os poderes cognitivos cometidos a este Tribunal à
«estrita dirimição da questão de inconstitucionalidade normativa suscitada»,
vedada se lhe encontra a actividade - uma vez mais reivindicada pelo recorrente
- consubstanciada na «directa valoração e comparação das várias versões da
matéria de facto, sedimentada ao longo do processo, de modo a “corrigir” o
critério normativo explicitamente enunciado e adoptado na ordem dos tribunais
judiciais, confrontando o critério — autónoma e directamente inferido da dita
comparação — com os preceitos e princípios constitucionais» (transcrição de fls.
6840).
Sabido, contudo, que a aplicação do critério normativo pretendido controverter,
para além de expressa, pode ocorrer implicitamente, a decisão reclamada
dirigiu-se suplementarmente à demonstração de que a «visão segundo a qual, uma
vez confrontado com a dupla via alternativamente prevista no tipo incriminador
para aquilo que, de um ponto de vista conceptual, o recorrente faz corresponder
a possíveis modalidades do dolo, o Tribunal de primeira instância não substituiu
a perspectiva resultante da fase de instrução é (...) inteiramente corroborada
pela análise da fundamentação constante do Acórdão confirmado, em especial no
confronto com o enunciado factual contido na hipótese introduzida em juízo pelo
despacho de pronúncia» (transcrição de fls.6809), assim procurando tornar isenta
de dúvida a não ocorrência, no caso dos autos, daquilo que na resposta
apresentada pelo Ministério Público expressivamente se designa por «aplicação
implícita de critério normativo diverso do explicitamente invocado e enunciado
na decisão recorrida» (transcrição de fls.6840).
Ora, também esse residual ou subsidiário esforço
argumentativo parece resistir sem dificuldade às objecções colocadas agora pelo
reclamante.
Com efeito, para além de nenhum conteúdo verdadeiramente
inovador apresentarem em relação às posições anteriormente assumidas, as
reservas suscitadas na reclamação revelam, no que de mais concreto opõem à
decisão reclamada, a mesma falta de correspondência com a realidade documentada
nos autos.
Desde logo, a asserção segundo a qual «a decisão sumária
afirma [página 21] que afinal [em relação a um certo contrato com a B.] também
foi dado como provado um ponto [o ponto 20 da matéria provada] em que aflora o
dolo de prejuízo, só que esquece que esse momento não tem qualquer
correspondência no elenco narrativo da pronúncia, pelo que se afigura, neste
particular como de cunho inovador em termos do objecto do processo tal como ele
se encontrava enunciado».
Isto porque, conforme igualmente feito notar na decisão
reclamada, o facto descrito sob o ponto 20 do acervo fixado em primeira
instância, no que à actuação do reclamante concerne, encontra integral
correspondência na narração contida sob o art.20º do despacho de pronúncia, o
que, desmentindo a premissa de que a objecção é feita derivar, torna o argumento
manifestamente improcedente.
Ainda no âmbito temático do que vem definido como «primeira
situação», sustenta o reclamante que, «retirando argumentos da fundamentação de
Direito do acórdão condenatório, a decisão sumária cita-lhe excerto de onde
decorre haver sido convocado como elemento do raciocínio jurídico condenatório o
facto de a “adulteração” da “fidedignidade das contas” do clube, “constitui para
o clube um prejuízo, embora de natureza imaterial, mas sem dúvida um prejuízo
típico do crime de falsificação”, só que este momento do discurso jurídico surge
exactamente desgarrado face à materialidade adquirida e, por isso, em
contradição com a mesma!»
Isto porque – prossegue o reclamante - «neste particular o artigo 33° da
pronúncia é expressão límpida que nenhum excurso interpretativo consegue agora
obnubilar: a pronúncia imputou ao arguido o ter pretendido prejudicar o clube ao
ter procedido às falsificações que lhe imputa».
Trata-se, contudo, de uma linha argumentativa de sentido uma vez mais
desconforme com o resultado do pronunciamento das instâncias.
Com efeito, inversamente ao que vem suposto, o facto
descrito sob o art.33º do despacho de pronúncia foi incluído no elenco dos
factos tidos por demonstrados em juízo, encontrando-se enunciado sob o ponto 30
do acórdão condenatório proferido em primeira instância. Tal irrefutável
correspondência, não obstante insistentemente desconsiderada pelo reclamante,
constitui fundamento bastante para fazer resistir aos argumentos aduzidos na
reclamação a conclusão extraída pela decisão reclamada segundo a qual, no que
concerne ao crime de falsificação de documento referente ao contrato celebrado
com a sociedade B. Limited, o tribunal recorrido, ao confirmar a condenação
imposta em primeira instância, não aplicou implicitamente critério
interpretativo distinto do expressamente invocado, designadamente a dimensão
normativa acusada de ser inconstitucional.
No que finalmente concerne aos termos em que a decisão
reclamada refutou a possibilidade de, relativamente já ao crime de falsificação
de documento imputado a partir do contrato tido como pretensamente celebrado
entre a sociedade holandesa C. e o assistente D., haver o tribunal recorrido
implicitamente validado a aplicação do art.256º, n.º1, do Código Penal com o
sentido pretendido confrontar com a Constituição, o reclamante limita-se à
manifestação do seu discordante posicionamento perante a questão, nenhum
concreto argumento introduzindo justificativo de novo debate.
Também no que diz respeito à apelidada «segunda situação»,
nada da reclamação resulta, em suma, capaz de abalar o entendimento expresso na
decisão sob censura.
III. Decisão.
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 11 de Outubro de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício