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Processo n.º 660/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15
de Março de 2006, que rejeitou, por extemporaneidade, recurso por ele interposto
da sentença do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, que concedera apenas em
parte (reduzindo o montante da coima para € 1000,00, e não para € 500,00, como
impetrara o impugnante) provimento a impugnação judicial de decisão
administrativa que o condenara no pagamento da coima de € 3000,00, pela prática
da contra‑ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos
36.º a 40.º e 86.º, n.ºs 1, alínea z), e 2, do Decreto‑Lei n.º 46/94, de 22 de
Fevereiro.
O referido acórdão, relativamente à questão prévia da
extemporaneidade do recurso, consignou o seguinte:
“II – QUESTÃO PRÉVIA
1 – Vem invocada pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público em 1.ª instância
a extemporaneidade da interposição do recurso, apresentado em 28 de Junho de
2005, em razão de alegada transposição do respectivo prazo legal – de 10 dias –
contado a partir da data da notificação da sentença, cuja efectivação localiza
em 3 de Junho de 2005.
Diversamente da aduzida observação, a notificação da sentença recorrida ao
arguido e seu Ex.mo advogado operou‑se – presumivelmente – em 8 de Junho de 2005
(3.º dia útil posterior ao envio), já que foi realizada por via postal registada
expedida em 3 de Junho de 2005 (cf. fls. 145 e 146, e artigo 113.º, n.º 2, do
CPP).
Por conseguinte, o termo do prazo legal de recurso – de 10 dias previsto no
artigo 74.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (doravante RGCO
– Regime Geral das Contra‑Ordenações) –, que ocorreria no dia 18 de Junho de
2005, sábado, transferiu‑se para o primeiro dia útil seguinte, segunda‑feira, 20
de Junho de 2005 (cf. artigos 104.º, n.º 1, do CPP e 144.º, n.º 2, do CPC).
Porém, a formal manifestação de vontade de recorrer – com expressa
referência àquele normativo 74.º, n.º 1, do RGCO – apenas foi apresentada em 28
de Junho de 2005, havendo então o arguido solicitado a emissão e entrega de
guias para pagamento da importância pecuniária prevista nos artigo 107.º, n.º 5,
do CPP e 145.º, n.º 5, do CPC, sem qualquer outra justificação.
Como é bom de ver, entre 20 e 28 de Junho de 2005 já haviam decorrido mais
de três dias úteis – dentro dos quais ainda lhe seria lícito praticar o acto, em
conformidade com tais dispositivos –, razão pela qual se lhe precludira o
direito de recorrer (cf. artigos 104.º, n.º 1, e 107.º, n.º 5, do CPP e 145.º,
nºs 3 e 5, do CPC).
Destarte, incompreendendo a razão de ser do despacho de recebimento do
recurso, meramente assente na – injustificadamente – afirmada tempestividade,
não pode deixar de se reconhecer o acerto da observação de extemporaneidade do
Ex.mo magistrado respondente.
2 – Suscita, contudo, o Ex.mo PGA a inconstitucionalidade da interpretação
literal do citado preceito 74.º, n.º 1, do RGCO, por violação do princípio da
igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República, em razão do
confronto com as disposições dos artigos 411.º, n.º 1, e 413.º, n.º 1, do CPP,
que estatuem o prazo geral de recurso e de resposta de 15 dias, e, por
consequência, pugna pela validade do acto recursivo.
Com o devido e merecido respeito por tal opinião – e pelos acórdãos do
Tribunal Constitucional (que sobre o referido normativo 74.º, n.º 1, do RGCO, se
pronunciaram), nomeadamente os n.ºs 462/2003 (invocado pelo Ex.mo PGA, em que se
apoia), publicado no DR, n.º 272, de 24 de Novembro de 2003, e 27/2006, de 10 de
Janeiro, publicado no DR, I-A, de 3 de Março de 2006, com força vinculativa
geral quanto à formulação conclusiva final, (cf. artigo 281.º, n.º 3, maxime, da
CRP), bem como dalguma outra jurisprudência, que, naturalmente, não ignoramos –,
não nos parece que a questão se quede por tão simplístico entendimento.
Senão vejamos:
A norma ínsita no citado artigo 74.º, n.º 1, do RGCO, que expressamente
estabelece o prazo de 10 (dez) dias como limite temporal para interposição de
recurso de decisão judicial em procedimento contra‑ordenacional – incidente
sobre impugnação de decisão administrativa –, porque própria de regime jurídico
especial, é também ela, como é óbvio, especial em relação à referente aos
recursos criminais em geral, constante do normativo 411.º, n.º 1, do CPP, que
prevê o prazo de 15 (quinze) dias para o exercício do direito recursivo em
matéria criminal ou com ela conexa (v. g. de natureza
civilística/obrigacional). Assim sendo, não consagrando uma disciplina
directamente oposta àqueloutra, do direito comum, consagra uma disciplina nova
ou diferente para as particulares relações da vida a que se destina, «como um
jus próprio que procura ajustar‑se tanto quanto possível às peculiares
exigências da matéria regulada. Destaca‑se assim do direito geral, assumindo uma
fisionomia específica (...). Não sendo as leis especiais excepções, elas
constituem um direito normal, um sistema autónomo que tem em si as suas regras e
as suas excepções (...)» (Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, vol.
2.º, reimpressão, 1990, págs. 455‑457).
Nada legitimará, pois, a respectiva comparação ou confrontação com a do
direito geral (artigo 411.º, n.º 1, do CPP) e a conclusão da negativa
diferenciação. É apenas diferente, especial para casos especiais!
Por conseguinte, não antolhamos como se pode, a partir da mera constatação
da dissemelhança, construir qualquer juízo de discriminação e, decorrentemente,
de inconstitucionalidade, logo por afrontação do artigo 13.º da CRP, que apenas
decreta a igualdade de todos perante a lei – a mesma lei, aplicável a idênticas
relações humanas/jurídicas – e proíbe o privilegiamento, beneficiação,
prejudicação, privação de qualquer direito ou isenção de qualquer dever em razão
de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou
orientação sexual, e não já a mera diferenciação de tratamento
jurídico‑processual em função da diversidade de regimes jurídicos, como é
evidente!
Em conformidade com o estatuído nos artigos 8.º e 9.º do Código Civil, o
julgador/intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais
acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º
3), sendo‑lhe vedado idear/considerar/extrapolar pensamento legislativo que na
letra da norma não tenha um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso (artigo 9.º, n.º 2), e, outrossim, deixar de a aplicar
sob o pretexto de ser injusta ou imoral (artigo 8.º, n.º 2).
Assim sendo, não vislumbramos qualquer razão válida para interpretar de modo
diverso do expressamente legislado no referido normativo 74.º, n.º 1, do RGCO,
na versão actualmente em vigor, decorrente dos Decretos‑Leis n.ºs 433/82, de 27
de Outubro, 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e da Lei n.º
109/2001, de 24 de Dezembro, o prazo de recurso da decisão judicial produzida no
âmbito de procedimento contra‑ordenacional, nas atinentes/legais situações;
ficcionar/conjecturar equívoco ou esquecimento do legislador; e/ou construir
disciplina diversa, a partir desse pressuposto ou da eventual
discriminação/inconstitucionalidade em relação aos recorrentes em processo
criminal, como vimos, em nosso alcance, manifestamente inexistente.
A argumentação esgrimida pelos defensores da inconstitucionalidade da
referida norma de desfavor do recorrente em relação ao respondente, Ministério
Público, também se nos apresenta falha de sentido, já que o mandamento da
prossecução da tramitação do recurso em conformidade com o regime do processo
penal, tendo em conta as especialidades resultantes do regime jurídico
contra‑ordenacional (artigo 74.º, n.º 4, do RGCO), inculca claramente a
necessidade de limitação/redução dos actos e prazos processuais ao mínimo legal
essencial ao acautelamento do princípio geral – que não constitucional, no que
ao Ministério Público respeita (cf. artigo 32.º, n.º 10, da CRP) – de
contraditório e à regularidade da célere marcha evolutiva do recurso até à
decisão final.
Como assim, no pressuposto – aceite – de que ao Ministério Público assistirá
o direito de resposta ao recurso, haver‑se‑á, em nosso entender, que considerar
que o prazo para o efeito não é o previsto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, mas
antes o geral, de 10 (dez) dias, regulado no normativo 105.º, n.º 1, do mesmo
diploma legal, aplicável por força do estatuído quer no citado preceito 74.º,
n.º 4, quer no artigo 41.º, n.º 1, do RGCO, que, de novo, determina a adequada
adaptação às especificidades do processo contra‑ordenacional dos preceitos
reguladores do processo criminal.
A inconstitucionalidade – com força obrigatória geral – declarada pelo citado
aresto n.º 27/2006, de 10 de Janeiro, do Tribunal Constitucional, reporta‑se,
como resulta claramente do seu conclusivo enunciado, ao entendimento que
contemple prazo diferente para o recorrente, de desfavor, em relação ao
respondente, o que, em tal situação, se apresentaria como evidente.
É o seguinte o respectivo texto:
«Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1
do artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe
foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, conjugada com o artigo
411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo
contra‑ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do
que o prazo da correspondente resposta, por violação do principio da igualdade
de armas, inerente ao principio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do
artigo 20.º da Constituição» (realce e sublinhado nossos).
Naturalmente que, se se inconsiderasse a natureza jurídica de lei especial do
RGCO e se olvidasse a sua específica disciplina jurídica, maxime a atinente a
recursos, que, nos moldes/limites supra enunciados, temos por segura,
ignorando‑se, nomeadamente, a segunda parte do n.º 4 do citado artigo 74.º – «O
recurso seguirá a tramitação do recurso em processo penal, tendo em conta as
especialidades que resultam deste diploma» –, e o texto do n.º 1 do artigo 41.º
– «Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis,
devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal» – então
faria todo o sentido a valoração da respectiva inconstitucionalidade, já que,
nessas circunstâncias, se haveria que concluir pelo superior prazo de resposta
de 15 dias, previsto para o regime criminal, geral, no artigo 413.º, n.º 1, do
CPP).
Porém, como nos parece juridicamente correcto, em razão de tal evidente
especialidade legal – como tal prevalecente sobre o regime geral –, o que se
impõe é a sistemática interpretação tendente à redução a 10 (dez) dias do prazo
de resposta ao recurso, nos termos supra analisados, e não o inverso (cf. ainda
artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil).
Nesta conformidade, fica devida e cabalmente acautelado o princípio
constitucional de igualdade de armas, ínsito no artigo 20.º, n.º 4, da
Constituição, salvaguardado pelo citado Acórdão n.º 27/2006, de 10 de Janeiro,
do Tribunal Constitucional.
Decorrentemente do explanado raciocínio, tendo por válido o limite temporal de
10 dias para interposição do recurso, haver‑se‑á logicamente que concluir pela
alertada extemporaneidade da acção recursiva, o que, por consequência,
demandará a respectiva rejeição, em conformidade com o disposto nos normativos
419.º, n.º 4, alínea a), e 420.º, n.º 1, 2.ª parte, com referência ao
preceituado no artigo 414.º, n.º 2, do CPP.”
Contra este acórdão foram interpostos dois recursos:
– um, pelo recorrente, para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por, de acordo com o
respectivo requerimento de interposição, o acórdão recorrido ter feito
aplicação da norma do artigo 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra‑Ordenações
(RGCO), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, segundo a qual
o prazo de interposição de recurso da decisão judicial é de dez dias, norma que
padece de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade,
consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), tendo
já sido julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 1229/06 e 462/2003 e
declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão n.º
27/2006, do Tribunal Constitucional; e
– outro, pelo Ministério Público, para fixação de
jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.ºs 2 e 3, e 438.º, n.ºs 1, 2 e
3, do CPP, por oposição com o decidido no acórdão da Relação de Coimbra, de 5
de Maio de 2004, proc. n.º 785/04 ( que julgou ajustado aplicar aos
prazos e recurso em matéria contra‑ordenacional a disciplina integral constante
dos recursos em processo penal, e decidiu que, de harmonia com o artigo 411.º,
n.º 1, do CPP, o prazo é de 15 dias, quer para a motivação, quer para a
resposta).
Por despacho do Desembargador Relator, de 17 de Maio de 2006,
decidiu‑se: (i) não admitir, por falta de legitimidade do recorrente, o recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por o
recorrente não ter suscitado em qualquer anterior fase processual a
inconstitucionalidade da norma do artigo 74.º do RGCO; (ii) admitir o recurso
interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC; e (iii)
diferir para momento posterior, subsequente à decisão do recurso interposto para
o Tribunal Constitucional, a apreciação do requerimento de interposição de
recurso pelo Ministério Público, para o Supremo Tribunal de Justiça, para
fixação de jurisprudência.
No Tribunal Constitucional, no despacho em que determinou a
apresentação de alegações, o relator convidou as partes a pronunciar‑se,
querendo, sobre a eventualidade de não conhecimento do recurso interposto ao
abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, “por falta de coincidência
entre a dimensão normativa declarada inconstitucional pelo Acórdão n.º 27/2006
e a dimensão normativa aplicada no acórdão recorrido”.
O recorrente apresentou alegações – nas quais omite qualquer
pronúncia sobre a questão enunciada de eventual não conhecimento do recurso –,
no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“5.1) – O acórdão ora objecto de recurso fez uma interpretação e aplicação da
norma do artigo 74.º, n.º 1, do RGCO que viola, salvo o devido respeito e melhor
opinião, o princípio da igualdade (igualdade de armas), tal como ele se
encontra previsto nas normas dos artigos 13.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da
República Portuguesa;
5.2) – Na verdade, padece de inconstitucionalidade a norma constante do n.º 1
do artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe
foi dada pelo Decreto‑Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, conjugada com o artigo
411.º do Código de Processo Penal, quando dela decorre que, em processo
contra‑ordenacional (como é o caso vertente), o prazo para o recorrente motivar
o recurso é mais curto do que o prazo da correspondente resposta, por violação
do princípio da igualdade de armas, inerente ao princípio do processo
equitativo, consagrado no artigo 13.º e no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição
– declaração de inconstitucionalidade que se pede.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
contra‑alegou, propugnando o não conhecimento do recurso por inverificação dos
requisitos do recurso fundado na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, já
que “a interpretação normativa feita pela Relação – ao considerar que o prazo
para a contramotivação do recurso deve ser apenas de 10 dias – é perfeitamente
diversa da que o Tribunal Constitucional apreciou e considerou inconstitucional
nos acórdãos‑fundamento indicados”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Importará começar por referir que a interposição, pelo
Ministério Público, de recurso da decisão ora recorrida para o Supremo Tribunal
de Justiça, para fixação de jurisprudência – recurso que, aliás, ainda não foi
admitido –, não constitui obstáculo ao conhecimento imediato do presente
recurso de constitucionalidade.
Não se ignora que, apesar do segmento final do n.º 2 do
artigo 75.º da LTC (“Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número
anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o
não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo
os destinados a uniformização de jurisprudência”), o Tribunal Constitucional
tem entendido que quando a mesma parte interpõe simultaneamente recurso para
uniformização de jurisprudência na respectiva ordem jurisdicional e recurso para
o Tribunal Constitucional, este não deve conhecer de imediato do correspondente
recurso: cf. Acórdãos n.ºs 411/2000, 253/2001, 82/2004 e 222/2004. No referido
Acórdão n.º 253/2001 pode ler‑se:
“Diz‑nos, com efeito, o n.º 2 deste artigo 70.º que os recursos previstos
naquela alínea b) do n.º 1 – destinados a apreciação de norma aplicada em
decisão judicial, cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo – apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a
lei o não prever ou por já se terem esgotado todos os recursos ordinários que no
caso cabiam, salvo os destinados à uniformização de jurisprudência.
Surpreendiam‑se divergências jurisprudenciais quanto a saber se o recurso de
uniformização, a não ser admitido, mormente por se entender não se verificar a
alegada oposição de julgados, precludia ou não a possibilidade de interpor
recurso de constitucionalidade.
Com as alterações introduzidas na Lei n.º 28/82, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de
Fevereiro, particularmente ao aditar‑se ao artigo 70.º o n.º 6, o problema
ficou resolvido negativamente, ou seja, no sentido de não recair sobre a parte o
ónus de esgotar os recursos ordinários que, como fim específico, visam alcançar
a uniformização de jurisprudência no âmbito de dada ordem jurisdicional.
Assim, pode a parte optar por, em vez de recorrer logo para o Tribunal
Constitucional, se dirigir ao Pleno do STA, no objectivo de uniformizar
jurisprudência, não vendo precludida a possibilidade de impugnar a decisão
perante o Tribunal Constitucional se, porventura, o Pleno se pronunciar
desfavoravelmente à sua pretensão, conhecendo, designadamente, de mérito.
4. O interessado, na verdade, requereu, por um lado, a reforma do acórdão
(...) e, simultaneamente, interpôs recurso para o Pleno da Secção do
Contencioso Administrativo do STA, por oposição de julgados, invocando o
disposto nos artigos 24.º, alínea b), do ETAF e 103.º, n.º 1, alínea a), da
LPTA.
E, por outro lado, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do citado
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82.
Mas, sendo assim, é manifesto que o facto de ter recorrido, também, para o
Pleno da Secção do STA (não se discutindo, aqui e agora, se o podia fazer),
significa não ter sido proferida, ainda, a última palavra sobre o litígio em
causa, no âmbito da jurisdição administrativa, o que levaria a concluir não se
encontrar verificado, ainda, aquele pressuposto de prévia exaustão, necessário
para a admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
A este propósito, observou-se em recente acórdão deste Tribunal – o n.º
411/2000, de 3 de Outubro de 2000, ainda por publicar – que, perante a opção
feita, mantém‑se a viabilidade de recurso ordinário, que só se esgotaria após a
decisão do Pleno (e sempre haveria possibilidade de recorrer para o Tribunal
Constitucional, de acordo com o n.º 6 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82).
Ou seja, representar‑se‑ia nesta situação – e a ser recebido o recurso para o
Pleno – outro fundamento para não conhecer do objecto do recurso, a não preceder
o primeiramente consignado.”
Este entendimento foi reiterado pelos Acórdãos n.ºs 82/2004 e
222/2004, sublinhando este último que:
“4. Ao indicado acresceu, porém, um outro fundamento, na decisão reclamada,
só por si bastante também para se não poder tomar conhecimento do recurso: a
circunstância de, no momento da interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional, fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional, estar pendente, por ter sido interposto pela própria reclamante,
recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência. Ora, como resulta da
jurisprudência deste Tribunal (designadamente, dos acórdãos n.ºs 411/2000 e
253/2001, este último transcrito, na parte relevante, na decisão reclamada), tal
«dupla e simultânea utilização» do recurso de constitucionalidade e do recurso
para uniformização de jurisprudência não [é] permitida pela previsão do artigo
70.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que apenas permite a imediata
interposição do recurso de constitucionalidade, não exigindo, para o
esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, a interposição de
recurso de uniformização de jurisprudência. Como, porém, resulta também da
jurisprudência deste Tribunal, em caso de efectiva interposição, simultaneamente
com o recurso de constitucionalidade, do recurso de uniformização de
jurisprudência, não pode tomar‑se logo conhecimento do primeiro, por ainda não
ter sido proferida a «última palavra dentro da ordem judicial de que emergiu o
recurso». Sem prejuízo do recurso que possa eventualmente ser interposto após a
decisão a proferir naquele recurso para uniformização de jurisprudência, é
evidente que a decisão proferida posteriormente neste não pode legitimar, como
que «retroactivamente», a dupla e simultânea utilização, pela recorrente, dos
dois meios impugnatórios, levando a que se deva tomar conhecimento do recurso de
constitucionalidade anteriormente interposto.”
Este entendimento, porém, foi circunscrito a situações em que
era o mesmo o recorrente para o Tribunal Constitucional e no recurso para
fixação de jurisprudência, e visava evitar a dupla e simultânea utilização, pela
mesma parte, das duas vias de impugnação, não se justificando a sua extensão a
situações em que o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto por
interveniente processual diverso do recorrente para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, nesta última situação, seria excessivo privar o recorrente
constitucional da faculdade de imediato acesso ao Tribunal Constitucional
quando não lhe é imputável a simultânea duplicação das vias impugnatórias e
tendo presente que a razão de ser da norma da parte final do n.º 2 do artigo
70.º da LTC se prende com a incerteza que frequentemente rodeia a existência,
em cada caso, da possibilidade de interposição de recurso de uniformização de
jurisprudência, dependente da verificação de variados requisitos, em especial
o relativo à existência de anterior decisão judicial divergente sobre a mesma
questão de direito, no domínio da mesma legislação, que, para além da
divergências de juízos que o apuramento desta mesmidade da questão sempre pode
suscitar, pressuporia um conhecimento completo e actualizado da jurisprudência
de diversos tribunais, dificilmente alcançável em curto termo.
Nesta perspectiva, pois, nenhum obstáculo se depara à
apreciação do presente recurso.
2.2. Como se relatou, o recurso foi interposto ao abrigo das
alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas só foi admitido, pelo
Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra, a coberto desta última
alínea, não tendo o recorrente impugnado a decisão expressa de não admissão do
recurso ao abrigo da alínea b).
Resta, assim, o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cuja admissibilidade depende, além do mais, do
apuramento de ter a decisão recorrida aplicado norma já anteriormente julgada
[ou declarada – acrescente‑se (cf., entre outros, o Acórdão n.º 374/99)]
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Ora, no caso, não se verifica esse requisito de identidade
entre a dimensão normativa anteriormente julgada (ou declarada)
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e a dimensão normativa aplicada,
como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Com efeito, no citado Acórdão n.º
27/2006, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma questionada “quando dela decorre que, em processo
contra‑ordenacional, o prazo para o recorrente motivar o recurso é mais curto do
que o prazo da correspondente resposta, por violação do principio da igualdade
de armas, inerente ao principio do processo equitativo, consagrado no n.º 4 do
artigo 20.º da Constituição” (realce acrescentado), partindo da interpretação –
seguida pelas decisões sobre que recaíram os juízos de inconstitucionalidade a
cuja generalização procedeu, interpretação essa cuja correcção, em sede de
direito ordinário, não competia ao Tribunal Constitucional apreciar – de que o
prazo para a resposta era de 15 dias, superior ao prazo de 10 dias para a
motivação do recurso da decisão da impugnação judicial da decisão administrativa
sancionatória de infracção contra‑ordenacional. Diferentemente, no presente
caso, o acórdão recorrido não adoptou essa interpretação, considerando que o
prazo para a resposta ao recurso jurisdicional era de 10 dias, tal como o prazo
concedido ao recorrente, não competindo ao Tribunal Constitucional
pronunciar‑se sobre a bondade desse entendimento, em sede de interpretação do
direito ordinário. Não aplicou, assim, a decisão recorrida a interpretação
considerada inconstitucional pelo Acórdão n.º 27/2006, o que, por falta do
apontado requisito, implica que o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC – único admitido no tribunal a quo – é inadmissível,
o que determina o não conhecimento do seu objecto.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do presente
recurso.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 10
(dez) unidades de conta.
Lisboa, 18 de Outubro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos