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Processo nº 723/2006
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 1061 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Junho de 2006, de fls. 1006,
pretendendo, como resulta do requerimento de interposição de recurso de fls.
1034 e da resposta de fls. 1059, a apreciação da 'constitucionalidade' da norma
do 'artº 412.2 do C.P.Penal com referência ao seguinte preceito 'quando as
provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do
número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a
transcrição'. Isto com referência à alínea b) do n.º 2 daquele normativo.
O douto acórdão recorrido considera constitucional uma decisão que interpreta
tal norma como permitindo não conhecer do recurso em matéria de facto, quando o
recorrente, ao especificar as provas que impõem decisão diversa da recorrida,
remete para os números exactos das voltas da cassete gravada onde constam os
depoimentos contrários à decisão, ao mesmo tempo que requer a transcrição
integral das gravações'.
Em seu entender, foi assim violado o n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
Dizem ainda os recorrentes que suscitaram a inconstitucionalidade no
requerimento de interposição de recurso 'pois aquela foi praticada no douto
acórdão recorrido que é decisão final na hierarquia judicial comum'.
Pelo acórdão recorrido foi negado provimento ao recurso interposto da sentença
do 5º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada que os condenara como autores
materiais de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de quatro (B.) e dois anos e
seis meses (A.) de prisão.
Apenas para o que agora releva, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se
nos seguintes termos:
'4. Resulta das conclusões da motivação formulada pelos recorrentes que estes
impugnam a decisão do Tribunal de 1ª Instância ao nível da matéria de facto.
In casu este Tribunal poderia conhecer de facto, em conformidade com o
preceituado no art. 428º do CPP, uma vez que houve documentação da prova
produzida, oralmente, na audiência em 1ª Instância.
Sucede, porém, que, em conformidade com o disposto na al. b), do art. 431º, do
CPP, e sem prejuízo do disposto no art. 410º, do mesmo Código, a decisão sobre a
matéria de facto só pode ser modificada, havendo documentação da prova, se esta
tiver sido impugnada nos termos do art. 412º n.º 3. Dispões este normativo que,
quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve
especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas
que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas, sendo
certo que nestes últimos casos (das als. b) e c) referidas), tal especificação
faz-se 'por referência aos suportes técnicos', em conformidade com o preceituado
no n.º 4 do mesmo artº 412º.
Discutindo o acerto da factualidade dada como provada na sentença recorrida não
deram os recorrentes cumprimento às exigências enunciadas, visto não terem
efectuado referência aos suportes técnicos no sentido de dizer concretamente em
que se baseia a sua discordância da decisão do Tribunal – não basta dizer em
termos genéricos:
'Como se pode ver pelos depoimentos prestados pelas testemunhas Ruben Filipe
Cordeiro (desde as voltas n.º 144 às voltas n.º 749 do Lado B)… tal decisão não
tem base na prova produzida…' para justificar que os arguidos agiram sozinhos.
Também não especificam nas conclusões as provas que impõem decisão diversa da
recorrida.
Não tendo os recorrentes impugnado a matéria de facto nos termos do art. 412º,
n.ºs 3 e 4, do CPP, como o demonstram as conclusões da motivação dos recursos,
deverão ser rejeitados por manifestamente improcedentes nesta parte.
E, assim sendo, o incumprimento daquele ónus acarreta a impossibilidade de o
tribunal de recurso modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto (…).
Pela constitucionalidade deste entendimento se pronunciou o Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 140/2004, de 10.03.04, in DR, II série, de 17.04.04 (…)'.
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
2. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie
a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que
foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e
não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da
lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de
exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da
República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário e que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado
de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os acórdãos
nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série,
respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de
ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
Para além disso, e como o Tribunal Constitucional também já observou inúmeras
vezes, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica
que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de
repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida
(ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário
da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
3. Resulta do que se acabou de observar que o Tribunal Constitucional não pode
conhecer do presente recurso.
Com efeito, a rejeição do recurso relativo à matéria de facto assentou na
consideração de que os recorrentes não tinham dito 'concretamente em que se
baseia a sua discordância' quanto à 'factualidade dada como provada',
limitando-se a afirmar 'em termos genéricos' que dos depoimentos que indicavam,
com referência aos correspondentes 'suportes técnicos', decorria uma 'decisão
diversa da recorrida'.
Ou seja: o acórdão recorrido considerou não terem os recorrentes especificado
(explicado concretamente) o motivo que impunha que se retirasse de cada um dos
meios de prova indicados uma conclusão diferente quanto ao ponto em que
consideram incorrecta a decisão de facto. Não foi por entender inaceitável que a
especificação se fizesse por remissão para 'os números exactos das voltas da
cassete gravada', tendo sido requerida a respectiva transcrição, mas por julgar
não ter sido concretizada a razão pela qual as provas indicadas impunham um
julgamento diverso.
Concluiu, portanto, que não tinha sido observada, nem na motivação, nem
nas respectivas conclusões (cfr. o citado acórdão n.º 140/2004 deste Tribunal),
a exigência de especificar 'as provas que impõem decisão diversa da recorrida',
nos termos constantes dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal.
Isto significa que, ainda que o Tribunal Constitucional viesse a julgar
inconstitucional a norma definida pelos recorrentes, nenhuma repercussão teria
tal julgamento, por não implicar qualquer alteração no acórdão recorrido.
Tanto basta para que o Tribunal Constitucional não possa conhecer do
recurso, sem necessidade de mais considerações.
4. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da
decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs., em
conjunto.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da
decisão sumária.
Na reclamação, afirmaram o seguinte:
«. 1 - O recurso (…) não foi recebido por duas ordens de razões: a) Porque a
inconstitucionalidade não foi suscitada 'durante o processo'; b) Porque este
tipo de recurso tem natureza instrumental e só é admissível se a sua decisão
tiver possibilidade de repercutir-se na decisão recorrida.
2. - Ora, o caso concreto é este: os recorrentes pediram que fosse de novo
julgada a matéria de facto. Longe estavam de imaginar que pudesse ser
considerada constitucional a leitura duma disposição do Código do Processo Penal
que permite não julgar de facto quando se não concretiza a “razão pela qual as
provas indicadas impunham um julgamento diverso”, quando os recorrentes
especificaram os números exactos das voltas da cassete gravada, onde se podia
concluir que a decisão de facto estava errada, pela razão de que não fora feita
prova…
3. - Tratando-se dum facto negativo, para que a acusação pudesse prová-lo,
haveria de existir menção expressa por banda das testemunhas de que tal e tal
atitude tinham tido lugar. Mas, a defesa só poderia provar que isso não ocorreu,
ou seja que tal facto não existiu, quando a acusação não tivesse carreado para o
processo menções expressas da sua existência. Assim, à defesa, para provar que a
acusação não provara o facto negativo, teria de transcrever todos os depoimentos
das testemunhas da acusação, única forma de provar que essa prova não foi feita
pois só transcrevendo toda a prova se pode ver que lá não está, o facto negativo
que se declarou existir. Por isso se pediu a transcrição dos depoimentos.
4. - Se os recorrentes, gente pobre, pudessem pagar a alguém para transcrever
todos os depoimentos da acusação nos 15 dias que a lei dá para interpor e
fundamentar o recurso, isso seria fácil pois a sua simples leitura demonstraria
isso. Como não podem, o seu direito constitucional de recurso fica sem conteúdo
prático que é o único que importa, pelo menos na vida real. Se a remissão
especificada para esses depoimentos e o pedido da sua transcrição pelo tribunal
não forem o suficiente, para a prova dum facto negativo!, e razão para “um
julgamento diverso”.
5. - Ora, a interpretação oposta foi feita pelo TRL, louvando-se na
constitucionalidade tantas vezes reconhecida dum tal entendimento, que é
razoável em factos positivos. Mas, e nos negativos? Como se prova com
declarações concretas um “não facto”, que a acusação e a decisão recorrida dizem
que existiu e de que ninguém falou?
6. - Para provar que a acusação não provou um facto que o tribunal recorrido
declarou existir terá de ouvir-se ou ler-se todos os depoimentos acusatórios.
Para a defesa é impossível concretizar a razão depoimental de que as provas
indicadas impunham julgamento diverso, a não ser afirmar que tal prova não foi
feita, indicando-se especificadamente o lugar onde essa prova foi gravada e
pedindo-se a sua transcrição e leitura.
7. - Quando o tribunal de recurso recusa essa leitura porque o recorrente não
concretizou onde está a não prova, está de facto a impedir o exercício do
direito de recurso. Tal direito é constitucional. Uma interpretação que aceite
essa solução é certamente inconstitucional.
8. - Ora, uma decisão como a do douto acórdão recorrido que expressamente
considera determinada solução constitucional, talvez porque a achasse
previsivelmente controversa (caso contrário nem precisava referir-se a ela), tem
de poder ser atacada na sede própria que é este Tribunal Constitucional, não
sendo humano exigir aos recorrentes a capacidade de prever que a decisão iria
ser inconstitucional, como, ressalvado o devido respeito, é.
9. - A lei não limita a discussão da constitucionalidade a determinada fase do
processo, pelo que ressalvado ainda o devido respeito, não parece que tenha de
ser excepcional e anómala a escolha do próprio requerimento de interposição do
recurso para o fazer. Suscita-se a inconstitucionalidade duma decisão quando ela
é proferida, não antes.
10. - Por outro lado, o douto despacho reclamado, alicerçando-se no carácter
instrumental do recurso para este Venerando Tribunal, e prevendo que o destino
deste, mesmo que proceda serviria de pouco, não o recebe.
11. - Já se disse o suficiente para rebater, com a devida vénia este raciocínio,
pelo que se não repetirá a argumentação que aqui se dá por reproduzida.»
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da
improcedência da reclamação, por ser
'evidente que o critério normativo acolhido no Acórdão recorrido nada tem a ver
com o objecto do recurso, tal como o delimitou o recorrente, consubstanciando
interpretação normativa perfeitamente diversa da realizada pelo Tribunal 'a
quo', assente no incumprimento substancial do próprio ónus do recorrente de
impugnar concludentemente os pontos de facto que pretende questionar'.
2. Com efeito, é improcedente a reclamação.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a decisão reclamada se não pronunciou
sobre a questão de saber se a inconstitucionalidade foi ou não oportunamente
suscitada. Assim, o Tribunal não apreciará a reclamação na parte
correspondente.
Em segundo lugar, cabe observar que a razão em que assentou a decisão de não
conhecimento não é questionada na reclamação. O Tribunal Constitucional não pode
senão apreciar o objecto que os recorrentes definiram para o recurso que
interpuseram (artigo 79º-C da Lei nº 28/82), ou seja, a norma que impugnaram. E
a verdade é que não foi por ter aplicado a norma que os ora reclamantes acusam
de ser inconstitucional que o Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o recurso
relativo à matéria de facto, como se diz na decisão reclamada.
3. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não
conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs., em conjunto.
Lisboa, 27 de Setembro de 2006
Maria Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício