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Processo n.º 747/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 100 e seguintes, não se tomou
conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por A. e mulher, pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
4. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 3.), constitui seu
pressuposto processual a invocação pelo recorrente, durante o processo, da
questão da inconstitucionalidade da norma ou da interpretação normativa que
pretende ver apreciada por este Tribunal (cfr. também o artigo 72º, n.º 2, da
mesma Lei).
Resulta do requerimento de interposição do recurso que os recorrentes pretendem
que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional da
interpretação do artigo 824º do CPC segundo a qual é possível «penhorar uma
remuneração mensal, correspondente à soma de um salário mínimo nacional e do
mínimo de um subsídio de refeição, na parte em que excede o montante da
retribuição mínima nacional».
Segundo os recorrentes, a questão da inconstitucionalidade desta interpretação
normativa teria sido suscitada na motivação do recurso para o Tribunal da
Relação de Guimarães.
Sucede, porém, que da leitura dessas alegações de recurso (supra, 1.) não
resulta que os recorrentes tenham suscitado tal questão de inconstitucionalidade
normativa.
Na verdade, perante o Tribunal da Relação de Guimarães nenhuma questão de
inconstitucionalidade normativa (isto é, de inconstitucionalidade de uma norma
ou interpretação normativa) foi suscitada, limitando-se os recorrentes a imputar
a violação de normas constitucionais ao próprio despacho recorrido (cfr.
conclusão 44ª, a fls. 16), o que é algo de substancialmente diverso.
Não tendo os recorrentes suscitado, durante o processo, a questão da
inconstitucionalidade da interpretação normativa que agora pretendem que o
Tribunal Constitucional aprecie, conclui-se que não está preenchido um dos
pressupostos processuais do presente recurso, pelo que não é possível conhecer
do respectivo objecto.
[…].”.
2. Notificados desta decisão sumária, A. e mulher dela vieram
reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da
Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 114 e seguintes):
“[…]
5º - […] entendemos que das alegações de recurso resulta que o que se pretende
ver julgada é a inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 824° do C.P.C.
ou da interpretação que lhe foi dada.
6°- Do vertido nos pontos 11º a 24° e 44º das alegações de recurso extrai-se
perfeitamente que é sobre a interpretação dada ao artigo 824° do C.P.C. que os
recorrentes se insurgem.
7° - Por isso mesmo é que se diz, inclusive, que a interpretação da norma ínsita
no despacho recorrido redunda numa violação da Constituição e dos Acórdãos do
Tribunal Constitucional aí mencionados.
8º - Entendemos, por exemplo, que quando os recorrentes referem no ponto 24° das
alegações de recurso junto do Tribunal da Relação que:
«… entendemos que a decisão recorrida ao entender que é possível penhorar ou
apreender uma remuneração mensal, correspondente à sorna de um salário mínimo
nacional e do mínimo de um subsídio de refeição, na parte em que excede o
montante da retribuição mínima nacional está pois ferida de ilegalidade e
inconstitucionalidade, que desde já se invoca».
9° - E quando concluem no ponto 44º das alegações que:
«O douto despacha recorrido, ao entender que é possível apreender em processo de
insolvência a parte deste concreto salário mensal do insolvente que excede a
retribuição mínima nacional, violou o disposto no artigo 824° do C.P.C., nos
artigos 84°, 149° e 169° do CIRE, artigos 59° e 63° da CRP, bem como, o Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 177/2002, de 23de Abril».
10º - Tais alegações, conjugadas entre si mais não são do que invocar a
inconstitucionalidade da norma do artigo 824º do C.P.C. na interpretação dada
pelo despacho recorrido de que é possível penhorar ou apreender uma remuneração
mensal, correspondente à soma de um salário mínimo nacional e do mínimo de um
subsídio de refeição, na parte em que excede o montante da retribuição mínima
nacional.
11º - Para além de que, também do corpo das alegações ressalta que o que está em
causa é a inconstitucionalidade do artigo 824° do C.P.C.
12º - Pelo que esta questão resulta perfeitamente inteligível da motivação de
recurso.
13º - Entendemos que a questão prévia suscitada não poderá proceder sob pena de
um rigoroso formalismo levar à violação do direito de defesa e recurso aos
tribunais para ver apreciadas questões de direito.
14° - Desta forma, estando cumpridos todos os requisitos previstos, entre
outros, no artigo 72° do LTC, deve o recurso ser conhecido e julgada a
inconstitucionalidade da norma do artigo 824° do C.P.C. quando interpretada no
sentido de que é possível penhorar ou apreender urna remuneração mensal,
correspondente à soma de um salário mínimo nacional e do mínimo de um subsídio
de refeição na parte em que excede o montante da retribuição mínima nacional.
[…].”.
Na reclamação, requereram ainda os reclamantes (fls. 117 e
seguintes) que a reclamação apresentada fosse decidida em conferência, “mas com
a intervenção de outro Exmo. Senhor Juiz Desembargador que seja nomeado em
substituição da Exma. Senhora Juíza Desembargadora Relatora”, pelos seguintes
fundamentos:
“[…]
5° - Contudo, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 222° da Constituição
da República Portuguesa, «Os Juízes do Tribunal Constitucional gozam das
garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade
e estão sujeitos às incompatibilidades dos juízes dos restantes tribunais».
6° - Com respeito a tal princípio e com vista, precisamente, a conferir aos
cidadãos as garantias de imparcialidade dos juízes de todos os Tribunais, o
legislador estatuiu na al. e), n.º 1 do artigo 122° do C.P.C. que:
«Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou
voluntária:
Quando se trate de recurso interposto em processo no qual tenha tido intervenção
como juiz de outro tribunal, quer proferindo a decisão recorrida, quer tomando
de outro modo posição sobre questões suscitadas no recurso».
7° - A Exma. Senhora Juíza Desembargadora Relatora elaborou e subscreveu a
decisão sumária agora em crise e irá agora intervir na conferência onde tomará
posição na decisão da reclamação daquela decisão sumária por si proferida.
8º - Desta forma, a norma do n.º 3 do artigo 78°-A da LTC ao prescrever que da
decisão sumária do relator pode reclamar-se para a conferência, a qual é
constituída pelo presidente ou pelo vice-presidente pelo relator e por outro
juiz da respectiva secção, indicado pelo pleno da secção em cada ano judicial é
materialmente inconstitucional por violação do princípio constitucional da
imparcialidade dos juízes previsto no n.º 5 do artigo 222° da Constituição da
República Portuguesa.
9° - Ora, conforme, aliás, refere o artigo 204º da Constituição da República
Portuguesa, nenhum Tribunal poderá aplicar, em caso algum, normas que sejam
materialmente inconstitucionais.
[…].”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional respondeu à reclamação nos seguintes termos (fls. 121):
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante apenas revela que não teve na
devida conta a natureza normativa dos recursos de fiscalização concreta e os
ónus que justificadamente a lei coloca a cargo do recorrente que pretenda
socorrer-se do tipo de recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional – no que respeita à clareza e concludência na
especificação da questão de inconstitucionalidade normativa que pretenda
submeter a este Tribunal Constitucional.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Analisemos, antes de mais, o pedido constante de fls. 117 e
seguintes, por nele se suscitar uma questão prévia à decisão da reclamação – a
questão de saber se viola a Constituição a norma do artigo 78º-A da Lei do
Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou por diversas vezes sobre a questão
colocada pelos reclamantes.
Recentemente, no Acórdão n.º 486/06, de 15 de Setembro
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), disse este Tribunal o seguinte:
“[…]
2.3. Sustenta ainda o reclamante ser inconstitucional a norma que permite
ao relator decidir sumariamente a não admissão de recurso e a que permite à
conferência, na qual se integra o relator, confirmar tais decisões.
[…]
[…] não é certo pretender que as normas que – actualmente – disciplinam o regime
da decisão de não admissibilidade dos recursos infringem a Constituição. Nesse
regime, constante do artigo 78º-A da LTC, prevê-se uma forma expedita de afastar
liminarmente as petições manifestamente impertinentes, ou as que nem sequer
preenchem os requisitos de que a lei e a Constituição fazem depender a
admissibilidade do recurso. Da decisão sumária do relator cabe sempre reclamação
para a conferência, mecanismo que obviamente permite ao interessado contrariar
os fundamentos da primitiva decisão, mediante o processo usualmente utilizado
nos tribunais superiores, isto é, perante uma outra formação de julgamento,
ainda que nela se inclua o relator.
Nada, na Constituição, impõe uma outra solução; tais normas não ofendem,
portanto, qualquer preceito constitucional, conforme, de resto, se tem
pacificamente entendido.
[…].”.
Pelos fundamentos constantes do aresto acabado de transcrever,
indefere-se, assim, o requerido a fls. 117 e seguintes.
5. Passemos agora à decisão da reclamação propriamente dita.
Na decisão sumária ora reclamada (supra, 1.) entendeu-se que não era possível
tomar conhecimento do presente recurso, atendendo a que, durante o processo, os
recorrentes não haviam suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa (mas apenas a inconstitucionalidade de um despacho), sendo certo que,
nos termos dos artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional, lhes era exigível que o fizessem.
Os reclamantes contestam este entendimento, transcrevendo
trechos das alegações do recurso interposto para o tribunal ora recorrido dos
quais resultaria, na sua perspectiva, terem suscitado uma verdadeira questão de
inconstitucionalidade normativa (supra, 2.).
Sucede, porém, que os trechos transcritos corroboram a
conclusão a que se havia chegado na decisão sumária reclamada.
Desses trechos, na verdade, resulta que nenhuma
inconstitucionalidade foi imputada a qualquer norma ou interpretação normativa:
assim, no ponto 24º das alegações desse recurso foi arguida a
inconstitucionalidade da decisão [então] recorrida e no ponto 44º das alegações
foi imputada a violação de normas inconstitucionais ao despacho [então]
recorrido.
Não têm portanto os reclamantes qualquer razão quando sustentam
que, nas mencionadas alegações produzidas perante o tribunal ora recorrido,
suscitaram, não a questão da inconstitucionalidade de um despacho, mas uma
questão de inconstitucionalidade normativa.
Improcede assim manifestamente a reclamação.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária de
fls. 100 e seguintes, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Novembro de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos