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Processo n.º 769/05
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. A., melhor identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal
Constitucional do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que
indeferiu a reclamação apresentada contra o despacho do Desembargador-relator no
Tribunal da Relação de Coimbra, que não admitiu o recurso que o arguido
pretendeu interpor para o Supremo do acórdão da Relação que julgou improcedente
a arguição da nulidade da notificação do anterior acórdão da mesma Relação.
Pretende o recorrente que:
«Seja declarada a inconstitucionalidade da norma contida na alínea c) do número
1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação acolhida no
douto despacho do Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator do Supremo
Tribunal de Justiça [queria dizer na Relação] e no douto despacho do
Excelentíssimo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual tal
norma do Código Processual Penal pode originar um afastamento da garantia do
direito ao recurso no caso objecto dos presentes autos, em que se indefere a
admissão, com base nessa interpretação, de um recurso sobre decisão proferida
pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra em 1ª instância (que julgou
inverificada a nulidade, arguida pelo Recorrente, da notificação de Acórdão
desse Venerando Tribunal da Relação), a qual resulta recorrível, nos termos da
alínea a) do artigo 432.º do Código de Processo Penal, porque a mesma não pôs
termo à causa, por violação das garantias de defesa dos arguidos, da estrutura
acusatória do processo criminal e do direito não recurso, como imposto pelo
artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente nos seus
números 1 e 5.»
Através do requerimento de fls.234, veio o recorrente esclarecer que:
A. «Quanto ao recurso do douto despacho do Excelentíssimo Senhor
Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, que a inconstitucionalidade do
artigo 400 n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal foi suscitada na
reclamação para o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça.
B. Quanto ao recurso do douto despacho do Excelentíssimo Senhor Juiz
Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que não pôde suscitar a
questão da inconstitucionalidade em peça anterior a tal douta decisão, por ter
sido colhido de surpresa, pela interpretação normativa ali feita.
C. Mais esclarece, que os doutos recursos acima referidos foram
interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro.»
2. De acordo com o requerimento de interposição de recurso, complementado com o
requerimento de fls. 234, pretende o arguido recorrer para o Tribunal
Constitucional, simultaneamente, do despacho do Desembargador-relator no
Tribunal da Relação de Coimbra, que não admitiu o recurso do acórdão da mesma
Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, e do despacho do Presidente do
Supremo, que indeferiu a reclamação apresentada contra aquele despacho de não
admissão do recurso.
Ora, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade com fundamento na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), só
pode ser interposto de decisão que já não admita recurso ordinário, sendo
equiparadas a recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos
tribunais superiores, nos casos de não admissão ou retenção de recurso (cf. n.ºs
2 a 4 do artigo 70.º da LTC).
No caso dos autos, a questão que se pretende ver apreciada diz respeito à
admissibilidade do recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de
Justiça, que foi decidida em última instância pelo despacho do Presidente do
Supremo, o qual, não sendo passível de recurso ordinário constitui a única
decisão recorrível para efeitos de recurso de constitucionalidade.
Deste modo, não é admissível o recurso do despacho do Desembargador-relator na
Relação de 9 de Dezembro de 2004.
3. Contudo, também não pode tomar-se conhecimento do objecto do recurso quanto
ao despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo caso de proferir
decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, por não ocorrerem os pressupostos de admissibilidade do tipo de
recurso em causa.
4. Com interesse para a decisão importa reter as seguintes ocorrências
processuais:
a)Por acórdão de 30 de Junho de 2004, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu:
“-Julgar improcedente o recurso relativamente às invocadas nulidades de
julgamento, omissão de pronúncia sobre questão suscitada em audiência e falta de
exame da prova documental/pericial para que a decisão remete; - Julgar
procedente o recurso no que toca à falta de tomada de posição sobre a matéria da
contestação e insuficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto,
anulando o douto acórdão recorrido (não o julgamento) e determinando a
elaboração de novo acórdão, pelos mesmos juízes, tomando posição sobre os factos
relevantes descritos na contestação, estabelecendo os que considera provados e
não provados e procedendo à análise crítica da prova produzida, no que concerne
aos pressupostos fácticos dos crimes, designadamente o nexo de causalidade
adequada entre a actuação do arguido e os actos de disposição que determinaram o
prejuízo de terceiros, por forma a permitir estabelecer o percurso lógico da
decisão no que toca a tais pressupostos; - Ficar prejudicado, em face da decisão
anterior, o conhecimento das questões relativas à decisão de mérito.”
b) O arguido pediu a aclaração e reforma deste aresto e arguiu a nulidade por
não ter sido pessoalmente notificado desta decisão.
c) Por acórdão de 27 de Outubro de 2004, o Tribunal da Relação de Coimbra
decidiu: “indeferir quer a arguição de nulidade, quer o requerimento em que se
pede que se declare que o prazo de interposição do recurso se inicia no dia
12.07.2004, quer os pedidos de aclaração”.
d) Inconformado o arguido interpôs recurso do primeiro aresto (o acórdão de 30
de Junho de 2004) para o Tribunal Constitucional e do acórdão de 27 de Outubro
para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos constantes de fls. 204 e 205.
e) Por despacho do Desembargador Relator, de 9 de Dezembro de 2004, não foi
admitido nenhum dos recursos, com os seguintes fundamentos:
«Recorre o arguido A. para o STJ da decisão que, num momento posterior à
prolação do acórdão sobre o recurso de mérito, julgou improcedente a arguição de
nulidade da notificação do referido acórdão (fls. 161 e segs.).
Nos termos do art. 400º, n.º 1, al. c) do C.P.P. não admitem recurso as decisões
do T. da Relação que não põem termo à causa.
Invoca o recorrente o disposto no art. 432º, al. a) do C.P.P.
No entanto, a decisão em causa não foi proferida em nenhum dos casos em que o
Tribunal da Relação decide em 1ª instância, como ali se prevê. Pelo contrário,
trata-se de despacho proferido no âmbito do recurso em que a Relação decidiu em
2ª instância – tendo declarado nulo o acórdão da 1ª instância, para ali ser
proferido um outro que colmate os vícios que lhe foram apontados.
Aliás não faria sentido admitir-se o recurso da questão incidental surgida ou
criada no recurso e já não na decisão de mérito – equivalia a fazer entrar pela
janela o que não cabe na porta.
Assim, não admitindo recurso para o STJ o despacho em causa, vai o mesmo
rejeitado, não se admitindo.
Na mesma peça recorre ainda o mesmo arguido para o Tribunal Constitucional.
Sucede que no requerimento em que arguiu a nulidade (v. fls. 6116 a parte
correspondente) não invocou qualquer inconstitucionalidade. Ou que entendimento
diferente daquele que enuncia redundasse em inconstitucionalidade.
Assim, não tendo a falada inconstitucionalidade sido invocada em tempo útil para
que o Tribunal recorrido dela pudesse ter conhecido, face ao disposto no art.
70º, n.º 1, al. b) da Lei do T. Constitucional (Lei 28/82, de 15.11) e do art.º
76.º, n.º 2 da mesma Lei, não se admite o recurso interposto para o T.
Constitucional.»
f) Por requerimento de fls. 213 pediu o arguido que sobre a decisão de não
admissão do recurso para o Tribunal Constitucional recaísse acórdão, constando
de fls. 210 cópia do despacho do relator, de 9 de Março de 2005, a julgar inútil
a apresentação dos autos à conferência por, entretanto, “na respectiva
reclamação” ter sido proferido despacho a admitir o recurso.
g) Quanto à decisão de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, veio o arguido deduzir reclamação para o Presidente daquele Supremo
Tribunal, pugnando pela admissibilidade do recurso, nos seguintes termos:
«Na verdade, e conforme oportunamente expôs na própria Motivação de Recurso,
entende o Recorrente, ora Reclamante, que este recurso é admissível, uma vez que
se limitará a uma douta decisão que o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra
não proferiu em recurso.
Com efeito, o Recorrente, ora Reclamante – exactamente para que dúvidas não se
viesse a colocar sobre isso – limitou expressamente o recurso à questão da
nulidade da notificação do douto Acórdão que decidiu o primeiro recurso antes
referido (aquele que havia sido interposto da decisão do Tribunal da Figueira da
Foz).
Ou seja: o Recorrente, ora Reclamante, havia expressamente limitado o recurso a
um acto (a notificação) e a uma decisão em que aquele Venerando Tribunal agiu
(actuou e decidiu) verdadeiramente em primeira instância.
E, assim sendo, parece ao Recorrente, ora Reclamante, que não deve considerar-se
aplicável ao caso o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 400º do Código de
Processo Penal.
E parece também que outra interpretação dessa norma – nomeadamente, no sentido
de considerar “acórdãos proferidos em recurso” todas as decisões proferidas
pelas relações no âmbito de processos de recurso, ainda que digam respeito a
actos próprios das relações, como o são as notificações que estes tribunais
fazem das decisões que proferem, ainda que em sede de algum processo de recurso
– faz enfermá-la de inconstitucionalidade por violação direito ao recurso
consagrado pelo n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.»
h) Por decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Junho de
2005, foi indeferida a reclamação, com os seguintes fundamentos:
«Na hipótese em análise, está em causa um acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra que julgou inverificada a nulidade da notificação do acórdão por ela
proferido, arguida pelo ora reclamante.
O acórdão de que pretende recorrer o arguido foi proferido em 1ª instância pela
Relação, por ter sido aí que pela primeira vez foi apreciada esse questão.
Porém, o acórdão sobre que recaiu a arguição de nulidade por falta de
notificação pessoal do arguido proferido, em recurso, pela Relação, não pôs
termo à causa, pois o processo continua a correr os seus termos, atento o novo
acórdão que a 1ª instância irá proferir.
E, respeitando a invocação da nulidade processual a um acórdão irrecorrível, não
pode ser recorrível, por identidade de razão, a decisão que a apreciou.
Esta situação cai assim também na previsão da alínea c) do n.º 1 do art.º 400.º
do CPP, não sendo admissível o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.
Quanto à alegação de que o art.º 400.º, n.º 1 alínea c) é inconstitucional por
violação do art.º 32.º da CRP, refere-se que esta norma apesar de garantir o
direito ao recurso em processo criminal, não o impõem em todos os casos.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, “…o princípio
constitucional das garantias de defesa apenas impõe ao legislador que consagre a
faculdade de os arguidos recorrerem das sentenças condenatórias, e bem assim o
direito de recorrerem de quaisquer actos judiciais que, no decurso do processo,
tenham como efeito a privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros
dos seus direitos fundamentais”- Acórdão do T.C. n.º 209/90, de 10-06-90, BMJ,
398, p. 152.
Ora, não é desse tipo a decisão que se pretende seja apreciada por este S.T.J.,
uma vez que se reporta a um problema de nulidade processual.»
5. Não está em causa no presente recurso a questão da recorribilidade do acórdão
da Relação, de 30 de Junho de 2004, que decidiu o recurso da decisão da 1ª
instância, mas, tão só a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça do acórdão da Relação (no caso o acórdão de 27 de Outubro de 2004) que
indeferiu a arguição da nulidade da notificação daquele primeiro aresto.
Como resulta da síntese acima efectuada, entendeu-se no despacho do
Desembargador-relator não ser aplicável ao caso o disposto no artigo 432.º,
alínea a), do Código de Processo Penal, porque, contrariamente ao invocado pelo
recorrente, o acórdão não tinha sido proferido em nenhum dos casos em que o
Tribunal da Relação decide em 1ª instância, e, não sendo admissível recurso do
acórdão que conheceu de “mérito”, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo
400.º do Código de Processo Penal, por, no caso, não ter posto termo à causa,
também não era recorrível o acórdão que decidiu a questão incidental criada em
sede de recurso. Em suma, entendeu-se ser aplicável ao acórdão que decidiu o
incidente o mesmo regime de admissibilidade do recurso do acórdão principal.
Na reclamação apresentada para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o
reclamante sustentou não ser aplicável o disposto na alínea c) do n.º 1 do
artigo 400.º do Código de Processo, tendo invocado que, «outra interpretação
dessa norma – nomeadamente, no sentido de considerar “acórdãos proferidos em
recurso” todas as decisões proferidas pelas relações no âmbito de processos de
recurso, ainda que digam respeito a actos próprios das relações, como o são as
notificações que estes tribunais fazem das decisões que proferem, ainda que em
sede de algum processo de recurso – faz enfermá-la de inconstitucionalidade por
violação direito ao recurso consagrado pelo n.º 1 do artigo 32º da Constituição
da República Portuguesa».
Ora, a questão que o recorrente suscitou na reclamação não coincide com aquela
que no requerimento de interposição constitui o objecto do recurso. É que,
enquanto ali o que se questiona é a interpretação normativa que conduz à
qualificação do acórdão recorrido como “proferido em sede de recurso” para
efeitos de aplicação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de
Processo Civil, aqui, o que se discute é a aplicação ao caso concreto desta
norma e não a da alínea a) do artigo 432.º do mesmo código, como é o
entendimento do recorrente.
Acresce, que a questão da aplicação ao caso de uma ou de outra das normas em
causa não é uma questão de constitucionalidade normativa, antes configura uma
forma de impugnação da decisão judicial em si mesma considerada e dos seus
fundamentos, a qual, como se sabe, não pode ser objecto do recurso de
constitucionalidade.
6. Mas, mesmo que se entendesse que a questão agora colocada se reconduziria à
interpretação normativa especificada na reclamação, ou seja, à interpretação da
alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, no sentido de
considerar “acórdãos proferidos em recurso” todas as decisões proferidas pelas
relações no âmbito de processos de recurso, ainda que digam respeito a actos
próprios das relações, como o são as notificações que estes tribunais fazem das
decisões que proferem, ainda que em sede de algum processo de recurso”, então,
não poderia tomar-se conhecimento do recurso porquanto o despacho recorrido não
aplicou a norma com semelhante interpretação.
Na verdade, o fundamento da aplicação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo
400.º do Código de Processo Penal, não se baseou no entendimento de que o
acórdão em causa foi proferido em “sede de recurso” – pois perfilhou-se o
entendimento de que o acórdão da Relação, “que julgou inverificada a nulidade da
notificação do acórdão por ela proferido” e de que o arguido pretende recorrer,
“foi proferido em 1ª instância pela Relação, por ter sido aí que pela primeira
vez foi apreciada essa questão” –, mas sim na consideração de que não sendo
recorrível o acórdão (principal), por não ter posto termo à causa, também não
era recorrível, por idêntica razão, a decisão que apreciou a nulidade da
notificação.
7. Porém, caso houvesse de ser apreciada a questão da não admissibilidade do
recurso do acórdão que decidiu da nulidade da notificação do primeiro aresto da
Relação, tal como o despacho recorrido aplicou a norma da alínea c) do n.º 1 do
artigo 400.º do Código de Processo Penal, ou seja, com o sentido de que sendo
irrecorrível o primeiro aresto, por não por termo ao processo, também, por
idêntica razão, não era recorrível o acórdão que decidiu a nulidade processual
imputada ao primeiro, a mesma seria manifestamente improcedente.
Na óptica do recorrente a interpretação que conduziu à decisão de não
admissibilidade do recurso viola as garantias de defesa do arguido, a estrutura
acusatória do processo criminal e do direito ao recurso, impostos no artigo
32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição.
Sendo descabida a convocação para o caso a convocação do “princípio do
acusatório”, importa analisar se com tal interpretação foram ou não violados os
direitos de defesa do arguido e, em especial, do direito ao recurso.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a constitucionalidade da norma
em apreço, tendo concluído pela sua não desconformidade com a Constituição,
designadamente do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1 (Cfr.
acórdão n.º 44/2005, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Janeiro
de 2005).
Porém, importa reter que a situação apreciada no acórdão 44/2005 é diferente da
dos presentes autos, pois, enquanto ali se discutia a irrecorribilidade do
acórdão da Relação que se pronunciou em sede de recurso sobre a decisão da 1ª
instância, aqui, a decisão recorrida, embora proferida em sede de recurso do
acórdão da 1ª instância, pronuncia-se pela 1ª vez sobre questão que foi
suscitada na Relação.
A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas
normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os
processos das diferentes espécies, mas importa, todavia, averiguar em que medida
a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de
preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa, ao
direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efectiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional
tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Conforme se referiu, entre outros no acórdão n.º 189/2001 (publicado in Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 285):
«… a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito ao
recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por
um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a
consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento
específico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de
1997, no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, do direito ao recurso mostra que o
legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional
expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal,
sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial
das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo
grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os
sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz
nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às
decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros
direitos fundamentais (veja‑se, neste sentido, o Acórdão n.º 265/94, in Acórdãos
do Tribunal Constitucional, 27.º vol., pág. 751 e seguintes).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional,
o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no
n.º 1 do artigo 32.º (O processo criminal assegura todas as garantias de
defesa, incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha
vindo a considerar como conformes à Constituição determinadas normas
processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de
determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v. g.,
quer de despachos interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos n.ºs
118/90, 259/88 e 353/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 15.º, pág.
397, vol. 12.º, pág. 735, e vol. 19.º, pág. 563, respectivamente, e Acórdão n.º
30/2001, sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o
arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério
Público acompanhe tal acusação, ainda inédito), como também tenha já entendido
que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente
assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os
arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ (veja‑se, neste
sentido, o Acórdão n.º 209/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º
vol., pág. 553).
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a
instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões
de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta
limitação à recorribilidade das decisões penais condenatórias tem, assim, um
fundamento razoável.»
Ora, no caso dos autos, não tendo a decisão recorrida posto termo ao processo e
não estando em causa uma decisão condenatória nem respeitante à situação do
arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros
direitos fundamentais, a interpretação da norma em causa não viola os direitos
de defesa do arguido nem o direito ao recurso constitucionalmente consagrados.
É certo que o Tribunal Constitucional também já teve o ensejo de pronunciar
sobre questões interpretativas que conduziram à aplicação da norma da alínea c)
do n.º1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, tendo concluído pela
inconstitucionalidade dessas interpretações (cfr. os acórdãos n.ºs 597/2000 e
686/2004, publicados no Diário da República, II Série, de 25 de Janeiro de 2001
e de 18 de Janeiro de 2005).
Porém, os fundamentos que conduziram ao julgamento de inconstitucionalidade
proferido nestes arestos não são convocáveis para os presentes autos.
Na verdade, no acórdão n.º 597/2000 estava em causa o recurso de um aresto da
Relação sobre questões de direito processual penal, e a fundamentação que
funcionou como ratio decidendi assentou na arbitrariedade da distinção, como
fundamento de irrecorribilidade, entre questões processuais e substantivas, o
que não ocorre nos presentes autos.
Quanto ao segundo acórdão – o acórdão n.º 686/2004 – versava sobre uma situação
particular em que, constituindo o pronunciamento judicial do qual se pretendia
recorrer uma decisão, tomada pela primeira vez no processo, do próprio Tribunal
da Relação (a classificação do processo como de «excepcional complexidade», com
o consequente alargamento dos prazos de prisão preventiva, cfr. artigo 215.º,
n.º 3 do CPP), só o recurso para um tribunal de hierarquia superior, garantiria
efectivamente o direito a um duplo grau de jurisdição. Ora, não é uma decisão
deste tipo que está em causa nestes autos.
8. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 unidades de
conta, sem prejuízo do apoio judiciário.”
2. O recorrente reclamou para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo
78.º‑A da LTC, realçando os seguintes aspectos da sua discordância com a decisão
sumária:
“Em primeiro lugar, como referido pela Mma. Juiz Conselheira Relatora, o direito
ao recurso assume uma importância vital no âmbito do procedimento criminal, pelo
que, quando perante duas normas, como as contidas na alínea a) do artigo 432º e
na alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, a dar-se
prevalência na aplicação de uma ou outra, dar-se-á sempre àquela que garanta os
direitos fundamentais do Arguido, e não à que os diminui, desprotegendo-o.
Depois, se bem que o direito ao recurso apareça de alguma forma limitado com “um
fundamento razoável”, ou seja, com vista a “impedir que a instância superior da
ordem judiciária accionada fica avassalada com questões de diminuta repercussão
(…)”, deverá sempre atender-se ao caso concreto em análise. E neste caso,
estamos mesmo perante uma dupla violação do direito ao recurso
constitucionalmente consagrado, já que, não só não é admitido recurso da decisão
que indeferiu a nulidade arguida por uma outra decisão não ter sido notificada
pessoalmente ao Arguido, tolhendo, encolhendo, diminuindo quase
irremediavelmente a sua oportunidade de sobre ela se pronunciar, como também não
é admitido recurso (desta feita, para o Tribunal Constitucional) da decisão
proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
E isto resultará não só grave por si, como também contradiz a referida Mma. Juiz
Conselheira Relatora na sua análise constante da decisão sumária reclamada, ou
seja que “a interpretação da norma em causa não viola os direitos de defesa do
arguido nem o direito ao recurso constitucionalmente consagrado”, já que,
conforme o acima referido, viola, clara e duplamente, os direitos de defesa do
arguido e o direito ao recurso constitucionalmente consagrados.”
O Ministério Público responde à reclamação nos termos
seguintes:
“1- Afigura-se que efectivamente o recorrente não terá conseguido delinear, em
termos processualmente adequados, a questão de constitucionalidade normativa a
que pretendeu reportar o recurso interposto para este Tribunal Constitucional.
2- Na verdade, a questão que se pode suscitar quanto à interpretação normativa
da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º consubstancia-se nos seguintes termos: será
conforme aos princípios constitucionais das garantias de defesa e da igualdade o
entendimento segundo a qual são insusceptíveis de recurso os acórdãos
interlocutórios, proferidos pelas relações, em primeiro grau de jurisdição,
durante a tramitação de recurso ordinário perante elas pendente, só pelo facto
de ser insusceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão
final que aprecia a decisão recorrida, proferida em 1ª instância?
3- O que está em causa não é, pois, a mera questão do enquadramento
jurídico‑processual de tal problemática nas normas dos artigos 400º, n.º 1,
alínea c) ou na alínea a) do artigo 432º do Código de Processo Penal – matéria
atinente à interpretação e aplicação do direito ordinário –, nem determinar se
tal acórdão foi proferido pela Relação “em primeira instância” ou “em sede de
recurso” (sendo, aliás, evidente que tal alternativa expressa um equívoco: o
dito acórdão enquadra-se na tramitação de um recurso pendente perante a Relação
– e não numa causa que perante ela decorra, excepcionalmente, em primeira
instância – apenas se verificando que – pelo facto de a decisão final do recurso
não ser susceptível de impugnação autónoma, ficará precludido o recurso da
decisão interlocutória, apesar de sobre ela não ter incidido o duplo grau de
jurisdição).
4- Era esta a questão de constitucionalidade que o recorrente deveria ter
equacionado no âmbito da reclamação que deduziu perante o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça, sendo manifesto que, ao contrário do que se refere a fls.
234, a decisão proferida em tal reclamação não se configura manifestamente como
decisão-surpresa” que, pelo seu carácter insólito e imprevisível, dispensasse o
recorrente do ónus de adequada e tempestiva suscitação da questão de
inconstitucionalidade normativa.”
3. O reclamante nada diz que seja directamente dirigido a rebater os fundamentos
da decisão reclamada quanto às razões para o não conhecimento do objecto do
recurso.
Não custaria admitir, nas circunstâncias do caso concreto em que no tribunal a
quo se formulou convite a completar o requerimento de interposição do recurso,
ao abrigo do n.º 5 do artigo 75.º- A da LTC, convidando-se a fazer outras
indicações sem que esta deficiência na indicação da norma fosse também
assinalada, que a questão de constitucionalidade que se pretendia submeter à
apreciação do Tribunal era aquela que na reclamação se suscitou quanto à alínea
c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal. Já mais duvidoso seria
que pudesse ultrapassar-se o facto de não existir coincidência entre esse
sentido normativo (são irrecorríveis todos os acórdãos proferidos pelas relações
no âmbito de processos de recurso, ainda que digam respeito a actos próprios das
relações, como o são as notificações que estes tribunais fazem das decisões que
proferem ) e aquele que operou como ratio decidendi (são irrecorríveis as
decisões que recaiam sobre incidentes relativos à notificação de acórdãos,
proferidos em recurso, que não ponham termo à causa). O critério normativo de
decisão não foi o de que são irrecorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça
todas e quaisquer decisões proferidas pelas relações durante a tramitação de
recurso ordinário perante elas pendente, só pelo facto de ser irrecorrível o
acórdão final que recaia sobre esse recurso ordinário. Decisivo, e elemento
essencial do critério normativo, foi que a questão incidental objecto de decisão
agora considerada irrecorrível respeita à validade de acto relativo a esse outro
acórdão final, ele próprio irrecorrível por não pôr termo à causa.
De todo o modo, mesmo para quem entenda possível ultrapassar este obstáculo de
ordem formal – designadamente, por considerar que se trata, afinal, de proceder
a uma mera redução daquele outro sentido com que a constitucionalidade da alínea
c) do n.º 1 do artigo 400.º CPP foi questionada, susceptível de ser alcançada
mediante a delimitação do objecto do recurso sem preterir o ónus da sua
definição inicial por parte do recorrente – a questão de constitucionalidade é
manifestamente infundada pelas razões referidas no n.º 7 da decisão sumária, que
correspondem à jurisprudência do Tribunal na matéria do duplo grau de
jurisdição, designadamente quanto à garantia de recurso pelo n.º 1 do artigo
32.º da Constituição, que se reitera. Importa lembrar, porque estamos num
recurso de fiscalização concreta, que se trata de não admitir recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão que recai sobre uma arguição de
nulidade que consistiria em não ter sido pessoalmente notificado ao arguido,
tendo-o sido ao seu mandatário constituído, um acórdão de que, em último termo,
resulta a anulação do julgamento de primeira instância. Aliás, na reclamação, o
recorrente limita-se, embora valorizando argumentos de ordem constitucional, a
procurar demonstrar que a situação deveria ser enquadrada na alínea a) do artigo
432.º e não na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal,
que é matéria atinente à interpretação e aplicação do direito ordinário,
excluída da competência do Tribunal Constitucional.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 22 de Setembro de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício