Imprimir acórdão
Processo n.º 663/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram
como recorrente A., condenado nas instâncias a uma pena única, em cúmulo
jurídico, de nove anos e seis meses de prisão, e como recorridos o Ministério
Público e outros, foi proferido acórdão, em 22 de Junho de 2006, que negou
provimento ao recurso que havia sido interposto pelo ora recorrente, na parte em
que dele conheceu.
2. Deste acórdão foi interposto recurso para este Tribunal, através de um
requerimento que tem o seguinte teor:
“[...], não se conformando com o, aliás, mui douto Acórdão de fls. dos autos,
dele vem interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos
dos artigos 75.°, n.º 1, 75.°-A e 70.°, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de
Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de
Setembro e pela Lei n.º 13-Ä/98, de 26 de Fevereiro.
Assim, e porque está em tempo,
Requer a v. Digníssima Ex.a que se sigam os ulteriores termos do processo,
considerando-se interposto o presente recurso, o qual subir imediatamente nos
pr6prios autos, com efeito suspensivo [...1“
3. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte relevante, o seu teor:
“[...] Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do recurso, uma vez
que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. art.
76°, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional - LTC).
Invoca o recorrente a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional como norma ao abrigo da qual recorre. O recurso previsto nessa
alínea só pode, contudo, ser interposto “pela parte que haja suscitado a questão
de inconstitucionalidade [...] de modo processualmente adequado perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a
dela conhecer (artigo 72°, n.º 2, da LTC). O que, nos presentes autos, é
manifesto que não aconteceu.
Com efeito, compulsados os autos, nomeadamente as 75 (setenta e cinco) folhas da
motivação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - única peça para o
efeito relevante -‚ incluindo as 28 (vinte e oito) folhas onde se inserem as 135
(cento e trinta e cinco) conclusões [constantes das alíneas a) a hhhhhh)],
verifica-se que o recorrente nunca formulou, perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, como exige o n.º 2 do artigo 72° da Lei do Tribunal
Constitucional, qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de
integrar o recurso que agora interpôs. Quanto muito, nessa peça processual, o
recorrente terá alegado que a decisão judicial de que então recorreu padeceria
de inconstitucionalidades, nunca imputando estas, porém - como podia e devia, se
pretendia ter aberta uma via de recurso para este Tribunal -‚ a qualquer norma.
Para o demonstrar basta recordar aqui o teor de todas as conclusões em que o
recorrente se refere a uma alegada violação da Constituição:
“[...] q) Então, para que exista extorsão, é corolário fundamental a intenção de
conseguir, para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.
r) Para tanto, terá de se demonstrar - não presumir, sob pena da violação do
princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n. ° 2, da CRP,
bem como do princípio in dubio pro reo - a ilegitimidade do enriquecimento
pretendido com a conduta.
s) Tal não acontece nos acórdãos recorridos.
[...]
eeee) E como acima demonstrado, estamos perante vícios que, mesmo que não
alegados, eram do conhecimento oficioso do venerando Tribunal a quo.
fffi) Assim, estamos igualmente perante uma inconstitucionalidade, por clara
violação do direito a recurso consagrado no artigo 32.º, n.° 1, da Constituição
da República Portuguesa, que afirma claramente que
gggg) Ao não se pronunciar sobre uma questão que era de conhecimento oficioso,
em sede de recurso, negou-se, nas suas inteiras valências, o direito ao recurso,
porquanto ficou o arguido privado da análise, pelo Tribunal superior, da inteira
legalidade do seu processo.
hhhh) Ora, sendo pacífico que os vícios constantes do n.° 2, do artigo 410.º, do
CPP são de conhecimento oficioso, ao não se ter pronunciado sobre a matéria
supra (e amplamente) especificada, nem ter conhecido dos vícios ali encontrados,
não se possibilita ao arguido, ora recorrente, o direito a um recurso, pois,
este, muito embora se reconheça que não pode representar um novo julgamento,
exige-se, no entanto, que se detenha sobre todas as vicissitudes processuais as
alegadas, e as que são de conhecimento oficioso.
iiii) Deste modo, encontramos uma violação - como acima já se referiu, aliás - a
princípio da presunção da inocência:
jjjj) O princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2,
da CRP , faz com que não se possam, para efeitos de condenação, presumir factos
que não foram dados com provados, contra o arguido;
[...]
qqqq) O acórdão proferido em 1.ª instância, contra o arguido [...], presumiu a
existência de um dos elementos constitutivos do crime.
rrrr) Violando, gravemente, o princípio da presunção de inocência, gerando,
desde logo, uma inconstitucionalidade na aplicação do Direito.
ssss) Mas, directamente decorrente do exposto, surge-nos ainda uma outra
violação aos preceitos da Lei Fundamental: a violação ao n.° 5, do artigo 32.º,
da CRP , porquanto
tttt) O contraditório previsto como princípio neste artigo da Constituição não
se reduz a um mero exercício fútil de antagonismo entre as partes: exige que o
Poder Judicial, depois das partes exercerem o contraditório vertido sobre
determinada matéria, sobre esta profira uma decisão, estabelecendo, senão uma
verdade, ao menos uma constância jurídica capaz de fundar uma decisão com um
determinado grau de certeza.
uuuu) Perante alegações divergentes entre arguidos e assistentes (e mesmo entre
o depoimentos destes últimos ), a falta de uma decisão, sobre a matéria
controvertida, por parte do Tribunal de 1.ª Instância, desvirtua por completo o
direito ao contraditório, que, para ser perfeito exige que, do seu exercício,
nasça uma determinada consequência, uma determinada decisão enfim, uma fixação
da matéria sujeita, pelas partes, ao contraditório.
vvvv) Ao não se pronunciar sobre esta questão, e mantendo, nestes moldes, o
acórdão proferido em 1.ª Instância, também o mui douto acórdão ora recorrido
viola a disposição do n.º 5, do artigo 32.º, da Constituição da República
Portuguesa, porquanto continuar:
xxxx) Bem patentes são, portanto, as inconstitucionalidades presentes no douto
acórdão proferido pelo Venerando Tribunal a quo, e os vícios constantes do
artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que, oficiosamente, deveriam
ser decididos no douto Acórdão proferido por aquele respeitável tribunal, e que
não o foram.
[...]
ddddd) Determinou o douto acórdão ora recorrido, a fls. 1953 e segs. dos autos,
a rejeição do recurso, relativamente à impugnação ampla da matéria de facto.
eeeee) Tal decisão viola, reiterada a ressalva ao devido respeito - que é muito
-, disposto tanto no artigo 62.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, assim como
o disposto no artigo 32.º, n.º 3, do Constituição da República Portuguesa.
[...]
hhhhh) Quando o n.° 3, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa
reconhece ao arguido o direito de escolher defensor e ser por este assistido em
todos os actos do processo implica, necessariamente que, quando revogada uma
procuração, substituindo-se livremente defensor do arguido no processo, apenas
serão eficazes os actos praticados posteriormente à data da notificação da
revogação da procuração.
iiiii) Quando o arguido, expressamente, constitui novo mandatário, entender,
como foi caso, que a nova representação apenas tem lugar aquando da notificação
feita ao advogado cessante no processo é negar ao arguido o direito consagrado
no artigo 32.º, n.º 3, da CRP , um vez que estaria o Tribunal a obrigar tanto o
arguido como o advogado a uma representação que ambos já não desejam.[...]”
Ora, é jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando em causa
a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta
do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70° da Lei n.º 28/82 e
assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões.
Por outro lado, não estando, ostensivamente, preenchidos os pressupostos de
admissibilidade do recurso interposto, irrelevante se torna a igualmente
existente falta de preenchimento de todos os requisitos constantes do artigo
75°-A, da Lei do Tribunal Constitucional no próprio requerimento de interposição
do recurso para este Tribunal, estando vedada, por fora do principio da
1imitação dos actos processuais, contido no artigo 137° do Código de Processo
Civil - que não considera lícito “realizar no processo actos inúteis” -‚ a
eventual aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 75°-A da Lei do Tribunal
Constitucional.
Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, inteiramente
inúteis no presente contexto, torna-se evidente que não pode conhecer-se do
recurso que o recorrente interpôs, por manifesta falta dos seus pressupostos
legais de admissibilidade, nomeadamente por não ter o recorrente suscitado, de
modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, uma questão de constitucionalidade normativa que por este Tribunal
pudesse ser apreciada em recurso”.
4. É desta decisão que vem interposta, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º
3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que o reclamante fundamenta
nos seguintes termos:
“[...], não se conformando com a, aliás, mui douta Decisão de fls...., dos
autos, dela vem reclamar para a Conferência, ressalvado o devido e prestado
respeito, nos termos do artigo 78.°-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, com as alterações introduzidas pela lei n.º 143/85, de 26 de Novembro,
pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro e
pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, pelo seguinte somatório de razões:
I Ressalvado o devido respeito, que se reitera, as várias questões de
inconstitucionalidade foram tempestiva, adequada e expressamente suscitadas no
recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
II Assim, na alínea n) das suas conclusões, o recorrente identifica a norma
cujos termos de aplicação ao caso concreto representam eventuais
inconstitucionalidades, no entendimento que daquela fazem os sucessivos
tribunais recorridos — Cfr. alíneas r), s), eee), fff), gggg), hhhh), iiií),
jjjj), rrrr), ssss), tttt), uuuu, vvvv), xxxx), ddddd), hhhhh) e iiiii) das
conclusões do recurso — e identifica igualmente a regra constitucional violada
por aquela interpretação e aplicação do artigo.
III Estão, portanto, preenchidos todos os pressupostos legais de admissibilidade
do recurso interposto perante este Venerando e Prudentíssimo Tribunal, porquanto
estão identificadas as normas (art. 160.°, n.º 1, do Código Penal e artigo
410.°, n.º 2, do Código de Processo Penal) cuja aplicação, conforme explanado em
sede de recurso, se baseou num entendimento que, no entendimento do recorrente,
representam a violação do Artigo 35º, nºs, 1, 3 e 5, da Constituição da
República Portuguesa.
IV É entendimento do recorrente — e ressalvada melhor e mais douta opinião — que
a constitucionalidade normativa consubstancia igualmente o entendimento que
determinou e/ou moldou a aplicação da norma, pois a sua constitucionalidade não
se esgota na letra da lei, mas estende-se ao modo da sua aplicação; assim, no
recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente identificou as normas e
suscitou a inconstitucionalidade:
V Suscitou a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 160º, n.º 1, do
Código penal, interpretada no sentido de não ser necessária a prova da
ilegitimidade do enriquecimento, o que representaria uma violação ao vertido no
artigo 32.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, porquanto tal
interpretação se baseia numa presunção da ilegitimidade.
VI Suscitou a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 410. °, n.º 2, do
Código de Processo Penal, interpretada no sentido de permitir ao tribunal ad
quem não conhecer oficiosamente os vícios do acórdão recorrido, interpretação
que, no entendimento do recorrente, representa uma violação ao vertido no n.º 1,
do artigo 32°, da Constituição da República Portuguesa.
VII Estas inconstitucionalidades foram suscitadas do modo processualmente
adequado: para os efeitos da legitimidade, tal como definida no artigo 72. °,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, o meio processualmente adequado para
se suscitarem inconstitucionalidades é o recurso — que no presente caso
aconteceu, como resulta claramente dos autos;
VIII O recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça foi tempestivo e adequado, e
nele foram claramente suscitadas as inconstitucionalidades cuja apreciação se
requer à Prudente Consideração de VV. Digníssimas Excelências.
IX A expressão contida no artigo 72. °, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional
— “suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da legalidade de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão” — traduz-se,
salvo melhor opinião, no recurso ou reclamação, por contraposição a contestação
ou outras peças processuais. Assim, e para haver legitimidade para recorrer para
este Venerandíssimo Tribunal, bastará que a inconstitucionalidade seja suscitada
no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
5. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, veio dizer que “a
reclamação apresentada não abala nem põe em causa os fundamentos da decisão
sumária proferida, motivo pelo qual deve aquela ser indeferida”. Os restantes
recorridos sustentam que deve ser negado provimento à reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
6. Na decisão sumária reclamada concluiu-se no sentido da impossibilidade de
conhecer do objecto do recurso, por não ter o recorrente formulado, perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, como exige o n.º 2 do artigo 72° da
Lei do Tribunal Constitucional, qualquer questão de constitucionalidade
normativa susceptível de integrar o recurso que pretendeu interpor.
Vem o ora reclamante contestar esta conclusão, alegando, em síntese, que
suscitou as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas nas
“alíneas n) [onde afirma que “o aqui recorrente foi condenado nos termos do
artigo 160º, n.º 1, alínea a), isto é foi condenado por ter raptado outrem para
o submeter a extorsão”], r), s), eee), fff) [deverá tratar-se de errada
transcrição da decisão sumária onde se referiam as alíneas eeee) e ffff), já que
as alíneas eee) e fff) nada de pertinente têm para o presente recurso], gggg),
hhhh), iiii), jjjj), rrrr), ssss), tttt), uuuu), vvvv), xxxx), ddddd), hhhhh) e
iiiii) das conclusões do recurso”.
Sucede, porém, que essas são precisamente as conclusões da alegação de recurso
que permitiram fundar, na decisão sumária reclamada, em termos que, por
merecerem a nossa inteira concordância, agora se reiteram, que nunca o
recorrente formulou, perante o Supremo Tribunal de Justiça, como exige o n.º 2
do artigo 72° da Lei do Tribunal Constitucional, qualquer questão de
constitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso que agora
interpôs, limitando-se aí, quando muito, a alegar que a decisão judicial de que
então recorria padeceria de inconstitucionalidades, sem, porém, alguma vez
cuidar de imputar essas alegadas inconstitucionalidade - como podia e devia, se
pretendia ter aberta uma via de recurso para este Tribunal -‚ a qualquer norma
jurídica.
Assim apenas resta, reiterando a fundamentação em que se baseou a decisão
sumária reclamada, que mantém inteira validade, concluir pela impossibilidade de
conhecer do objecto do recurso e, consequentemente, pela improcedência da
presente reclamação.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício