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Processo nº 438/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Comarca de Tomar, foi proferida a seguinte decisão:
O Ministério Público, acusando o arguido dos factos descritos a fls. 46 a 49,
imputa-lhe, além do mais, a autoria material de um crime de desobediência
qualificada, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 348º nºs.
1 e 2 do Código Penal e pelo art. 138º nº. 2 do Código da Estrada, na redacção
emergente do Decreto-Lei nº. 44/2005 de 23 de Fevereiro.
Todavia, salvo o devido respeito, estamos em crer que, nesta parte, os factos
descritos na acusação correspondem, antes, ao crime de violação de proibições ou
interdições, previsto e punível pelo art. 353º do Código Penal.
Senão, vejamos.
Na acusação vai dito que ao arguido foi aplicada, por sentença proferida no dia
15 de Junho de 2004, transitada em julgado no dia 30.06.2004, no âmbito do
processo comum nº. 431/03.4.GBTMR do 1º Juízo deste Tribunal, a pena acessória
de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 meses.
Todavia, o arguido viria – de acordo com a acusação – a conduzir veículo
automóvel no dia 18.06.2005 (ou seja, ainda, dentro do prazo de 12 meses da
proibição, contada esta, como é nosso entendimento, a partir do trânsito da
respectiva sentença).
Daqui conclui a Digna Magistrada do Ministério Público que praticou o arguido o
referido crime de desobediência qualificada, já que estaria bem ciente de que
não podia conduzir veículos a motor e consciente de que a sua conduta era
ilícita e penalmente punível.
Estamos em crer que o entendimento da Digna Magistrada do Ministério Público se
estriba no facto de o Decreto-Lei nº. 44/2005 de 23 de Fevereiro ter alterado a
norma que previa a incriminação da conduta de todo aquele que conduzisse estando
inibido de o fazer, por sentença transitada em julgado ou decisão administrativa
definitiva.
Na verdade, no domínio da precedente redacção do Código da Estrada, dispunha o
nº. 4 do art. 139º do Código da Estrada que quem conduzisse veículo a motor
estando inibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa definitiva era punido por desobediência qualificada.
Actualmente, o nº. 2 do art. 138º do Código da Estrada, na redacção que lhe foi
dada pelo Decreto-Lei nº. 44/2005 de 23 de Fevereiro, dispõe no sentido de que
quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique uma
sanção acessória, é punido por crime de desobediência qualificada.
Como é bom de ver, existem relevantes diferença entre uma e outra das redacções.
Assim, quando antes se dizia: “quem conduzisse”; ora diz-se: “quem praticar
qualquer acto”; onde anteriormente se lia: “estando inibido de o fazer”; hoje,
lê-se: “estando inibido ou proibido de o fazer”.
Parece, pois, que o legislador pretendeu estender a cominação por desobediência
qualificada não só à conduta do individuo que conduza estando inibido de o fazer
por força de decisão administrativa, como também, em derrogação da norma que
prevê a tipificação do crime de violação de proibições ou interdições, à conduta
do individuo que conduza um veículo automóvel estando proibido de o fazer por
força de pena acessória aplicada por sentença criminal.
Sucede que, a nosso ver, a norma que se extrai do nº. 2 do art. 138º do Código
da Estrada na redacção actual, quando interpretada neste último sentido, é
organicamente inconstitucional.
Com efeito, aquele nº. 2 do art. 138º do Código da Estrada reveste a natureza de
uma norma penal. Ou seja, define os pressupostos objectivos de um tipo legal de
crime, no caso, o de desobediência qualificada.
Conforme refere Cristina Líbano Monteiro, “na al. a) do nº. 1 do art. 348º do
Código Penal, o crime de desobediência parece destinado a servir de norma
auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e a
sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um
determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal
própria.”
O Tribunal Constitucional teve já, de resto, oportunidade de dilucidar a questão
de saber se, quanto ao crime de desobediência qualificada, a disposição legal a
que se refere o nº. 2 do art. 348º pode ser uma norma contida em qualquer
diploma legislativo ou apenas uma norma penal, a implicar, neste caso, que
conste de lei parlamentar ou decreto-lei parlamentarmente autorizado, sob pena
de padecer de inconstitucionalidade orgânica.
Entendeu aquele Tribunal que “independentemente de saber se é ou não possível
considerar que a desobediência simples se encontra tipificada no citado art.
348º, quanto ao critério da infracção e quanto aos seus destinatários no tocante
às condutas realmente proibidas, já se afigura indiscutível que a desobediência
qualificada não encontra ali qualquer critério distintivo relativamente à
desobediência simples, pelo que a disposição legal ‘que cominar a punição da
desobediência qualificada’ procede necessariamente, ela própria, à definição do
tipo de crime”.
Daí que tenha entendido, também, ser organicamente inconstitucional uma
disposição legal que comine a desobediência qualificada, quando tal disposição
não conste de lei parlamentar ou decreto-lei autorizado.
De resto, observando as anteriores alterações ao Código da Estrada, logo se vê
que, quando o Governo decidiu proceder a modificações no regime sancionatório e,
em especial, no que concerne aos ilícitos criminais que entendeu tipificar
naquele diploma ou em matérias com ele relacionados, fê-lo habilitado por lei de
autorização legislativa.
Assim sucedeu com a significativa alteração levada a efeito pelo Decreto-Lei nº.
2/98 de 3 de Janeiro, no uso da autorização legislativa concedida pelos arts. 1º
a 3º da Lei nº. 97/97 de 23 de Agosto.
Relembre-se que a al. b) do art. 3º desta lei de autorização legislativa,
dispunha, muito concretamente, que o Governo ficava autorizado a estabelecer a
punição como crime de desobediência qualificada do exercício da condução por
pessoa inibida de conduzir por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa definitiva.
Sucede, porém, que a lei de autorização legislativa com base na qual o Governo
aprovou o Decreto-Lei nº. 44/2005 – a Lei nº. 53/2004 de 4 de Novembro – não
credenciava o Governo a tipificar qualquer conduta como crime, nem a alterar os
pressupostos objectivos do tipo legal de crime de desobediência qualificada,
que, anteriormente, estava previsto pelas disposições conjugadas do art. 348º
nº. 2 do Código Penal e do art. 139º nº. 4 do Código da Estrada.
Na verdade, “se as autorizações legislativas não querem limitar-se a cheques em
branco, necessário se torna especificar o objecto da autorização, e não indicar
apenas, de um modo vago, genérico ou flutuante, as matérias que irão ser objecto
de decretos-leis delegados (princípio da especialidade das autorizações
legislativas)”, sendo certo que deve existir uma relação de conformidade entre o
parâmetro superior representado pela lei autorizante e o decreto-lei que faz uso
das autorizações legislativas, sob pena de, quando o decreto-lei incidir sobre
uma matéria de competência reservada sem que tenha havido qualquer autorização
legislativa se verificar uma hipótese de inconstitucionalidade orgânica.
Ora, nos termos da al. c) do nº. 1 do art. 165º da Constituição da República
Portuguesa é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre
a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos,
bem como processo criminal, salvo autorização ao Governo.
Assim sendo, na ausência de autorização legislativa, é a norma do nº. 2 do art.
138º do Código da Estrada, na redacção resultante do Decreto-Lei nº. 44/2005, na
interpretação segundo a qual comete um crime de desobediência qualificada todo
aquele que conduzir um veículo automóvel estando proibido de o fazer por força
de pena acessória aplicada por sentença criminal transitada em julgado,
organicamente inconstitucional, pelo que recuso aplicar uma tal norma no caso
dos autos (art. 204º da Constituição da República Portuguesa).
Resta dizer que, expurgado o ordenamento daquela norma, sempre sobra que a
conduta do arguido, tal como descrita na acusação, continua a ser passível de
censura criminal, na exacta medida em que se subsume à previsão do art. 353º do
Código Penal: crime de violação de proibições ou interdições.
E, por assim ser, recebo a acusação pública de fls. 46 a 49, na medida em que os
factos aí narrados correspondem à prática, pelo arguido, de um crime de violação
de proibições ou interdições, previsto e punível pelo art. 353º do Código Penal,
em concurso efectivo com a prática de um crime de condução de veículo em estado
de embriaguez, previsto e punível pelas disposições conjugadas do nº. 1 do art.
292º do Código Penal e da al. a) do nº. 1 do art. 69º do mesmo diploma legal.
O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade obrigatório,
ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo 138º, nº 2,
do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de
Fevereiro.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu
do seguinte modo:
1 – Qualquer que seja o sentido da decisão sobre a questão normativa que é
objecto do recurso, a acusação deduzida contra o arguido será sempre recebida
pelos factos aí descritos que integram a prática de um crime contra a autoridade
pública, a que corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias,
motivo pelo qual, atenta a função instrumental do presente recurso de
constitucionalidade, não deverá conhecer-se do seu objecto.
2 – A não se entender assim, deverá confirmar-se o juízo de
inconstitucionalidade orgânica, que levou a decisão recorrida a recusar a
aplicação da norma do artigo 138°, n° 2 do Código da Estrada na redacção
resultante do Decreto-Lei n° 44/2005, de 23 de Fevereiro, uma vez que o Governo
legislou sobre matéria, a que alude a alínea c) do artigo 165°, n° 1, da
Constituição, não tendo para tanto prévia autorização legislativa.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
A)
Questão prévia
2. O Ministério Público invoca a inutilidade da apreciação da conformidade à
Constituição da norma desaplicada, já que a acusação contra o recorrido sempre
será recebida em face da qualificação dos factos de acordo com o artigo 353º do
Código Penal.
Ora, é verdade que os factos em causa não sofreram qualquer alteração e que as
penas previstas na norma do Código da Estrada e na norma do Código Penal são
idênticas. No entanto, a qualificação de uma dada factualidade à luz de um
determinado preceito tem consequências jurídicas que se repercutem (podem
repercutir‑se) na determinação da responsabilidade criminal do agente. Com
efeito, o princípio da legalidade penal implica a vinculação da qualificação
jurídica que o operador judiciário faz a um determinado regime jurídico,
nomeadamente no que respeita à sucessão de leis no tempo. Na verdade, a
qualificação dos factos à luz da norma do Código da Estrada submete a situação à
hipotética alteração favorável do regime penal estradal, da qual o arguido
sempre beneficiaria, em face do artigo 2º, nº 4, do Código Penal.
Desse modo, subsiste o interesse da apreciação da questão de
constitucionalidade.
B)
O artigo 138º, nº 2, do Código da Estrada
3. O tribunal a quo recusou a aplicação da norma do artigo 138º, nº 2, do
Código da Estrada, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
O artigo 138º, nº 2, do Código da Estrada, tem a redacção do Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro. Este preceito alarga a incriminação da
desobediência qualificada que resultava do artigo 139º, nº 4, do Código da
Estrada, na redacção anterior. Com efeito, enquanto esta disposição previa a
punição da condução por quem estivesse inibido de o fazer por sentença ou
decisão administrativa, o referido artigo 138º, nº 2, consagra a punição do
agente que pratique qualquer acto para cuja prática esteja proibido ou inibido.
Cabe sublinhar que a norma a que se refere o artigo 348º, nº 2, do Código Penal
(a norma que prevê o comportamento a punir como desobediência qualificada)
consubstancia ainda a definição de crime, pelo que a sua emissão está abrangida
pela reserva parlamentar a que se refere o artigo 165º, nº 1, alínea c), da
Constituição.
Ora, da Lei nº 53/2004, de 4 de Novembro, Lei que autorizou o Governo a proceder
à revisão do Código da Estrada, não consta qualquer referência à matéria penal
em causa.
A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas e
implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação relativa
da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com
consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o nº
4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para
quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o nº 2
do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de
23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto,
quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. Independentemente de saber
se, noutras hipóteses em que não existisse uma exacta coincidência de
factualidade típica, ainda assim por razões de ilicitude material se teria de
reconhecer o carácter inovatório da norma em causa, o certo é que, no presente
caso, o agente violou a proibição de condução de veículo a motor decorrente da
sanção acessória aplicada por sentença transitada em julgado que o condenou por
crime rodoviário. Como se verifica, não existe total coincidência entre a
factualidade típica constante das duas normas incriminadoras.
Conclui‑se, pois, que o Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, procedeu a
alterações para as quais não foi concedida autorização legislativa, pelo que se
confirmará o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
III
Decisão
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide confirmar o juízo de
inconstitucionalidade orgânica constante da decisão recorrida.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos