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Processo n.º 527/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 705 e seguintes, não se tomou
conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por A., pelos seguintes
fundamentos:
“[…]
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 4.), constitui seu
pressuposto processual a invocação pelo recorrente, perante o tribunal
recorrido, da questão da inconstitucionalidade da norma ou da interpretação
normativa que se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie (cfr., ainda, o
artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
Sucede, porém, que contrariamente ao por si afirmado no requerimento de
interposição do presente recurso, o recorrente não suscitou, perante o tribunal
recorrido, a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa que
agora submete à apreciação do Tribunal Constitucional.
Perante o tribunal recorrido, com efeito, o recorrente apenas suscitou a questão
da inconstitucionalidade (material) do julgamento que havia sido realizado
(supra, 1., n.ºs 11 e 47 e conclusão), o que é algo de substancialmente diverso.
Não tendo o recorrente cumprido o ónus que, nos termos dos artigos 70º, n.º 1,
alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, sobre si impendia,
conclui-se que não se mostra preenchido um dos pressupostos processuais do
presente recurso, pelo que não é possível conhecer do respectivo objecto.
[…].”.
2. Notificado desta decisão sumária, A. dela veio reclamar para a
conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, dizendo o seguinte (fls. 725 e seguintes):
“[…]
– Ora, todas estas questões de inconstitucionalidade da interpretação normativa
dos artigos 330º e 333º do CPP foram desde logo suscitadas nas motivações do
recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida em
1ª instância. Com efeito, o recorrente alegou nos termos que se passam a
transcrever:
- «[...] é certo que, nos termos dos artigos 330° e 333º do Código de Processo
Penal, a falta de comparência do Arguido, ou do seu defensor constituído, não
implicam, necessariamente, o adiamento da sessão de julgamento» (cfr. n.° 5).
- «No entanto, no que ao Arguido diz respeito, a sua ausência só não determina o
adiamento da audiência se o Tribunal não considerar ‘absolutamente indispensável
para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da
audiência’, nos termos do n. 1 do referido art.° 333º do CPP» (cfr. n.° 6).
- «[...] não tendo o Arguido contestado a acusação particular nem o despacho de
pronúncia, afigura-se por demais evidente que a realização do julgamento sem a
presença do Arguido equivale a julgar sem que se chegue, sequer, a saber a
posição do Arguido quanto aos factos que lhe são imputados. Ainda para mais,
verificando-se também a ausência do seu defensor constituído» (cfr. n. 7).
- «Estando previamente agendada uma segunda data (17 de Outubro de 2005) para a
realização da audiência de discussão e julgamento, não se compreende, pois, como
pode o Tribunal recorrido ter optado por realizar o julgamento logo no dia no
dia 6 de Outubro de 2005, primeira data designada, prescindindo da presença do
Arguido, e nomeando para o efeito uma defensora oficiosa, advogada-estagiária,
que, como é usual, e sobejamente conhecido, não teve sequer oportunidade de
consultar o processo, com as naturais deficiências que daí advieram para o
regular exercício da defesa» (cfr. n.° 8).
- «Relembre-se que a apresentação de contestação por parte do Arguido se traduz
numa mera faculdade que lhe é conferida, pelo que a não apresentação de
contestação não implica a confissão dos factos, nem a produção de qualquer
efeito cominatório ou preclusivo» (cfr. n.° 9).
- «Por força da ausência do defensor constituído, a verdade é que as inquirições
da testemunha de acusação e do Assistente decorreram sem qualquer espécie de
contra–interrogatório» (cfr. n.° 13).
- «O Arguido viu, assim, ilegitimamente coarctada a possibilidade de exercer o
contraditório no que respeita aos depoimentos prestados pelas testemunhas de
acusação» (cfr. n.° 14).
- «Foram, desta forma, claramente violadas as garantias constitucionais
consagradas nos n.ºs 1, 3 e 5 do art.° 32º da Constituição da República
Portuguesa, ao ser vedada ao Arguido a possibilidade de ser assistido pelo
defensor que havia escolhido, o qual se encontrava, havia muito, formalmente
constituído nos presentes autos, tendo a audiência de julgamento decorrido em
manifesta violação do princípio do contraditório» (cfr. n.° 15).
- «O julgamento padece, pois, de inconstitucionalidade material, pelo que deverá
ser anulado e repetido com a observância de todas as normas constitucionais e
processuais penais aplicáveis» (cfr. n.° 16).
– Face a estas transcrições, afigura-se por demais evidente, salvo o devido
respeito e melhor opinião, carecer a decisão ora reclamada de qualquer
fundamento.
– O recorrente conclui pela inconstitucionalidade material do julgamento nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação, pedindo que o mesmo seja
anulado e repetido.
– Ora, essa inconstitucionalidade resulta, precisamente, do facto de o Tribunal
de lª instância, por fazer uma interpretação do disposto nos artigos 330° e 333°
do CPP desconforme à Constituição da República, ter decidido realizar a
audiência de julgamento na primeira data designada para o efeito, não obstante
as circunstâncias já identificadas.
– Os artigos 330° e 333° do CPP impunham o adiamento da audiência de julgamento
para a segunda data. Defender o contrário com base no disposto nos artigos 330°
e 333° do CPP equivale a dar-lhes um sentido interpretativo inconstitucional. É
esse sentido interpretativo que se pretende ver aqui apreciado, o qual originou
a realização de um julgamento em violação das garantias de defesa, que
consubstanciam verdadeiros direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente
consagrados ao recorrente na qualidade de arguido, determinando, por isso, a sua
inconstitucionalidade.
– É certo que no requerimento de interposição do presente recurso o recorrente
identifica como tendo sido violados os números 1, 3, 5 e 6 do art° 32° e números
2 e 3 do artº 18°, ao passo que nas alegações de recurso para o Tribunal da
Relação apenas são indicados como tendo sido violados os n.ºs 1, 3 e 5 do art.°
32°, todos da CRP.
– Releve-se contudo, o disposto no art.° 79°-C da Lei n.° 28/82, de 15/11, nos
termos do qual «O Tribunal só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que
a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado
aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios
constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada».
– É forçoso, pois, concluir, ter o recorrente suscitado perante o Tribunal da
Relação de Lisboa a inconstitucionalidade da interpretação normativa que agora
se submete à apreciação do Tribunal Constitucional, ou seja, a interpretação
feita pelo Tribunal de 1ª instância dos artigos 330° e 333°, que considerou que
os mesmos não determinavam o adiamento da realização da audiência de julgamento
para a segunda data designada.
– Para mais, sempre se dirá que a decisão ora reclamada não toma em consideração
todos os fundamentos do presente recurso.
– O presente recurso tem ainda por fundamento o facto de a decisão de condenação
do Arguido ser, em si mesma, inconstitucional, uma vez que a condenação no
âmbito do processo penal pressupõe a prova em juízo dos factos constantes da
acusação, de modo a que se possa concluir, sem margem para dúvidas, pela
verificação de todos os elementos do tipo. Contudo, já o inverso não se
verifica: não recai sobre o Arguido o ónus de provar a sua inocência. Em caso de
dúvida, impõe-se ao julgador decidir a favor do Arguido. Pelo que, face à
manifesta insuficiência de prova constante dos autos, impunha-se a absolvição do
Arguido.
– Concluindo-se, assim, que a condenação do Arguido proferida pelo Tribunal de
1ª instância e confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora
recorrido, viola o Princípio in dubio pro reo constitucionalmente consagrado no
n.° 2 do art. 32° da Constituição da República Portuguesa.
– Ora, também esta inconstitucionalidade havia sido suscitada de forma clara e
inequívoca nas motivações do recurso interposto para o Tribunal da Relação,
conforme se passa a transcrever:
- «Fica, pois, demonstrada, a falta de verificação de elementos essenciais do
tipo criminal em que o Arguido foi condenado. Lamentável é que tenha agora o
Arguido de vir demonstrar essa falta de verificação» (cfr. n.° 59).
- «A condenação judicial pela prática de um crime implica resultar
inequivocamente provado dos autos a verificação de todos os elementos do tipo.
Só esta prova inequívoca permite a condenação» (cfr. n.° 60).
- «Importa relembrar um dos princípios enformadores de todo o processo penal: in
dubio pro reo» (cfr. n.° 61).
- «Excluída que está a possibilidade de responsabilizar criminalmente alguém
objectivamente, sem culpa, não é ao Arguido que incumbe provar não ter agido com
culpa para que seja absolvido. Incumbia, isso sim, ao Assistente, provar a culpa
do Arguido para que este fosse condenado» (cfr. n.° 62).
- «Foi, desta forma, claramente violada a garantia constitucional consagrada no
n.° 2 do art.° 32º da Constituição da República Portuguesa» (cfr. n.° 63).
– A decisão sumária ora reclamada não chega, sequer, a levar em linha de conta
esta inconstitucionalidade cuja apreciação pelo Tribunal Constitucional o
recorrente invocou no requerimento de interposição, a qual havia já sido
suscitada perante o Tribunal recorrido nos termos atrás descritos.
[…].”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional respondeu à reclamação nos termos seguintes (fls. 731):
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, o reclamante não tem na devida conta a diferença essencial entre
a suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade
normativa e a mera imputação de «inconstitucionalidades» ao concreto e
particular acto de julgamento.
3 – Sendo certo que a fiscalização da constitucionalidade tem natureza
estritamente normativa, não podendo incidir sobre a valoração de concretos actos
ou vicissitudes processuais.”.
A segunda recorrida não respondeu (fls. 732).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. São essencialmente dois os fundamentos da presente reclamação
(supra, 2.):
a) Contrariamente ao afirmado na decisão sumária reclamada, o recorrente
suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade de certa
interpretação dos artigos 330º e 333º do Código de Processo Penal (a de que
estes preceitos não determinavam o adiamento da realização da audiência de
julgamento para a segunda data designada), como decorre da leitura da motivação
do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida
em 1ª instância;
b) A decisão sumária não tomou em consideração um outro fundamento do presente
recurso, que é o da inconstitucionalidade da própria decisão de condenação do
arguido.
5. Relativamente ao primeiro fundamento aduzido pelo reclamante
(supra, a)), é manifesta a sua improcedência.
Na verdade, da leitura do trecho da motivação do recurso que o reclamante
entendeu transcrever (supra, 2.) resulta que nenhuma inconstitucionalidade foi
imputada a qualquer interpretação normativa, nomeadamente à interpretação dos
artigos 330º e 333º do Código de Processo Penal que o reclamante censura.
Explicando ainda melhor: em nenhum ponto desse trecho se identifica a
interpretação dos artigos 330º e 333º do Código de Processo Penal que, na
perspectiva do recorrente, seria inconstitucional, pelo que não foi submetida ao
tribunal recorrido qualquer questão de constitucionalidade normativa.
E não pode dizer-se que tal identificação é feita através da genérica referência
à violação das garantias constitucionais consagradas nos n.º s 1, 3 e 5 do
artigo 32º da Constituição (cfr. o penúltimo parágrafo da transcrição do
reclamante), pois que desta referência não decorre que a causa de tal violação
seja precisamente a interpretação normativa censurada pelo recorrente.
Não tendo o reclamante logrado demonstrar que imputou a violação de normas ou
princípios constitucionais à própria interpretação normativa que censura e que
pretende agora ver apreciada, não há razão para alterar a decisão sumária
reclamada.
6. No que diz respeito ao segundo fundamento da reclamação (supra,
b)), cumpre evidenciar que o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (cfr. requerimento
de interposição, a fls. 677 e seguintes), pelo que o seu objecto só pode ser
constituído por uma norma ou interpretação normativa, nunca por uma decisão
judicial, em si mesma considerada.
Aliás, em nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional se atribui ao Tribunal Constitucional competência para apreciar a
conformidade constitucional de decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Assim sendo, da circunstância de a decisão sumária ora reclamada não se ter
pronunciado sobre a alegada inconstitucionalidade da decisão de condenação do
arguido não resulta a consequência pretendida pelo reclamante, e que é a de que
este Tribunal deve tomar conhecimento do objecto do presente recurso. Resulta
precisamente a consequência oposta: a de que não se deve tomar conhecimento do
objecto do presente recurso, também pela razão de que o recorrente submete à
apreciação do Tribunal Constitucional um objecto (uma decisão judicial) que
extravasa os seus poderes de apreciação.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a
presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 705 e seguintes, que
não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 26 de Setembro de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos