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Processo n.º 697/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional,
1. A. deduziu reclamação para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 77.º, n.º 1, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o despacho do Conselheiro Relator do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ), de 9 de Maio de 2006, que não admitiu recurso por ela
interposto contra o acórdão do mesmo Tribunal, de 18 de Abril de 2006.
De acordo com o respectivo requerimento de
interposição, o recurso era interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC, acrescentando:
“No seu modesto entendimento e sempre salvo o muito e devido
respeito, a recorrente defende que V. Ex.as, ao decidirem como decidiram,
violaram a legalidade estabelecida, designadamente e sempre desde a 1.ª
instância, com fundamentação a desenvolver em sede de alegações, o disposto na
alínea c) do artigo 771.º e [nas alíneas] b), c) e d) do [n.º 1 do] artigo
668.º, bem como dos artigos 2.º, 3.º, 3.º‑A e n.ºs 1 e 2 do artigo 266.º‑B,
todos do Código de Processo Civil, e ainda, ao actuarem em flagrante denegação
de justiça, os artigos 12.º, n.º 1 (princípio da universalidade), artigo 13.º,
n.º 1 (princípio da igualdade), artigo 22.º (responsabilidade das entidades
públicas), artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva),
artigo 21.º (direito de resistência), artigo 37.º, n.ºs 1, 2 e 4 (liberdade de
expressão e informação), artigo 204.º (apreciação da inconstitucionalidade) e,
finalmente, o artigo 205.º, n.º 1, todos da Constituição da República.”
O recurso não foi admitido, por despacho de 9
de Maio de 2006 do Conselheiro Relator do STJ, porquanto:
“Não houve recusa, por parte deste STJ, de aplicação de
qualquer norma legal, com fundamento na sua ilegalidade (alínea c) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC).
Por outro lado, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo
72.º da LTC, o recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a
questão de inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer.
A recorrente não suscitou qualquer inconstitucionalidade nos
recursos interpostos para a Relação e para o Supremo.
Assim, não tem a recorrente legitimidade, razão por que não se
admite o recurso.”
Na reclamação deduzida contra este despacho
refere a reclamante:
“1.º A recorrente recorreu da ilegalidade do Acórdão de V. Ex.as, de 18 de Abril
de 2006, que negou provimento ao seu recurso, confirmando integralmente a
decisão recorrida, a qual a condenou em avultada multa e ainda pretendeu
assacar‑lhe uma indemnização como litigante de má fé e não da
inconstitucionalidade.
O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas c) e f) do n.º 1 e n.º 2
do artigo 70.º da LTC e dos artigos 223.º, n.º 1, e 280.º, n.º 2, alíneas a) e
d), da Constituição da República.
No seu modesto entendimento e sempre salvo o muito e devido respeito, a
recorrente defende que V. Ex.as, ao decidirem como decidiram, violaram a
legalidade estabelecida; designadamente e sempre desde a 1.ª instância, com
fundamentação a desenvolver em sede de alegações, o disposto na alínea c) do
artigo 771.º e [nas alíneas] b), c) e d) [do n.º 1] do artigo 668.º, bem como
dos artigos 2.º, 3.º, 3.º‑A e nºs 1 e 2 do artigo 266.º‑B, todos do CPC e ainda,
ao actuarem em flagrante denegação de justiça, os artigos 12.º, n.º 1 (princípio
da universalidade), artigo 13.º, n.º 1 (princípio da igualdade), artigo 22.º
(responsabilidade das entidades públicas), artigo 20.º (acesso ao direito e
tutela jurisdicional efectiva), artigo 21.º (direito de resistência), artigo
37.º, n.ºs 1, 2 e 4 (liberdade de expressão e informação), artigo 204.º
(apreciação da inconstitucionalidade) e, finalmente, o artigo 205.º, n.º 1,
todos da Constituição da República.
2.º O disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC não tem aqui aplicação, uma vez que
esta norma só tem aplicação aos recursos interpostos com base nas alíneas b) e
f) do n.º 1 do artigo 70.º do mesmo diploma, e o ora em apreço foi interposto
sim ao abrigo da alínea f), mas também ao abrigo da alínea c). Isto, sem referir
todo o normativo atrás citado.”
O representante do Ministério Público neste
Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente infundada. Na verdade,
a ora reclamante não suscita, em termos adequados, qualquer questão de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade qualificada, reportada a normas ou
interpretações normativas, susceptíveis de apreciação por este Tribunal
Constitucional, o que implica a inidoneidade do objecto do recurso interposto.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A ora reclamante interpôs o recurso para o
Tribunal Constitucional com expressa invocação das alíneas c) e f) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, que prevêem a existência de recurso para o Tribunal
Constitucional das decisões dos tribunais que: (i) recusem a aplicação de norma
constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de
lei com valor reforçado; e (ii) apliquem norma cuja ilegalidade houvesse sido
suscitada durante o processo com fundamento em: 1) violação de lei com valor
reforçado, tratando‑se de norma constante de acto legislativo; 2) violação de
estatuto da região autónoma ou de lei geral da República, tratando‑se de norma
constante de diploma regional; e 3) violação do estatuto de uma região
autónoma, tratando‑se de norma emanada de um órgão de soberania.
2.1. Relativamente ao recurso interposto ao
abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a sua admissibilidade
depende ainda de a recorrente haver suscitado a questão da ilegalidade de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Ora, nas alegações endereçadas ao STJ – no
recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que negou
provimento ao agravo deduzido contra o despacho da 1.ª Vara Cível de Lisboa, que
rejeitara liminarmente, por manifestamente improcedente, recurso de revisão da
sentença proferida em embargos à execução, e condenara a recorrente em multa,
como litigante de má fé – a recorrente não suscitou nenhuma das referidas
questões de ilegalidade, como se constata pela mera leitura das respectivas
conclusões (e sendo certo que no teor das alegações nada mais se aduz de
relevante para a questão ora em apreço), que a seguir se transcrevem:
“1. A Veneranda Relação de Lisboa não invoca um único argumento ou fundamento
para alicerçar a sua decisão, limitando‑se a reiterar a decisão da primeira
instância, sem se debruçar e analisar as conclusões da recorrente (não faz mesmo
qualquer alusão às mesmas).
2. Ao deixar de se pronunciar sobre questão que deveria apreciar (as conclusões
da recorrente), a Veneranda Relação de Lisboa incorre no disposto na alínea d)
do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, o que torna a sua decisão, o seu douto Acórdão,
nulo e de nenhum efeito.
3. É o próprio juiz da 1.ª instância, ora corroborado pela Veneranda Relação de
Lisboa, que afirma no 2.º parágrafo da 2.ª página da sua douta decisão, que o
documento que ora se apresentou e que motivou o presente recurso de revisão «só
recentemente foi produzido».
4. Ora, reza a norma constante do disposto na alínea c) do artigo 771.º do CPC
que uma decisão só pode ser objecto de uma revisão quando se apresente
documento de que a parte não tivesse conhecimento (é a própria 1.ª instância
que afirma que o documento só foi obtido recentemente) ou de que não tivesse
podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever (se o
documento só foi obtido recentemente é óbvio que a parte não poderia ter feito
uso do que não detinha, nem existia).
5. Ao reconhecer que o documento móbil da presente revisão não existia ao tempo
da tramitação do processo que deu origem à decisão a rever e, não obstante este
facto, ter decidido como decidiu, violou o tribunal a quo o disposto na alínea
c) do artigo 771.º do CPC e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
1 de Julho de 2004, publicado no Dicionário de Legislação e Jurisprudência, n.º
857, de Março de 2005 (96), AZ-3431 3.
6. Os fundamentos da decisão de que ora se recorre, aliás douta, estão em
oposição com a própria decisão. Se o documento só foi produzido recentemente,
como é que a parte poderia anteriormente ter tido conhecimento do mesmo ou
consequentemente tê‑lo apresentado? Esta contradição entre os fundamentos e a
decisão conduz à nulidade desta última (alínea c) [do n.º 1] do artigo 668.º do
CPC) e agora, consequentemente, à nulidade do Acórdão da Veneranda Relação de
Lisboa (Acórdão do porque sim).
7. Ao não especificarem os fundamentos de facto e de direito que estiveram na
base das suas decisões, incorrem a douta 1.ª instância e a Veneranda Relação de
Lisboa no disposto na alínea b) [do n.º 1] do artigo 668.º do CPC, o que,
consequentemente, conduz à nulidade das mesmas.
8. De igual nulidade padece a douta decisão do tribunal a quo ao não se
pronunciar ou sequer efectuar a mínima alusão aos documentos igualmente juntos
ao recurso de revisão, com base nos quais se alicerçou o estudo contabilístico,
móbil deste último (1.ª parte da alínea d) [do n.º 1] do artigo 668.º do CPC).
Menos o faz a Veneranda Relação de Lisboa, a qual parece inclusive desconhecer
que o parecer contabilístico se alicerçou em documentos.
9. Se hoje a recorrente dispõe de um estudo contabilístico de que não dispunha
(como é comprovado pelas próprias instâncias) ao tempo dos embargos, o qual lhe
permite finalmente discutir a quantificação da dívida, onde é que está a sua má
fé?
10. Aquando dos embargos, questionou a recorrente os montantes peticionados
quer no referente ao capital, quer aos juros de mora, mas nunca discutiu (não o
poderia porque não tinha elementos para tal) a escalpelização/contabilização
dos mesmos e, mais concretamente, a sua quantificação.
11. O banco exequente, ora recorrido, recusou‑se sempre a fornecer os extractos
contabilísticos que permitiriam à ora recorrente e ao outro executado discutir e
não limitar‑se a negar a dívida.
12. O recorrido chegou mesmo a afirmar, conforme único documento junto às
alegações para a Veneranda Relação de Lisboa (esta última não redigiu uma única
palavra sobre o mesmo) e se dá novamente por integralmente reproduzido, para
todos os efeitos legais, que todas as responsabilidades dos executados já
haviam sido destruídas e que, por isso, nada podiam esclarecer.
13. Só recentemente e mediante o conteúdo do documento móbil da presente revisão
foi possível à recorrente reunir os elementos necessários (extractos bancários e
de conta corrente) para o estudo contabilístico que lhe permite sustentar que a
quantia exequenda é, em muitas vezes, superior ao que a recorrente e o seu
marido efectivamente devem.
14. Se essa contabilização/escalpelização da dívida nunca foi efectuada pelo
banco recorrido, conforme documento junto, menos o poderia ter sido pelo
tribunal a quo e pela Veneranda Relação de Lisboa (esta última não faz no seu
douto Acórdão a mínima alusão aos documentos juntos pela recorrente).
15. Ao decidir como decidiu, condenando a recorrente numa pesada multa como
litigante de má fé e ao injuriar e ameaçar o seu mandatário, o meritíssimo da
1.ª instância coarctou gravemente os direitos da recorrente no seu acesso ao
Direito e à Justiça, violando, assim o disposto nos artigos 2.º, 3.º, 3.º‑A,
158.º, n.º 1, e 266.º‑B, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.”
Sendo patente que nesta peça processual a
reclamante não suscita nenhuma questão de ilegalidade, seja por violação de lei
com valor reforçado, seja por violação de estatuto de região autónoma, seja por
violação de lei geral da República, o recurso interposto ao abrigo da alínea f)
do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é inadmissível, o que determina o não
conhecimento do seu objecto.
2.2. E é também inadmissível o recurso
interposto ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, já que o
acórdão recorrido não recusou a aplicação de qualquer norma constante de acto
legislativo, com fundamento em violação de lei com valor reforçado, como resulta
da leitura da respectiva fundamentação jurídica, do seguinte teor:
“A recorrente requereu a revisão da sentença proferida nos embargos de executado
n.º 1446‑A/96, que correram termos na 1.ª Vara Cível de Lisboa, com fundamento
na alínea c) do artigo 771.º do CPC, juntando um laudo pericial elaborado por
um Técnico Oficial de Contas, com base nos extractos bancários do B., também
ali executado, relativos ao período compreendido entre 1 de Janeiro de 1993 e 30
de Junho de 1994, que conclui situar‑se o montante total do crédito do banco
exequente entre os 12 000 000$00 e os 21 000 000$00, dependendo tal variação da
taxa de juro cobrada.
Juntou, ainda, cópia dos extractos bancários que terão servido de base à
perícia.
O laudo pericial não preenche o conceito de documento previsto na alínea c) do
artigo 771.º do CPC. Trata‑se de uma opinião escrita de um técnico
especializado, que retirou conclusões da análise de documentos, de eventual
relevo para a decisão.
O laudo em si não tem o mínimo valor probatório, porque não sujeito ao
contraditório.
Já os extractos bancários constituem documentos relevantes para o efeito, mas
podiam e deviam ter sido utilizados nos embargos e só o não foram por falta de
diligência da ora recorrente, que centrou a sua defesa na invocada nulidade da
procuração outorgada a favor do outro executado e na sua irresponsabilidade
pela dívida.
Nos embargos em que foi proferida a decisão a rever, a ora recorrente podia ter
requerido ao Tribunal a realização de uma peritagem à conta do B. no banco
exequente (artigos 568.º a 591.º do CPC).
O laudo pericial, como já demonstrámos, não consubstancia o documento exigido
pela alínea c) do artigo 771.º do CPC, para além da sua nula força probatória,
enquanto os restantes documentos juntos com o requerimento inicial, susceptíveis
de influenciarem a decisão, caso traduzam todas as operações realizadas entre o
exequente e o executado B., podiam e deviam ter sido usados nos embargos, sendo
certo que nem sequer a recorrente alega a impossibilidade de tal, antes confessa
não ter dado atenção ao montante da dívida peticionada pelo exequente, pois
defendeu a sua irresponsabilidade pela mesma.
O recurso extraordinário de revisão não foi criado para reparar eventuais
situações em que os interessados não quiseram ou não souberam defender‑se.
Posto isto, acrescentar‑se‑á que as decisões recorridas não enfermam das
apontadas nulidades.
O acórdão não precisa de analisar todas as conclusões do recurso, mas apenas as
verdadeiras questões aí suscitadas, tendo‑o feito o acórdão recorrido, ainda que
de forma sucinta.
Não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, já que o
reconhecimento de que a recorrente só agora diligenciou pela obtenção do laudo
pericial não prejudica a realidade de o mesmo laudo poder ter sido obtido na
pendência dos embargos, ou ter sido requerida a peritagem ao tribunal.
Por último, as decisões recorridas não fizeram referência aos restantes
documentos juntos pela recorrente pelo simples facto de esta, relativamente a
eles, não ter sequer alegado a impossibilidade de os usar nos embargos.
A condenação como litigante de má fé imposta à recorrente teve como fundamento
as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 456.º do CPC, dedução de pretensão cuja
falta de fundamento não podia ignorar e alteração da verdade dos factos.
Ambos os fundamentos se verificam.
A fundamentação dum recurso de revisão num laudo pericial, elaborado com base em
documentos não usados na acção em que foi proferida a decisão a rever, não tinha
a mínima possibilidade de êxito, até porque traduziria uma fraude a
revalorização de documentos que, por negligência da recorrente, tinham perdido a
oportunidade de ser considerados.
A alteração da verdade dos factos tem a ver com o facto de a recorrente afirmar
no seu requerimento inicial que, quando da petição de embargos, não discutiu
quantitativos, quando é certo que o fez, ainda que com base no acordo moratório
para a regularização da dívida e não nos extractos bancários.
Verificando‑se os fundamentos da condenação, não há que censurar a decisão, até
porque a recorrente reiterou o seu condenável procedimento processual.”
Como é patente, em parte alguma desta decisão
consta, explícita ou sequer implicitamente, a recusa de aplicação de norma
constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade, por violação de
lei com valor reforçado, pelo que o recurso interposto ao abrigo da alínea c) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC é igualmente inadmissível.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a
presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos