Imprimir acórdão
Processo nº 721/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam, em Conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. A., Lda., instaurou contra B., C. e D., Lda., acção declarativa de
condenação, com processo ordinário, pedindo, entre o mais, a declaração de
nulidade da venda de um prédio à segunda ré. O Tribunal Cível de Vila Nova de
Famalicão, por sentença de 11 de Janeiro de 2005, decidiu, entre o mais,
declarar a nulidade da venda impugnada.
D., Lda., interpôs recurso de apelação perante o Tribunal da Relação do Porto,
tendo este tribunal decidido, por acórdão de 22 de Novembro de 2005, julgar
totalmente procedente a apelação. Para tanto, considerou que a realização do
registo pela ré D., Lda., impede a procedência dos pedidos formulados pela
autora (fls. 949).
2. A., Lda., interpôs recurso de revista, sustentando a invalidade da referida
venda.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 11 de Maio de 2006, negou
provimento ao recurso.
Para tanto, considerou que, de acordo com as regras do registo predial, a
nulidade do contrato de compra e venda cede em face de uma aquisição subsequente
devidamente inscrita no registo (não tendo aplicação no caso o disposto no nº 2
do artigo 291º do Código Civil – fls. 1033 ss.).
3. Arguida a reforma do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, foi a mesma
indeferida por acórdão de 11 de Julho de 2006.
A recorrente interpôs então recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
A., Lda, recorrente nos autos em epígrafe, em que é recorrida D., Lda., não se
conformando com o douto Acórdão proferido a fls.
Vem
Interpor RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, nos termos do artigo 70º, al.s
b) e f) da Lei 28/82, de 15 de Novembro:
É que a recorrente considera que a interpretação e aplicação feita ao artigo 5°,
n°s 1 e 4 do Código do Registo Predial no douto Acórdão proferido constitui uma
flagrante violação do Princípio da Propriedade Privada estatuído no artigo 62°
da Constituição da República Portuguesa.
A inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do citado normativo legal
foi suscitada pela recorrente no requerimento de reforma do douto Acórdão
proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que a recorrente não dispôs
de oportunidade processual para levantar a questão da inconstitucionalidade
relativamente à interpretação dada no douto Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça.
Com efeito, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual
“a nulidade do contrato de compra e venda celebrado no dia 8 de Janeiro de 1999
cede perante as regras do registo predial, das quais decorre que a transmissão
do direito de propriedade sobre imóveis não registados não produz efeitos em
relação a terceiros que tenham inscrito a aquisição subsequente do mesmo
vendedor”, viola clara e frontalmente o Princípio Constitucional do Direito de
Propriedade Privada, consagrado no art° 62° da Constituição da República
Portuguesa.
Para além de que tal interpretação permite uma outra forma de aquisição do
direito de propriedade que não está contemplada na lei, uma vez que permite
adquirir de quem já não é dono, o que viola as elementares regras da segurança e
do comércio jurídico.
Do Acórdão de fls... proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça já não é
admissível recurso ordinário.
Requer, assim, a V.s Exas a sua admissão.
Cumpre apreciar.
4. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
A recorrente afirma que não suscitou nos presentes autos a inconstitucionalidade
da dimensão normativa que pretende ver apreciada antes da prolação do acórdão
recorrido, porque não teve oportunidade processual para o fazer.
A dimensão normativa impugnada reporta‑se às normas do artigo 5º, nºs 1 e 4, do
Código do Registo Predial, interpretadas no sentido de fazerem prevalecer o
registo realizado por um adquirente sobre a nulidade da compra e venda.
Cabe salientar que essa questão (a da prevalência do registo realizado pela ora
recorrida) integrava desde o início o objecto do litígio no processo pretexto e
o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão do qual foi interposto o recurso de
revista, aflorou expressamente o entendimento segundo o qual o registo fornece
uma tutela dos interesses do sujeito que a ele procede, prevalecendo, no caso, o
registo sobre a nulidade da venda.
Desse modo, era objectivamente previsível, em face do acórdão do Tribunal da
Relação do Porto a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça vir a entender
que o registo realizado pela recorrida D., Lda., fundamentasse a prevalência do
seu direito.
Assim, impendia sobre a recorrente o ónus da suscitação da respectiva questão de
constitucionalidade normativa. Não tendo cumprido tal ónus (como expressamente
admite o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional,
já que refere que apenas suscitou a questão no requerimento de reforma do
acórdão recorrido, o que se afigura, como se viu, intempestivo, não se verifica
o pressuposto da suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade
normativa. Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso
[artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
5. Em face do exposto, decide‑se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso de constitucionalidade.
A recorrente vem reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º‑A, nº 3,
da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A., LDA, recorrente nos autos em epígrafe, em que é recorrida D., LDA, não se
conformando com a douta decisão sumária da Exma Relatora de fls. dos autos que
decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso,
dela vem
RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA
com os seguintes fundamentos e termos:
A recorrente entende que deve ser tomado conhecimento do objecto do recurso.
A douta decisão sumária proferida pela Exma Relatora de não conhecimento do
objecto do recurso funda-se no facto de entender que era objectivamente
previsível, em face do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto a possibilidade
de o Supremo Tribunal de Justiça vir a entender que o registo realizado pela
recorrida D., Lda fundamentasse a prevalência do seu direito.
Entende-se na douta decisão recorrida que impendia sobre a recorrente o ónus da
suscitação da questão da constitucionalidade normativa e que não tendo cumprido
tal ónus, não se verifica o pressuposto da suscitação durante o processo da
questão de constitucionalidade normativa.
Ora, não podemos concordar com tal entendimento.
Com efeito, a inconstitucionalidade apontada pela recorrente verifica-se apenas
no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e não no douto Acórdão da
Relação do Porto.
O facto de ser previsível que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse vir a
entender que o registo realizado pela recorrida D., Lda fundamentaria a
prevalência do seu direito, não implicava, salvo o devido respeito, que a
recorrente suscitasse a questão da inconstitucionalidade de uma interpretação
futura que o Supremo Tribunal de Justiça poderia dar ou não.
Salvo o devido e merecido respeito, entende a recorrida que a questão da
inconstitucionalidade só se pode colocar após a aplicação ou interpretação que
se considere inconstitucional e não antes, por antecipação ou previsão.
Se assim fosse, todas as questões de inconstitucionalidade deveriam ser
suscitadas antes de cometidas, desde que previsíveis.
Ora, o douto Acórdão da Relação do Porto não decidiu a questão com base na
prevalência do registo, nem com base no artigo 5° do Cód. de Registo Predial.
Pois que no douto Acórdão da Relação do Porto considerou-se que o negócio
celebrado com a recorrente D., Lda, se não foi totalmente simulado, sempre
cairia no domínio da simulação relativa, não estando o réu vendedor inibido de
celebrar um válido contrato de compra e venda com quem quer que fosse.
No douto Acórdão da Relação do Porto não se fez aplicação nem interpretação do
art° 5° do Cód. do Registo Predial, não obstante se ter feito uma abordagem
muito simples do assunto.
Aliás, no douto Acórdão da Relação do Porto considerou-se que a ora recorrente
não provou sequer indiciariamente a aquisição da propriedade sobre o prédio em
questão.
Mais: aí se refere expressamente que na situação dos autos não se trata da venda
de bens alheios e tal não foi alegado pela autora nos seus articulados.
Ora, só no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é que foi colocada a
questão da interpretação do art° 5° do Cód. Registo Predial.
Com efeito, no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça considerou-se (ao
contrário do douto Acórdão da Relação do Porto) que a aquisição da recorrente
era válida.
Foi no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que se fez aplicação e
interpretação do artigo 291° n° 2 do Cód. Civil e do art° 5° do Cód. do Registo
Predial.
Ora, entende a recorrente que a interpretação dada no douto Acórdão do STJ ao
art° 50 do Cód. de Registo Predial é inconstitucional.
A interpretação inconstitucional que a recorrente alega apenas foi feita e
concretizada no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Por isso a recorrente não teve oportunidade de suscitar antes tal
inconstitucionalidade, uma vez que a mesma não existia nem tinha sido
concretizada.
Daí que, a recorrente tenha suscitada a questão da inconstitucionalidade no
requerimento de reforma do douto Acórdão do STJ.
É que a recorrente não dispôs de oportunidade processual para levantar antes a
questão da inconstitucionalidade relativamente à interpretação dada no douto
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, o que a recorrente põe em questão é a inconstitucionalidade da
interpretação dada ao art° 5° do Cód. do Registo Predial no douto Acórdão do
STJ.
Daí que, só após a prolação do douto Acórdão do STJ é que a recorrente teve
oportunidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade da interpretação aí
feita.
Estando em causa a interpretação dada pelo STJ no douto Acórdão recorrido ao
artigo 5° n° 1 e 4 do Cód. Registo Predial, não poderia a recorrente reagir ou
suscitar tal inconstitucionalidade antes.
Assim, entende a recorrente que a questão da inconstitucionalidade, porque
verificada apenas no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, foi suscitada
tempestivamente.
De resto, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional baseia-se na
interpretação e aplicação feita ao art° 5° n° 1 e 4 do Cód. Registo Predial no
douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a qual, segundo
entende a recorrente, viola o princípio da propriedade privada estabelecido no
artigo 62° da Constituição da República Portuguesa.
Deve, pois, entender-se que a inconstitucionalidade em causa foi tempestiva
mente suscitada.
Entende, assim, modestamente, a recorrente que deve ser tomado conhecimento do
objecto do recurso.
A recorrida pronunciou‑se no sentido da improcedência da reclamação (cf. fls.
1134 e ss.).
Cumpre apreciar e decidir.
2. A Decisão Sumária de não conhecimento do objecto do presente recurso de
constitucionalidade normativa teve como fundamento a não suscitação durante o
processo de uma questão de constitucionalidade normativa e a circunstância de a
decisão recorrida não ter sido objectivamente imprevisível ou inesperada.
A recorrente afirma, porém, que não teve oportunidade processual para suscitar a
questão de inconstitucionalidade, já que só no acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça é que foi colocada a questão da interpretação do artigo 5º do Código do
Registo Predial, segundo o qual o registo prevalece sobre a nulidade da venda do
imóvel.
Na Decisão Sumária sob reclamação, demonstrou‑se que o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto acolheu expressamente o entendimento segundo o qual o registo
in casu prevalece sobre a nulidade invocada. A reclamante na presente reclamação
não impugna tal demonstração, chegando a admitir a previsibilidade da decisão
que o tribunal recorrido veio a proferir.
Sublinhe‑se que no presente recurso, a recorrente não suscitou, durante o
processo, a questão de constitucionalidade relativa à norma subjacente a um
entendimento que o Tribunal da Relação do Porto expressamente acolheu e referiu
na fundamentação do acórdão que antecedeu o acórdão ora recorrido. Precisamente
porque foi confrontada com esse entendimento no momento em que o Tribunal da
Relação do Porto proferiu o acórdão, dispunha a recorrente dos elementos
necessários para suscitar a questão de constitucionalidade normativa no recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça.
Improcede, pois, a presente reclamação.
3. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 16 de Novembro de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos