Imprimir acórdão
Processo n.º 500/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 105 foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A., LDA., impugnou judicialmente a decisão do Instituto de
Solidariedade e Segurança Social de 2 de Maio de 2005 que indeferiu o pedido de
apoio judiciário por si requerido.
Por sentença do 3.º Juízo dos Juízos de Pequena Instância Cível do Porto de 27
de Janeiro de 2006, de fls. 83 e seguintes, foi decidido, ao abrigo do disposto
no artigo 28.º, n.º 4, da Lei n.º 34/04, de 29 de Julho, julgar improcedente o
recurso apresentado e manter na íntegra a decisão do Instituto de Solidariedade
e Segurança Social.
Entendeu-se na sentença, por um lado, que “não foi excedido
qualquer prazo, nem ocorreu o alegado deferimento tácito” e, por outro, que
“face aos documentos juntos, por si sós, (…) não resulta a alegada carência
económica da recorrente”.
2. A., LDA. recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro,
“I)
Para apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 25.º, n.ºs 1
e 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, com a interpretação de que inexiste a
invocada formação de acto tácito quando a falta de entrega de documentos
solicitados mantenha suspenso o prazo ali estipulado, por via da aplicação da
norma do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto,
quando é patente dos autos que o prazo legal para a decisão administrativa foi
amplamente ultrapassado e os documentos exigidos eram de obtenção impossível,
inexistentes, aplicando-se a dispensa prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo
89.º do Código de Procedimento Administrativo;
Uma tal interpretação desta norma de deferimento tácito cerceia o Requerente de
Protecção Jurídica a ver o seu direito à defesa efectiva dos seus interesses
reconhecido em tempo útil para assegurar os seus legítimos interesses, segundo
os padrões estabelecidos na própria Lei, sendo considerada correcta a
interpretação que está plasmada no recurso impugnatório, em especial nos artigos
1.º a 3.º e correspondentes conclusões das alíneas a), d) a f) e h) que aqui se
têm por integralmente reproduzidos;
Tal norma, com a interpretação subjacente à decisão ora sindicada, viola o
imperativo do mesmo artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da Constituição da República
Portuguesa;
Esta questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente na alínea c)
das conclusões do recurso impugnatório julgado em causa;
II)
Para apreciação da inconstitucionalidade da norma contida nos artigos 14.º e
15.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, com a interpretação que
emerge da douta decisão ora em crise de que não se fazendo a junção dos
documentos ali exigidos, mesmo que correspondam a impostos inexistentes à data
da cessação de actividade, não fica demonstrada a carência económica do
Requerente de Protecção Jurídica;
Uma tal interpretação destas normas cerceia em absoluto o acesso ao direito e
aos tribunais às sociedades que, não estando dissolvidas, estejam inactivas e,
por isso mesmo, sem meios de suportar as despesas de um pleito judicial;
Tais normas, com a interpretação emergente da decisão em crise, violam o
imperativo do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da república Portuguesa;
Sendo considerada correcta a interpretação de que, por força do dispositivo
contido no n.º 2 do artigo 89.º do Código de Procedimento Administrativo,
aplicável ex vi artigo 376.º da referida Lei n.º 34/2004, uma tal exigência
legal é dispensada por razões ponderosas, mormente a simples inexistência dos
impostos ali referidos à data de cessação de actividade da sociedade requerente,
conforme aduzido nas alíneas e) e h) das conclusões recursivas em apreço;”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este
Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso,
relativamente a nenhuma das duas questões que lhe são colocadas.
Na verdade, resulta do requerimento de interposição de recurso
que não são aí suscitadas quaisquer questões de constitucionalidade normativa,
antes se limitando a recorrente a censurar a própria decisão recorrida.
Com efeito, a recorrente pretende que o artigo 25.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º
34/2004 é inconstitucional por, além do mais, ser “patente dos autos que o prazo
legal para a decisão administrativa foi amplamente ultrapassado e os documentos
exigidos eram de obtenção impossível, inexistentes, aplicando-se a dispensa
prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 89.º do Código de Procedimento
Administrativo”.
Quanto à inconstitucionalidade que atribui aos artigos 14.º e 15.º da Portaria
n.º 1085-A/2004, resultaria também da circunstância de os documentos exigidos
corresponderem, no caso dos autos, a “impostos inexistentes à data da cessação
de actividade” da recorrente.
Nestes termos, as questões de constitucionalidade suscitadas pela recorrente
surgem como indissociáveis das circunstâncias do caso concreto, tal como a
recorrente o configura, sem autonomizar normas sobre as quais se possa fazer
incidir um juízo de constitucionalidade.
Ora, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas,
ou de interpretações normativas, aplicadas na decisão recorrida e não das
próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e
assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr., a título de exemplo,
os acórdãos n.ºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II
Série, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996,
respectivamente).
4. Acresce ainda que, em relação à questão de
constitucionalidade referida pela recorrente aos artigos 14.º e 15.º da Portaria
n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, sempre seria inútil o conhecimento do recurso.
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o
recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se
sabe, que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de
repercussão do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida.
Ora, no caso, nenhuma repercussão teria, uma vez que, como se afirma na decisão
recorrida, “independentemente de estar ou não obrigado a juntar todos os
elementos solicitados, o certo é que da decisão recorrida extrai-se que o
requerimento foi indeferido não apenas por falta de tais elementos mas porque se
entendeu que não ficou demonstrado que a ora recorrente carecia de meios para
suportar as despesas com a presente acção, sendo certo que, conforme se referiu,
o ónus da prova de tal falta de meios, competia à recorrente”.
5. Estão, portanto, reunidas as condições para que se proceda à
emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8
ucs.».
2 Inconformada, a recorrente reclamou para a conferência, ao
abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a
revogação da decisão sumária, nos seguintes termos:
«Vem a doutíssima decisão ora em crise sustentada, em primeiro lugar, em que
relativamente à norma do art.° 25.°, n.°s 1 e 2, da Lei n.° 34/2004, de 29 de
Julho, se apresenta o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal
a censurar a decisão que não a suscitar a inconstitucionalidade normativa, como
deveria.
Corridos os olhos pelo respectivo texto recursivo constata-se que a expressão
considerada como fatal para o efeito recursivo nesta sede “(…)patente nos autos
que o prazo para a decisão administrativa foi amplamente ultrapassado e os
documentos exigidos eram de obtenção impossível, inexistentes,(…)” se mostra ali
expressa tão só para dar a necessária relevância prática, efectiva, ao recurso
porquanto ficaria esvaziado de conteúdo empírico, de alcance real e, até,
incompreensível a matéria fáctica em que a questão jurídica se sustenta, qual
seja o que constitui o restante texto: “Para apreciação da inconstitucionalidade
da norma contida no art.° 25.°, n.ºs 1 e 2 da Lei n.° 34/2004, de 29 de Julho,
com a interpretação de que inexiste a invocada formação de acto tácito quando a
falta de entrega de’ documentos solicitados mantenha suspenso o prazo ali
estipulado, por via da aplicação da norma do n.° 3 do artigo 1.º da Portaria n.°
1085-A/2004, de 31 de Agosto,(…)”.
Sem explicitar concretamente o facto invocado nos Autos para chegar à
interpretação tida por inconstitucional difícil se tornaria alcançar a razão
pela qual se tem por correcta, estoutra que a contraria e, como se alude de
imediato, se encontra plasmada nas conclusões a), d) a f) e h) do recurso cuja
decisão viola a lei fundamental, isto é que, em súmula, o facto de uma sociedade
estar com a actividade cessada antes de ter entrado em vigor os Códigos do
Imposto sobre o Valor Acrescentado e do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Colectivas dispensa-a, por força do n.° 2 do art.° 89.° do Código de
Procedimento Administrativo, de entregar os documentos exigidos pelo art.° 1º da
Portaria n.° 1085-A/2004 e, em consequência, não se pode manter a suspensão do
prazo para a decisão administrativa por se estarem a exigir documentos
inexistentes e/ou impossíveis de obter.
Para avaliar a aplicação do citado art.° 89.°, n.° 2, do C.P.A. afigurou-se à
Recorrente necessário indicar que documentos são, para o Tribunal ad quem poder
verificar ipso facto a aplicabilidade concreta dessa norma do C.P.A. dispensando
a entrega desses documentos prescritos na lei e, consequentemente, fazendo
correr seus termos o prazo.
É meramente instrumental a alusão ali feita ao caso concreto dos Autos, para
assegurar a perfeição do raciocínio, para majorar a justeza da decisão que se
persegue.
Cominar a Recorrente por excesso de zelo ao pretender tornar clara a sua
interpretação da norma e as razões apontadas como erro na interpretação do
Tribunal a quo será, data venia, uma injustiça a que este Superior Tribunal não
nos acostumou e está em tempo de evitar.
De igual sorte no que tange à segunda das razões, ligada esta à
inconstitucionalidade interpretativa das normas contidas nos artigos 14.° e 15.º
da sobredita Portaria n.° 1085-A/2004, e que também ela se prende com a mera
exemplificação com o caso em apreço nos Autos donde vem tirada a decisão
recorrida.
Com a especialidade carreada à decisão sumária aqui reclamada de que não está
prejudicada esta questão da exigência dos documentos elencados nestes dois
artigos da aludida Portaria regulamentadora porquanto ela é essencial para
aferir o quae rerum natura prohibentur, nulla lege confirmata que sustenta as
arguidas inconstitucionalidades, indelevelmente interligadas.
Em suma se dirá pois, que as alusões ao caso concreto da decisão recorrida, são
feitas apenas e só para concretizar de forma empírica um raciocínio, não fazendo
parte, patentemente, do enunciado básico e estrutural das arguições de
inconstitucionalidade, nas suas normas e interpretação viciada.
E, salvo melhor e mais douta opinião, sendo um apêndice dispensável do texto
recursivo, sempre se lhe poderá aplicar, em alternativa, o convite a ser
retirado do requerimento de interposição do recurso, segundo a regra do n.° 5 do
artigo 75.°-A da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, em aplicação a contrario
sensu, uma vez que se é possível acrescentar o texto também se afigura adequado
convidar à retirada das excrescências encontradas.»
Notificado para o efeito, o reclamado não respondeu.
3. Não foi naturalmente pela circunstância de serem feitas alusões ao caso
concreto dos autos que se decidiu não estarem reunidas as condições necessárias
ao conhecimento do mérito do recurso; não teria, pois, qualquer utilidade
convidar a recorrente a prestar qualquer esclarecimento ou a introduzir qualquer
alteração no requerimento de interposição de recurso nos termos do disposto no
artigo 75º-A da Lei nº 28/82.
Não cabe no âmbito do recurso de constitucionalidade – e, portanto, dos poderes
de cognição do Tribunal Constitucional – analisar a correcção ou incorrecção da
decisão recorrida, quer do ponto de vista do direito ordinário aplicável (o que
o impede, por exemplo, de se pronunciar sobre uma eventual aplicabilidade, ao
caso, do disposto no n.º 2 do artigo 89º do Código do Procedimento
Administrativo), quer na perspectiva do confronto directo entre a decisão e as
regras constitucionais.
Incumbe, assim, aos recorrentes, ao definir o objecto do recurso de
constitucionalidade, indicar a norma ou a interpretação normativa de direito
ordinário que, em seu entender, viola a Constituição e que, apesar disso, foi
aplicada na decisão recorrida.
Ora, para o efeito, não podem tomar-se em conta as circunstâncias específicas do
caso, sob pena de, em lugar de se definir a norma, geral e abstracta, aplicada,
se descrever a decisão que a aplicou – cuja constitucionalidade, repita-se, o
Tribunal Constitucional não pode apreciar.
4. No presente recurso, e em primeiro lugar, a recorrente sustentou a violação
do seu direito constitucional 'à defesa efectiva dos seus legítimos interesses
em tempo útil' e a infracção do artigo 20º da Constituição numa interpretação
dos preceitos legais que aponta ['norma contida no artigo 25º, n.ºs 1 e 2, da
Lei n.º 34/2004 (…)' e 'norma contida no n.º 3 do artigo 1º da Portaria n.º
1085/2002'], interpretação que se traduziria em considerar que se não forma um
deferimento tácito quando o prazo correspondente se considera suspenso por terem
sido exigidos documentos de obtenção impossível.
Ora basta ler a decisão recorrida para verificar que tal decisão não considerou
terem sido exigidos 'documentos de obtenção impossível', o que seria
imprescindível para se poder abstrair da consideração, feita pela recorrente, de
que, no caso concreto, se tratava de documentos de obtenção impossível.
Em segundo lugar, a recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional
apreciasse a 'inconstitucionalidade da norma contida nos artigos 14º e 15º da
Portaria n.º 1085-A/2004 (…), com a interpretação de que não se fazendo a junção
dos documentos ali exigidos, mesmo que correspondam a documentos inexistentes à
data da cessação de actividade, não fica demonstrada a carência económica do
Requerente de Protecção Jurídica'.
Não é manifestamente possível apreciar esta questão sem considerar quais eram os
documentos em concreto, o que mais uma vez justifica o não conhecimento do
recurso.
5. Note-se, aliás, que, a ser possível ver no requerimento de interposição de
recurso – eventualmente corrigido, nos termos pretendidos, por aplicação do
disposto no artigo 75º-A da Lei nº 28/82 – a definição de questões de
constitucionalidade normativa, sempre subsistiria a falta de uma condição
indispensável para o conhecimento do recurso, não referida na decisão reclamada
por desnecessidade: ter sido suscitada, 'durante o processo', a
inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada (artigo 70º, n.º 1, da Lei
nº 28/82).
Com efeito, das alíneas c), h) ou i ) – ou de qualquer outra – das conclusões da
impugnação de fls. 77 não consta a alegação de inconstitucionalidade de nenhuma
norma contida nos preceitos legais indicados no requerimento de interposição de
recurso como seu objecto.
6. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 24 de Julho de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício